“Corpo de homem com (tre)jeitos de mulher?”: imagem da travesti por enfermeiras** Resultado da dissertação de mestrado intitulada “Laços e Embaraços do Cotidiano: Representações Sociais de Enfermeiras sobre as Travestis”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (PPGENF), da Escola de Enfermagem vinculada à Universidade Federal da Bahia (UFBA).

¿“Cuerpo de hombre con modos de mujer?”: imagen de travesti por las enfermeras

Ester Mascarenhas Oliveira Jeane Freitas de Oliveira Carle Porcino Lorena Cardoso Mangabeira Campos Maria Júlia de Oliveira Uchôa Reale Márcia Rebeca Rocha de Souza Sobre os autores

Resumos

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, fundamentada na Teoria das Representações Sociais, com o objetivo de descrever a imagem da pessoa travesti revelada por enfermeira(o)s. Aplicou-se Teste de Associação Livre de Palavras (TALP), composto pelo estímulo ‘Travesti’, para 110 enfermeira(o)s pós-graduanda(o)s de universidade pública do município de Salvador, Bahia, Brasil. Dessas, vinte responderam a entrevista semiestruturada. Os dados do TALP processados pelo software Ensemble de Programmes Permettant l’Analyse des Évocations (EVOC) subsidiaram a organização do corpus das entrevistas guiada pela análise de conteúdo. O grupo investigado revelou uma imagem sobre a travesti a partir de elementos das dimensões biológica e social, orientação sexual e identidade de gênero; e aponta para o surgimento de uma perspectiva progressista sobre o modo de ser e estar travesti.

Representações sociais; Travesti; Enfermeira; Imagem


Se trata de una encuesta cualitativa, fundamentada en la Teoría de las Representaciones Sociales, con el objetivo de describir la imagen de la persona travesti revelada por enfermeras y enfermeros. Se aplicó el Test de la Asociación Libre de palabras (TALP), compuesto por el estímulo ‘Travesti’, para 110 enfermeras y enfermeros realizando estudios de postgrado en una universidad pública del municipio de Salvador, Bahia, Brasil. De entre ellos, veinte respondieron la entrevista semi-estructurada. Los datos del TALP procesados por el software Ensemble de Programmes Permettantl’ Analysedes Évocations (EVOC) sirvieron de subsidio para la organización del corpus de las entrevistas guiada por el análisis de contenido. El grupo investigado reveló una imagen del travesti a partir de elementos de las dimensiones biológica y social, orientación sexual e identidad de género y señala el surgimiento de una perspectiva progresista sobre el modo de ser y estar travesti.

Representaciones sociales; Travesti; Enfermera; Imagen


Introdução

Independente da orientação sexual, homens e mulheres buscam uma sintonia entre a autoimagem e a materialidade do próprio corpo11. Guimarães A. Todas as mulheres do mundo: a construção do corpo travesti no Brasil das décadas de 1960 e 1970. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e travestilidade na saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2015. p. 39-60.. Considerando a expressão e identidade de gênero pautada na feminilidade, as pessoas que se autorreferem como travesti podem adotar práticas de modificação corporal no sentido de melhor adequarem seus corpos ao modo a que sentem pertencer22. Porcino CA. Quem você pensa que ela é? Representações sociais de estudantes do bacharelado interdisciplinar em saúde da Universidade Federal da Bahia acerca da travesti [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2016.. Nessa concepção, a (re)invenção do corpo se configura como uma busca permanente, uma vez que precisa ser feita e refeita com a finalidade de alcançar a feminilidade, sem, contudo, tornar-se uma mulher. Objetiva-se a construção de uma imagem feminina singular, própria, visando produzir o significado daquilo que é visto como belo para si.

Consideradas seres ininteligíveis e abjetos33. Butler J. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos des “sexo”. Barcelona: Paidós; 2002., as travestis carregam consigo o fardo de viverem além da divisão binária de gênero, às margens da sociedade. Apesar do largo investimento em uma imagem considerada feminina, sofrem por não terem sua identidade reconhecida. Tais vivências dão origem a um contexto de vida caótico, marcado pelo preconceito e pela segregação33. Butler J. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos des “sexo”. Barcelona: Paidós; 2002..

As situações de vulnerabilidade assinalam aspectos que compõem uma representação sobre a imagem da travesti, ancorada em crenças estigmatizantes e estereotipadas, pautada nas normas que regulam o que é ou não normal44. Tagliamento G. Direitos humanos e a saúde: a efetivação de políticas públicas voltadas à saúde integral da população trans. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e travestilidade na saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2015. p. 65-79.. Esse contexto nos faz refletir sobre a relação irrestrita entre travestilidade, prostituição e violência, que permeia o imaginário social, assim como o isolamento social das travestis. De um modo geral, estas ficam invisíveis no cotidiano das cidades, durante o dia, e surgem, durante a noite, no mercado sexual, onde podem ser vistas, acolhidas, desejadas e remuneradas.

No que concerne à Teoria das Representações Sociais, todas as coisas ou pessoas banidas, todos os que foram exilados das fronteiras concretas de nosso universo, possuem sempre características imaginárias, pré-ocupam e perturbam exatamente porque estão presentes, mesmo quando não aparecem55. Moscovici S. A psicanálise, sua imagem e seu público. Petrópolis: Vozes; 2012.. Por meio das representações sociais, é possível evidenciar o sistema de decodificação da realidade que transforma o estranho em algo coerente com os pontos de referência e, consequentemente, habitual e familiar, “à medida que um conteúdo esquematizado ou que um modelo figurativo penetra no meio social enquanto o grupo constrói sua realidade”66. Anadon M, Machado PB. Reflexões teórico-metodológicas sobre as representações sociais. Bahia: EdUNEB; 2011. (p.20). No caso das travestis, sua presença é notada mesmo quando tentam “passar” (des)percebidas.

Nos espaços de atuação da(o) enfermeira(o), pessoas das diversas raças, crenças e identidades colocam-se diante do seu mandato social, o que lhes exige uma postura técnica, mas, também, ética e solidária. Desse modo, há de se considerar que o contexto relacional entre enfermeira(o) e travesti não está livre de influências sociais, que podem direcioná-lo. Quer seja no que se refere a condutas profissionais e tomadas de posição no atendimento e dispensa de cuidados, desde a elaboração de imagens, ideias, noções e posicionamentos, até a existência ou não de protocolos assistenciais e itinerários terapêuticos a esse segmento populacional, nos diversos níveis de atenção.

O encontro entre enfermeira(o)s e travestis produz sentidos e significados para amba(o)s, o que nos leva a pensar que, nesta relação, não há desfechos preestabelecidos. Assim como para qualquer pessoa, as travestis trazem consigo um conjunto de demandas que requer compreensão e formas de cuidar singularizadas.

As práticas de modificações corporais adotadas por travestis podem incorrer em complicações ou situações que agravem a sua saúde. Nesse caso, ao acessarem os serviços de saúde, ocupam um espaço comum ao da(o)s enfermeira(o)s, uma vez que essas últimas devem dispensar cuidado continuado e despido de preconceito. Diante da existência desse lugar comum e da concepção de que as representações sociais são compostas por dimensões relacionadas à atitude, à informação e ao campo da representação ou imagem55. Moscovici S. A psicanálise, sua imagem e seu público. Petrópolis: Vozes; 2012., uma questão fundamental precisa ser considerada: quais são as representações sociais de enfermeira(o)s sobre as pessoas travestis? A partir dessa perspectiva, este artigo tem como objetivo: descrever a imagem da pessoa travesti revelada por enfermeira(o)s.

As representações se compõem de formações imaginárias, fazendo, por vezes, parte de sua elaboração. Desse modo, as representações também podem expressar ou vir a constituir um imaginário, sendo acionado como processo coletivo, ao se incorporar a representação social de vários grupos e se vincular à dimensão afetiva nas representações sociais77. Sousa CP. Angela Arruda e as representações sociais: estudos selecionados. CIERS-ed/FCC, Ens RT, Villas-Bôas L, Novaes AO, Stanich KAB, organizadores. Curitiba: Campagnat; 2014. p. 399.. Portanto, abordar a imagem da travesti, a partir das representações sociais de enfermeira(o)s, consiste em acessar um conteúdo amplo e complexo, que diz respeito a um conjunto sociocognitivo resultante da interpretação do universo simbólico e social77. Sousa CP. Angela Arruda e as representações sociais: estudos selecionados. CIERS-ed/FCC, Ens RT, Villas-Bôas L, Novaes AO, Stanich KAB, organizadores. Curitiba: Campagnat; 2014. p. 399.. As representações exercem influência sobre as relações, determinando comunicações, comportamentos e práticas que norteiam as ações sociais88. Jodelet D. Loucura e representações sociais. Magalhães L, tradutor. 2a ed. Petrópolis: Vozes; 2015. e de saúde relacionadas ao segmento travesti.

Sendo o imaginário um fenômeno coletivo, com fortes componentes psicossociais ainda não explorados de forma sistemática, sua substância é formada pela memória social, povoada por ideias e imagens provenientes dela e do inconsciente77. Sousa CP. Angela Arruda e as representações sociais: estudos selecionados. CIERS-ed/FCC, Ens RT, Villas-Bôas L, Novaes AO, Stanich KAB, organizadores. Curitiba: Campagnat; 2014. p. 399.. Desse modo, sendo a profissão de enfermeira/o histórica e majoritariamente exercida por mulheres, as discussões sobre essa categoria profissional ‘generificada’(g(g) Para Connell, “[...] o substantivo gender (gênero) foi desdobrado em gendered, termo traduzido aqui como “generificado” ou “generificada” – indicando que uma pessoa, grupo, espaço etc. foi tocado ou passou pela rede de processos inclusos nas dinâmicas do gênero.” (p. 8-9)) no feminino e suas representações sobre outros sujeitos do feminino tornam-se importantes para identificar como enfermeira(o)s naturalizam o acolhimento e a dispensa de cuidados, considerando que esse corpo, apesar de ser pautado na/pela ‘feminilidade’, não se reconhece nem como mulher e nem como homem, mas como uma identidade própria e legítima.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, fundamentada na Teoria das Representações Sociais (TRS), realizada com 110 enfermeira(o)s. A escolha por investigar enfermeiras está atrelada não apenas à vinculação a um programa de pós-graduação em Enfermagem, mas, também, ao reconhecimento do contingente dessa categoria profissional nas equipes de saúde dos diversos níveis de atenção e às características da sua prática profissional. De modo geral, enfermeiras mantêm contato direto com usuários e familiares por tempo mais longo durante processo de assistência à saúde, desempenhando procedimentos técnicos, ações educativas, administrativas e gerenciais. Como critério de inclusão, considerou-se a necessidade de a(o) enfermeira(o) estar devidamente matriculada em um dos cursos lato sensu ou stricto sensu oferecidos pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no semestre 2015.1. Esta Escola se destaca no cenário nacional como instituição de enfermagem pioneira em discussão sobre gênero e feminismo.

No período de outubro/15 e março/16, havia 136 enfermeira(o)s matriculada(o)s nos cursos de mestrado, doutorado, especialização e residência. Destas, 26 se encontravam afastadas por licença médica ou maternidade e/ou estavam em processo de apresentação de monografia e defesa de dissertação ou tese, não se dispondo a participar da pesquisa.

Do total de participantes, a maioria era do sexo feminino (98), as quais estavam matriculadas nos cursos stricto sensu de mestrado (37) e doutorado (trinta). As demais (43) cursavam especialização e/ou residência. A idade variou entre 25 a 55 anos, com predominância para a faixa etária de 25 a 35 anos (93). A maioria autodeclarou-se de cor parda, professar a religião católica e ter vínculo empregatício no momento da coleta de dados, atuando majoritariamente na assistência. Algumas (18) revelaram atuar concomitantemente na assistência e na docência.

Uma vez que o uso de multitécnicas atende aos princípios da Teoria das Representações Sociais, as informações deste estudo foram produzidas por duas técnicas distintas e complementares: a evocação livre de palavras e a entrevista semiestruturada. A primeira corresponde a uma técnica projetiva, que, por meio do Teste de Associação Livre de Palavras (TALP), utilizando-se do estímulo “travesti”, possibilitou o acesso aos elementos semânticos e aos aspectos imagéticos do objeto estudado. Para a entrevista, foi utilizado um roteiro previamente elaborado, com foco no objetivo da pesquisa.

A aplicação do TALP requer que o(a) pesquisador(a) familiarize o(a) participante com o instrumento de aplicação, esclareça a preferência pela não utilização de frases e destaque o limite de tempo para a resposta, já que, quanto mais rápida for, maior seu efeito e validade1010. Nóbrega SM, Coutinho MPL. A técnica de associação livre de palavras. In: Coutinho MPL, Saraiva ERA, organizadores. Métodos de pesquisa em psicologia social: perspectivas qualitativas e quantitativas. João Pessoa: Editora Universitária; 2011. p. 205-50.. O TALP foi aplicado individualmente para 110 pós-graduandas que aceitaram participar da pesquisa; com dia e horário previamente agendados; e duração média de dez minutos. Foi solicitado, a cada participante, que escrevesse de três a cinco palavras ou expressões relacionadas ao termo indutor “travesti”, seguindo com a enumeração das palavras conforme a ordem de importância, justificando a escolha da evocação mais significante.

Os dados foram processados pelo software Ensemble de Programmes Permettant l’Analyse des Évocations (EVOC), possibilitando uma análise lexicográfica, revelando a estrutura da representação social, mediante a frequência de evocação (Freq) e ordem média dos termos evocados (OME)1111. Saraiva ERA, Vieira KFL, Coutinho MPL. A utilização do software EVOC nos estudos acerca das representações sociais. In: Coutinho MPL, Saraiva ERA, organizadores. Métodos de pesquisa em psicologia social: perspectivas qualitativas e quantitativas. João Pessoa: Editora Universitária; 2011. p. 205-50.. A frequência diz respeito à quantidade de vezes que a palavra foi evocada pelas participantes, e a OME demonstra a ordem ou posição de evocação, seguindo uma escala de 1 a 5. Do processamento dos dados no EVOC, revelaram-se os elementos estruturais alocados em quadrantes denominados de: núcleo central, primeira periferia, segunda periferia e zona de contraste.

De modo geral, os termos do núcleo central estão intimamente relacionados às condições socioculturais e ideológicas, às normativas e valores sociais, e são intensamente influenciados por estes elementos, determinando os comportamentos e condutas dos sujeitos que a representam1111. Saraiva ERA, Vieira KFL, Coutinho MPL. A utilização do software EVOC nos estudos acerca das representações sociais. In: Coutinho MPL, Saraiva ERA, organizadores. Métodos de pesquisa em psicologia social: perspectivas qualitativas e quantitativas. João Pessoa: Editora Universitária; 2011. p. 205-50.. Pela capacidade de ligar-se à memória coletiva, são resistentes a mudanças e pouco acessíveis ao contexto imediato, sendo, portanto, estruturantes das representações sociais do grupo investigado. A primeira periferia abarca os componentes periféricos considerados relevantes pela frequência de evocação, entretanto, apresenta menor relevância segundo as(os) depoentes. Os termos da zona de contraste são enunciados por menos quantitativo de sujeitos, os quais referem-nos como muito importantes1212. Abric JC. La recherchedunoyau central et de la zone muette des représentations sociales. In: Abric JC, editor. Méthodesd’étude des representations sociales. Ramonville- Saint Agne: Érès; 2003. p. 59-80..

Os dados do TALP revelaram aspectos significativos das representações sociais a respeito da travesti pelo grupo investigado, o que justificou a importância de serem aprofundados nas entrevistas. A entrevista foi realizada, individualmente, com vinte das 110 participantes. Para essa etapa, adotou-se como critério de inclusão ter experiência de pelo menos um ano em atividades assistenciais, docentes ou de gestão. O número de entrevistadas foi definido pela repetição de informações acerca do objeto de estudo, considerando os critérios de saturação dos dados1313. Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad Saude Publica [Internet]. 2008 [citado 30 Jul 2017]; 24(1):17-27. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2008000100003&lng=en&nrm=iso.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
. As entrevistas foram realizadas em dia e horário agendado, com duração média de 35 minutos.

Os conteúdos das entrevistas foram transcritos na íntegra e submetidos às etapas da Análise de Conteúdo1414. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011. no que diz respeito à junção de técnicas de análise das comunicações, que visa obter, por meio de procedimentos objetivos e sistemáticos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção dessas1414. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011.. Nessa perspectiva, o material a ser analisado foi submetido a três etapas distintas e interligadas: 1) pré-análise, 2) exploração do material e 3) tratamento e interpretação dos resultados obtidos.

A partir de leituras contínuas e repetidas, os conteúdos das entrevistas foram identificados e agrupados por trechos, seguindo o princípio de similaridade, compondo as unidades de contexto e categorias temáticas. Para este artigo, foi explorada a categoria denominada “Corpo de homem com (tre)jeitos de mulher”, que retrata a imagem da travesti e reflete termos que compõem o núcleo central, a segunda periferia e a zona de contraste.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal da Bahia, por meio do parecer nº 1.203.257. Durante o desenvolvimento da pesquisa, foram atendidos todos os princípios éticos estabelecidos pela Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde1515. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de Dezembro de 2012 [Internet]. Brasília, DF: Conselho Nacional de Saúde; 2012 [citado 17 Jul 2017]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf.
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Resultados e Discussão

A partir da aplicação do TALP, foram identificadas 528 palavras evocadas pelas 110 participantes para o termo ‘travesti’, sendo 49 diferentes. Os termos “homossexual”, “preconceito”, “identidade”, “maquiagem-feminino” apresentaram elevada frequência, o que os configuram como provável núcleo central da representação do grupo investigado.

O termo homossexual surgiu atrelado à sexualidade de homens que fazem sexo com homens, identidade que aparece como um marcador da dualidade masculino e feminino, sem estar necessariamente associada ao sexo biológico. A expressão preconceito faz referência a conceitos preconcebidos associados a valores negativos, que são socialmente atribuídos à travesti e que fazem parte da sua experiência de vida. A expressão maquiagem-feminino, por sua vez, faz referência às cognições evocadas pelas participantes que estão relacionadas a adereços socialmente considerados como sendo de mulher. As palavras apresentadas no núcleo central se mostraram de forma significativa no conteúdo das entrevistas e deram origem à categoria “Corpo de homem com (tre)jeitos de mulher”, cuja análise revelou a imagem da travesti relacionada às dimensões biológica, social, de orientação sexual e identidade de gênero.

Nos relatórios fornecidos pelo software, os termos/expressões “maquiagem-feminino”, que integram o núcleo central, foram evocados trinta vezes (frequência de evocação) e a ordem média de evocação (OME) foi de 2,467, numa escala de 1 a 5; o termo “mulher”, presente na primeira periferia, foi evocado 21 vezes e obteve OME de 2,952; o termo “homem”, presente na zona de contraste, foi evocado 17 vezes e alcançou 2,118 na OME; a expressão “homem que quer ser mulher”, também presente neste mesmo quadrante, foi verbalizada 18 vezes e apresentou uma OME de 2,778. Esses termos confirmam a dimensão biológica atribuída à imagem da travesti. A predominância dessa dimensão pode ser justificada pela ideia dicotômica, social e historicamente construída de homem e mulher, masculino e feminino, macho e fêmea, a partir do reconhecimento de dois únicos corpos sexuais e sociais distintos. Essas ideias, contudo, não se apresentam de maneira homogênea e nem estanque, pois, nesse caso, o corpo “presentifica a marca”; o corpo “é a própria marca em carne” 1616. Zago LF. “Armários de vidro” e “corpos-sem-cabeça” na biossociabilidade gay online. Interface (Botucatu). 2013; 17(45):419-32. (p. 421).

Diante dos termos evocados no TALP e do conteúdo das entrevistas, pode-se inferir que, para as participantes, a imagem da travesti aparece ancorada em características corporais híbridas. Trechos das entrevistas a seguir retratam tais características:

“Ver “homens” que são altos, tem um vozeirão, cabelão, roupas, peito e bunda, isso choca!” (P5)

“[...] uma pessoa que se comporta, se veste, usa maquiagens, mas ele [ela] se comporta de um jeito diferente do seu órgão biológico e ele [ela] procura adotar roupas, uma vestimenta diferente do biológico dele [dela]. Maneira de falar, de se comportar, lógico que a roupa é o que mais deixa evidente uma pessoa que se diz travesti, mas a forma como ela caminha, a forma como ela fala, a forma como te aborda é diferente.” (P15)

“[...] geralmente com as roupas, uma produção feminina muito exagerada, muita maquiagem, muito brilho, muita roupa.” (P17)

“Por isso que pensei logo em diferente também. Então acho que entra muito em conflito, porque o que é diferente [...] foge dos padrões não é aceito por muitas pessoas. A equipe falava muito dos traços diferentes, [...] falavam ‘oh, parece uma mulher, o cabelo, como se veste’. Chamou muita atenção da equipe [...]” (P12)

Componentes biológicos e da corporalidade, objetificados numa dimensão heteronormativa e determinista, ganham destaque no conteúdo das entrevistas, conforme trechos a seguir:

“Logo pensei no ser homem que se traveste de mulher.” (P1)

“[...] uma expressão de gênero que o que é mais comumente visto que é o homem na nossa sociedade quando se tem um órgão fálico, nasce-se homem, e ela se traveste. Acho que vem daí a denominação travesti.” (P8)

“Ela chegou [no serviço de saúde], a gente não reconheceu que na realidade biologicamente ela era um homem, apenas com o tom de voz que se suspeitou.” (P7)

“A gente olha para alguém e acha que é gay, olha para alguém acha que... mas não! O[A] travesti não, ele[ela] tá ali demonstrando.” (P10)

A possível (in)conformidade entre a genitália e o corpo, apontada pelas participantes deste estudo, é também discutida por Santos1717. Santos AS. O gênero encarnado: modificações corporais e riscos à saúde de mulheres trans [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro; 2014.. Segundo este autor, o corpo híbrido das travestis e as performances fluídas próprias das travestilidades fomentam dúvidas com relação aos códigos de inteligibilidade1717. Santos AS. O gênero encarnado: modificações corporais e riscos à saúde de mulheres trans [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro; 2014.. Por conseguinte, ainda são atribuídos, ao corpo da travesti, estigmas por sua similaridade com o corpo da mulher, pautado no/pelo feminino e violação ao sistema de gênero1818. Ferreira RS. A informação social no corpo travesti (Belém, Pará): uma análise sob a perspectiva de Erving Goffman. Cienc Inf. 2009; 38(2):35-45.. É a partir dessa evidência que os indivíduos que se autorreferem “normais” passam a desqualificar a travesti para (re)afirmarem sua “normalidade”. Do modo como são vistas e classificadas por não serem nem homens e nem mulheres, as travestis passam a ser vistas como “estranhas” e diferentes das pessoas ditas e/ou consideradas “normais”44. Tagliamento G. Direitos humanos e a saúde: a efetivação de políticas públicas voltadas à saúde integral da população trans. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e travestilidade na saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2015. p. 65-79., muito embora não seja esse o modo como as travestis se autopercebem.

Para as(os)participantes, a travesti é uma pessoa considerada diferente, pois se distancia dos padrões da normalidade. Essa diferença é marcada por uma performatividade adotada a partir de um referencial feminino que não condiz com seu biológico. Ao excederem a norma regulatória, tanto na imagem quanto nas possibilidades de relações de prazer, as travestis são empurradas à margem e consideradas seres abjetos1818. Ferreira RS. A informação social no corpo travesti (Belém, Pará): uma análise sob a perspectiva de Erving Goffman. Cienc Inf. 2009; 38(2):35-45.. A ambiguidade da travesti é, sobretudo, marcada pelo masculino1919. Barbosa BC. “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual. Sex Salud Soc. 2013; (14):352-79.. Essa ideia, em parte, reflete a presença do termo preconceito, no núcleo central.

As travestis demarcam, hoje, um lugar questionador, por transgredirem a lógica do sexo naturalizado e por desejarem e (re)inventarem um feminino1717. Santos AS. O gênero encarnado: modificações corporais e riscos à saúde de mulheres trans [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro; 2014.. Sobre essa questão, é importante observar que a imagem da travesti, embora guarde similaridade com a aparência de uma mulher, possui características próprias, assume um padrão de beleza singular e traduz o que é considerado belo por pessoas desse segmento. O feminino travesti não é o feminino das mulheres. É um feminino que não abdica de características masculinas, porque se constitui num constante fluir entre esses polos, quase como se cada contexto ou situação propiciasse uma mistura específica dos ingredientes de gênero2020. Benedetti MR. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond; 2005..

Embora ancorada na contradição, a imagem da travesti parece guardar relação com uma fluidez típica de suas vivências. As participantes apontam para o surgimento de uma perspectiva compreensiva sobre o modo de vida das travestis, reconhecendo a limitação e possibilidade de transcendência da dimensão biológica e a dissociação possível entre o corpo biológico e o gênero, superando a ideia de que é a anatomia que o define.

O conteúdo das entrevistas evidencia um deslocamento da dimensão biológica atribuída à travesti, ao mesmo tempo em que reafirma a existência de uma fluidez que marca o contexto de vida dessas pessoas. Essa fluidez, entretanto, não aparece nos termos evocados no TALP para o estímulo travesti.

A perspectiva da fluidez demonstra sensibilidade das participantes para as questões que envolvem o ser/estar travesti, pois não se restringe apenas a categorias normativas inflexíveis, como pode ser visto nos excertos a seguir:

“[...] é alguém que nasceu “homem”, mas se veste como mulher, se comporta como mulher, que às vezes assume nome de mulher. Não necessariamente quer deixar de ser “homem” [...] existe a mulher que quer também se travestir de “homem”, assume comportamento de “homem” [...] pode assumir as duas “identidades”, de repente.” (P13)

“[...] as travestis mostram para sociedade que o fato de uma pessoa ter pênis ou vagina não quer dizer que ela seja “homem” ou mulher.” (P3)

O caráter “fluido” dessas vivências, também é reiterado por Jaqueline de Jesus2121. Jesus JG. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos [Internet]. 2a ed. Brasília; 2012 [citado 12 Ago 2017]. p. 42. Disponível em: https://www.sertao.ufg.br/up/16/o/ORIENTA%C3%87%C3%95ES_SOBRE_IDENTIDADE_DE_G%C3%8ANERO__CONCEITOS_E_TERMOS_-_2%C2%AA_Edi%C3%A7%C3%A3o.pdf?1355331649%20acesso.
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ao afirmar que as travestis vivenciam papéis de gênero feminino, mas não se reconhecem como homens ou como mulheres, mas como membros de um terceiro gênero ou de um não gênero2121. Jesus JG. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos [Internet]. 2a ed. Brasília; 2012 [citado 12 Ago 2017]. p. 42. Disponível em: https://www.sertao.ufg.br/up/16/o/ORIENTA%C3%87%C3%95ES_SOBRE_IDENTIDADE_DE_G%C3%8ANERO__CONCEITOS_E_TERMOS_-_2%C2%AA_Edi%C3%A7%C3%A3o.pdf?1355331649%20acesso.
https://www.sertao.ufg.br/up/16/o/ORIENT...
. A mobilidade em diferentes esferas do gênero e da sexualidade permite às travestis transitarem por uma multiplicidade de discursos sobre as posições de sujeito disponíveis na sociedade2222. Davi EHD, Bruns MAT. Mundo-vida travesti: abordagem fenomenológica das travestilidades. Temas Psicol [Internet]. 2015 [citado 12 Ago 2017]; 23(3):521-33. Disponível em: http://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/psi-64892.
http://pesquisa.bvsalud.org/portal/resou...
. Esse trânsito só é possível para quem possui performance e corporalidade adequada na situação da enunciação1919. Barbosa BC. “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual. Sex Salud Soc. 2013; (14):352-79..

Na tensão do binarismo de gênero (masculino versus feminino), as travestis, por hora, vivenciam um gênero e, em outro momento, passam a recusá-lo e criticá-lo, nunca vivenciando ambos os papéis de gênero simultaneamente2323. Pelúcio L. Marcadores sociais da diferença nas experiências travestis de enfrentamento à aids. Saude Soc. 2011; 20(1):76-85.. A (re)invenção do corpo travesti constitui uma busca constante2424. Bento B. Apresentação. In: Pelúcio L. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids. São Paulo: Annablume; 2009. p. 17-23.. Este corpo não está dado ou acabado, mas há de ser feito e refeito na busca de uma feminilidade singular, própria22. Porcino CA. Quem você pensa que ela é? Representações sociais de estudantes do bacharelado interdisciplinar em saúde da Universidade Federal da Bahia acerca da travesti [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2016.. Por isso, na procura de uma imagem ideal, a travesti, frequentemente, passa a fazer uso do silicone industrial, de hormonioterapia, recorre a cirurgias e a procedimentos estéticos.

O corpo tem sido considerado não apenas como matéria, mas como gerador de estímulo sensorial, produzindo formas de conhecimento ao meio em que se encontra2525. Gomes R, Granja SEM, Honorato EJS, Riscado JLS. Corpos masculinos no campo da saúde. Cienc Saude Colet. 2014; 19(1):165-72.. Nessa perspectiva, a travesti segue como uma figura provocadora, pois sua identidade, assim como a (re)invenção do seu corpo, pode produzir as mais diversas reações, quer seja aquelas relacionadas às questões emocionais, sociais e de saúde, ou relacionadas à autoimagem, anatomia e fisiologia corporal.

O termo homossexual (Freq. 20/OME 1,650) aparece como um dos elementos do núcleo central. Esta localização atribui ao mesmo a característica do campo representacional da(o)s enfermeira(o)s sobre a travesti. Ademais, sua localização demanda rigidez e remonta concepções historicamente construídas acerca da orientação sexual.

Atribuir à pessoa travesti uma orientação sexual homossexual conota um equívoco, pois esses termos não são sinônimos22. Porcino CA. Quem você pensa que ela é? Representações sociais de estudantes do bacharelado interdisciplinar em saúde da Universidade Federal da Bahia acerca da travesti [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2016.. Enquanto o segundo está relacionado ao campo afetivo e sexual, o primeiro está relacionado ao modo com que a pessoa se reconhece e sente pertencer2. Os trechos a seguir evidenciam essa situação:

“A gente pensa que o travesti é “homossexual”, que o transformista é “homossexual”, a gente coloca tudo no mesmo saco e não distingue cada um.” (P1)

“Além de ter também a opção sexual “homossexual”, então não vejo diferença.” (P4)

“[...] quando fala a palavra travesti é como se referisse a qualquer outro “homossexual”.” (P17)

Definir a travesti apenas como homossexual é produzir uma situação de invisibilidade sobre esse segmento, uma vez que se deixa de reconhecer a sua dedicação para a construção de um corpo que represente sua autoimagem, as características e as práticas que lhes são peculiares e, portanto, sua forma singular de existência e sua identidade. No Brasil, há convenções que associam homossexualidade a performances de gênero femininas em corpos masculinos, sendo estas práticas consideradas de ofensa, preconceito e violência1919. Barbosa BC. “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual. Sex Salud Soc. 2013; (14):352-79..

As ideias das(os) participantes mostram confluência sobre a identidade de gênero e a orientação sexual da travesti. Uma dimensão não está ligada à outra, não há uma norma de orientação sexual em função do gênero2121. Jesus JG. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos [Internet]. 2a ed. Brasília; 2012 [citado 12 Ago 2017]. p. 42. Disponível em: https://www.sertao.ufg.br/up/16/o/ORIENTA%C3%87%C3%95ES_SOBRE_IDENTIDADE_DE_G%C3%8ANERO__CONCEITOS_E_TERMOS_-_2%C2%AA_Edi%C3%A7%C3%A3o.pdf?1355331649%20acesso.
https://www.sertao.ufg.br/up/16/o/ORIENT...
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O termo identidade (Freq. 27/OME 2,556), presente no núcleo central, ganha significância nos trechos das entrevistas, na medida em que as participantes atribuem uma identidade à imagem/pessoa travesti. Ou seja, compreendendo-a como a forma de se autoconceber e se apresentar para outras pessoas, relacionando-a a questões de ordem subjetiva, conforme fragmentos destacados abaixo:

“[...] é alguém que quer se transformar e quer revelar aquilo que ela acredita ser, revelar a sua “identidade”.” (P7)

“São pessoas comuns, como outra qualquer, que apenas trazem a diferença de assumir no seu corpo, no seu fenótipo, a “identidade” feminina. Acho que a sociedade é que coloca sobre essas pessoas, pelo fato de se vestirem como mulher e terem o desejo de ser mulher, colocam o peso que não vejo.” (P4)

“Sou assim, quero que me vejam assim, por isso assumo essa vestimenta, por isso que uso essa “maquiagem”, que uso salto alto...” (P10)

“São pessoas como qualquer outra pessoa que tem uma grande dificuldade que é estar num corpo que não se encaixa com a sua cabeça. Tem uma cabeça “feminina”, tem o gênero feminino, tem traços femininos, trejeitos, fala, roupa, postura; só que está em um corpo masculino [...].” (P2)

Os trechos das entrevistas confirmam a significância do termo “identidade”, embora as(os) participantes não atribuam à travesti uma identidade própria, pois, ainda perpassa pelo binarismo de gênero definido socialmente como masculino e feminino. Uma identidade nunca é descritiva, mas normativa e cheia de expectativa social, pois evoca uma série de enunciados, não somente de gênero e sexualidade, mas contempla marcadores sociais como cor/raça e classe social11. Guimarães A. Todas as mulheres do mundo: a construção do corpo travesti no Brasil das décadas de 1960 e 1970. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e travestilidade na saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2015. p. 39-60..

A cognição preconceito (Freq. 67/OME 2,687) surge no núcleo central e atribui à imagem da travesti uma dimensão social, ao passo que é apontada pelas(os) enfermeiras(os) como uma realidade vivenciada amplamente pelas pessoas desse segmento, nos diversos cenários de suas vidas, conforme apresentam os excertos a seguir:

“Elas abandonam a escola porque são excluídas, pelo fato de serem travestis... a mudança corporal que isso trás e depois a identidade social, é um homem que vira mulher ou mulher que vira homem? E socialmente é aquela outra pessoa que não se reconhece psicologicamente, socialmente e por isso abandonam a escola. A escola não é permeável a essas pessoas em função da orientação sexual, em função da imagem corporal, essas pessoas passam a sofrer de tal modo que preferem abandonar.” (P5)

“[...] tenho muitos alunos que ou se assumem como homossexuais ou que são homossexuais e que não se assumem, mas com travestis não! Nós já estamos com o curso implantado há 8 anos, já vamos formar a 5ª turma e nós não tivemos a presença de nenhum[nenhuma] deles[delas].” (P10)

“Acho que ela passa por muitas situações de preconceito e de aceitação social, por exemplo se ela chega em um determinado local e que tem o banheiro do homem e da mulher, o que vai fazer? Vai usar qual banheiro, então são questões que muitas vezes ela passa e deve realmente trazer muito sofrimento.” (P13)

A identidade de gênero envolve processos complexos, impostos ora pelo processo de socialização primária, ora cobrados, direta ou indiretamente, pela sociedade em que vivemos, onde a heterossexualidade é considerada como modelo normativo único2525. Gomes R, Granja SEM, Honorato EJS, Riscado JLS. Corpos masculinos no campo da saúde. Cienc Saude Colet. 2014; 19(1):165-72.. Emprega-se larga dose de preconceito, portanto, às pessoas que contrariam as regras da normalidade, situação que se intensifica, ainda, quando se fala sobre as travestis, uma vez que estas não se autorreferem como homem ou mulher.

Diante dessa continuada tensão social em que vivem as travestis, compreende-se que a imagem, como elemento constitutivo das representações sociais sobre este segmento, conforma-se como contexto para a interação com outros grupos sociais. Nesse ínterim, não se deve desconsiderar a dinamicidade das representações e da identidade das travestis e como esses elementos influenciam no espaço social dessas pessoas.

Compreende-se que todas as pessoas possuem características que as diferenciam das outras. No entanto, assumir uma imagem que não dialoga com o sexo biológico parece extrapolar as normativas sociais, o que faz, portanto, com que as travestis sejam consideradas “anormais”. De certo que, se a base da interpretação for a estrutura concebida pela heteronormatividade (corpo de homem, práticas masculinas e heterossexualidade), haverá estranhamento frente a expressões singulares, como é o caso das travestis.

Considerações finais

A pesquisa em questão se dedicou a descrever a imagem da pessoa travesti revelada por enfermeira(o)s. Esta imagem apresenta-se inscrita a partir de elementos das dimensões biológica e social, de orientação sexual, identidade de gênero, o que nos permitiu compreender que as travestis são vistas como homens, de orientação sexual homossexual, que utilizam adereços para viverem uma identidade pautada no/pelo feminino. Assim, as representações sociais da(o)s enfermeira(o)s investigada(o)s apontam para um incipiente conhecimento a respeito da pessoa travesti, mesmo quando a discussão sobre as questões de gênero é agregada à formação acadêmica.

A identidade travesti, considerada como uma vivência de gênero, é compreendida pelo grupo de enfermeiras investigado como algo ligado à orientação sexual. Essa representação aponta para a necessidade de formação dessas profissionais no que diz respeito às identidades não hegemônicas, considerando que a ausência desse debate pode influenciar nas ações de cuidado de enfermagem direcionadas às travestis.

Apesar de guardar forte relação com o aspecto biológico, a imagem da travesti também aparece relacionada a uma dinamicidade que é peculiar a esse grupo social. Esses aspectos apontam para o possível surgimento de uma perspectiva compreensiva sobre o modo de ser/estar das travestis, sob a ótica das participantes da pesquisa. Reconhece-se, portanto, certa restrição, mas a possibilidade de superação da dimensão biológica significa conceber uma desagregação entre o corpo biológico e o gênero, alcançando a noção de que este pode se definir a partir de diversos arranjos.

Uma vez que a(o)s enfermeira(o)s sensibilizadas por uma formação em gênero e sexualidades podem desempenhar um papel importante no acolhimento humanizado às travestis, torna-se relevante avaliar a influência das representações sociais sobre o contexto social dessas pessoas. Essas representações podemconstituir elemento que favorece a expressão dos modos de vida da travesti, assim como podem ser o próprio obstáculo para a sua existência.

Desse modo, uma reflexão acerca das heterogêneas, profundas e amplas demandas que envolvem a travestilidade contribuirá para que Enfermeiras(os), em suas diversas áreas de atuação: repensem sobre modos de cuidado singularizados, elaborem protocolos de atendimento, capacitem profissionais e contribuam de modo a sensibilizar a equipe para o respeito às diferenças e aos direitos da pessoa humana – elementos que contribuem para uma atenção integral no cuidado às travestis, à humanização da assistência e o fortalecimento das práticas de enfermagem e políticas públicas voltadas a esse segmento.

Agradecimentos

Agradecemos às integrantes do grupo de pesquisa Sexualidade, Vulnerabilidade, Drogas e Gênero (SVDG) do programa de Pós-graduação em Enfermagem da UFBA pelo apoio, companheirismo e dedicação. Somos gratas à professora Miriam Santos Paiva pelas imensas contribuições. Essa pesquisa contou com o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2019

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2017
  • Aceito
    03 Abr 2018
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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