O discurso médico sobre as emoções vivenciadas na interação com o paciente: contribuições para a prática clínica

Medical discourse on the emotions experienced in the interaction with patients: contributions to clinical practice

El discurso médico sobre las emociones vividas en la interacción con el paciente: contribuciones para la práctica clínica

Laura Marques Castelhano Liliana Liviano Wahba Sobre os autores

Resumos

O estudo das emoções na prática clínica expõe sua influência na relação médico-paciente. Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa qualitativa cujo objetivo foi explorar o discurso dos médicos sobre as próprias emoções no atendimento a pacientes. Das entrevistas com oito médicos foram extraídos os seguintes temas de análise: função apostólica e o entendimento da emoção; defesas e estratégias perante as emoções; e a companhia de investimento mútuo: frustração e consequências. Os médicos demonstraram pouca percepção da influência das emoções sobre a própria atuação, apesar de terem relatado situações nas quais foram afetados por elas. Revelaram sofrimento em razão da dificuldade de elaborar conteúdos emocionais, usando distanciamento afetivo como um mecanismo de defesa. Conclui-se que a gestão emocional por parte do médico maximiza recursos na interação com o paciente, lançando novas perspectivas para a atuação médica.

Psicologia médica; Relação médico-paciente; Emoções


The study of emotions in clinical practice shows its influence on the physician-patient relationship. This article presents the results of a qualitative study with the objective to explore the discourse of physicians on their own emotions in the delivery of care to patients. Interviews with eight physicians gave rise to the analysis themes: apostolic function and understanding of emotions; defenses and strategies in face of emotions; and the company of mutual investment: frustration and consequences. The physicians demonstrated a poor perception of the influence of emotions on their performance, despite having reported situations in which they were affected by them. They also revealed suffering due to the difficulty in elaborating emotional contents, using affective distancing as a defense mechanism. In conclusion, emotional management on the part of physicians maximizes resources in the interaction with patients, casting new perspectives for their medical performance.

Medical psychology; Physician-patient relation; Emotions


El estudio de las emociones en la práctica clínica expone su influencia en la relación médico-paciente. Este artículo presenta los resultados de una investigación cualitativa, cuyo objetivo fue explorar el discurso de los médicos sobre las propias emociones en la atención a pacientes. De las entrevistas con ocho médicos se extrajeron los temas de análisis: función apostólica y el entendimiento de la emoción, defensas y estrategias antes las emociones y la compañía de inversión mutua: frustración y consecuencias. Los médicos demostraron poca percepción de la influencia de las emociones sobre la propia actuación, a pesar de haber relatado situaciones en las que fueron afectados por ellas. Revelaron sufrimiento debido a la dificultad de elaborar contenidos emocionales, usando el distanciamiento afectivo como un mecanismo de defensa. Se concluyó que la gestión emocional por parte del médico maximiza recursos en la interacción con el paciente, lanzando nuevas perspectivas para la actuación médica.

Psicología médica; Relación médico-paciente; Emociones


Introdução

O estudo das emoções – e sua preponderância na atividade do médico – conta com contribuições expressivas na literatura nacional e internacional11. Cassorla RMS. Dificuldades no lidar com aspectos emocionais da prática médica: estudo com médicos no início de grupos Balint. Rev ABP-APAL. 1994; 16(1):18-24.

2. Croskerry P, Abbass A, Wu AW. Emotional influences in patient safety. J Patient Saf. 2010; 6(4):199-205.

3. Meier DE, Back AL, Morrison RS. The inner life of physicians and care of the seriously ill. JAMA. 2001; 286(23):3007-14.

4. Ofri D. What doctors feel: how emotions affect the practice of medicine. Boston: Beacon Press; 2014.

5. Roter DL, Frankel RM, Hall JA, Sluyter D. The expression of emotion through nonverbal behavior in medical visits: mechanisms and outcomes. J Gen Intern Med. 2006; 21 Suppl 1:S28-34.

6. Schattner A. Angst-driven Medicine? QJM. 2009; 102(1):75-8.

7. Smith RC, Zimmy GH. Physicians’ emotional reactions to patients. Psychosomatics. 1988; 29(4):392-7.
-88. Stolper E, Van Royen P, Dinant GJ. The ‘sense of alarm’ (gut feelings) in clinical practice: a survey among European general practitioners on recognition and expression. Eur J Gen Pract. 2010; 16(2):72-4.. Pesquisas22. Croskerry P, Abbass A, Wu AW. Emotional influences in patient safety. J Patient Saf. 2010; 6(4):199-205.,33. Meier DE, Back AL, Morrison RS. The inner life of physicians and care of the seriously ill. JAMA. 2001; 286(23):3007-14.,55. Roter DL, Frankel RM, Hall JA, Sluyter D. The expression of emotion through nonverbal behavior in medical visits: mechanisms and outcomes. J Gen Intern Med. 2006; 21 Suppl 1:S28-34.,99. Helmich E, Bolhuis S, Laan R, Dornan T, Koopmans R. Medical students’ emotional development in early clinical experience: a model. Adv Health Sci Educ Theory Pract. 2014; 19(3):347-59.,1010. Rossi-Barbosa LAR, Lima CC, Queiroz IN, Fróes SS, Caldeira AP. A percepção de pacientes sobre a comunicação não verbal na assistência médica. Rev Bras Educ Med. 2010; 34(3):363-70. demonstraram que, durante o encontro, médicos e pacientes são influenciados por emoções. Croskerry et al.22. Croskerry P, Abbass A, Wu AW. Emotional influences in patient safety. J Patient Saf. 2010; 6(4):199-205. e Meier et al.33. Meier DE, Back AL, Morrison RS. The inner life of physicians and care of the seriously ill. JAMA. 2001; 286(23):3007-14. revelam que, muitas vezes, as primeiras reações dos médicos em relação a seus pacientes são emocionais, e isso se reflete na forma como eles (os médicos) vão lidar com situações de atendimento. De acordo com as pesquisas de Caprara et al.1111. Caprara A, Rodrigues J. A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico. Cienc Saude Colet. 2004; 9(1):139-46., De Marco1212. De Marco MA. Comunicação em saúde: fatores que interferem no vínculo e na comunicação na relação médico-paciente. São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2005.,1313. De Marco MA. Comunicação e relação. In: De Marco MA, Abud CC, Lucchese AC, Zimmermann VB. Psicologia médica: abordagem integral do processo saúde-doença. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 63-104., Lorenzetti et al.1414. Lorenzetti RC, Jacques CH, Donovan C, Cottrell S, Buck J. Managing difficult encounters: understanding physician, patient, and situational factors. Am Fam Physician. 2013; 87(6):419-25. e Serour et al.1515. Serour M, Othman HA, Khalifah, GA. Difficult patients or difficult doctors: an analysis of problematic consultations. Eur J Gen Med. 2009; 6(2):87-93., boa parte dos conflitos na relação médico-paciente tem origem emocional.

Apesar de os estudos11. Cassorla RMS. Dificuldades no lidar com aspectos emocionais da prática médica: estudo com médicos no início de grupos Balint. Rev ABP-APAL. 1994; 16(1):18-24.,33. Meier DE, Back AL, Morrison RS. The inner life of physicians and care of the seriously ill. JAMA. 2001; 286(23):3007-14.,66. Schattner A. Angst-driven Medicine? QJM. 2009; 102(1):75-8.

7. Smith RC, Zimmy GH. Physicians’ emotional reactions to patients. Psychosomatics. 1988; 29(4):392-7.
-88. Stolper E, Van Royen P, Dinant GJ. The ‘sense of alarm’ (gut feelings) in clinical practice: a survey among European general practitioners on recognition and expression. Eur J Gen Pract. 2010; 16(2):72-4.,1212. De Marco MA. Comunicação em saúde: fatores que interferem no vínculo e na comunicação na relação médico-paciente. São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2005.,1313. De Marco MA. Comunicação e relação. In: De Marco MA, Abud CC, Lucchese AC, Zimmermann VB. Psicologia médica: abordagem integral do processo saúde-doença. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 63-104. comprovarem a influência de emoções na relação médico-paciente, dispensa-se ainda pouca atenção a esse componente na atuação do médico. A literatura não é conclusiva quanto aos fatores que determinam, ou contribuem para a dificuldade do médico em lidar com, ou compreender, suas próprias emoções e com o impacto delas em sua atividade clínica.

Michael Balint1616. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. 2a ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988. pesquisou, na teoria e na prática, a influência do médico na relação com o paciente e propôs a conscientização da classe médica para os efeitos da transferência e da contratransferência, inerentes à toda relação no campo da saúde. Segundo Balint1616. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. 2a ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988., os aspectos da personalidade do médico têm papel determinante na dinâmica relacional clínica e, por essa razão, o médico deveria ser capacitado para olhar seus próprios métodos e reações frente ao paciente. Nessa direção, para que o profissional se torne capaz de reconhecer a própria maneira de lidar com o paciente, é necessário realizar um exercício intenso de reflexão.

A partir de Balint1616. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. 2a ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988., outros trabalhos foram desenvolvidos sobre essa temática e sobre os riscos que a negação de emoções pode trazer não só para a saúde do médico1717. Aragão JA, Andrade ML, Mota MIA, Aragão MECS, Reis FP. Ocorrência de sintomas depressivos em médicos que trabalham no programa de saúde da família. J Bras Psiquiatr. 2014; 63(4):341-6.

18. Cole TR, Carlin N. The suffering of physicians. Lancet. 2009; 374(9699):1414-5.

19. Malterud K, Hollnagel H. The doctor who cried: a qualitative study about the doctor’s vulnerability. Ann Fam Med. 2005; 3(4):348-52.

20. Martins-Nogueira LA. Saúde mental dos profissionais da saúde. Rev Bras Med Trab. 2003; 1(1):56-68.
-2121. Meleiro AMAS. Suicídio na população médica: qual a realidade? RBM Rev Bras Med. 2013; 70(2):20-8., mas também no cuidado do paciente22. Croskerry P, Abbass A, Wu AW. Emotional influences in patient safety. J Patient Saf. 2010; 6(4):199-205.,1414. Lorenzetti RC, Jacques CH, Donovan C, Cottrell S, Buck J. Managing difficult encounters: understanding physician, patient, and situational factors. Am Fam Physician. 2013; 87(6):419-25.,1515. Serour M, Othman HA, Khalifah, GA. Difficult patients or difficult doctors: an analysis of problematic consultations. Eur J Gen Med. 2009; 6(2):87-93..

Estudos recentes mostram a importância das emoções na tomada de decisão. Os avanços na área da neurociência têm indicado que a noção de “razão pura”, segundo a qual as emoções são vistas como intrusas nos processos analíticos, é questionável, uma vez que emoção e razão são parte de um mesmo processo, e não de processos distintos2222. Damásio A. O erro de descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 2a ed. São Paulo: Companhia da Letras; 2006..

Damásio2222. Damásio A. O erro de descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 2a ed. São Paulo: Companhia da Letras; 2006.,2323. Damásio A. E o cérebro criou o homem. São Paulo: Companhia da Letras; 2011., ao tratar do alcance do controle da vontade, observa que as emoções são, em grande medida, automatizadas. Apesar de as emoções não serem atos racionais, desencadeiam, por meio dos sentimentos, o processo cognitivo2323. Damásio A. E o cérebro criou o homem. São Paulo: Companhia da Letras; 2011..

Esse entendimento traz para a literatura médica um novo enfoque para os estudos sobre modelos de decisões médicas2424. Cox K, Britten N, Hooper R, White P. Patients’ involvement in decisions about medicines: GPs’ perceptions of their preferences. Br J Gen Pract. 2007; 57(543):777-84.

25. Croskerry P. Achieving quality in clinical decision making: cognitive strategies and detection of bias. Acad Emerg Med. 2002; 9(11):1184-204.

26. Groopman J. Como os médicos pensam. Rio de Janeiro: Agir; 2008.

27. Kovacs G, Croskerry P. Clinical decision making: an emergency medicine perspective. Acad Emerg Med. 1999; 6(9):947-52.
-2828. Patel VL, Kaufman DR, Aroucha JF. Emerging paradigms of cognition in medical decision-making. J Biomed Inform. 2002; 35(1):52-75.. Tais estudos fornecem explicações sobre como os médicos avaliam, julgam e tomam decisões que impactam diretamente no cuidado com o paciente. Tradicionalmente, as emoções seriam vistas como negativas e as decisões seriam tomadas de modo objetivo e livre de comprometimento emocional; no entanto, nos estudos atuais entende-se que o componente emocional é parte do processo de tomada de decisão44. Ofri D. What doctors feel: how emotions affect the practice of medicine. Boston: Beacon Press; 2014.,88. Stolper E, Van Royen P, Dinant GJ. The ‘sense of alarm’ (gut feelings) in clinical practice: a survey among European general practitioners on recognition and expression. Eur J Gen Pract. 2010; 16(2):72-4.,2626. Groopman J. Como os médicos pensam. Rio de Janeiro: Agir; 2008.,2727. Kovacs G, Croskerry P. Clinical decision making: an emergency medicine perspective. Acad Emerg Med. 1999; 6(9):947-52..

Considerando-se os estudos apresentados, torna-se relevante investigar as implicações na prática clinica do modo como o médico percebe suas emoções na relação com o paciente e as estratégias das quais faz uso para lidar com elas. Pelo que foi possível perceber, há um consistente número de trabalhos11. Cassorla RMS. Dificuldades no lidar com aspectos emocionais da prática médica: estudo com médicos no início de grupos Balint. Rev ABP-APAL. 1994; 16(1):18-24.,33. Meier DE, Back AL, Morrison RS. The inner life of physicians and care of the seriously ill. JAMA. 2001; 286(23):3007-14.,44. Ofri D. What doctors feel: how emotions affect the practice of medicine. Boston: Beacon Press; 2014.,66. Schattner A. Angst-driven Medicine? QJM. 2009; 102(1):75-8.,88. Stolper E, Van Royen P, Dinant GJ. The ‘sense of alarm’ (gut feelings) in clinical practice: a survey among European general practitioners on recognition and expression. Eur J Gen Pract. 2010; 16(2):72-4.,2929. Silva JV, Carvalho I. Physicians experiencing intense emotions while seeing their patients: what happens? Perm J. 2016; 20(3):31-7. que apontam para essa direção; no entanto, não foram identificadas pesquisas que tratem especificamente do discurso médico e do relato subjetivo do impacto das emoções na atividade clínica.

Método

Este artigo apresenta parte dos resultados de pesquisa realizada no âmbito de doutorado, no qual foram investigadas as emoções relatadas por médicos na relação com os pacientes e como referem lidar com elas.

Por meio da pesquisa, de caráter qualitativo3030. Creswell JW. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2010., procedeu-se à análise dos discursos, com vistas a identificar significados e percepções que os médicos participantes desta investigação atribuíam às suas emoções. Utilizou-se como estratégia de investigação o estudo de casos múltiplos3030. Creswell JW. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2010. para uma avaliação aprofundada da dinâmica emocional do médico.

Participaram da pesquisa oito médicos. Foram utilizados como critério de inclusão médicos que dedicavam parte ou a totalidade de seu tempo ao atendimento em consultório; exerciam a medicina convencional (clínica médica) e tinham no mínimo dois anos de experiência após a conclusão da residência médica.

Apesar de todos os médicos entrevistados serem especialistas em determinada área, atendiam também como clínicos gerais. Entendeu-se que esse perfil de participante seria mais propício para se proceder à observação do fenômeno de respostas emocionais que emergem do trato com os pacientes no âmbito da clínica geral.

Inicialmente, os médicos foram convidados a participar da pesquisa por meio de indicações de médicos conhecidos. Em seguida, foi utilizado o método “bola de neve”, em que os participantes da amostra indicam outros profissionais médicos para participar do estudo3131. Ezzy D. Qualitative analysis: practice an innovation. London: Routledge; 2001..

Na tabela 1, tem-se o perfil dos médicos entrevistados, identificados por nomes fictícios.

Tabela 1
– Perfil dos médicos entrevistados

Para realizar a coleta de informações, foi utilizado como instrumento uma entrevista semiestruturada, elaborada pelas pesquisadoras com base nos modelos de Smith e Zimmy77. Smith RC, Zimmy GH. Physicians’ emotional reactions to patients. Psychosomatics. 1988; 29(4):392-7. e De Marco1212. De Marco MA. Comunicação em saúde: fatores que interferem no vínculo e na comunicação na relação médico-paciente. São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2005.,1313. De Marco MA. Comunicação e relação. In: De Marco MA, Abud CC, Lucchese AC, Zimmermann VB. Psicologia médica: abordagem integral do processo saúde-doença. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 63-104.. Foram selecionadas como questões norteadoras do estudo as seguintes perguntas: Quando uma emoção forte é despertada no atendimento, costuma reconhecê-la? Como isso lhe afeta? O(a) senhor(a) acha que percebe suas emoções? Em quais situações? Como lida com elas? Acha importante que o médico reconheça suas emoções durante um atendimento? Por quê?

A fim de se verificar a eficácia do instrumento selecionado, as perguntas foram previamente apresentadas a dois médicos conhecidos das pesquisadoras. As respostas desses médicos não foram consideradas neste estudo.

A entrevista foi realizada no consultório de cada participante e durou em média 40 minutos. No encontro, foram observadas as seguintes etapas: apresentação do objetivo da pesquisa; informações sobre aspectos gerais e específicos do estudo; esclarecimentos sobre a confidencialidade e a possibilidade de o participante se retirar da pesquisa a qualquer momento; e leitura e assinatura do Termo de Consentimento. As respostas dadas pelos participantes foram gravadas e posteriormente transcritas, para que fosse possível proceder à análise do material coletado.

Os dados foram analisados por meio de um processo sistemático de codificação. Mediante esse processo, os dados foram registrados e classificados em temas. Dessa forma, verificaram-se similaridades e diferenças, de modo a extrair significados e comparar os dados com o que fornece o aporte teórico da Psicologia Médica, que norteia este estudo3030. Creswell JW. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2010.,3131. Ezzy D. Qualitative analysis: practice an innovation. London: Routledge; 2001..

Ressalta-se que o projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade e foram cumpridos os requerimentos éticos em pesquisa envolvendo seres humanos preconizados pela Resolução Conep 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e pela Resolução CNS/MS 510/2016.

Resultados e discussão

Com base na estratégia analítica da codificação3030. Creswell JW. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2010.,3131. Ezzy D. Qualitative analysis: practice an innovation. London: Routledge; 2001. do discurso dos médicos observado nas respostas às questões da entrevista, evidenciaram-se três temas relevantes: a) a função apostólica e o entendimento da emoção na prática clínica; b) defesas e estratégias perante as emoções; e c) a companhia de investimento mútuo: frustração e consequências. Para ilustrar a análise, são apresentados alguns trechos das entrevistas pertinentes a cada tema.

A função apostólica e o entendimento da emoção na prática clínica

Notou-se, durante as entrevistas, certo desconforto por parte dos médicos, provavelmente por não ser comum tratarem de um tema relacionado a emoções e refletirem sobre ele. Foi necessário repetir as perguntas diversas vezes e, em certos momentos, observou-se demora em respondê-las.

Os relatos dos médicos entrevistados sobre o entendimento de suas emoções foram condizentes com a noção de função apostólica identificada por Balint1616. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. 2a ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988.. Ele, ao postular essa atitude, investigava os efeitos da personalidade e das atitudes do médico na relação com seus pacientes. Ao observar o modo como tal função se expressa, Balint1616. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. 2a ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988. constatou o que seria prevalente: que os médicos apresentam um comportamento idealizado que reforça a imagem de detentor de um saber onisciente e missionário. Esses profissionais criam uma imagem constituinte do que aprenderam em relação a “como ser médico” e, ao assumirem tal imagem, introjetam uma figura distante e sem afeto. Tal atitude pode ser observada em alguns relatos dos médicos entrevistados, como, por exemplo:

Médicos quase não têm emoção. (Mario)

Você é médico, afeto nenhum. (Miguel)

Incorporar esse tipo de atitude levaria o profissional a negar as emoções e a não se indagar a respeito delas, já que elas não condizem com a função apostólica idealizada de segurança plena.

Nos relatos coletados, uma das justificativas frequentes dos profissionais para não se deterem em introspecção e reflexão sobre os impactos emocionais está relacionada à falta de tempo e à própria rotina de trabalho. Alguns reforçaram a ideia de que as emoções não fazem parte do trabalho do médico:

No trabalho do médico não há espaço para as emoções, você acaba esquecendo delas. (Daniel)

A gente acaba tocando sem pensar muito nas emoções. (Miguel)

Em tais relatos, observou-se a perspectiva comum de que a eficácia dos médicos depende do quanto conseguem evitar as emoções. A justificativa para tal comportamento é que as emoções são intrusas e passíveis de comprometerem o desempenho e a atuação profissional, o que constitui uma visão generalizada que faz parte do repertório e do consenso da classe médica, aprendida desde a formação. Verifica-se tal convicção em pesquisas realizadas com estudantes de Medicina99. Helmich E, Bolhuis S, Laan R, Dornan T, Koopmans R. Medical students’ emotional development in early clinical experience: a model. Adv Health Sci Educ Theory Pract. 2014; 19(3):347-59.,3232. Karnieli-Miller O, Vu TR, Holtman MC, Clyman SG, Inui TS. Medical students’ professionalism narratives: a window on the informal and hidden curriculum. Acad Med. 2010; 85(1):124-33.

33. Marco OLN. O estudante de medicina e a procura de ajuda. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(3):476-81.
-3434. Mascia AR, Silva FB, Lucchese AC, De Marco MA, Martins MCFN, Martins LAN. Atitudes frente a aspectos relevantes da prática médica: estudo transversal randomizado com alunos de segundo e sexto anos. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(1):40-8..

O reforço contínuo de tal atitude leva o médico a obstruir a percepção de suas reações emocionais, bem como a ignorar ou minimizar e expressão emocional dos pacientes. Ao negligenciar o seu sofrimento psíquico e o do outro, arrisca comprometer uma interação que, quando bem-estabelecida, favorece a aliança com o tratamento. Há que se considerar ainda que, na Medicina, o entendimento de uma separação entre a compreensão da fisiologia e da patologia do corpo e a expressão emocional é artificial1313. De Marco MA. Comunicação e relação. In: De Marco MA, Abud CC, Lucchese AC, Zimmermann VB. Psicologia médica: abordagem integral do processo saúde-doença. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 63-104..

Tal coibição pode ser notada por meio dos seguintes relatos:

Então ele [paciente] fala: eu tô triste; tá deixa sair por uma orelha só para não ficar demorando muito a consulta. (Mario)

Às vezes eu entro [nas questões emocionais], mas não gosto, porque, por experiência minha, eu vejo que o paciente não gosta. (Miguel)

Atitudes defensivas na modalidade de processos de racionalização potencializam, em grande parte, a função apostólica e a crença daquilo que o médico “precisa” ser: alguém diferenciado. É comum nos relatos médicos frases como “mas eu sou médico, não tenho afeto nenhum” ou “preciso suportar porque sou médico”.

Defesas e estratégias perante as emoções

Com base no que foi observado anteriormente, depreende-se que as emoções, ainda que estejam presentes no trabalho do médico de forma intensa, do ponto de vista do profissional, são intrusas e negativas para a atuação clínica. Dessa forma, precisam ser controladas para que não atrapalhem o raciocínio e o processo decisório do profissional de Medicina, como pode ser observado no seguinte enunciado: "As emoções são como barreiras que precisam ser cercadas e colocadas de lado" (Miguel).

Os médicos entendem que o controle emocional é necessário para suportar situações extremas as quais são expostos. O controle emocional constitui, portanto, uma forma de proteção e de sobrevivência. Esses profissionais desenvolvem a crença de que a maturidade e os anos de experiência clínica os tornam mais resistentes às emoções e menos propensos a serem influenciados por elas, como fica evidenciado no trecho a seguir: "Eu tenho me tornado muito mais controlado com o passar dos anos" (Jorge).

No entanto, apesar de acreditarem que podem controlar as emoções durante uma situação de atendimento, não parecem perceber o quanto são inconscientemente influenciados por elas. Resultados semelhantes foram observados nos estudos de Meier et al.33. Meier DE, Back AL, Morrison RS. The inner life of physicians and care of the seriously ill. JAMA. 2001; 286(23):3007-14., Croskerry et al.22. Croskerry P, Abbass A, Wu AW. Emotional influences in patient safety. J Patient Saf. 2010; 6(4):199-205., Rossi-Barbosa1010. Rossi-Barbosa LAR, Lima CC, Queiroz IN, Fróes SS, Caldeira AP. A percepção de pacientes sobre a comunicação não verbal na assistência médica. Rev Bras Educ Med. 2010; 34(3):363-70. e Roter et al.55. Roter DL, Frankel RM, Hall JA, Sluyter D. The expression of emotion through nonverbal behavior in medical visits: mechanisms and outcomes. J Gen Intern Med. 2006; 21 Suppl 1:S28-34.. Esse comportamento paradoxal pode ser observado nos relatos a seguir:

Eu já expulsei três pacientes do consultório, mas assim, são pacientes que eu acho que eles que estavam mal-humorados, eles descontaram em mim, e eu mandei embora. (Mario)

Eu faço questão de demonstrar para esse tipo de paciente que não “bateu o santo”. (Jorge)

Quando os profissionais se defrontam com situações que provocam impacto emocional, expressões como “ajo com naturalidade” ou “você tem que ser neutro” revelam estratégias de defesa que vão se consolidando com o tempo. Observa-se nos relatos a utilização da ironia, da racionalização e da negação: "Então de brincadeira eu criei um clube, um clube dos chatos. São poucos, tem a presidente, tem vice-presidente, secretária geral, tem membros do conselho. Lido com muito bom humor, tranquilo, me divirto" (Jorge).

O alto nível de exigência, a sensação de desvalorização e as ameaças contribuem para que os médicos se sintam mais protegidos ao controlar suas emoções, o que minimiza o impacto negativo das relações que os afetam. No entanto, ao mesmo tempo em que há o controle de emoções, ocorre o abafamento de sentimentos ocultos, nos quais a força do impacto emocional se mantém latente e prestes a se manifestar de modo inadequado.

É importante ressaltar, no entanto, que o distanciamento pode ser necessário como forma de defesa e proteção para manter a objetividade e aplicar uma estratégia – e conduta – clínica. O risco estaria no seu emprego indiscriminado, persistente e automático, que poderia levar o profissional a ter ações impulsivas, que escapariam ao controle, e a uma carga interna não manejável.

A companhia de investimento mútuo: frustração e consequências

A pergunta que surge é o quanto a negação das emoções afetaria − se é que afeta − uma relação que tem como peculiaridade e finalidade atender o paciente, que deve se beneficiar do trabalho médico para a melhora de sua saúde. Estudos sobre a comunicação médico-paciente mostram o impacto que essa relação tem no tratamento55. Roter DL, Frankel RM, Hall JA, Sluyter D. The expression of emotion through nonverbal behavior in medical visits: mechanisms and outcomes. J Gen Intern Med. 2006; 21 Suppl 1:S28-34.,1010. Rossi-Barbosa LAR, Lima CC, Queiroz IN, Fróes SS, Caldeira AP. A percepção de pacientes sobre a comunicação não verbal na assistência médica. Rev Bras Educ Med. 2010; 34(3):363-70.,1212. De Marco MA. Comunicação em saúde: fatores que interferem no vínculo e na comunicação na relação médico-paciente. São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2005.,1313. De Marco MA. Comunicação e relação. In: De Marco MA, Abud CC, Lucchese AC, Zimmermann VB. Psicologia médica: abordagem integral do processo saúde-doença. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 63-104..

Segundo Roter et al.55. Roter DL, Frankel RM, Hall JA, Sluyter D. The expression of emotion through nonverbal behavior in medical visits: mechanisms and outcomes. J Gen Intern Med. 2006; 21 Suppl 1:S28-34., o relacionamento médico-paciente é um fenômeno no qual a comunicação de conhecimentos especializados é fundamental, assim como a comunicação emocional subjacente. Os autores consideram que, durante o encontro, médicos e pacientes trazem percepções de emoções de seus respectivos domínios de conhecimento e vivências por meio da comunicação verbal e não verbal. Esses processos repercutem nos cuidados dispensados e nos procedimentos empreendidos.

Outro aspecto que repercute no distanciamento e na contenção emocional, interferindo negativamente na comunicação, é o ressentimento por parte do médico quando é confrontado pelo paciente em relação a seus métodos. O mesmo ocorre quando o paciente vai buscar uma segunda ou terceira opinião. Os médicos, de modo geral, percebem tais atitudes como desvalorização de seu trabalho. Sentimento semelhante ao observado por Greenfield3535. Greenfield G, Pliskin JS, Feder-Bubis P, Wientroub S, Davidovitch N. Patient-physician relationships in second opinion encounters: the physicians’ perspective. Soc Sci Med. 2012; 75(7):1202-12. foi notado em alguns dos relatos coletados, por exemplo: "Hoje em dia com internet tem gente que já vem com tudo determinado, já acha que é aquilo, não quer saber e já vem com o diagnóstico do que ele quer fazer, questiona tudo. Uma pessoa como essa não dá vontade de atender, dá uma sensação incômoda" (Miguel).

Nos tempos atuais, o paciente tem acesso fácil às informações sobre sua doença, sobre procedimentos e até mesmo sobre seus médicos. Segundo Le Pen3636. Le Pen C. Patient ou personne malade ? Les nouvelles figures du consommateur de soins. Rev Econ [Internet]. 2009 [citado 20 Maio 2017]; 2(60):257-71. Disponível em: https://www.cairn.info/resume.php?ID_ARTICLE=RECO_602_0257.
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, esse tipo de situação pode desencadear uma série de consequências para o atendimento, pois traz um paciente mais exigente e faz com que o médico gaste tempo para corrigir, complementar ou debater uma informação exposta, que pode ser imprecisa e até mesmo perigosa.

Apesar de se sentirem acusados pelos pacientes de não estabelecerem uma relação afetiva, os médicos sentem que eles também não estão preocupados em estabelecer relações de confiança. A confiança mútua entre médico e paciente, de acordo com Malterud et al.1919. Malterud K, Hollnagel H. The doctor who cried: a qualitative study about the doctor’s vulnerability. Ann Fam Med. 2005; 3(4):348-52., baseia-se na presunção de que informações relevantes e emoções devem ser compartilhadas.

Segundo Balint1616. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. 2a ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988., o médico adquire gradualmente um capital valioso, que é investido no paciente. Reciprocamente, o paciente também adquire um capital valioso, que é investido em seu médico. O autor denominou esse fenômeno de “companhia de investimento mútuo”, que diz respeito ao fato de que a influência mútua não é um processo simples, já que tanto o médico quanto o paciente devem suportar certo grau de frustração.

O conflito que frustra a companhia de investimento mútuo nasce quando o paciente percebe que o médico não o compreende e não se coloca a seu lado. O paciente, nessa situação, sente-se ameaçado e perdido e não encontra no médico apoio e ajuda, o que pode lhe causar irritação e amargura. Tal situação leva o paciente a ter dúvidas sobre os conhecimentos e sobre a capacidade do médico, o que, consequentemente, gera desconfiança na relação e potencializa o conflito.

O médico, por sua vez, como observado em alguns dos relatos, deposita sua frustração no paciente. Nos relatos dos profissionais entrevistados, nota-se que os médicos, ao perceberem que os pacientes não demonstram confiança neles, mudam suas atitudes e reagem de forma negativa:

Paciente fala: você tem certeza? Eu penso [o médico]: como eu tenho certeza? Por que veio então, não viesse, não preciso passar por isso; saio, dou uma volta, bebo uma água e peço para outra pessoa atender. (Alice)

Os pacientes querem milagres, não querem se tratar; me dá raiva, isso que me deixa mais irritado e depois a culpa cai na Medicina. (Mario)

Quando há uma relação de tensão, ocorre uma perigosa confusão de línguas, em que cada parte fala de uma forma que não é compreendida pela outra1616. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. 2a ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988.. Esse tipo de situação pode desencadear sofrimento e trazer consequências negativas para a interação.

A respeito do sofrimento psíquico do médico, eles relatam o impacto causado pelas agressões e ameaças que têm sofrido em seus consultórios. Os médicos fazem referência a agressões físicas e verbais e sentem pesar pelo desrespeito com o qual são tratados:

Já apanhei de paciente, eles vinham para cima de mim; na hora dá uma raiva imensa, mas você está lá e você tem que respirar fundo e falar, vou sair daqui; é uma agressão, um ato de violência; fico com raiva, magoada mesmo, sabe, chateada, ressentida. (Alice)

As duas vieram para cima de mim, me puxaram pela camisa, me agrediram. (Daniel)

Não tem jeito de não mexer com nossa insegurança. (Daniel)

Os relatos de agressões contra médicos foram abordados em pesquisa realizada pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp)3737. Violência no trabalho. J CREMESP [Internet]. 2015 [citado 12 Jul 2016]:6-7. Disponível em: http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Jornal&id=2120.
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, que constatou que a agressão contra médicos vem se tornando mais frequente, tanto no sistema público de saúde quanto no privado. No estado de São Paulo, 47% dos médicos vivenciaram, ou conhecem um colega que vivenciou, algum episódio de violência por parte de pacientes. De acordo com León3838. León MM. El riesgo emergente que constituyen las agresiones y violencia que sufren los médicos en el ejercicio de su profesión: el caso de España. Rev Bioet. 2010; 18(2):263-74., por se tratar de um fenômeno relativamente novo, não há muitos dados disponíveis. É importante aprofundar as pesquisas e análises sobre as possíveis causas desse gravíssimo problema que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), corresponde a quase 25% de todos os incidentes de trabalho no setor sanitário.

O tema da violência tem sido evitado nos circuitos profissionais, assim como o fato de o médico se sentir testado e levado ao limite de suas possibilidades. Também não se fala do sentimento de vulnerabilidade vivenciado pelos profissionais de Medicina, que se valem de manobras defensivas como a racionalização para evitar situações de desgaste e suportar o cotidiano da profissão. A estratégia de defesa de negação, no entanto, não suprime o sofrimento decorrente da fragilidade e da impotência diante do outro e perante as próprias incertezas.

A pressão decorrente de um trabalho extenuante e de pesada carga de responsabilidade soma-se aos fatores anteriormente expostos, que acarretam desânimo e irritação. Nos relatos, todos os profissionais entrevistados verbalizaram sensação de cansaço generalizado e como isso tem interferido nas interações durante as consultas. Alguns desses registros são elencados a seguir:

Se eu pudesse, acho que metade, eu mandava “catar batata”; tento fazer a minha parte, só isso. Já fui mais encanado, mais encanado a ponto de mandar para meus orientadores: eu vou largar a Medicina, e tal, enche o saco. (Mario)

Eu fico tentando cortar essa minha irritação se eles ficarem perguntando dez vezes a mesma coisa. (Daniela)

Teve uma paciente que virou para mim e disse: você não gosta de mim, né? Não, eu não tenho nada contra você. O paciente perguntou: E por que o senhor está com esta cara? Respondi: Querida, de ontem para hoje eu dormi três horas, eu estou muito cansado, não é que eu não vá com a sua cara, eu estou falando pouco, por que são nove horas da noite, você é minha última paciente e estou atendendo desde ontem de manhã. (Jorge)

Entende-se que a vulnerabilidade é um estado que leva à tensão emocional e contribui para que o profissional se mantenha predisposto a pensar, sentir e agir de modo estressante3939. Lipp MEN. Manual do inventário de sintomas de stress para adultos de Lipp (ISSL). São Paulo: Casa do Psicólogo; 2000., o que pode resultar em intolerância, irritabilidade e outras alterações de humor22. Croskerry P, Abbass A, Wu AW. Emotional influences in patient safety. J Patient Saf. 2010; 6(4):199-205.,4040. Fraga GS. Ambiente de trabalho, estresse e saúde em médicos da rede municipal de saúde de Goiânia [dissertação]. Goiás: Universidade Católica de Goiás; 2004..

Os médicos lidam constantemente com o desconforto causado pelo impacto das emoções em sua profissão. Pesquisas mostram que esses profissionais apresentam sintomas de ansiedade66. Schattner A. Angst-driven Medicine? QJM. 2009; 102(1):75-8., altos níveis de estresse, quadros de burnout (esgotamento emocional)4141. Lima RAS, Souza AI, Galindo RH, Feliciano KVO. Vulnerabilidade ao burnout entre médicos de hospital público do Recife. Cienc Saude Colet. 2013; 18(4):1051-8.

42. Rodrigues JV. Síndrome de Burnout em médicos oncologistas da cidade de Fortaleza: um estudo sobre o sofrimento psíquico no trabalho [dissertação]. Fortaleza: Universidade de Fortaleza; 2007.
-4343. Viviers S, Lachance L, Maranda MF, Mènard C. Burnout, psychological distress, and overwork: the case of Quebec´s ophthalmologists. Can J Ophthalmol. 2008; 43(5):535-46. e depressão1717. Aragão JA, Andrade ML, Mota MIA, Aragão MECS, Reis FP. Ocorrência de sintomas depressivos em médicos que trabalham no programa de saúde da família. J Bras Psiquiatr. 2014; 63(4):341-6.,2121. Meleiro AMAS. Suicídio na população médica: qual a realidade? RBM Rev Bras Med. 2013; 70(2):20-8.. O estresse profissional, que expõe a psicodinâmica envolvida na relação entre médico e paciente, amplificado pelo volume de atendimentos e pelas precárias condições de trabalho2020. Martins-Nogueira LA. Saúde mental dos profissionais da saúde. Rev Bras Med Trab. 2003; 1(1):56-68., é um alerta para a vulnerabilidade emocional e para os efeitos psicológicos relevantes na saúde física e mental do médico.

De acordo com Schattner66. Schattner A. Angst-driven Medicine? QJM. 2009; 102(1):75-8., os fatores importantes que resultam em ansiedade e irritabilidade por parte do médico são as cobranças constantes e as exigências de seus pacientes. Quando o profissional tem dificuldade para lidar com as demandas de seus pacientes, que também são demandas emocionais, surge o sentimento de impotência gerador de sofrimento11. Cassorla RMS. Dificuldades no lidar com aspectos emocionais da prática médica: estudo com médicos no início de grupos Balint. Rev ABP-APAL. 1994; 16(1):18-24., como explicitado a seguir: "Me traz uma sensação de impotência, e às vezes é como se eu fosse impotente na verdade (Marco)"

A relação médico-paciente é sempre e invariavelmente resultado de um compromisso entre as exigências dos pacientes e as respostas do médico1616. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. 2a ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988.. Os profissionais de Medicina têm respondido a essas exigências ora distanciando-se do outro, ora revelando sentimentos como frustação e impotência pela desvalorização e pela falta do reconhecimento.

A prática da Medicina se tornou mais complexa e especializada e tornou mais incerto o papel dos médicos, que têm reagido a essa situação com preocupação. Os questionamentos por parte dos profissionais sobre a própria atividade que exercem e sobre a incerteza em relação ao futuro de sua profissão são bastante significativos:

Meus amigos cirurgiões, meus amigos gineco, meu amigos psiquiatras, clínicos, todo mundo tem a mesma sensação. Acho que a classe médica está bem mal, está bem desmotivada, é a má remuneração, encheção mesmo, falta de descanso. (Mario)

A gente é muito maltratada no sistema público, e às vezes no consultório também e tudo mais, psicologicamente demanda muito, é estressante, vários colegas meus entraram em burnout, eu vi isso muitas vezes; então assim, ou você aprende a lidar [risos] ou você larga, então, a gente meio que... você tem que sobreviver, né! (Alice)

Os médicos vivem em uma linha muito tênue: esforçam-se para buscar a melhora dos pacientes e são pressionados pela premência de encontrar modos eficazes para efetivar essa melhora, assim como sofrem em decorrência de emoções e sentimentos pouco reconhecidos e muito menos discutidos ou compartilhados.

Considerações finais

As emoções do médico e do paciente e as que resultam da interação entre eles são uma constante nos encontros clínicos. A situação de consulta é um momento de interação entre duas pessoas imbuídas de emoções. Nesse contexto, o médico deve ter cuidado para não se deixar dominar pelas emoções e agir impulsivamente sob influência delas; porém, não pode negá-las. O grande desafio consiste na possibilidade de reconhecê-las e administrá-las, fazendo das emoções um instrumento útil na prestação de cuidados.

As dificuldades para gerenciar o envolvimento emocional reforçam no médico atitudes defensivas cristalizadas que o levam a subestimar o impacto emocional do encontro e a reforçar uma atitude de distanciamento afetivo. Com base nos relatos, percebe-se a existência de uma vulnerabilidade emocional, que expõe o sofrimento, em parte decorrente da fragilidade e da impotência diante do outro e da própria atividade.

Deve-se ressaltar que as atitudes defensivas constituem uma necessidade de proteção do eu e surgem para manter o discernimento e a capacidade de agir. Há, no entanto, modalidades de proteção mais versáteis que se desenvolvem com o autoconhecimento, ampliando a possibilidade do reconhecimento de si e do outro na situação. O médico, para “ser médico”, aprende a assumir valores e atitudes que o prendem a uma imagem que enfatiza exageradamente a neutralidade − muitas vezes necessária − que, ao se consolidar em distância e inacessibilidade, tende a dificultar a compreensão da situação dos pacientes e de suas necessidades. Tais sentimentos geram uma pressão interna de difícil manejo. Advoga-se um reconhecimento sem perder de vista o contexto apropriado que visa o atendimento clínico profissional e sua eficácia.

Em suma, a condução de uma gestão emocional por parte do médico pode contribuir para a construção de um campo favorável para o bom desempenho da prática médica e para delimitar momentos decisórios adequados e ampliados, possibilitando lançar novas perspectivas para a classe médica.

Há que se considerar também as novas demandas que surgem na relação médico-paciente. Hoje os pacientes têm apresentado outro perfil, questionam cada vez mais a postura e as atitudes dos médicos, assim como seus conhecimentos. Dessa forma, é essencial pensar um novo papel para os profissionais da Medicina no que diz respeito à relação que estabelecem com seus pacientes.

Este estudo, de cunho qualitativo, não permite generalizações em virtude do número reduzido de participantes. Ainda assim, a limitação inicial não invalida os achados apresentados, uma vez que constituem dados significativos no tocante à relação médico-paciente. Por meio dos dados coletados, foi possível estabelecer algumas inferências a título de observação e apontamento, considerando serem tais inferências representativas da atividade do médico, pois o discurso revelado nas entrevistas corrobora as discussões teóricas e os resultados de outras pesquisas.

Entende-se que a ampliação do presente estudo requer a realização das seguintes ações:

  1. continuidade do trabalho com amostragens maiores e em contextos de atuação profissional distintos;

  2. aplicação de questionários e escalas com mensuração quantitativa;

  3. realização de estudos longitudinais com estudantes, residentes e recém-formados; e

  4. realização de estudos que considerem diferenciações de gêneros e especialidades.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2019

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2017
  • Aceito
    11 Mar 2018
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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