Sobre o reducionismo na pesquisa do trauma

On reductionism in trauma research

Sobre el reduccionismo en la investigación del trauma

Ramon Reis dos Santos Ferreira Francisco Ortega Sobre os autores

Nos últimos anos, o interesse pelo mapeamento epidemiológico das condições secundárias a acontecimentos potencialmente traumáticos explodiu 11. Norris FH, Slone LB. The epidemiology of trauma and PTSD. In: Friedman MJ, Keane TM, Resick PA, editores. Handbook of PTSD: science and practice. Nova York: Guilford Press; 2007. p. 78-98., levando a um conhecimento abrangente sobre a distribuição, o impacto e os fatores de risco e proteção a que estão submetidas diversas populações. Conceitos como os de prevalência à exposição, prevalência total ou risco condicional se sobrepuseram para moldar diferentes metodologias de apuração das repercussões culturais, individuais e societárias do trauma e, se antes o debate sobre a traumatização permanecia confinado à classificação da malignidade dos eventos ou da adaptabilidade comportamental das respostas, hoje o repertório do campo se complexificou para incluir as determinações culturais 22. Kirmayer L, Lemelson R, Barad M. Introduction: inscribing trauma in culture, brain, and body. In: Kirmayer LJ, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 1-20., as trajetórias de recuperação 33. Bonanno GA. Loss, trauma, and human resilience: have we underestimated the human capacity to thrive after extremely aversive events? Am Psychol 2004; 59:20-8. e as mudanças epigenéticas em sujeitos traumatizados 44. Yehuda R, LeDoux J. Response variation following trauma: a translational neuroscience approach to understanding PTSD. Neuron 2007; 56:19-32.. Indexada à inespecificidade da sintomatologia e ao regime de exceção concedido às categorias psicopatológicas que gozam de um evento etiológico circunscrito como critério diagnóstico sine qua non55. Young A. When traumatic memory was a problem: on the historical antecedents of PTSD. In: Rosen GM, editor. Posttraumatic stress disorder: issues and controversies. Nova York: John Wiley & Sons; 2004. p. 127-46., a racionalidade traumática se propaga, então, para o território dos transtornos depressivos, ansiosos e, mesmo, para o espectro das psicoses.

Tal movimento, embora efetivamente remonte à emergência do campo dos estudos sobre o estresse traumático, ainda tem seus antecedentes históricos e epistemológicos pouco reconhecidos ou mal delineados. Alguns dos seus mais importantes tratados, como os excelentes trabalhos de Young 66. Young A. The harmony of illusions: inventing post-traumatic stress disorder. v. 11. Princeton: Princeton University Press; 1997. e Fassin & Rechtman 77. Fassin D, Rechtman R. The empire of trauma: an inquiry into the condition of victimhood. Princeton: Princeton University Press; 2009., respectivamente interessados na descrição dos contextos políticos, sociais e institucionais da elaboração do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), ainda que destaquem as dimensões fundamentais da memória, da confissão e do legado de suspeição de vítimas de trauma, não explicam as determinações epistêmicas pelas quais passa a memória traumática do século XIX, que uma vez emancipada da traumatização física do choque cirúrgico, vem a retomar uma conformação essencialmente somática ao se dissipar no vocabulário bioquímico do estresse. Tal análise, realizada neste e em outros ensaios publicados por esses autores 88. Reis R, Ortega F. As raízes do trauma: uma revisão sobre a história do psicotraumatismo. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2023; 30:e2023039.,99. Reis R, Ortega F. Trauma e literalidade: a razão psicodinâmica no espírito da traumatização neurocientífica. Ciênc Saúde Colet 2024; 29:e19502022.,1010. Reis R, Ortega F. Cérebro, estresse e defesa: elementos para uma teoria neurocientífica do trauma psicológico. Psicol USP 2024; 35:e220033., procura preencher essa lacuna e, portanto, indagar por quais meios os conceitos de inspiração mentalista outrora utilizados na interpretação dos fenômenos traumáticos passaram a ser incorporados por abordagens de matriz neurobiológica que, ao reduzir o trauma às suas categorias de interesse (e.g., correlatos neurais, regiões anatômicas, concentrações metabólicas), eliminam não só a pertinência de doutrinas cuja racionalidade caem fora de seu instrumental discursivo, mas, sobretudo, interditam a análise dos aspectos subjetivos e fenomênicos do sofrimento que interessam a estas.

Nesse ponto, talvez seja importante uma breve análise do reducionismo, a partir de um fenômeno mais elementar que o trauma.

Já foi dito que a análise dos mecanismos anatômicos e funcionais responsáveis pela experiência consciente constituiria o maior desafio da neurociência moderna 1111. Edelman GM, Tononi G. A universe of consciousness: how matter becomes imagination. Londres: Hachette UK; 2008.. A envergadura dessa tarefa, que efetivamente corresponde à resolução da herança legada ao pensamento ocidental pelo dualismo cartesiano, representa a eliminação do intervalo entre os eventos que transcorrem nos planos físico e fenomênico da experiência. Porém, reduzir a consciência humana a seus correlatos cerebrais não constitui o mesmo que reduzir a água ao H2O, o relâmpago à descarga elétrica, o carvalho ao hidrocarboneto ou o gene ao DNA. Há algo mais na redução psicofísica do que se procede nas reduções físico-químicas alcançadas em outros problemas apresentados pelos reducionistas 1212. Kripke S. Meaning and necessity. In: Davidson D, Harman G, editores. Semantics of natural language. Boston: Reidel; 1972. p. 253-355.,1313. Nagel T. What is it like to be a bat? In: Block N, editor. Readings in philosophy of psychology. v. I. Cambridge: Harvard University Press; 1980. p. 159-68.. Ainda que os mecanismos causais para uma descrição física da percepção visual possam caber na ideia de que a visão é o resultado da discriminação e categorização de ondas eletromagnéticas por um dado sistema visual, nada explicaria por que esse processamento é acompanhado pela experiência de sentir o vermelho vivo ou o azul profundo 1414. Chalmers D. Facing up to the problem of consciousness. J Conscious Stud 1995; 2:200-19.. Não dispomos de nenhum modelo físico confiável para o funcionamento mental, porque nenhum modelo de redução, quer metodológico, semântico ou ontológico 1515. Sarkar S. Models of reduction and categories of reductionism. Synthese 1992; 91:167-94., captura o caráter subjetivo da experiência. Isso significa que tanto a direção, quanto a ordem de grandeza desses métodos permitem que a redução seja compatível com a ausência do fenômeno que ela intenciona reduzir, pois este não participa da estrutura da própria inspeção materialista 1616. Fuchs T. Ecology of the brain: the phenomenology and biology of the embodied mind. Oxford: Oxford University Press; 2017.. Desse modo, todos os métodos que assim procedem avaliam o mental independentemente da dimensão subjetiva da experiência, uma vez que esta é a principal unidade expropriada pela operação redutiva.

Portanto, para o debate do reducionismo, a natureza ou a coerência das explicações de um dado fenômeno parece menos relevante que o poder de um determinado campo/paradigma em chancelar suas próprias práticas discursivas e métodos de produção de verdade. Lembremos que as condições de validade para a utilização de evidências na formulação das hipóteses em psicanálise já vêm sendo exaustivamente avaliadas nos últimos 50 anos em torno de noções como o “argumento de registro” que, em geral, discute se a tentativa psicanalítica de associar o sucesso terapêutico a formulações teóricas se adequa suficientemente às prescrições do indutivismo eliminativo 1717. Grünbaum A. Validation in the clinical theory of psychoanalysis: a study in the philosophy of psychoanalysis. Madison: International Universities Press; 1993.. Logo, independentemente se a traumatogênese for o resultado das experiências descritas nas teorias freudianas da sedução ou da fantasia, ou de uma rede córtico-límbica envolvida no funcionamento recíproco da amígdala, do córtex pré-frontal medial e do hipocampo 1818. Lanius RA, Vermetten E, Loewenstein RJ, Brand B, Schmahl C, Bremner JD, et al. Emotion modulation in PTSD: clinical and neurobiological evidence for a dissociative subtype. Am J Psychiatry 2010; 167:640-7., a questão fundamental parece ser a de avaliar se de tal multiplicidade teórica redundam múltiplos acervos práticos, apoios institucionais e paradigmas metodológicos.

A ambição de submeter leis e fatos empíricos de uma determinada disciplina às leis e aos fatos empíricos de outra parece ser tão antiga quanto a aposta da filosofia mecânica do século XVII em reduzir todos os eventos físicos às interações de contato local entre partículas materiais impenetráveis 1515. Sarkar S. Models of reduction and categories of reductionism. Synthese 1992; 91:167-94.. Tal programa descreve uma metodologia calcada na operação explicativa interteórica mediante a qual determinada teoria reduzida encontra seu “esclarecimento” definitivo em uma teoria redutora pressuposta como mais fundamental. Assim, desde uma perspectiva filosófica, a redução representa uma relação entre hipóteses cujo caráter explicativo resulta da presunção de superioridade da teoria redutora sobre a reduzida 1919. Kemeny JG, Oppenheim P. On reduction. Philos Stud 1956; 7:6-19. e do pretenso isomorfismo entre a entidade e os predicados dos termos reduzidos, quer pela maior sistematização, quer pela amplitude explicativa superior. No campo do estresse pós-traumático, muito além de bradar pela pluralidade de modelos de pesquisa, devemos nos perguntar se a admissão de determinados paradigmas incorre (ou não) na eliminação progressiva de outras formas de representação da natureza e do sofrimento. O fato das teorias neurocientíficas contemporâneas do psicotraumatismo resultarem das hipóteses psicodinâmicas de Pierre Janet no século XIX nos adverte a esse respeito.

O problema do trauma - e o de qualquer experiência - será, sempre, uma questão de quantidades e qualidades.

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  • 1
    Norris FH, Slone LB. The epidemiology of trauma and PTSD. In: Friedman MJ, Keane TM, Resick PA, editores. Handbook of PTSD: science and practice. Nova York: Guilford Press; 2007. p. 78-98.
  • 2
    Kirmayer L, Lemelson R, Barad M. Introduction: inscribing trauma in culture, brain, and body. In: Kirmayer LJ, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 1-20.
  • 3
    Bonanno GA. Loss, trauma, and human resilience: have we underestimated the human capacity to thrive after extremely aversive events? Am Psychol 2004; 59:20-8.
  • 4
    Yehuda R, LeDoux J. Response variation following trauma: a translational neuroscience approach to understanding PTSD. Neuron 2007; 56:19-32.
  • 5
    Young A. When traumatic memory was a problem: on the historical antecedents of PTSD. In: Rosen GM, editor. Posttraumatic stress disorder: issues and controversies. Nova York: John Wiley & Sons; 2004. p. 127-46.
  • 6
    Young A. The harmony of illusions: inventing post-traumatic stress disorder. v. 11. Princeton: Princeton University Press; 1997.
  • 7
    Fassin D, Rechtman R. The empire of trauma: an inquiry into the condition of victimhood. Princeton: Princeton University Press; 2009.
  • 8
    Reis R, Ortega F. As raízes do trauma: uma revisão sobre a história do psicotraumatismo. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2023; 30:e2023039.
  • 9
    Reis R, Ortega F. Trauma e literalidade: a razão psicodinâmica no espírito da traumatização neurocientífica. Ciênc Saúde Colet 2024; 29:e19502022.
  • 10
    Reis R, Ortega F. Cérebro, estresse e defesa: elementos para uma teoria neurocientífica do trauma psicológico. Psicol USP 2024; 35:e220033.
  • 11
    Edelman GM, Tononi G. A universe of consciousness: how matter becomes imagination. Londres: Hachette UK; 2008.
  • 12
    Kripke S. Meaning and necessity. In: Davidson D, Harman G, editores. Semantics of natural language. Boston: Reidel; 1972. p. 253-355.
  • 13
    Nagel T. What is it like to be a bat? In: Block N, editor. Readings in philosophy of psychology. v. I. Cambridge: Harvard University Press; 1980. p. 159-68.
  • 14
    Chalmers D. Facing up to the problem of consciousness. J Conscious Stud 1995; 2:200-19.
  • 15
    Sarkar S. Models of reduction and categories of reductionism. Synthese 1992; 91:167-94.
  • 16
    Fuchs T. Ecology of the brain: the phenomenology and biology of the embodied mind. Oxford: Oxford University Press; 2017.
  • 17
    Grünbaum A. Validation in the clinical theory of psychoanalysis: a study in the philosophy of psychoanalysis. Madison: International Universities Press; 1993.
  • 18
    Lanius RA, Vermetten E, Loewenstein RJ, Brand B, Schmahl C, Bremner JD, et al. Emotion modulation in PTSD: clinical and neurobiological evidence for a dissociative subtype. Am J Psychiatry 2010; 167:640-7.
  • 19
    Kemeny JG, Oppenheim P. On reduction. Philos Stud 1956; 7:6-19.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2025
  • Data do Fascículo
    2025
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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