O campo da alimentação e nutrição sofreu grandes transformações no Brasil e no mundo nos 40 anos de existência de Cadernos de Saúde Pública (CSP). No Brasil, esse período é marcado por profundas mudanças epidemiológicas: da fome, desnutrição e deficiências nutricionais como única prioridade na agenda da Saúde Coletiva para a centralidade da obesidade e das doenças crônicas não transmissíveis relacionadas à alimentação, e, mais recentemente, para um cenário de recrudescimento da fome e da insegurança alimentar e nutricional concomitante com o aumento da obesidade 11. Batista Filho M, Rissin A. A transição nutricional no Brasil: tendências regionais e temporais. Cad Saúde Pública 2003; 19 Suppl 1:S181-91.,22. Conde WL, Silva IV, Ferraz FR. Undernutrition and obesity trends in Brazilian adults from 1975 to 2019 and its associated factors. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 1:e000149721.,33. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil: II VIGISAN: relatório final. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert/Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar; 2022.. Também marcam esse período importantes transformações em relação à institucionalidade das políticas de alimentação e nutrição, com rearranjos nas arenas e instâncias de governança, fortalecimento da área de alimentação e nutrição no Sistema Único de Saúde (SUS) e a criação do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), de natureza intersetorial, que apresenta novas oportunidades e desafios para fazer avançar a agenda dessas políticas públicas 44. Mattos RA. National food and nutrition policies and the institutional trajectories of the rights to health and food. Cad Saúde Pública 2021; 37 Suppl 1:e00149120.. Outro fato relevante desse período foi a expansão da formação pós graduada em ciências nutricionais, que tem como importante ponto de inflexão a criação do Fórum Nacional de Coordenadores de Programas de Alimentação e Nutrição em 2006 55. Kac G, Fialho E, Santos SMC, Assis AMO. Reflexões do I Fórum de Coordenadores de Programas de Pós-graduação em Nutrição no Brasil. Rev Nutr 2006; 19:785-92. e, posteriormente, da área de Nutrição na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), em 2011 66. Kac G, Proença RPC, Prado SD. A criação da área "nutrição" na Capes. Rev Nutr 2011; 24:905-16., e a contínua expansão do número de cursos de pós-graduação stricto sensu nessa área, além da ampliação de cursos de mestrado e doutorado em Saúde Coletiva, muitos dos quais com grupos de pesquisa e disciplinas em alimentação e nutrição.
Neste Editorial, refletimos sobre o quanto esta revista, tão importante para a Saúde Coletiva, tem sido sensível aos marcos transformativos da alimentação e nutrição, configurando-se desde seu início como espaço que expressa e dialoga com o processo de mudança acima descrito, difunde a produção acadêmica sobre essa temática com diferentes recortes (como os da Epidemiologia, das Ciências Sociais e Humanas, e de Política, Planejamento e Gestão) e, ao mesmo tempo, contribui para os avanços e rumos da produção do conhecimento e das políticas públicas nessa área. Para ilustrar esse compromisso, optamos por destacar alguns temas abordados, publicações e números temáticos que expressam essa trajetória. Não temos a pretensão de realizar um estudo detalhado e rigoroso sobre como essa temática vem sendo abordada cotidianamente nas páginas de CSP. Nossa intenção, com esta reflexão, é registrar, como em uma conversa informal, flashes que consideramos marcantes nesse percurso. Antes de embarcarmos nessa jornada, consideramos importante registrar uma mudança marcante ocorrida em 2001 em CSP, que foi a inclusão de uma editoria dedicada à alimentação e nutrição. É desse lugar que apresentamos essa reflexão: Kac atuou como Editor Associado de CSP para alimentação e nutrição de 2001 a 2015, e Castro está nessa função desde então.
Refletindo um aspecto estrutural de nossa sociedade, os temas da fome e, mais recentemente, da (in)segurança alimentar têm sido pautados por diferentes autores ao longo desses 40 anos, seja em sua interface com o perfil epidemiológico da população, seja na perspectiva de seus determinantes ou, ainda, de políticas públicas que respondam a essas mazelas. Exemplos disso são alguns dos ensaios de Arruda 77. Arruda BKG. O desafio da alimentação e nutrição. Cad Saúde Pública 1985; 1:296-304., Arruda & Figueira 88. Arruda BKG, Figueira F. Aspectos geopolíticos da problemática alimentar e nutricional. Cad Saúde Pública 1988; 4:62-87. e Batista Filho 99. Batista Filho M. From hunger to food security: retrospective and prospective views. Cad Saúde Pública 2003; 19:873., publicados ao longo dos primeiros 20 anos de CSP, e editoriais que discutiram a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional em 2018 1010. Castro IRR. The dissolution of the Brazilian National Food and Nutritional Security Council and the food and nutrition agenda. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00009919., e sua reinstalação em 2023 1111. Recine EGIG. Consea is back! Or how to resist in challenging times. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00086523..
Em diálogo com essa temática estão as publicações referentes ao estado nutricional de diferentes grupos populacionais e sua tendência temporal. O número temático publicado em 1993 (vol. 9 Suppl 1), que teve como foco o crescimento e o desenvolvimento físicos, abordados sob diferentes perspectivas, é exemplo disso.
Diversos temas relevantes na agenda de alimentação e nutrição também vêm sendo abordados em outros números temáticos oportunamente publicados por CSP. Em 2003, quando a questão da obesidade ganhava centralidade na agenda da saúde em países de baixa e média renda, foi publicado o número temático A Transição Nutricional e a Epidemiologia Nutricional na América Latina (vol. 19 Suppl 1), contemplando artigos que visavam colaborar para o melhor entendimento da dinâmica do fenômeno de transição nutricional e, sobretudo, do papel que a obesidade exercia, no começo dos anos 2000, no complexo perfil epidemiológico em distintos grupos populacionais de países tão diferentes como Peru, Chile, Argentina, Uruguai e Brasil. Esses estudos confirmaram o aumento da obesidade em crianças, adolescentes, adultos e mulheres em idade reprodutiva, além de apontar o sedentarismo e o consumo de dietas inadequadas como os principais determinantes, e, mais que tudo, clamaram por maior diversidade de políticas públicas que abarcassem ações efetivas de prevenção e controle da obesidade.
Em 2008, ocorreu a publicação do suplemento Epidemiologia Nutricional Materno-infantil e a Agenda de Prioridades de Pesquisa em Saúde no Brasil (vol. 24 Suppl 2). O objetivo desse número temático foi divulgar conhecimentos relevantes produzidos no bojo dos projetos financiados pelo edital sobre Alimentação e Nutrição, lançado em 2004 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelo então recém-criado Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, que visava reduzir a distância entre a produção do conhecimento científico, as reais necessidades de saúde da população e a formulação de políticas. A execução desse edital configurou-se em uma das iniciativas bem sucedidas do governo em financiar áreas específicas do conhecimento coerentes com o estabelecido na Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde. Essa publicação evidencia mais uma vez o acolhimento e o compromisso de CSP com as pautas do campo da alimentação e nutrição.
Em 2021, em um contexto de desmonte de políticas públicas de garantia de direitos, CSP acolheu a proposta da Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), de elaborar um número temático em celebração aos 20 anos da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) (vol. 37 Suppl 1). Esta publicação reúne importantes reflexões e evidências sobre a trajetória dessa política e questões que ela deve responder. Aponta, também, os desafios do cenário atual para sua plena implementação e fortalecimento. Entre os vários temas abordados, estão: a PNAN na atenção primária à saúde, a promoção da alimentação adequada e saudável, a evolução das medidas regulatórias em alimentação e nutrição e os conflitos de interesse e estratégias de ação política corporativa na definição de políticas de alimentação e nutrição.
CSP também publicou números temáticos com resultados de inquéritos nacionais de base domiciliar, como a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS 2019) (vol. 38 Suppl 1) e o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (ENANI 2019) (vol. 39 Suppl 2), que se relacionam com a temática de alimentação e nutrição. O primeiro número temático apresenta a situação das principais doenças crônicas não transmissíveis e dos modos de vida da população brasileira, e inclui informações sobre seu estado nutricional antropométrico e suas práticas de consumo alimentar. O segundo aborda de forma detalhada o inquérito que objetivou atualizar indicadores do estado nutricional de crianças menores de 5 anos, visando subsidiar a reformulação de políticas na área de alimentação e nutrição depois de 13 anos sem dados nacionais sobre essa temática. Esse número especial contém dados relevantes desse que é o primeiro estudo de abrangência nacional e de base domiciliar a tratar com profundidade alguns temas de alimentação e nutrição na infância, como o consumo alimentar (aferido pelo método de recordatório de 24 horas), deficiências de micronutrientes (aferidas por meio de 12 biomarcadores) e práticas relacionadas à amamentação, como a amamentação cruzada.
Por fim, gostaríamos de citar a publicação do artigo A New Classification of Foods Based on the Extent and Purpose of Their Processing [Uma Nova Classificação de Alimentos Baseada na Extensão e Propósito do seu Processamento] em CSP 1212. Monteiro CA, Levy RB, Claro RM, Castro IRR, Cannon G. A new classification of foods based on the extent and purpose of their processing. Cad Saúde Pública 2010; 26:2039-49.. Trata-se de um artigo seminal sobre a Classificação NOVA de alimentos: o segundo artigo sobre esse tema publicado pelo grupo de pesquisadores que concebeu essa classificação e o primeiro a articular a classificação com uma base empírica. A NOVA representa um novo paradigma para produção do conhecimento sobre alimentação e consumo alimentar. Ao classificar (em sua atual versão) 1313. Monteiro CA, Cannon G, Levy R, Moubarac JC, Jaime P, Martins AP, et al. NOVA. The star shines bright. World Nutr 2016; 7:28-38. os alimentos em quatro grupos de acordo com a extensão e o propósito de seu processamento e conceber o grupo de “alimentos ultraprocessados”, essa proposta ofereceu uma perspectiva de análise de dados de consumo alimentar totalmente inovadora, que tem se mostrado muito útil para a produção de evidências robustas sobre a associação entre o consumo desses alimentos e desfechos negativos em saúde 1414. Lane MM, Gamage E, Du S, Ashtree DN, McGuinness AJ, Gauci S, et al. Ultra-processed food exposure and adverse health outcomes: umbrella review of epidemiological meta-analyses. Br Med J 2024; 384:e077310.. Ela também tem sido adotada em documentos indutores de políticas públicas no Brasil e em outros países 1515. Departamento de Promoção da Saúde, Secretaria de Atenção Primaria à Saúde, Ministério da Saúde. Guia alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos. Brasília: Ministério da Saúde; 2019.,1616. Departamento de Promoção da Saúde, Secretaria de Atenção Primaria à Saúde, Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. 2ª Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.,1717. Cunha VCR, Borges CA, Canella DS. Incorporação da classificação NOVA na produção científica em alimentação e nutrição na América Latina: uma revisão cienciométrica. Arch Latinoam Nutr 2022; 72:109-24..
Como se pode depreender desse breve relato, CSP tem sido um espaço estratégico para o debate sobre alimentação e nutrição e para a difusão de conhecimento relevante para subsidiar políticas públicas que impactem positivamente as condições de vida e de saúde das populações.
Cabe dizer que segue em curso o processo de profundas transformações mencionado no início deste Editorial, que apresenta novos desafios para a agenda de alimentação e nutrição, como a relação entre sistemas alimentares e a crise climática, a captura corporativa dos espaços de governança de políticas públicas, entre outros. Esses desafios se somam a questões não superadas, como a fome, as desigualdades de raça, gênero e classe social, e as ameaças à sociobiodiversidade e às culturas alimentares.
Desejamos que CSP continue cumprindo seu papel fundamental para o avanço do conhecimento em alimentação e nutrição e para a incidência política nesse campo.
Vida longa e pujante para CSP!
Referências bibliográficas
- 1Batista Filho M, Rissin A. A transição nutricional no Brasil: tendências regionais e temporais. Cad Saúde Pública 2003; 19 Suppl 1:S181-91.
- 2Conde WL, Silva IV, Ferraz FR. Undernutrition and obesity trends in Brazilian adults from 1975 to 2019 and its associated factors. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 1:e000149721.
- 3Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil: II VIGISAN: relatório final. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert/Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar; 2022.
- 4Mattos RA. National food and nutrition policies and the institutional trajectories of the rights to health and food. Cad Saúde Pública 2021; 37 Suppl 1:e00149120.
- 5Kac G, Fialho E, Santos SMC, Assis AMO. Reflexões do I Fórum de Coordenadores de Programas de Pós-graduação em Nutrição no Brasil. Rev Nutr 2006; 19:785-92.
- 6Kac G, Proença RPC, Prado SD. A criação da área "nutrição" na Capes. Rev Nutr 2011; 24:905-16.
- 7Arruda BKG. O desafio da alimentação e nutrição. Cad Saúde Pública 1985; 1:296-304.
- 8Arruda BKG, Figueira F. Aspectos geopolíticos da problemática alimentar e nutricional. Cad Saúde Pública 1988; 4:62-87.
- 9Batista Filho M. From hunger to food security: retrospective and prospective views. Cad Saúde Pública 2003; 19:873.
- 10Castro IRR. The dissolution of the Brazilian National Food and Nutritional Security Council and the food and nutrition agenda. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00009919.
- 11Recine EGIG. Consea is back! Or how to resist in challenging times. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00086523.
- 12Monteiro CA, Levy RB, Claro RM, Castro IRR, Cannon G. A new classification of foods based on the extent and purpose of their processing. Cad Saúde Pública 2010; 26:2039-49.
- 13Monteiro CA, Cannon G, Levy R, Moubarac JC, Jaime P, Martins AP, et al. NOVA. The star shines bright. World Nutr 2016; 7:28-38.
- 14Lane MM, Gamage E, Du S, Ashtree DN, McGuinness AJ, Gauci S, et al. Ultra-processed food exposure and adverse health outcomes: umbrella review of epidemiological meta-analyses. Br Med J 2024; 384:e077310.
- 15Departamento de Promoção da Saúde, Secretaria de Atenção Primaria à Saúde, Ministério da Saúde. Guia alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos. Brasília: Ministério da Saúde; 2019.
- 16Departamento de Promoção da Saúde, Secretaria de Atenção Primaria à Saúde, Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. 2ª Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.
- 17Cunha VCR, Borges CA, Canella DS. Incorporação da classificação NOVA na produção científica em alimentação e nutrição na América Latina: uma revisão cienciométrica. Arch Latinoam Nutr 2022; 72:109-24.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
19 Ago 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
13 Jul 2024 - Aceito
15 Jul 2024