Vivências de cuidado em saúde de moradores de Serviços Residenciais Terapêuticos

Health care experiences of residents of Therapeutic Residential Services

Vivencias de cuidado de salud de moradores de Servicios Residenciales Terapéuticos

Paula Andréa Massa Maria Inês Badaró Moreira Sobre os autores

Resumos

O Serviço Residencial Terapêutico (SRT) compõe a estratégia de desinstitucionalização na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), sendo um instrumento de recuperação de cidadania. O objetivo deste estudo foi conhecer a compreensão dos moradores de SRT de uma cidade paulista sobre “saúde” e “cuidado à saúde”. De natureza qualitativa, utilizou o grupo focal narrativo e contou com a participação de dez moradores. Para eles, saúde é ser feliz e sentir prazer; e o cuidado à saúde extrapola as ações nos diferentes pontos da RAPS. A sua rede de cuidados inclui diversificados espaços de trocas sociais em estabelecimentos comerciais, de lazer e de cultura. Concluiu-se que as ações dos profissionais no cuidado à saúde devem ressignificar papéis e mediar relações sociais, contratuais e de poder, na concretização de novos planos de vida na cidade, constituindo-se como um projeto de felicidade.

Desinstitucionalização; Residências terapêuticas; Serviços de saúde mental; Saúde mental; Reforma psiquiátrica


The Therapeutic Residential Service (SRT) is a deinstitutionalization strategy part of the Psychosocial Care Network (RAPS) in Brazil and is an instrument that contributes to the recovery of citizenship of mental health patients. The aim of the present study was to learn about how SRT residents in a city of the state of São Paulo understand “health” and “health care”. This was a qualitative study that used narrative focus groups and included ten residents. According to them, health means being happy and feeling pleasure, and health care goes beyond the actions of the different RAPS points of care. Their care network includes different spaces for social exchanges in commercial, leisure and cultural facilities. In conclusion, the actions of healthcare professionals must serve to re-signify roles and mediate social, contractual and power relationships in order to realize new plans for life in the city, constituting itself as a project for happiness.

Deinstitutionalization; Therapeutic residences; Mental health services; Mental health; Psychiatric reform


El Servicio Residencial Terapéutico (SRT) compone la estrategia de desinstitucionalización en la Red de Atención Psicosocial (RAPS), siendo un instrumento de recuperación de ciudadanía. El objetivo de este estudio fue conocer la comprensión de los moradores de SRT de una ciudad del Estado de São Paulo sobre “salud” y “cuidado de la salud”. De naturaleza cualitativa, utilizó el grupo focal narrativo y contó con la participación de diez moradores. Para ellos, salud es ser feliz y sentir placer y el cuidado de la salud extrapola las acciones en los diferentes puntos de la RAPS. Su red de cuidados incluye espacios diversificados de intercambios sociales en establecimientos comerciales, de ocio y cultura. Se concluyó que las acciones de los profesionales en el cuidado de la salud deben dar nuevo significado a papeles y mediar relaciones sociales, contractuales y de poder en la concreción de nuevos planes de vida en la ciudad, constituyéndose como un proyecto de felicidad.

Desinstitucionalización; Residencias terapéuticas; Servicios de salud mental; Salud mental; Reforma psiquiátrica


Introdução

A Reforma Psiquiátrica Brasileira, influenciada pelos movimentos reformistas ocorridos após a Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1945) em alguns países da Europa e nos Estados Unidos, inspirou-se na Psiquiatria Democrática Italiana. Protagonizada por Franco Basaglia, a desinstitucionalização levada a cabo na Itália foi pioneira ao propor uma ruptura definitiva com o modelo manicomial como resposta não asilar e comunitária para o cuidado em saúde mental11. Desviat M. A reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999..

Na consolidação e avanço do movimento brasileiro, foi instituída a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), em 2011, que prevê a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde das pessoas em sofrimento psíquico ou transtorno mental, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa rede possui sete componentes, um dos quais, nomeado “Estratégias de Desinstitucionalização”, tem como ponto de atenção o Serviço Residencial Terapêutico (SRT) ou Residência Terapêutica (RT)22. Ministério da Saúde (BR). Portaria GM nº 3.088, de 23 de Dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 21 Maio 2013.. Trata-se de uma modalidade de moradia inserida em espaço urbano, onde vivem aproximadamente oito pessoas, destinada aos egressos de internações psiquiátricas de longa permanência que não possuam suporte social e laços familiares. Os SRT destacam-se por ser um facilitador do processo de desospitalização e um operador da substituição asilar, porque realoca-se o recurso financeiro correspondente às internações para esta modalidade, uma vez que "a cada transferência de paciente do hospital especializado para o serviço de residência terapêutica, deve-se reduzir ou descredenciar do SUS igual número de leitos naquele hospital"33. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 106, de 11 de Fevereiro de 2000. Dispõe sobre a criação e regulamentação das residências terapêuticas para portadores de transtornos mentais. Diário Oficial da União. 24 Fev 2000. (p. 1).

Importante destacar que o processo de desinstitucionalização não se encerra com a desospitalização, pois demanda uma importante mudança de paradigma, dado que busca uma transformação radical de um sistema de referência excludente para um outro, que é centrado no agenciamento social da loucura. O ato de negação sistemática do hospital psiquiátrico pela abertura de serviços comunitários representa clara recusa à perpetuação da violência institucional do modelo asilar manicomial, presente também nas relações sociais, no papel dos profissionais de saúde e nos ritos institucionais44. Rotelli F. A instituição inventada. In: Rotelli F, Leonardis O, Mauri D, Nicacio MF, organizadora. Desinstitucionalização. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 1990. p. 89-99..

Acredita-se que a ampliação da rede seja um importante passo no sentido da consolidação da reforma psiquiátrica, mas não suficiente. No contexto da desinstitucionalização italiana, Rotelli44. Rotelli F. A instituição inventada. In: Rotelli F, Leonardis O, Mauri D, Nicacio MF, organizadora. Desinstitucionalização. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 1990. p. 89-99. afirma que essa transformação paradigmática ocorre em múltiplas dimensões, desde o macrocosmo, que envolve a construção de uma nova política, até o microcosmos da relação terapêutica, nas concepções e práticas de cuidado. No Brasil, avalia Amarante55. Amarante P. A (clínica) e a reforma psiquiátrica. In: Costa-Rosa A, Milagres ALD, Luzio AC, Venturini E, Peixoto G, Barreto L, et al. Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: NAU Editora; 2003. p. 45-65. (Coleção Archivos)., esse processo se dá em quatro dimensões: epistemológica ou teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-política e sociocultural. Havendo uma mudança epistemológica, na qual a doença passa a ser entendida como um sofrimento psíquico conectado às relações sociais, serão necessárias mudanças nas relações terapêuticas, presentes na dimensão técnico-assistencial. Nessa perspectiva, o cuidado à saúde deverá ocorrer em liberdade, no cotidiano da cidade, como forma de resgatar a condição de membro do corpo social dos egressos das internações psiquiátricas, valendo-se de ações para produção de vida e de sentido, e não para eliminação de sintomas ou cura44. Rotelli F. A instituição inventada. In: Rotelli F, Leonardis O, Mauri D, Nicacio MF, organizadora. Desinstitucionalização. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 1990. p. 89-99..

Nos últimos trinta anos, o país registrou grandes avanços na qualidade e no acesso ao cuidado na atenção psicossocial66. Costa MN. Recovery como estratégia para avançar a reforma psiquiátrica no Brasil. Cad Bras Saude Ment. 2017; 9(21):1-16., tendo habilitado 489 SRT77. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Panorama e Diagnóstico da Política Nacional de Saúde Mental. Brasília: Ministério da Saúde; 2017., número que ainda representa uma baixa cobertura. O Ministério da Saúde justifica a dificuldade de expansão estrutural dessa rede no cenário nacional por questões políticas, socioculturais e técnicas relacionadas à desinstitucionalização, sugerindo que haja uma constante análise do cotidiano de trabalho da RAPS para a efetiva superação do modelo asilar88. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Saúde mental no SUS: cuidado em liberdade, defesa de direitos e rede de atenção psicossocial: relatório de gestão 2011‐2015. Brasília: SAS; 2016..

A revisão dos artigos nacionais sobre SRT permite identificar avanços e desafios. A evolução mais evidente desta estratégia se dá na garantia da moradia e do acesso ao acompanhamento em saúde mental no território, na medida em que os Serviços Residenciais Terapêuticos oferecem uma resposta à cronicidade e à exclusão social de pessoas com histórico de longas internações psiquiátricas99. Pereira VP, Borenstein MS. Iluminando as vivências de mulheres portadoras de transtornos psíquicos e moradoras de uma residência terapêutica. Texto Contexto Enferm. 2004; 13(4):527-34.

10. Argiles CTL, Kantorski LP, Willrich JQ, Antonacci MH, Coimbra VCC. Redes de sociabilidade: construções a partir do serviço residencial terapêutico. Cienc Saude Colet. 2013; 18(7):2049-58.

11. Sztajnberg TK, Cavalcanti MT. A arte de morar... na Lua: a construção de um novo espaço de morar frente à mudança do dispositivo asilar para o serviço residencial terapêutico. Rev Latinoam Psicopatol Fundam. 2010; 13(3):457-68.

12. Paulon S, Resende V, Knijinik C, Oliveira E, Abreu M. Das múltiplas formas de habitar uma morada-A produção do cuidado em um serviço residencial terapêutico. Vivencia. 2007; (32):119-37.

13. Resgalla RM, Freitas MÉA. A residência terapeutica: o melhor lugar de viver. REME Rev Min Enferm. 2004; 8(2):283-9.
-1414. Wachs F, Jardim C, Paulon SM, Resende V. Processos de subjetivação e territórios de vida: o trabalho de transição do hospital psiquiátrico para os serviços residenciais. Physis. 2010; 20(3):895-912.. Dentre os principais desafios, podem-se destacar: a insegurança e a falta de preparo dos profissionais1010. Argiles CTL, Kantorski LP, Willrich JQ, Antonacci MH, Coimbra VCC. Redes de sociabilidade: construções a partir do serviço residencial terapêutico. Cienc Saude Colet. 2013; 18(7):2049-58.,1515. Furtado JP, Nakamura E, Generoso CM, Guerra AMC, Campos FCB, Tugny A. Inserção social e habitação: um caminho para a avaliação da situação de moradia de portadores de transtorno mental grave no Brasil. Interface (Botucatu). 2010; 14(33):389-400.

16. Mângia EF, Ricci EC. “Pensando o habitar” trajetórias de usuários de serviços residenciais terapêuticos. Rev Ter Ocup. 2011; 22(2):182-90.

17. Martins GCS, Moraes AEC, Santos TCF, Peres MAA, Filho AJA. O processo de implantação de residências terapêuticas em Volta Redonda-Rio de Janeiro. Texto Contexto Enferm. 2012; 21(1):86-94.

18. Moreira MIB, Castro-Silva CR. Residências terapêuticas e comunidade: a construção de novas práticas antimanicomiais. Psicol Soc. 2011; 23(3):545-53.
-1919. Silva DS, Azevedo DM. A reforma psiquiátrica na visão de quem cuida: percepções de profissionais do serviço residencial terapêutico. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2011; 15(3):587-94. para lidar com a desinstitucionalização, bem como o medo e a resistência da vizinhança em que a moradia é instalada09,1010. Argiles CTL, Kantorski LP, Willrich JQ, Antonacci MH, Coimbra VCC. Redes de sociabilidade: construções a partir do serviço residencial terapêutico. Cienc Saude Colet. 2013; 18(7):2049-58.,1212. Paulon S, Resende V, Knijinik C, Oliveira E, Abreu M. Das múltiplas formas de habitar uma morada-A produção do cuidado em um serviço residencial terapêutico. Vivencia. 2007; (32):119-37.,2020. Freire ÉVS, Cabral BEB. Saúde mental no território em Juazeiro-BA: reflexões sobre agenciamentos possíveis na relação coma residência terapêutica. Cad Bras Saude Ment. 2016; 8(19):17-41.

21. Kantorki LP, Cortes JM, da Cruz Guedes A, Franchini B, Aquino Demarco D. O cotidiano e o viver no serviço residencial terapêutico. Rev Eletronica Enferm. 2014; 16(4):759-68.

22. Martins GC, Peres MA, Oliveira AMB, Stipp MAC. O estigma da doença mental e as residências terapêuticas no município de Volta Redonda-RJ. Texto Contexto Enferm. 2013; 22(2):327-34.

23. Matos BG, Moreira LHO. Servico residencial terapeutico: o olhar do usuario. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2013; 17(4):668-76.
-2424. Machado Ribeiro Neto P, Zacché Avellar L. Concepções sobre a interação com moradores de residências terapêuticas. Psicol Soc. 2016; 28(1):162-70.. Assim, postula-se que ouvir a voz dos moradores e entender como ocorrem no cotidiano suas vivências de cuidado à saúde pode contribuir para superação desses desafios. Nessa perspectiva, o objetivo deste estudo foi conhecer a compreensão dos moradores de residências terapêuticas sobre “saúde” e “cuidado à saúde”.

Método

Este artigo insere-se no campo das pesquisas sociais em saúde, voltadas à investigação dos fenômenos saúde/doença e sua representação nas instituições políticas de serviços, profissionais e usuários2525. Minayo MC. Introdução à metodologia de pesquisa social. In: Minayo MC. O desafio do conhecimento - pesquisa qualitativa em saúde. 9a ed. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 21-88.. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, na qual a proximidade entre pesquisador e o pesquisado é fundamental2626. Silva CRC, Mendes R, Nakamura E. A dimensão da ética na pesquisa em saúde com ênfase na abordagem qualitativa. Saude Soc. 2012; 21(1):32-41.. O objeto constitui o próprio sujeito, que faz parte de um processo de compreensão intersubjetiva, no “caminho para ir em busca de algo”2626. Silva CRC, Mendes R, Nakamura E. A dimensão da ética na pesquisa em saúde com ênfase na abordagem qualitativa. Saude Soc. 2012; 21(1):32-41. na produção de conhecimento.

A orientação filosófica é a fenomenologia, por buscar apreciar diferentes construções e significados atribuídos à experiência. Tem um desenho participante porque depende do interesse e do respeito do pesquisador pelos sentidos e significados que os seus interlocutores atribuem aos fenômenos estudados, além disso, entende o processo de pesquisa como produtor de conhecimento2727. Schmidt MLS. Pesquisa participante: alteridade e comunidades interpretativas. Psicol USP. 2006; 17(2):11-41..

O grupo focal foi utilizado como instrumento para coleta de dados2828. Carlini-Cotrim B. Potencialidades da técnica qualitativa grupo focal em investigações sobre abuso de substâncias. Rev Saude Publica. 1996; 30(3):285-93.. O uso de abordagens narrativas nos grupos focais, em pesquisas de cunho qualitativo no campo da saúde coletiva, tem se destacado por possibilitar a compreensão de experiências e diferentes pontos de vista dos sujeitos em um dado contexto. Desse modo, configura-se ferramenta para a construção de significados à existência humana2929. Onocko-Campos RT, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica. 2008; 42(6):1090-6.. A essência do grupo focal narrativo consiste em captar o processo de discussão, argumentação e construção de opiniões que tende a ocorrer na interação com outros indivíduos, deslocando-se da perspectiva do indivíduo para a do grupo social. Inspirados no círculo mimético de Ricouer, os estudos de Onocko-Campos et al.3030. Onocko-Campos RT, Palombini AL, Leal E, Serpa OD Jr, Baccari IOP, Ferrer AL, et al. Narrativas no estudo das práticas em saúde mental: contribuições das perspectivas de Paul Ricoeur, Walter Benjamim e da antropologia médica. Cienc Saude Colet. 2013; 18(10):2847-57. definem esse trabalho como uma operação mediadora entre a experiência viva e o discurso, com a pretensão de superar a distância entre compreender e explicar.

O caminho percorrido

O estudo que orienta este artigo foi realizado em um município da Grande São Paulo que escolheu investir na reordenação da sua Rede de Atenção Psicossocial, excluindo o hospital psiquiátrico da RAPS local, como previsto na portaria que a institui, e abrindo seis SRT. Por indicação da coordenação municipal de saúde mental, foram realizadas visitas a três residências terapêuticas, sendo convidados 23 moradores, dos quais dez decidiram participar da pesquisa. Metade desses moradores era do sexo feminino e vivia em dois SRT desde a sua inauguração, nos anos de 2009 e 2010. Os participantes tinham entre 34 e 85 anos; seis eram naturais da região Sudeste e quatro, do Nordeste. Quanto à escolaridade, dois concluíram o Ensino Fundamental, a maioria tinha Ensino Fundamental incompleto e uma era analfabeta.

Todos recebiam pelo menos um benefício social: o Programa de Volta pra Casa (PVC) ou o Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC-LOAS) ou aposentadoria; alguns recebiam mais de um benefício. Com exceção de uma participante, internada em instituição psiquiátrica de outra cidade, os moradores vinham de hospital localizado no município. O período de internação variou entre dois e 16 anos, com tempo médio de sete anos. Os nomes são fictícios e foram escolhidos pelos participantes.

Foram realizados quatro encontros do grupo focal narrativo, entre setembro e outubro de 2016, com duração aproximada de uma hora e vinte minutos cada. Seus objetivos eram a construção de uma narrativa sobre “saúde” e “cuidado à saúde” e o mapeamento dos lugares acessados pelos moradores para esse cuidado. Os dois primeiros encontros utilizaram as perguntas disparadoras: “O que é saúde para você?”; “Como você cuida da sua saúde?”; e “Quais lugares vocês acessam para o cuidado à saúde?”

Alguns participantes iniciaram a discussão falando frases e palavras que relacionavam ao tema. Ao perceber uma dificuldade inicial dos participantes em lembrar o que já havia sido exposto por outro membro do grupo, a pesquisadora escolheu registrar em um cartaz o que estava sendo dito, e, desse modo, viabilizar a participação de todos no debate. Além da conversa, os participantes puderam expressar as suas ideias por meio de recursos gráficos, tais como: recortes de revistas (imagens e palavras), papéis e lápis. Essa foi uma estratégia para o equacionamento da dificuldade de comunicação verbal de alguns participantes.

Após a leitura flutuante das transcrições das gravações dos dois primeiros encontros do grupo focal, uma segunda leitura possibilitou a seleção dos núcleos argumentais para a construção de um esboço de narrativa. Foram selecionadas e agrupadas falas que apareciam em comum ou que divergiam sobre o que é saúde e, em seguida, sobre as formas de cuidar da saúde. Foram utilizadas todas as diferentes contribuições e eliminadas as repetições.

No terceiro encontro, o esboço da narrativa foi lido para os participantes, que desse modo puderam realizar alterações, inclusões ou exclusões. No quarto encontro, a narrativa foi finalizada e validada coletivamente. Por fim, a partir da fala de cada participante, foi feito um mapeamento dos locais acessados, com vistas a identificar a rede de cuidados utilizada pelo grupo.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo, via Plataforma Brasil, sob o parecer número 1.727.506.

Resultados e discussão

Os participantes relacionaram a longa permanência no hospital psiquiátrico e a entrada no SRT à ausência ou ao rompimento de laços familiares, como é possível perceber nas falas que seguem:

“Me roubaram do meu pai e da minha mãe. Foi lá em Minas Gerais [...] Eu não vi nem meu pai, nem minha mãe; não deixaram eu ver, não deixaram eu conhecer, nem meu pai nem minha mãe.” (disse Lucas Moura)

“Me perdi dentro de São Paulo e, aí, fui parar no Lacan (hospital), que é o pior lugar no mundo que eu achei. O Lacan foi o pior do mundo.” (ressaltou Antônio)

“Eu fiquei (internado) 5 anos porque o meu pai tinha morrido e eu não sabia. Mas eu não estava doente, não. Aliás, eu saí de lá de alta. Ficava lá tomando conta do pátio. Fazendo companhia para aquelas [pessoas] que não tinham companhia, conversando.” (apontou Charlene)

Nesses excertos é possível confirmar o que diz Basaglia sobre o poder descontextualizante, destrutivo e institucionalizante da organização manicomial, que atua sobre aqueles que não têm outra alternativa além do hospital psiquiátrico3131. Basaglia F. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. In: Amarante P, organizador. 7a ed. Rio de Janeiro: Garamond; 2005..

Saúde e cuidado à saúde

No estudo sobre a vida subjetiva de internos dos manicômios, Goffman3232. Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 9a ed. Leite DM, tradutor. São Paulo: Pespectiva; 2015. (Debates, 91). afirma que a mortificação do eu ocorre por um processo de perda da posse física quando eles são submetidos a situações de risco ou ameaça de sua integridade, bem como pela impossibilidade de ter algo que lhe seja próprio, uma vez que seus bens são inicialmente recolhidos e os instrumentos de vida diária, além de coletivos, são periodicamente substituídos.

A partir das falas dos participantes, é possível supor que, como ex-moradores de um hospital psiquiátrico, eles tenham vivenciado situações como as descritas por Goffman3232. Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 9a ed. Leite DM, tradutor. São Paulo: Pespectiva; 2015. (Debates, 91).. Nos excertos a seguir, os participantes relacionaram saúde com a possibilidade de realizar atividades diversas de autocuidado, o que permitiu constatar que, nas residências terapêuticas, eles vivenciam a preservação do seu corpo e a possibilidade de possuírem instrumentos próprios para a realização das atividades de vida diária:

“Eu tenho que tomar banho e trocar de roupa.” (Elisabete)

“Eu tomo 2 banhos por dia... Meu maior prazer é tomar banho. Eu adoro tomar banho.” (Charlene)

“Eu cuido da minha saúde ficando na minha casa, cuidando das minhas coisas, apesar das minhas coisas, guardando as minhas coisas, né?” (Adriana)

Os participantes relacionaram saúde à integridade e higiene do corpo físico: ausência de dor, corpo limpo, bem alimentado e descansado. Sobre o cuidado à saúde, as estratégias iniciais elencadas se conectaram com a perspectiva médico-centrada (tomar remédios, injeções, vitaminas, curativos, fazer tratamento, exames, passar no médico) e a realização das atividades básicas de vida cotidiana (comer, dormir e tomar banho).

Charlene iniciou um movimento de discordância ao argumentar que o que estava sendo dito se relacionava com a doença, e não com a saúde:

“Tomar remédio não é saúde; a gente toma porque precisa. Se eu só pensar em tomar remédio, o pessoal coloca remédio na boca, nem sabe pra que serve, né? Não é saúde. Você tá doente, né? É doença, porque tá doente, né? Ficar indo no hospital direto, aí já é doença, já. Tem que ir no médico, mas não pra ter saúde. Se vai sempre é porque já está doente, né?” (Charlene)

Ana, ao apresentar para o grupo uma imagem com pessoas sorrindo, constatou que, nas revistas, as pessoas parecem sempre saudáveis e felizes, concluindo que felicidade traz saúde e que sentir prazer traz felicidade. Essa reflexão construída por ela, em articulação com a argumentação de Charlene, disparou falas que ampliaram o conceito de saúde e, consequentemente, o de cuidado à saúde. Atividades de trabalho, de lazer e de cultura foram incluídas pelos participantes entre as formas de cuidar da saúde.

Eles, porém, divergiram em dois pontos: sobre considerar os procedimentos e o uso de medicamentos como formas de cuidar da saúde ou de cuidar de doença e na correlação entre prazer, felicidade e saúde. Neste ponto parte do grupo fez uma ressalva: quando atividades que dão prazer ocorrem em excesso, elas trazem riscos ou doenças. Entre consensos e divergências, produziu-se a narrativa final:

“Nós entendemos que saúde e felicidade não existem uma sem a outra. Sentir amor, felicidade, paixão e sorrir nos traz saúde. O que nos faz feliz pode variar, mas sempre está ligado a algo que nos dá prazer. Neste grupo temos pessoas que sentem prazer em: dar e receber carinho, tomar banho, se sentir respeitada, ser alegre com as pessoas, estar em comunhão com todos, conhecer pessoas novas, ir ao cinema, fazer amor e ter um casamento. Entendemos que a felicidade está nas coisas simples, como beber água quando se está com sede, tomar um cafezinho à tarde, tomar água de coco, cuidar da sua casa, poder comer um bombom quando se está com vontade, tomar um guaraná e ir para Santos (praia do litoral paulista). Quando não temos saúde, nós sentimos dor, tristeza e não temos ânimo para sair. Para ter saúde é necessário ter uma casa, ter dinheiro para poder comprar e ter família. Esse grupo concorda que comer e dormir bem, cuidar da higiene, estudar, plantar, brincar com as pessoas, fazer exercício, trabalhar e desenhar são formas de cuidar da saúde. Pensamos que ouvir música e assistir futebol pode trazer saúde, mas uma de nós discorda. Um de nós fica em dúvida se sair para passear traz saúde ou se traz doença, porque podemos pegar uma doença no contato com os outros. Também pensamos que ir à igreja, orar, pode trazer saúde, porque traz paz e tranquilidade, mas também pensamos que ir muito à igreja, pode virar um vício e, aí, já não é saudável. Alguns de nós entendem que para ter saúde é preciso ir ao médico, fazer tratamento, fazer curativos, tomar injeção, tomar remédio e tomar vitaminas, outros entendem que isso quem faz são as pessoas doentes e não as que têm saúde. Também pensamos que para quem tem saúde, e quer continuar tendo, é necessário ir ao médico de vez em quando, só para saber se está tudo bem.”

Desde o início, dormir e comer bem foram ações identificadas pelo grupo como formas de cuidar da saúde. Importante observar que o uso do advérbio “bem” em complemento ao verbo “dormir” funciona como um modificador quantitativo (dormir pouco ou muito) e como um adjetivo (boa ou má qualidade do sono). Nesse sentido, a expressão pode ser entendida como uma circunstância, um modo de dormir – literalmente, dormir bem significa dormir em quantidade e qualidade adequadas para que o corpo descanse. Do mesmo modo, quando “bem” complementa o verbo “comer”, indica uma alimentação saudável, variada, equilibrada e nutritiva.

Entretanto, ao relacionar os exemplos do que lhes dá prazer – presentes na narrativa com as imagens de doces, café e com as palavras “temperadas”, “deliciosas” e “sonhar” selecionadas nas revistas pelos participantes –, apareceu um sentido conotativo para o advérbio “bem”: ter sonhos, planos, desejar, sentir sabores e ter prazeres. Não se trata de uma ação mecânica, padronizada, para todos. Ao contrário, destaca-se a versão singular que envolve: escolhas, gostos, preferências, um exercício de diferenciação, de busca do que lhe é próprio nas atividades básicas de vida diária.

Sobre o cuidado à saúde, Ayres3333. Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas de saúde. Interface (Botucatu). 2004; 8(14):73-92. afirma que, ao se conceber saúde como um estado de coisas e completo bem-estar, inviabiliza-se a sua realização como horizonte. Nessa perspectiva, então, o cuidado não pode estar completo, exigindo ser reconstruído constantemente. Para o autor, assim, a felicidade remete a uma experiência vivida e valorada positivamente, que não depende de um estado de completo bem-estar ou de perfeita normalidade.

Os participantes se aproximaram dessa visão ao significarem o cuidar da saúde como o cuidar de si. Dito de outro modo, é necessário saber de si, saber o que lhe dá prazer para, então, fazer escolhas com produção de sentidos, que não se encerram em uma busca por ausência de doença e supressão de sintomas.

Duas frases construídas pelos participantes por meio de recortes e colagem foram analisadas como uma tradução das potências e dos desafios vivenciados na vida em liberdade: “Cada vez mais longe da meta profissional” e “Nós temos medo do rumo novo”. Na primeira, expressaram a constatação de que existe um objetivo não alcançado, um distanciamento em relação ao esperado na ordem social. Na segunda frase, sugeriram a existência de um sentimento de insegurança que permeia a condição de vida do grupo, mas também afirmando que existe um rumo, um plano, um projeto que são diferentes do caminho que estavam traçando.

As palavras “remédio” e “poder” foram unidas pelos participantes, sugerindo que há uma relação de controle presente, materializada na medicação. Basaglia31 fala do circuito de controle e da psiquiatria como instituição. Defende que a eliminação do manicômio, instituição de violência que ocupa um lugar central nesse circuito, é fundamental para a reversão desse processo social de exclusão, mas não garante a mudança na origem do pensamento de institucionalização da loucura. Analisa que as instituições de poder estão presentes nos sistemas educacionais, judiciários, assistenciais etc. Nessa perspectiva, podemos supor que os participantes da pesquisa identificam e relacionam o medicamento no cotidiano como o representante dessa instituição.

No que diz respeito ao papel dos profissionais da saúde na socialização do desvio e da marginalidade, Basaglia3131. Basaglia F. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. In: Amarante P, organizador. 7a ed. Rio de Janeiro: Garamond; 2005. aponta sua dupla responsabilidade no que diz respeito ao cuidado: revelar o que é o sofrimento psíquico e revelar a sua condição de exclusão social. Somente reconhecendo-se nesse papel duplo, avalia o autor, o profissional da saúde poderá contribuir para a superação e mudança, na privação de bens e de poder contratual vivenciadas pelas pessoas em sofrimento psíquico.

Os estudos revisados indicam que a falta de preparo e a insegurança dos profissionais são um obstáculo à desinstitucionalização. Na busca pela compreensão sobre como cuidam da saúde, os participantes deste estudo traduzem o que esperam deles: a ressignificação dos seus papéis, a mediação nas relações sociais, e o apoio na concretização de novos planos e metas de vida.

O mapeamento da rede de cuidados em saúde

Para conhecer os locais que os participantes acessam no cuidado à saúde, foi elaborado um mapa da rede, o que permitiu identificar diferentes graus de autonomia dos participantes em saber ou falar sobre si. Existe uma relação de cuidado entre os moradores que acontece no cotidiano. Essa dinâmica foi reproduzida nos grupos focais narrativos, quando alguns participantes ajudaram outros a se lembrarem dos lugares acessados cotidianamente. A reflexão sobre cuidado à saúde direcionou esse mapeamento. O grupo trouxe diferentes possibilidades da rede de cuidados, como consequência da relação estabelecida por eles entre a saúde, a felicidade e o prazer.

A maior parte dos lugares acessados são estabelecimentos comerciais, sobretudo relacionados à disponibilidade de alimentos (feira, restaurante, padaria, supermercado, banco, lotérica, salão de beleza, shopping), seguidos dos espaços de cultura e lazer (praia de Santos, pesqueiro, pinacoteca, igreja, estádio de futebol, cinema), das visitas aos familiares e aos amigos (profissionais dos serviços ou outros moradores de SRT) e, por último, os serviços de saúde.

Os componentes e pontos de atenção da RAPS local aos quais os moradores têm acesso são: Atenção Básica, representada pela Unidade Básica de Saúde (UBS); Atenção Psicossocial Estratégica, pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS); Atenção de Urgência e Emergência, pela Unidade de Pronto-Atendimento (UPA); Atenção Hospitalar, pelo hospital geral; Estratégia de Reabilitação, representada pelo Coletivo Traço(c(c) Projeto de inclusão cultural, fruto de uma parceria entre o CAPS e a Pinacoteca, equipamento cultural vinculado ao governo estadual.) e a banca de venda do CAPS; e a Estratégia de Desinstitucionalização, pela própria moradia, o SRT e o PVC.

Faz-se necessário destacar que serviços existentes na cidade onde as residências terapêuticas pesquisadas estão instaladas – tais como as policlínicas e os centros de especialidade ou mesmo o hospital geral e a UPA –, são utilizados pelos moradores de forma variada (ortopedia, endocrinologia, gerontologia, fonoaudiologia, otorrinolaringologia, oncologia, cirurgia), de acordo com outras questões de saúde não relacionadas diretamente com o cuidado ao sofrimento psíquico. Algumas delas, porém, são consequência do isolamento social e do uso prolongado de medicamentos.

Em especial, entre as especialidades buscadas, destaca-se a odontologia, que é acessada tanto na rede pública quanto na privada. Entre os participantes, três possuíam prótese, total ou parcial. Esse achado está em consonância com um estudo3434. Jamelli SR, Mendonça MC, Diniz MG, Andrade FBM, Melo JF, Ferreira SR, et al. Saúde bucal e percepção sobre o atendimento odontológico em pacientes com transtorno psíquico moradores de residências terapêuticas. Cienc Saude Colet. 2010; 15(1):1795-800. sobre a saúde bucal de moradores de SRT, que classificou 42,5% dos entrevistados como desdentados totais. Acima do esperado em relação às pessoas da mesma faixa etária sem histórico de internação psiquiátrica, esse índice foi justificado pelo uso frequente da extração dentária nos hospitais psiquiátricos como intervenção odontológica em detrimento de atividades preventivas e curativas. A vivência de Charlene em instituição psiquiátrica a levou a relacionar a necessidade dos serviços de saúde bucal com o eletrochoque: “Eu perdi meus dentes porque eu levei muito choque no hospital. Meu dente quebrava pelo choque, eu apertava e saia, olha, ia quebrando ... com o tempo o dente caiu” (Charlene).

Os lugares acessados pelos participantes no cotidiano mostraram que existe uma variedade de projetos, ideias e interesses diferentes entre eles. São movimentos realizados por cada um em busca de construir espaços de trocas sociais, como expressão de seus interesses e exploração da vida em liberdade. É interessante notar que os estabelecimentos comerciais são os lugares mais frequentados pelos moradores, o que demonstra o impacto da existência e da possibilidade de gestão de um recurso financeiro na sociabilidade dos participantes.

Em consonância com os estudos que concluem que o medo e a resistência da vizinhança são obstáculos para a desinstitucionalização, foi possível perceber que os participantes não incluíram, em sua rede de cuidados, pessoas que não fossem outros moradores de SRT ou profissionais dos serviços. Isso revela que eles não possuem laços com as pessoas que moram na vizinhança.

Venturini3535. Venturini E. “O caminho dos cantos”: morar e intersetorialidade na sáude mental. Fractal Rev Psicol. 2010; 22(3):471-80. observa que, para uma moradia contribuir para o avanço do processo de desinstitucionalização, faz-se necessário conhecer a cidade, os recursos e as necessidades do bairro onde ela será instalada, possibilitando, assim, uma socialização ativa. Para tanto, inicialmente, é necessário explorar a cotidianidade para identificar se, naquele lugar, as pessoas “ficam” ou “habitam”. Nessa perspectiva, deve-se atentar para não programar os lugares de vida dos moradores, mas, sim, apoiá-los para uma abertura à vida na comunidade. A palavra de ordem é habilitar a cidade e fugir da pretensão de normalizar por meio da diminuição da diversidade e da inclusão ao que está instituído3636. Venturini E. A qualidade do gesto louco na época da apropriação e da globalização. In: Costa-Rosa A, Milagres ALD, Luzio AC, Venturini E, Peixoto G, Barreto L, et al. Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: NAU Editora; 2003. p. 157-84. (Coleção Archivos).. Percebe-se que, na concepção dos participantes, cuidado em saúde deve ter como foco principal as relações – com a família, com o território, com o outro –, confirmando a insígnia: a liberdade é terapêutica3737. Venturini E, Goulart MSB. Recovery: ambiguidades e confrontações. Cad Bras Saude Ment. 2017; 9(21):282-99..

O grupo de participantes propôs uma ampliação no aspecto temporal, em projeções para o futuro, ao incluir lugares que poderiam fazer parte dessa rede de cuidados. Assim, além de mapear recursos, foi possível conhecer projetos de vida: desejo de morar com a família de origem (Elisabete), de constituir uma família (Adriana, Patrícia e Charlene) ou de morar só (Ana e Maurício). Outras perspectivas aparecem, como o desejo de viajar verbalizado por todos os moradores, em especial Charlene, que sonha conhecer Paris. Ana, ao tomar conhecimento de que sua família residia na Paraíba, planejava visitá-la. Maurício, Jesus e Lucas Moura desejavam participar de outras atividades culturais e de lazer, entre as quais: conhecer a Galeria do Rock e visitar o estádio de futebol do Morumbi, ambos na capital paulista.

Um projeto de felicidade em liberdade, ainda que tomado como um plano, é uma possibilidade de lançar-se à vida em direção a alguma conquista. Para Ayres, um projeto de felicidade

enraíza a vida efetivamente vivida pelas pessoas aquilo que elas querem e acham que deve ser a saúde e atenção à saúde. [...] Ele remete [...] a uma ponte entre uma reflexão ontológica, sobre o sentido da existência, e as questões mais diretamente relacionadas à experiência da saúde e da atenção à saúde3838. Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(3):16-29.. (p. 21)

As variáveis que determinam os resultados da vida em liberdade podem ser micro e macro, e estão, respectivamente, no nível da afetividade, da continuidade e na relação de vínculo e na estrutura da rede de serviços e dos recursos da comunidade3939. Saraceno B. Reabilitação psicossocial: uma estratégia para a passagem do milênio. In: Pitta A, organizadora. Reabilitação psicossocial no Brasil. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 13-8.. O mapeamento da rede apresentado mostra que as variáveis macro estão estruturalmente conectadas a uma proposta de reabilitação psicossocial e se faz necessário maior investimento nas variáveis micro.

Tendo em vista que a vida concreta destas pessoas está na cidade, uma proposta de projeto de felicidade deveria prever a necessidade de superação de pilares de modelos clínicos sustentados nas noções de doença em busca da cura ou remissão de sintomas. É fundamental lançar mão de fazeres que se aproximem da vida concreta das pessoas, assim, podem-se acolher as diferentes produções de modos de viver na cidade e, para isso, é preciso convocar novos atores para ativar outras formas de convívio, de estar junto deste viver em sociedade4040. Moreira MIB, Onocko-Campos RT. Ações de saúde mental na rede de atenção psicossocial pela perspectiva dos usuários. Saude Soc. 2017; 26(2):462-74..

Por seu turno, a reabilitação deve ser tomada como um processo de reconstrução, um exercício pleno de cidadania e de plena contratualidade nos três cenários: habitat, rede social e trabalho com valor social4141. Saraceno B. Reabilitação psicossocial: uma prática à espera de teoria. In: Pitta A, organizadora. Reabilitação psicossocial no Brasil. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 150-4.. Como Saraceno define: "É necessário que as pessoas aprendam a ter relações para poderem depois terem negócio [...] A reabilitação não é um processo para adaptar ao jogo dos fortes, os fracos, [...] pelo contrário é um processo para que se mudem as regras"4141. Saraceno B. Reabilitação psicossocial: uma prática à espera de teoria. In: Pitta A, organizadora. Reabilitação psicossocial no Brasil. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 150-4. (p. 151).

A construção da cidadania, ponto fundamental da reabilitação psicossocial, depende de variáveis que operam a favor da contratualidade nos cenários da vida de todas as pessoas que passam por esse processo. E, neste sentido, é fundamental reafirmar modos de cuidar em que se valorizem os projetos de vida como elemento que fomente ações transformadoras não só das dimensões da vida de pessoas afetadas pela vivência de um sofrimento psíquico4040. Moreira MIB, Onocko-Campos RT. Ações de saúde mental na rede de atenção psicossocial pela perspectiva dos usuários. Saude Soc. 2017; 26(2):462-74., como, também, de trabalhadores envolvidos na área, e, por fim, da comunidade em que vivem.

Conclusão

Identificou-se que os participantes reconheceram sua condição de exclusão social vivida anteriormente. Ao revelarem que sentiam medo quando se deparavam com a possibilidade de um rumo novo, adicionalmente definiam que estar em um SRT permitiu se perceberem como cidadãos, conscientes de seus direitos, capazes de identificar a existência de um outro lugar para si na sociedade, distante do modo anterior, estruturado na ideia de doença.

Saúde e cuidado à saúde, na visão desses moradores, inicialmente foram compreendidos como a manutenção de sua integridade física, paulatinamente caminhando em direção à possibilidade de saborear, de desejar e de ter um plano de vida. Quando convidados a pensar sobre como cuidam da saúde, se questionaram acerca do uso de medicamentos, das consultas médicas e da ida ao hospital. Optaram por falar das possibilidades de estar em relações sociais e projetos de futuro, já que essa tem sido a realidade vivida por eles. Verificou-se que a garantia e a gestão de um recurso financeiro estão intimamente ligadas aos planos futuros apresentados.

Conclui-se que a rede de cuidado em saúde não se restringe a serviços especializados em saúde mental, mas engloba diferentes pontos de atenção, acessados de acordo com as necessidades de saúde de cada um e, além disso, inclui suas vivências nos lugares de lazer e consumo. Percebeu-se que os participantes se apropriam do espaço urbano de acordo com os interesses e projetos de vida, mas ainda com pouca interação com moradores do bairro.

Estar na cidade pode ser considerado um gatilho para a real inclusão, em um duplo processo de habilitação, da cidade e das pessoas. O avanço em direção a uma sociedade que verdadeiramente as inclua, independentemente da intensidade dos sintomas que apresentam, é um desafio e se mostra, concomitantemente, como uma condição e uma consequência para o cuidado à saúde em liberdade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2019

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2017
  • Aceito
    16 Maio 2018
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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