CSP e a Epidemiologia: uma história de sinergias e um futuro de desafios

Guilherme Loureiro Werneck Sobre o autor

Cadernos de Saúde Pública (CSP) completou 40 anos de existência, marcados pelo compromisso com a qualidade, inovação e pluralidade, na publicação científica em Saúde Coletiva. Nesse processo, políticas editoriais foram aprimoradas para garantir a adesão paulatina aos melhores e mais atuais princípios da Ciência Aberta e da integridade e ética na pesquisa e na publicação científica. Os artigos publicados em CSP revelam seu comprometimento histórico com a Saúde Coletiva, incluindo contribuições de uma variedade de áreas de conhecimento e disciplinas, prestando enormes serviços à consolidação da pesquisa e divulgação científica nesse campo.

Ao longo desses 40 anos, muitas transformações ocorreram nas atividades acadêmicas, e as páginas de CSP escrevem parte da história da Epidemiologia brasileira nesse período. CSP deu visibilidade à pluralidade de práticas e enfoques da Epidemiologia, permitindo a realização de uma parte de seus objetivos, quais sejam, estudar a distribuição populacional de eventos de saúde e esclarecer os determinantes e limitantes que levam à distribuição heterogênea desses eventos no espaço e tempo 1. A divulgação dos resultados dessas pesquisas epidemiológicas é parte fundamental para que a missão da Epidemiologia seja concluída, isto é, subsidiar políticas públicas que visem à promoção da saúde e a melhoria da qualidade de vida das populações, bem como a redução das iniquidades sociais na esfera da saúde 11. Krieger N. Epidemiology and the people's health: theory and context. New York: Oxford University Press; 2011.,22. Krieger N. Epidemiology and the web of causation: has anyone seen the spider? Soc Sci Med 1994; 39:887-903..

O desenvolvimento de CSP, nesse período, foi acompanhado pela expansão do Sistema Nacional de Pós-Graduação, com reflexos decisivos na formação de docentes e pesquisadores e na ampliação e qualificação da produção científica em diferentes áreas do conhecimento 33. Novaes HMD, Werneck GL, Cesse EAP, Goldbaum M, Minayo MCS. Pós-graduação senso estrito em Saúde Coletiva e o Sistema Único de Saúde. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:2017-25.. O crescimento da pós-graduação stricto sensu em Saúde Coletiva de 1990 a 2022 é notável. Em 1990, a área de Saúde Coletiva contava com apenas nove programas de pós-graduação, sendo quatro de mestrado e cinco combinando cursos de mestrado e doutorado 33. Novaes HMD, Werneck GL, Cesse EAP, Goldbaum M, Minayo MCS. Pós-graduação senso estrito em Saúde Coletiva e o Sistema Único de Saúde. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:2017-25.. Neste ano, existiam quase 100 programas de pós-graduação em 22 estados, quase todos com áreas de concentração e/ou linhas de pesquisa em Epidemiologia. Nesse percurso de tempo, os programas de pós-graduação contavam com quase 9 mil alunos matriculados ou titulados e mais de 2 mil docentes doutores em atividade. Tal processo de expansão da pós-graduação em Saúde Coletiva certamente refletiu na ampliação da base de pesquisadores e docentes em Epidemiologia, contribuindo para o crescimento e qualificação da produção científica. Assim, é razoável supor que os caminhos traçados ao longo desses anos, por CSP e pela pós-graduação stricto sensu em Epidemiologia, levaram a benefícios mútuos, com CSP provendo o espaço qualificado para a veiculação de pesquisas em Epidemiologia para os programas de pós-graduação e, os programas fornecendo para CSP uma ampliação da produção científica qualificada.

Entre 2001 e 2024, cerca de 2.900 artigos foram avaliados e aprovados por Editores Associados de Epidemiologia de CSP. Isso representa, aproximadamente, 1/4 dos artigos publicados em CSP nesses anos, ressalvando-se que esses números representam apenas uma estimativa, relativamente simplificada, do total de artigos de Epidemiologia, já que artigos de cunho epidemiológico podem ter sido aprovados por editores não classificados como de Epidemiologia e vice-versa. De qualquer forma, tal número substancial de artigos reflete a força da Epidemiologia na configuração da produção científica em Saúde Coletiva em CSP. Não surpreende que a Epidemiologia apresente um volume expressivo de contribuições, dado às próprias características do seu processo de produção científica, que encontra em artigos científicos seu mais típico veículo de divulgação de resultados de pesquisa. Há de se salientar, também, a maior institucionalização das práticas epidemiológicas em serviços de saúde, em especial a vigilância epidemiológica, fonte importante de dados e informações em saúde.

Para apreciar algo da contribuição da Epidemiologia veiculada em CSP ao longo de 2001 a 2024, analisamos palavras-chave de 2.599 desses artigos (89%) que apresentavam resumo e puderam ser localizados em busca no site da base SciELO (https://www.scielo.br/). Inicialmente, selecionamos 4.858 entre as três primeiras palavras-chave apresentadas pelos artigos, excluindo-se aquelas repetidas ou que representassem temas ou tópicos de investigação similares dentro de um determinado artigo. Após um processo de harmonização dos termos utilizados, procedeu-se à classificação em 41 temas de 4.495 palavras-chave que haviam sido utilizadas em pelo menos dois artigos. Vale salientar que tal classificação foi realizada de forma livre pelo autor, de acordo com sua experiência e visão de mundo, sem uma referência teórica explícita. Ainda, foram analisados de um a três termos por artigo, de forma que a visão propiciada por essa abordagem tem como unidade de análise não o artigo, mas o conjunto de palavras-chave selecionadas. Assim, interpretações desses resultados devem ser feitas com cautela.

De acordo com a classificação utilizada, os temas representados em mais de 2% das palavras-chave analisadas foram “alimentação e nutrição” (10,1%), “doenças infecciosas” (9,7%), “indicadores de saúde e medidas de ocorrência de doenças” (7,4%), “epidemiologia em serviços de saúde” (6,4%), “saúde da criança” (4,4%), “doenças crônicas não-transmissíveis” (4,3%), “saúde ambiental e do(a) trabalhador(a)” (3,9%), “determinantes sociais e desigualdades em saúde” (3,1%), “adolescência e saúde” (3,1%), “envelhecimento” (3%), “cuidados na gestação, parto e puerpério” (3%), “saúde sexual e reprodutiva” (2,8%), “violência e acidentes” (2,5%), “vigilância em saúde e sistemas de informação” (2,3%) e “saúde mental” (2,3%). Em relação aos desenhos de estudo abordados, inquéritos e estudos seccionais foram citados em 2,6% e estudos de coorte e caso-controle em 1,2% das palavras-chave analisadas. Métodos estatísticos de análise de dados foram especificados em 1,9% e estudos de fatores de risco conformaram 2,5%. Entre as doenças infecciosas, HIV/aids, dengue, tuberculose, doença de Chagas e leishmanioses foram as mais citadas. Outros temas específicos de investigação merecem nota, como “tabagismo e consumo de álcool e drogas” (83 menções), “atividade física” (69 menções), “saúde da mulher” (68 menções), “saúde bucal” (67 menções), “qualidade de vida” (55 menções) e “imunização” (42 menções). Destacam-se os estudos sobre instrumentos de coleta de dados, com 57 menções; entre eles, uma gama importante de estudos de avaliação de validade e confiabilidade.

Se a presença de tantos temas oferece algum conforto de que a Epidemiologia conforma uma comunidade pujante e diversa, as ausências são também gritantes. Estudos epidemiológicos que abordam assuntos atuais prementes, como questões de gênero; racismo; populações vulnerabilizadas, por exemplo quilombolas, indígenas, ribeirinhos e moradores de rua; direitos humanos; população privada de liberdade; pessoas com deficiência; preparação e resposta a emergências em saúde pública; crise climática; desinformação; interseccionalidade; entre tantas outras, precisam ser estimulados. Para CSP fica a sugestão de desenvolver estratégias inclusivas para ampliar a participação desses estudos na revista. Tais iniciativas, principalmente se acompanhadas por ações efetivas dos programas de pós-graduação em Saúde Coletiva, podem contribuir para mitigar o problema. Entretanto, por se tratar de questões estruturais que expressam os impactos de um modelo econômico desumano e predatório, é necessário mais do que uma Epidemiologia-ciência, mas uma Epidemiologia engajada em lutas que são caras e históricas à Saúde Coletiva 44. Werneck GL. Epidemiologia e pandemia de COVID-19: oportunidades para rever trajetórias e planejar o futuro. Interface (Botucatu) 2023; 27:e220340..

O perfil apresentado permite visualizar a abrangência das investigações epidemiológicas, aqui captadas nas páginas de CSP em pouco mais de 20 anos. Mesmo considerando as limitações da abordagem empregada, percebe-se que CSP oferece espaço para uma diversidade de investigações epidemiológicas, desde estudos teórico-metodológicos até estudos temáticos e operacionais. Um estudo bibliométrico formal, que utilize métodos quantitativos e qualitativos, acessando não somente palavras-chave, mas os textos dos resumos e, eventualmente, entrevistas com autores e editores poderá refletir melhor o papel que CSP tem desempenhado para a qualificação da pesquisa epidemiológica, ao mesmo tempo que possibilitará observar os eventuais benefícios gerados pela epidemiologia para o desenvolvimento de CSP. Ao longo de sua existência, CSP tem contribuído para que a pesquisa em Epidemiologia expresse sua potência, mas para que isso se realize é necessário que saiamos de nosso espaço de conforto e criemos abordagens para a investigação de temas contemporâneos emergentes. Nesse desafio, a Epidemiologia continua contando com o apoio de CSP.

Vida longa a CSP!

Referências bibliográficas

  • 1
    Krieger N. Epidemiology and the people's health: theory and context. New York: Oxford University Press; 2011.
  • 2
    Krieger N. Epidemiology and the web of causation: has anyone seen the spider? Soc Sci Med 1994; 39:887-903.
  • 3
    Novaes HMD, Werneck GL, Cesse EAP, Goldbaum M, Minayo MCS. Pós-graduação senso estrito em Saúde Coletiva e o Sistema Único de Saúde. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:2017-25.
  • 4
    Werneck GL. Epidemiologia e pandemia de COVID-19: oportunidades para rever trajetórias e planejar o futuro. Interface (Botucatu) 2023; 27:e220340.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Ago 2024
  • Aceito
    21 Ago 2024
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