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Teoria e prática: a pedagogia da luta (resposta aos comentários)

Agradeço as leituras críticas e as contribuições de Sonia Fleury, Maria do Socorro de Souza e Noemi Krefta num debate caracterizado pela impossibilidade de uma única visão sobre a sociedade. A disputa em torno da interpretação da realidade social e das propostas de intervenção pode ser um esforço de diálogo entre correntes de pensamento que, embora distintas e até divergentes no plano teórico, têm por objetivo comum a defesa do direito à saúde e demais direitos sociais.

Importante lembrar que entre o texto proposto, em maio, e os comentários recebidos, em julho de 2013, o país foi tomado por gigantescas e prolongadas manifestações populares. A ação direta e a recusa à representação nessas manifestações conduziram a um questionamento inicial da democracia formal no Brasil. Por outro lado, a violência desencadeada pelo Estado sobre os manifestantes e a criminalização dos movimentos sociais evidenciou ser a democracia também uma forma de dominação, isto é, em termos gramscianos, coerção revestida de consenso.

No que diz respeito à democracia, os comentários ao artigo trazem duas visões distintas, uma mais próxima da democracia formal, entendida como valor universal e do pluralismo democrático e outra “classista”, entendida como valor histórico; a última é convergente à defendida por mim.

Diferentemente de Sonia Fleury, não penso que o Estado burguês tenha superado, de acordo com a terminologia gramsciana, a fase histórica da coerção para passar à da hegemonia (Estado ampliado). Continua a ser um instrumento de dominação, de ditadura de classe ou coerção revestida de consenso. O fortalecimento maior ou menor dos mecanismos de coerção ou de consenso no Estado burguês variou historicamente de acordo com o próprio desenvolvimento do capitalismo e da luta de classes, transformando-se da ditadura velada e direta (democracia representativa), em ditadura indireta e aberta (bonapartismo, fascismo ou ditadura militar). Essa é apenas uma indicação geral, sendo necessário estudar a particularidade de cada momento, em cada país. Assim, desde 1980, com a adoção de políticas neoliberais pelo Estado burguês, inclusive sob a democracia representativa, os mecanismos de coerção têm se fortalecido em detrimento daqueles de consenso.

Faço, portanto, uma leitura a respeito do Estado em Gramsci distinta da apresentada pela autora. Se outra interpretação também é admissível, o motivo encontra-se, como aponta Perry Anderson1Anderson P. Las antinomias de Antonio Gramsci: Estado y revolución en Occidente. Barcelona: Editorial Fontamara; 1981 [acesso 2013 Maio 15]. Disponível em: http://www.anticapitalistas.org/IMG/pdf/Anderson-LasAntinomiasDeAntonioGramsci.pdf
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, nas ambiguidades e contradições do pensamento do líder comunista italiano que deixou, em anotações de pesquisa não sistemáticas feitas no cárcere, um legado controverso.

A democracia burguesa tem sido a forma de dominação mais ampla para as classes trabalhadoras lutarem pela sua emancipação social. Sob essa forma de dominação, os trabalhadores da cidade e do campo podem adquirir, na condição de dispor de um partido político próprio e independente, um conhecimento das relações de todas as classes entre si e de seus próprios interesses, construindo o caminho para superar a atual sociedade. Não se trata de um aprendizado fácil nem isento de erros, pois a defesa isolada de cada conquista parcial tende a enfraquecer a sua luta de classe.

Analisar a democracia burguesa no Brasil, a partir de 1985, implica entender o processo histórico da redemocratização política pactuado entre as elites políticas sob a tutela militar, com a adesão da maioria das forças partidárias. Por isso mesmo não cabe falar, como propõe Maria do Socorro, em pacto democrático aceito pelo conjunto da sociedade, devendo-se, ao contrário, destacar a luta que dividiu a sociedade até a eleição presidencial em 1989, “salva” para a burguesia por um aventureiro com pendor bonapartista logo depois apeado do governo. A partir daí, o neoliberalismo se impôs como política de Estado e mesmo o PT acabaria por aceitá-la, como assinala Eurelino Coelho2Coelho E. Uma esquerda para o capital: o transformismo dos grupos dirigentes do PT (1979-1998) [acesso 2013 Maio 15]. Disponível em: http://centrovictormeyer.org.br/wp-content/uploads/2010/04/Uma-esquerda-para-o-capital-Eurelino-Coelho.pdf
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A criação e expansão do SUS aconteceram nesse contexto adverso. A reforma setorial que conduziu à criação desse sistema foi – para usar uma expressão de Arouca – uma atualização técnico-administrativa do aparelho de Estado diante das exigências de reprodução da ordem social baseada no capitalismo no Brasil.

Após 25 anos de sua criação, o SUS é esta atualização: um sistema abrangente, capaz de garantir a imunização básica da população e responder a necessidades de grupos específicos; porém travado quanto à universalização e à qualidade da atenção à saúde; orientado para atender demandas por serviços médicos, segmentado em níveis de atenção autônomos e subordinado aos interesses do complexo industrial-médico, com uma gestão crescentemente organizada sob a lógica privada.

No capitalismo, a saúde tende a ser reduzida à doença e, portanto, tornar-se sinônimo de atenção médica: funciona para compensar problemas estruturais no nível individual. E ainda assim, com restrições, dada a impossibilidade de universalizar realmente a atenção. Lutar contra esses obstáculos ou ampliar conquistas significa desenvolver, a cada momento, a consciência de que o direito à saúde é limitado pela correlação de forças baseada na ordem social vigente e, portanto, da necessidade de modificá-la como parte do processo de superação dessa ordem.

Cada passo é uma luta parcial, sempre sujeita, como aponta Noemi Krefta, à manipulação e ao retrocesso, tendo claro que qualquer “inclusão social” acontecerá, sob essa ordem, de modo precário e limitado. Não se trata, portanto, de lutar ou de apoiar institucionalmente o SUS, mas de encaminhar a luta pelo direito social à saúde sob as diversas formas, inclusive por meio do SUS, numa aliança entre os profissionais de saúde e as classes trabalhadoras.

Retomo à proposta da convocação de conferências verdadeiramente populares e democráticas. Para que os trabalhadores da cidade e do campo se mobilizem e conduzam um processo como esse, é indispensável que pelo menos uma parte dos pensadores (intelectuais acadêmicos, técnicos) e a maioria dos profissionais da saúde renunciem ao papel messiânico e condutor, assumido até pouco tempo atrás, e raciocinem em termos classistas.

Cabe, então, convidá-los a essa renúncia, a abandonar as tentativas (cada vez mais desgastadas) de atualização técnico-científica do SUS, em favor do envolvimento na luta política com os trabalhadores pelo direito social à saúde. É a nossa aposta nas forças da antítese3Paim JA. Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cad Saude Publica. 2013;29(10):1927-53..

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2015

Histórico

  • Recebido
    09 Dez 2013
  • Aceito
    07 Jan 2014
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