Prezadas Editoras,
Li com grande interesse o ensaio A Soberania do Visível: Como a Memória Traumática se Torna Estresse Traumático11. Ferreira RRS, Ortega F. A soberania do visível: como a memória traumática se torna estresse traumático. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00132622., e considero-o significativo no campo do transtorno do estresse pós-traumático (TEPT). Os autores, no decorrer do tempo, do século XIX ao XX, relataram o impasse entre a memória literalizada do trauma e a memória pulverizada do trauma, logo, o trauma passou de um conceito cognitivo de memória para um problema de pesquisa neurocientífica do estresse, assim as concepções abstratas da memória deram lugar ao vocabulário materialista do estresse.
Em relação à narrativa histórica relatada no ensaio, gostaria de fazer a seguinte contribuição: a virada neurocientífica está em grande expansão e foi eleita com destaque pelo governo dos Estados Unidos como prioritária na década de 1990, pois ficou conhecida como a “Década do Cérebro”. Muitos também consideram o século XXI o século do cérebro, no qual as grandes conquistas da humanidade estarão dirigidas para a compreensão das funções neurais humanas 22. Martín-Rodríguez JF, Cardoso-Pereira N, Bonfiácio V, Barroso y Martín JM. La Década del Cerebro (1990-2000): algunas aportaciones. Revista Española de Neuropsicología 2004; 6:131-70.. No entanto, submeter a psicanálise à neurociência como se houvesse uma hierarquia entre elas, simplesmente importando o vocabulário da segunda para a primeira, soa equivocado, é necessário fugir dos reducionismos. A possibilidade de dialogar com outros campos que tratem do funcionamento mental pode ser enriquecedora do ponto de vista da pesquisa e da clínica, desde que guardando as particularidades de cada disciplina 33. Pinheiro E, Herzog R. Psicanálise e neurociências. Visões antagônicas ou compatíveis? Tempo Psicanal 2017; 49:37-61..
Em uma análise crítica, cabe destacar que tanto a análise subjetiva, quanto a objetiva são pertinentes no estudo do TEPT, pois existe um leque de ferramentas terapêuticas que podem auxiliar as vítimas dessa patologia, como a técnica comportamental cognitiva, a psicanálise e a abordagem farmacológica, cada uma com suas diferenças e abordagens distintas contribuem significativamente para o entendimento do funcionamento da mente e do estresse. O postulado de sensibilização neurofisiológica, pedra angular para uma abordagem neurobiológica dos transtornos do espectro traumático, junto com a pesquisa de condicionamento clássico, teorias do estresse e hipótese evolucionárias só confirmam a gama de teorias que podem embasar o TEPT, com visões divergentes, porém pertinentes, com atuação em conjunto para a evolução de vítimas do TEPT 44. Pimentel C. Clínica do trauma e narrativa do sofrimento. Fractal Rev Psicol 2014; 26:535-50..
Adentrando mais especificamente na memória, ela nem sempre é uma lembrança real dos acontecimentos, o traumatizado vive mais refém das impressões do que do acontecimento exato ocorrido 44. Pimentel C. Clínica do trauma e narrativa do sofrimento. Fractal Rev Psicol 2014; 26:535-50.. Ele vive em função de uma impressão vívida, modulada pela emoção do momento traumatizante, ficando estagnado na ruptura psíquica da emoção com a percepção 55. Louro V. A memória do trauma: uma mera impressão. https://neuromusica.files.wordpress.com/2014/10/artigo-na-c3adntegra2.pdf (acessado em Mar/2024).
https://neuromusica.files.wordpress.com/... . Além disso, algumas funções da memória podem ficar prejudicadas depois de um TEPT. A exposição a eventos traumáticos é o aspecto de contexto mais investigado atualmente, indicando associações positivas com a doença. Essa exposição ao evento é caracterizada por pensamentos intrusivos, pesadelos e flashbacks, esquiva de lembrança do trauma, cognições negativas, hipervigilância e distúrbios do sono 66. Lima E, Assunção A. Prevalência e fatores associados ao transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) em profissionais de emergência: uma revisão sistemática da literatura. Rev Bras Epidemiol 2011; 14:217-30.. O problema do trauma é tanto uma questão de quantidade, quanto de qualidade, pois a concretude da neurobiologia não pode deixar de lado a especulação de teorias subjetivas, psíquicas, comportamentais e evolucionárias.
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- 1Ferreira RRS, Ortega F. A soberania do visível: como a memória traumática se torna estresse traumático. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00132622.
- 2Martín-Rodríguez JF, Cardoso-Pereira N, Bonfiácio V, Barroso y Martín JM. La Década del Cerebro (1990-2000): algunas aportaciones. Revista Española de Neuropsicología 2004; 6:131-70.
- 3Pinheiro E, Herzog R. Psicanálise e neurociências. Visões antagônicas ou compatíveis? Tempo Psicanal 2017; 49:37-61.
- 4Pimentel C. Clínica do trauma e narrativa do sofrimento. Fractal Rev Psicol 2014; 26:535-50.
- 5Louro V. A memória do trauma: uma mera impressão. https://neuromusica.files.wordpress.com/2014/10/artigo-na-c3adntegra2.pdf (acessado em Mar/2024).
» https://neuromusica.files.wordpress.com/2014/10/artigo-na-c3adntegra2.pdf - 6Lima E, Assunção A. Prevalência e fatores associados ao transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) em profissionais de emergência: uma revisão sistemática da literatura. Rev Bras Epidemiol 2011; 14:217-30.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
27 Jan 2025 - Data do Fascículo
2025
Histórico
- Recebido
11 Nov 2024 - Aceito
21 Nov 2024