O aprender fazendo: representações sociais de estudantes da saúde sobre o portfólio reflexivo como método de ensino, aprendizagem e avaliação

El aprender haciendo: representaciones sociales de estudiantes de la salud del portafólio reflexivo como método de enseñanza, aprendizaje y evaluación.

Glauce Dias da Costa Rosângela Minardi Mitre Cotta Sobre os autores

Resumos

No contexto atual de necessárias mudanças na formação dos profissionais de saúde, destaca-se o portfólio como método inovador na forma de ensinar, aprender e avaliar. O objetivo deste estudo é identificar as representações sociais dos estudantes no processo de construção do portfólio. Trata-se de uma pesquisa qualitativa utilizando a triangulação de técnicas: observação participante, entrevista e grupo focal. Participaram do estudo 114 estudantes de cursos da saúde. Ao se utilizar a Análise de Conteúdo, foram encontrados os seguintes núcleos de sentido do portfólio enquanto método de ensino e aprendizagem: facilidades na compreensão do conteúdo, autonomia, liberdade, postura crítico-reflexiva. Enquanto método de avaliação: o erro como oportunidade, a interação com o professor e o ambiente de avaliação diferenciado. Pontos de convergência e conflito também foram encontrados: tempo de realização das atividades, processo de reflexão e método inovador em um contexto de ensino tradicional.

Representações sociais; Educação em saúde; Portfólio reflexivo


En el actual contexto de cambios necesarios en la formación de profesionales de la salud , destaca el portafólio. Es objetivo de este estudio identificar las representaciones sociales de los estudiantes de la enseñanza, aprendizaje y evaluación proporcionada por el portafólio. Se ha utilizado la investigación cualitativa donde se utilizó las técnicas de triangulación: observación participante, entrevistas y grupos focales. Los participantes fueron 114 estudiantes universitarios de cursos de salud. Los datos fueron analizados a través del análisis de contenido. Los resultados apuntan los núcleos de sentido del portafólio como método de enseñanza y aprendizaje: facilidades para comprender el contenido , la autonomía, la libertad, la actitud crítica y reflexiva. Como método de evaluación: el error como oportunidade, la interación con el professor y el ambiente de evaluación diferenciado. También se encontraron puntos de convergencia y conflicto: tempo demandado para la ejecución de las actividades , el proceso de reflexión y el uso de un método innovador en el contexto de la enseñanza tradicional.

Representaciones sociales; Enseñanza en salud; Portafólio reflexivo


Introdução

No mundo contemporâneo, é evidente a necessidade de transformação nas formas de ser, pensar, agir e estar dos futuros profissionais de saúde, visando a uma formação acadêmica estudantil que atenda às mudanças que a sociedade demanda, o que exige capacitação pessoal e profissional para a tomada de decisão e solução de problemas cada vez mais complexos.

Nesse contexto, no Brasil, o novo paradigma de ensino proposto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos cursos da área da Saúde aponta para a necessidade de mudanças no processo de ensino e aprendizagem, dando protagonismo aos estudantes 1. Cotta RMM, Costa GD, Mendonça ET. Portfólio reflexivo: uma proposta de ensino e aprendizagem orientada por competências. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1847-56. .

Destarte, o portfólio reflexivo insere-se nesse novo paradigma, o que demanda, dos principais atores desse processo − estudantes e professores −, uma profunda reflexão sobre seus papéis no ambiente educacional. Assim, os portfólios reflexivos constituem instrumentos de diálogo entre educador e educando, devendo ser continuamente (re)elaborados na ação e partilhados, recolhendo diferentes modos de ver e interpretar o mundo em seu cotidiano de vida, estudo e trabalho, e impulsionando a tomada de decisões. Ao professor, cabe um constante processo de autorreflexão, indicando novas pistas e abrindo novas hipóteses, por meio do feedback , permitindo a reorientação em tempo útil para o formando 2. Sá-Chaves I. Portfólios reflexivos: estratégia de formação e de supervisão. Portugal: Universidade de Aveiro; 2000. .

Uma vez que o processo educativo se relaciona intimamente com o contexto social e que este varia conforme suas finalidades, cenários e agentes envolvidos, torna-se importante a compreensão do fenômeno educativo dado pela construção do portfólio como método de ensino, aprendizagem e avaliação. Entende-se como agente “alguém que age e ocasiona mudanças e cujas realizações podem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos, independente de as avaliarmos ou não segundo algum critério externo” 3. Sen AK. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras; 2000. (p. 33).

Conforme essa perspectiva, este estudo teve por objetivo identificar e analisar as representações sociais, dos estudantes de graduação dos cursos na área de Saúde, do processo de ensino, aprendizagem e avaliação proporcionado pela construção do portfólio coletivo.

Método

Desenho do estudo

Pesquisa qualitativa, que utiliza como pressuposto teórico a Teoria das Representações Sociais (TRS) 4. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2003. , visando à compreensão do fenômeno de estudo. Tem-se como premissa que os pensamentos e ações da vida cotidiana dos agentes (os estudantes), em sua constante comunicação com os do mundo que os rodeiam, favorecem a construção da vida social e individual e, por sua vez, interferem nas representações do processo de ensino, aprendizagem e avaliação construídos.

Participaram do estudo 114 estudantes de graduação de cursos da área de Saúde, de um total de 119 (cinco não aceitaram participar) que cursaram a disciplina Políticas de Saúde nos anos 2012 (I e II semestres) a 2013 (I semestre) em uma universidade pública brasileira. Os portfólios foram construídos coletivamente por grupos compostos por, aproximadamente, seis estudantes.

O portfólio foi construído em quatro etapas 5. Cotta RMM, Mendonça ET, Costa GD. Portfólios reflexivos: construindo competências para o trabalho no Sistema Único de Saúde. Rev Panam Salud Pub. 2011; 30(5):415-21. : 1) Construção do conceito de Portfólio, com destaque para as dimensões que o caracterizam como reflexivo – primeiro, individualmente (ambiente extraclasse) e, em um segundo momento, em pequenos grupos (em sala de aula), a partir de pesquisa na literatura científica. 2) Minha trajetória: cada aluno descreve sobre sua inscrição histórica no mundo: “quem sou eu, de onde eu vim e para onde eu vou”; e, coletivamente, os membros do grupo escrevem sobre a percepção que têm sobre seus colegas: “quem sou eu na visão do outro”. Essas memórias são redigidas no início e reconstruídas no final do semestre letivo. 3) Aprendendo com o grupo: atividades realizadas em grupo de acordo com as temáticas trabalhadas na disciplina (relatos de experiências vivenciadas nos diferentes cenários de práticas, resenhas, sínteses, resumos, relatos de práticas, situações, problemas, enfim, todas as atividades trabalhadas na disciplina e realizadas em grupo. 4) Espaço de criatividade: lugar onde o grupo exercita, com liberdade, a criatividade; charges, poemas, músicas, fotos, desenhos, notícias e reportagens presentes na mídia escrita e eletrônica e/ ou criados pelo grupo e acompanhados de reflexões críticas.

Os rumos da pesquisa: as representações sociais sobre o processo de construção do portfólio reflexivo

O pressuposto teórico-metodológico da TRS 4. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2003. privilegia a relação entre o sujeito e o contexto social, e apresenta uma perspectiva de estudo que articula áreas de conhecimento e as entende como contribuições complementares, e não excludentes, para desvelar uma realidade ou fenômeno em sua totalidade/complexidade. Moscovici 4. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2003. , ao delinear a TRS, partiu de duas premissas: a primeira considera que não existe um corte entre o universo exterior e o do indivíduo, que o sujeito e o objeto não são absolutamente heterogêneos, e que o objeto está inscrito em um contexto dinâmico; a segunda vê a representação social como uma preparação para a ação.

Jodelet (citado por Silva, p. 668) 6. Silva E. As representações sociais da avaliação da aprendizagem em cursos de licenciatura em matemática on-line [dissertação]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2010. destacou que a representação social é uma forma de conhecimento corrente caracterizado pelas seguintes propriedades: “1. Socialmente elaborado e partilhado; 2. Tem orientação prática de organização, de domínio do meio (material, social, ideal) e de orientação das condutas e da comunicação; 3. Participa do estabelecimento de uma visão de realidade comum a dado conjunto social (grupo, classe etc.) ou cultural”. Por sua vez, Minayo 7. Minayo MCS. O Conceito de representação social na sociologia clássica. In: Guareschi P, Jovchelovitch S, organizadores. Textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes; 1995. p. 89-111. destacou que “as representações sociais se manifestam em palavras, sentimentos e condutas e se institucionalizam. Portanto, podem e devem ser analisadas a partir da compreensão das estruturas e dos comportamentos sociais” (p. 108).

Na mesma linha da proposta de Moscovici 4. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2003. , Minayo 7. Minayo MCS. O Conceito de representação social na sociologia clássica. In: Guareschi P, Jovchelovitch S, organizadores. Textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes; 1995. p. 89-111. afirmou que, para que a pesquisa educacional possa impactar a prática educativa, é preciso adotar “um olhar psicossocial”, preenchendo o sujeito social com o mundo interior e restituindo o sujeito individual ao mundo social. A teoria das representações sociais aponta para a compreensão e o desvelamento dos sentidos atribuídos ao portfólio como um método de aprendizagem e avaliação a partir da perspectiva dos estudantes de graduação dos cursos da área da Saúde. Nesse sentido, a teoria moscoviciana pode auxiliar na compreensão de questões surgidas acerca da aprendizagem e da avaliação no contexto das transformações pelas quais as sociedades vêm passando, especialmente as referentes à formação dos profissionais de saúde.

A fim de apreender os discursos dos estudantes sobre o fenômeno social da aprendizagem dada pela construção do portfólio, de forma coerente com a teoria proposta, utilizou-se, assim, a triangulação de técnicas qualitativas: observação participante, entrevista e grupo focal. A observação participante se deu na atuação da pesquisadora em sala de aula (aulas práticas) e nas visitas aos grupos em reuniões agendadas para a construção do portfólio (extraclasse). O diário de campo foi utilizado como ferramenta essencial na coleta de dados, por meio do registro de todas as observações identificadas a partir das falas, atitudes, gestos, expressões, entre outros, consideradas relevantes de acordo com os objetivos do estudo.

As entrevistas foram realizadas por três pesquisadores previamente treinados, com duração de, aproximadamente, quarenta minutos. Um roteiro aberto, com vinte perguntas, orientava os pesquisadores (Quadro 1). As entrevistas foram gravadas e transcritas pelos pesquisadores. As falas foram numeradas de 1 a 114 e apresentadas nos resultados com os seguintes códigos (E1, E2, E3... E114). Os grupos focais foram realizados nos finais de semestres letivos, com, aproximadamente, 12 estudantes, sem a presença da professora responsável pela disciplina. O debate acontecia a partir de um roteiro-guia, que norteava as discussões do grupo. Os grupos focais foram gravados e filmados, sendo, posteriormente, transcritos pela equipe pesquisadora.

Quadro 1
Roteiro com as vinte perguntas norteadoras das entrevistas realizadas com os estudantes dos cursos de saúde de uma universidade

A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Viçosa, de acordo com a Resolução nº. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil, que regulamenta as pesquisas envolvendo seres humanos. Foi solicitado consentimento livre e esclarecido dos estudantes para participarem do estudo, garantindo-se a confidencialidade das informações e o seu anonimato.

Os dados foram analisados por meio da Análise de Conteúdo 8. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2010. , 9. Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2004. à luz da TRS. Após a interpretação global das respostas, passou-se à organização do material de acordo com as unidades de contexto e a elaboração de categorias gerais, para se obter um panorama abrangente do material analisado. Posteriormente, as categorias foram agrupadas e, após leituras, reelaboradas de forma mais sintética e contrapostas às observações e aos estudos bibliográficos, para direcionar as discussões e conclusões do estudo.

As três perguntas norteadoras deste estudo: Como os estudantes interpretam sua realidade estudantil? Como interpretam o portfólio como metodologia inovadora do processo ensino, aprendizagem e avaliação? O portfólio proporciona, aos estudantes, a possibilidade de modificarem suas condutas pessoais e sociais? – guiaram a organização dos dados com base em duas perspectivas: a posição do estudante nos cenários de aprendizagem e a apreensão do portfólio como inovador no âmbito social (nas dimensões de aprendizagem e avaliação).

Resultados

O estudante nos cenários de aprendizagem

A realidade estudantil foi expressa pelos estudantes a partir dos seguintes questionamentos: Quem somos? Como aprendemos?

Os estudantes retratam uma posição passiva diante da instituição, do curso e dos professores detentores do saber. Expressam perceber a passividade perante a forma tradicional do ensino, entretanto não apontam caminhos de ação e/ ou reação.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo que manifestam insatisfações, estas vêm acompanhadas pela indiferença: “sempre foi assim”. São protagonistas de um ensino conteudista, recebido pelos estudantes sem questionamento (Quadro 2).

Quadro 2
Percepção dos estudantes do processo ensino-aprendizagem vivenciado no contexto universitário, segundo depoimentos nos grupos focais realizados no final do período letivo dos anos 2011, 2012 e 2013

Na perspectiva dos estudantes, o sistema educacional gira em torno da pontuação e de provas classificatórias, e não da aprendizagem. A avaliação é vista como uma forma de provar o saber e classificar os estudantes entre aqueles que estão aptos ou não para o exercício profissional e atuação na sociedade. Dessa forma, os estudantes estudam para tirar boas notas nas avaliações, e não para aprenderem. A nota nem sempre representa, para eles, o processo de aprendizagem em sua totalidade.

A apreensão do portfólio como método de aprendizagem inovador

Os achados deste estudo revelam os seguintes núcleos de sentido a partir da apreensão dos estudantes sobre o portfólio como método de aprendizagem: facilidades na compreensão do conteúdo, autonomia, liberdade, postura crítico-reflexiva. Quanto ao portfólio como método de avaliação, foram considerados os seguintes núcleos de sentidos: o erro como oportunidade, a interação com o professor, e o ambiente diferenciado pela transparência de critérios de avaliação não punitiva. Alguns pontos de convergência e/ ou conflito também foram identificados, sendo eles: o tempo como fator dificultador na construção das atividades e no trabalho em equipe, a reflexão ora como descoberta, ora como incômodo, e o portfólio como método inovador em um contexto de ensino tradicional.

Em se tratando do processo de aprendizagem, o portfólio propicia tanto a compreensão dos conteúdos quanto das habilidades e atitudes necessárias ao estudante e futuro profissional de Saúde para atuar nos moldes do paradigma da Produção Social da Saúde e do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme pode ser observado pelos depoimentos dos estudantes no Quadro 3.

Quadro 3
Representações dos estudantes quanto ao processo de aprendizagem propiciado pelo portfólio

Os estudantes salientaram a autonomia e a liberdade como pontos-chave no processo de construção do portfólio, o que leva a uma reconstrução de seu papel como agente no processo de aprendizagem. Nos relatos, foram identificados o eu como sujeito em ação: “eu faço”, “eu pesquiso”, “eu busco”, “eu encontro”, demonstrando a mudança no seu papel de agente passivo para ativo. A liberdade de expressão e a busca ativa são destacadas nas comparações com outros instrumentos de avaliação, como as provas e trabalhos tradicionais de grupo. Nessa linha, ressalta-se a liberdade na elaboração de atividades, expressando opiniões, criando ideias, colocando o que consideram relevante e significativo para a construção de sua própria aprendizagem. Assim, autonomia e liberdade caminham juntas nesse processo. O rigor metodológico do método não retira a possibilidade de expressar e construir a aprendizagem com liberdade e autonomia; pelo contrário, incentiva o exercício dessas competências.

Também, de acordo com a percepção dos estudantes, a reflexão e a crítica são elementos de destaque do portfólio, destacando-se a possibilidade de aprender para além da compreensão dos conteúdos, ampliando os horizontes, colocando em xeque o que é apresentado pela mídia e demais fontes de informação.

Não obstante, apesar de a autonomia e criatividade serem estimuladas durante toda a construção do portfólio, o fator tempo, o processo de reflexão, o uso do portfólio em um contexto de ensino tradicional, e o trabalho em equipe aparecem como fatores de incentivo e/ ou dificultadores (Quadro 4). É curioso, no apontamento dos estudantes, o fato de a universidade não ser um espaço para a reflexão e, sim, de decoreba e memorização de conteúdos.

Quadro 4
Pontos de incentivo e/ou dificultadores apresentados pelos estudantes no processo de construção.

No processo de construção do portfólio, o trabalho em equipe foi crucial para a determinação de uma aprendizagem consolidada. Em grupo, os estudantes destacaram a possibilidade de aprender questões que ultrapassam os conteúdos, para além do ensino tradicional. Aprendem a ser mais pacientes, a respeitar as diferenças, a ser mais solidários e compassivos, e descobrir, na amizade e parceria, a possibilidade de construírem algo juntos. O destaque, em comparação com os trabalhos tradicionais, refere-se à possibilidade de atuação de todos os membros do grupo, cada um dando sua contribuição com suas habilidades pessoais e específicas, além da possibilidade de exercitar o gerenciamento de conflitos tão comum no trabalho em equipe.

Os estudantes apontam o processo de aprendizagem propiciado pelo portfólio como profundo, e não superficial; como algo que fica na memória, que não se esquece. Todos os atributos e núcleos encontrados dimensionam o portfólio como uma possibilidade de inovar a forma tradicional de aprender. Mesclado com o antigo, tomam o novo; remodelando-o para a construção de um saber que permanece e que interfere na forma de ser desses estudantes. Apreendem o portfólio como possibilidade – mesmo diante das dificuldades do meio e do tempo – de avançarem em seu processo de formação profissional.

Quanto à apreensão do portfólio como método de avaliação, a dificuldade e incorreções são percebidas como oportunidades, e não como incapacidades e fraquezas (Quadro 5). Foram comuns, nas falas dos estudantes, os seguintes termos: “posso errar”, “sei o que errei”, “tenho a chance de modificar”, “posso corrigir” e “posso reescrever”. A oportunidade de interação com o professor, nos momentos da avaliação, também é destacada como ponto forte. Os estudantes ressaltam que é nessa relação dialógica, entre professor e estudante, que se dá a transformação do processo de ensino e aprendizagem e, especialmente, de avaliação, estimulando a autonomia, a criatividade e o empoderamento.

Quadro 5
Representações sociais dos estudantes quanto ao processo de AVALIAÇÃO propiciado pelo portfólio

Assim, os estudantes destacam o ambiente acolhedor, com transparência dos critérios de avaliação, de forma apreciativa e não punitiva, permitindo uma formação construtiva em que o erro é apresentado como uma possibilidade de aprendizado. A Figura 1 apresenta uma síntese dos resultados, apontando o portfólio como um método potencializador de mudanças e transformador do contexto estudantil.

Figura 1
Representação social dos estudantes de graduação dos cursos na área de Saúde sobre o processo de aprendizagem propiciado pela construção do portfólio, na perspectiva de mudança do cenário e do contexto estudantil em uma universidade federal.

Discussão

O contexto de educação tradicional, fortemente marcado pela disciplinaridade 1010 . Alarcão I. Escola reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre: Artmed; 2001. , dificilmente prepara nossos jovens para viverem a complexidade que caracteriza o mundo atual. O ensino fortemente influenciado pela tradição ocidental, que privilegia “o pensamento lógico matemático e a racionalidade, não potencializa o desenvolvimento global do ser pessoa, e facilmente discrimina ou perde os que não se adaptam a este paradigma” 1010 . Alarcão I. Escola reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre: Artmed; 2001. (p. 19). É nesse cenário que se inscreve o portfólio como método inovador de ensino, aprendizagem e avaliação, trazendo, em seu bojo formativo, uma práxis educativa diferenciada, que propicia, aos estudantes, uma forma alternativa de aprender, e abre espaços para a transformação da aprendizagem significativa e para a vida.

Moscovici 4. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2003. , ao apresentar a TRS, destacou basicamente a existência de dois processos distintos na transposição dos elementos objetivos para o meio cognitivo, e vice-versa: objetivação, cujas ideias abstratas se transformam em imagens concretas, por meio do reagrupamento de ideias e imagens focadas no mesmo assunto; e a ancoragem, cujas ideias se prendem com a assimilação das imagens criadas pela objetivação, processo no qual novas imagens se juntam às anteriores, nascendo, assim, novos conceitos.

Nesse contexto, o portfólio é apreendido, numa perspectiva cognitiva, pelos estudantes a partir destes dois processos: a objetivação, à medida que transformam uma ideia abstrata do portfólio em uma ideia concreta (por meio dos conceitos estudados e formulados); e a ancoragem, em que novas ideias desse processo inovador se reúnem às imagens de um ensino que deveria, e poderia, ser diferente (ideias anteriores), nascendo novos conceitos ou novas ideias, ou seja, o portfólio permite pensar, refletir, criar o estudante como agente desse processo.

Moscovici 4. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2003. (p. 20) argumentou “que o propósito de todas as representações é tornar algo não familiar, ou a própria não familiaridade em familiar. A familiarização é sempre um processo construtivo de ancoragem”, o que, neste estudo, é verificado pela familiarização dada pelos estudantes ao processo de construção do portfólio. O que era estranho no portfólio (desenvolvimento da criatividade, da reflexão, entre outros), desconhecido, distante da realidade universitária, passa a fazer parte do cotidiano dos estudantes.

É interessante perceber que esse processo não se dá apenas no âmbito cognitivo de um objeto particular, mas, também, quando o sujeito (indivíduo ou grupo) adquire capacidade de definição, uma função de identidade 4. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2003. . Assim, salienta-se que os estudantes se colocam e se veem como sujeitos afetados por um sistema estudantil que determina uma condição de aprendizagem associada à nota e à memorização. Segundo Jodelet ( apud Moscovici, 2003) 4. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2003. , “a representação é uma forma de conhecimento prático e refere-se à experiência a partir do qual ele é produzido e, sobretudo, ao fato de que a representação é empregada para agir no mundo e nos outros” (p. 43).

A partir da experiência vivenciada pelos estudantes deste estudo, novos caminhos são, assim, apresentados para uma atitude e uma forma de agir diferenciada no processo de aprendizagem. A atitude mais marcante e intrigante apresentada pelos estudantes é o processo de crítica e reflexão, algo apontado, por eles, como não proporcionado, em geral, no ambiente estudantil. É aqui que se dá a identificação dos estudantes como sujeitos ativos, em que o processo de representação demarcado por eles traz mudanças na forma de agir. É na reflexão que se identifica a possibilidade de sair de uma atitude passiva para uma atitude que proporcione mudanças no cenário de ensino tradicional. Sá Chaves (p. 13) 2. Sá-Chaves I. Portfólios reflexivos: estratégia de formação e de supervisão. Portugal: Universidade de Aveiro; 2000. apontou que “a reflexão é um modo de fazer reviver e de fazer a recaptura da experiência com o objetivo de inscrever num sentido, de aprender a partir dela e de, nesse processo, desenvolver novas compreensões e apreciações”. Assim, da práxis de construção do portfólio, dois outros elementos se destacaram: a liberdade e a autonomia, que podem ser analisadas a partir dos conceitos dos ilustres pensadores de nossa época: Amrtya Sen 3. Sen AK. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras; 2000. e Paulo Freire 1111 . Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996. . Esses dois conceitos se entrelaçam − a autonomia deve ser conquistada, adquirida a partir de decisões, de vivências e pela própria liberdade. A autonomia, além da liberdade de pensar por si, além da capacidade de guiar-se por princípios que concordem com a própria razão, envolve a capacidade de realizar, o que exige uma atitude de ser consciente e ativo − assim, o sujeito passivo é contrário ao sujeito autônomo 1111 . Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996. . Sen 3. Sen AK. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras; 2000. , ao discorrer sobre o desenvolvimento como liberdade, apresentou dois elementos importantes: a capacidade, que representa as possíveis combinações de potencialidades e situações que uma pessoa está apta a “ser” ou “fazer”; e a funcionalidade, que representa as várias coisas que esta pessoa pode, de fato, fazer.

Nessa perspectiva, o portfólio atuou como elemento facilitador de uma educação formativa a partir do momento que permitiu, aos estudantes, atuarem como agentes de seu próprio processo de construção da aprendizagem, com autonomia para realizarem suas buscas, reformulando suas ideias e apresentando-as de forma crítica e reflexiva, bem como abrindo espaços de liberdade para criar e recriar 1212 . Cotta RMM, Silva LS, Lopes LL, Gomes KO, Cotta FM, Lugarinho R, et al. Construção de portfólios coletivos em currículos tradicionais: uma proposta inovadora de ensino-aprendizagem. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):787-96. .

Considerações finais

Considerando os achados deste estudo, destaca-se que o processo de aprendizagem vivenciado pelos estudantes a partir da construção dos portfólios permitiu que estes representassem esse fenômeno social, apontando elementos que o caracterizam como método que investe na transformação de uma prática de ensino tradicional para uma prática inovadora. Isso com vistas à qualificação de futuros profissionais de saúde que conjuguem elementos de integração e reflexividade, tão necessários na solução dos problemas complexos da sociedade contemporânea.

A realidade estudantil foi interpretada pelos estudantes como um sistema regido por notas e coeficientes de rendimento que os classifica como aptos ou não aptos. Um contexto que determina uma formação do fazer, e não do ser. Os discentes interpretam o portfólio como um método inovador, que permitiu a aprendizagem autônoma, libertadora, reflexiva, crítica, criadora, reunindo, assim, os elementos de uma formação para o ser. Traz subsídios para que, no processo de reflexão-ação, emerja a identidade (ser estudante) capaz de trazer mudanças no contexto estudantil. No entanto, devido a elementos que influenciam essas modificações, como o formato curricular tradicional, disciplinar e conteudista, surgem conflitos referentes à gestão do tempo, em geral escasso, e ao trabalho em equipe, o que pode se transformar em elementos dificultadores do processo de aprendizagem inovador.

Cabe destacar, ainda, a importância do portfólio como método inovador do processo de avaliação. Na percepção dos estudantes, a avaliação proporcionada pelo portfólio é parte integrante do processo de aprendizagem, o que contribui para uma argumentação favorável às metodologias inovadoras de ensino e aprendizagem.

Sugere-se, assim, que outros estudos sejam realizados a fim de corroborar evidências significativas e suficientes que subsidiem as mudanças necessárias no processo ensino-aprendizagem, seja na (re)formulação de currículos mais integrados, seja na capacitação de professores no uso de metodologias ativas e inovadoras, seja, ainda, na organização da estrutura institucional, (re)qualificando a forma de ensinar, aprender e avaliar.

Referências

  • 1
    Cotta RMM, Costa GD, Mendonça ET. Portfólio reflexivo: uma proposta de ensino e aprendizagem orientada por competências. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1847-56.
  • 2
    Sá-Chaves I. Portfólios reflexivos: estratégia de formação e de supervisão. Portugal: Universidade de Aveiro; 2000.
  • 3
    Sen AK. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras; 2000.
  • 4
    Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2003.
  • 5
    Cotta RMM, Mendonça ET, Costa GD. Portfólios reflexivos: construindo competências para o trabalho no Sistema Único de Saúde. Rev Panam Salud Pub. 2011; 30(5):415-21.
  • 6
    Silva E. As representações sociais da avaliação da aprendizagem em cursos de licenciatura em matemática on-line [dissertação]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2010.
  • 7
    Minayo MCS. O Conceito de representação social na sociologia clássica. In: Guareschi P, Jovchelovitch S, organizadores. Textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes; 1995. p. 89-111.
  • 8
    Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2010.
  • 9
    Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2004.
  • 10
    Alarcão I. Escola reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre: Artmed; 2001.
  • 11
    Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996.
  • 12
    Cotta RMM, Silva LS, Lopes LL, Gomes KO, Cotta FM, Lugarinho R, et al. Construção de portfólios coletivos em currículos tradicionais: uma proposta inovadora de ensino-aprendizagem. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):787-96.

  • Financiamento
    Estudo financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes (processo n. 23038.009788/2010-78; AUX-PE-Pró-Ensino na Saúde, 2034/2010).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2014
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2014
  • Aceito
    08 Jul 2014
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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