Luiz Carlos Bresser-Pereira: o Sistema Único de Saúde (SUS) e a Reforma Gerencial do Estado dos anos de 1990

Luiz Carlos Bresser-Pereira: the Brazilian National Health System (SUS) and the State Managerial Reform in the 1990s

Luiz Carlos Bresser-Pereira: el Sistema Brasileño de Salud (SUS) y la Reforma Gerencial del Estado de la década de 1990

Ana Nemi Lilia Blima Schraiber Sobre os autores

Organizações sociais; Reforma gerencial do Estado; Sistema Único de Saúde


Imagem pública

O economista Luiz Carlos Bresser-Pereira foi ministro do governo Fernando Henrique Cardoso nos anos de 1990 e responsável pela Reforma Gerencial do Estado, que deu origem às Organizações Sociais. Esta entrevista buscou refazer o fio histórico que conduziu o ex-ministro daquele momento até as lutas dos tempos incertos de hoje. Tratou-se, especialmente, de discutir os sentidos das Organizações Sociais no âmbito do SUS e de compreender o Novo Desenvolvimentismo que vem sendo defendido por ele. Além disso, durante os meses que marcaram as disputas que levaram ao impeachment de Dilma Roussef, Bresser-Pereira foi voz ativa contra o processo que culminaria com a queda da presidenta eleita. Na época, seus artigos denunciavam os rumos do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e apontavam a urgência de se rediscutir os sentidos da social democracia no país.

Em primeiro lugar, gostaríamos de conversar com o senhor sobre a Reforma Gerencial do Estado. Creio que ela trazia em si uma crítica à Constituição de 198811 Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. exatamente no que diz respeito à eficácia do oferecimento do serviço público.

O meu objetivo com a Reforma Gerencial de 1995, ou Reforma Gerencial do Estado de 1995, que é como eu a chamo, era fundamentalmente tornar mais eficientes os serviços sociais do Estado. As áreas da Educação, Previdência Social, Assistência Social, Cultura e, especialmente, da Saúde poderiam ter ganhos com a Reforma. Eu, essencialmente, ideologicamente, sou um intelectual de centro-esquerda, desenvolvimentista e social-democrata. Como social-democrata, eu entendo que o Estado de Bem-Estar Social, ao preocupar-se com grandes serviços sociais gratuitos universais, com grandes serviços públicos, está adotando uma forma fundamental de reduzir a desigualdade, que é inerente ao capitalismo.

O Brasil fez uma Constituição em 1988, que é uma Constituição desenvolvimentista e social-democrata, eu não tenho nenhuma queixa sobre isso. Pelo contrário, o que eu queria era que essa orientação geral da Constituição fosse mantida. Digo isso porque “liberal” para mim não é sinônimo de coisa boa, especialmente “liberais econômicos” ou “liberais políticos individualistas”. E os liberais, desde o dia seguinte em que a Constituição foi aprovada, queriam mudá-la para tirar os direitos que foram criados, isto é, aqueles que, para eles, encarecem o trabalho.

Há um argumento fundamental da direita liberal, uma frase feita que diz: “não ponho dinheiro bom em cima de dinheiro ruim”. Eu a ouvi de um empresário no Rio de Janeiro, por volta de junho de 1995. Esse sujeito eu já conhecia porque ele havia trabalhado no grupo Pão de Açúcar, era um sujeito inteligente e muito esperto, na época era Presidente da Associação dos Comerciários do Rio de Janeiro. Naquela época, o SUS estava um caos, porque não tinha dinheiro da Previdência. E em meio a esse caos, ele gritava: “eu não ponho dinheiro bom em cima de dinheiro ruim!”.

Explicando: “dinheiro bom” quer dizer o dinheiro que o capitalista/burguês/liberal/rentista – como se quiser chamá-los – paga de impostos. Paga muito pouco, aliás, mas ele paga alguma coisa. E “em cima de dinheiro ruim” significa literalmente “em cima do serviço público”, porque, segundo eles, o serviço público é formado por burocratas incompetentes e corruptos. Isso é uma violência, mas eles jogam uma batalha feroz. E essa batalha tem que ser discutida em dois planos: no plano ideológico, dizendo que não é verdade isso; e, no plano concreto, mostrando que o serviço público é eficiente, é de boa qualidade, que pode dar excelente retorno. Essa era fundamentalmente minha preocupação.

Essa era também a lógica da Reforma. Eu entendo que o SUS é a maior realização da democracia brasileira. A luta pela transição democrática e a Constituição de 1988 foram grandes conquistas, mas, à exceção dela mesma, o que é que foi feito realmente de bom? Dada a realidade da distribuição de renda brasileira, foi o SUS – com todos os problemas e dificuldades que ele tem. E eu tratei de ajudá-lo o máximo que pude para torná-lo eficiente.

No que em particular o senhor centrava a conquista da melhor eficiência? Qual medida dentro da Reforma representava isso?

Basicamente, havia algumas mudanças que garantiriam isso, eu as chamava de “forma de gestão” e “forma de propriedade”, esta última de natureza estrutural. No que diz respeito à “forma de gestão”, o que eu propunha fundamentalmente era a mudança da gestão baseada na supervisão direta dos regimentos rígidos e na auditoria. Eu queria aumentar o papel da administração por resultados, a competição administrativa por excelência entre entidades semelhantes e o controle social. Essa é a lógica da mudança de gestão.

A mudança estrutural é fundamentalmente a Organização Social (OS). Quer dizer, esperava-se que as entidades que prestam os serviços do Estado – no caso do SUS, notadamente os hospitais e os ambulatórios – que elas fossem transformadas em Organizações Sociais, pois se partia da ideia de que uma entidade regida pelo direito privado é a mais adequada para a administração de atividades que não deveriam ser exclusivas do Estado. Esses serviços, a princípio, tinham que ser gratuitos, porque para ser universal tem que ser gratuito. E quando digo “mais adequada”, quero dizer mais eficiente, no sentido de custar menos.

A eficiência é custar menos com a mesma qualidade, ou custar um pouco mais com uma qualidade superior. A qualidade tem que ser constante. Se considerarmos constante a qualidade, temos que diminuir o custo para um determinado serviço. Isso é o conceito de eficiência. Um conceito econômico importante, pois se uma atividade é ineficiente, ela não tem legitimidade. Se estivermos prestando uma atividade de uma maneira que custa demais, ela não é legítima. Só estamos gastando dinheiro público; melhor dizendo, capturando o dinheiro público.

Quando se tem, como aqui no Brasil, os rentistas recebendo uma taxa de juros do Estado muito maior do que razoável, há também uma captura do patrimônio público. Quando se tem um grupo de servidores com salários que nada têm a ver com a sua produtividade, com a sua produção, com a sua contribuição para a sociedade, isso também é uma captura do patrimônio público. Quando se tem servidores que recebem os seus salários e não trabalham ou trabalham pouquíssimo, é outra captura. Quando se tem gente que polui o meio ambiente de várias maneiras, isso é outra forma de captura. É preciso começar a impedir isto. A Reforma Gerencial vinha também para ajudar nesse processo dentro do Estado.

Uma filosofia fundamental da Reforma foi expressa em um paper que eu escrevi em 1998 intitulado “Cidadania e res publica: a emergência dos direitos republicanos”. Nele eu proponho um quarto tipo de direito, e aí é pura filosofia política.

A ideia surgiu da classificação histórica de direitos, que foi realizada por um grande sociólogo inglês chamado H. G. Marshall. O livro dele é pequeno, praticamente um ensaio, ele faz um estudo histórico, tendo como referência a Inglaterra, sobre como foram se estabelecendo os três direitos clássicos. Primeiramente, durante o século XVIII, nos tribunais ingleses foram definidos, afirmados e garantidos os direitos civis. No século XIX, a partir de meados do século, fundamentalmente a partir de 1848, começou o debate sobre a democracia e os direitos políticos. E finalmente, no século XX, os direitos sociais.

O quarto tipo de direito eu proponho chamar de “direitos republicanos”, que é o direito que cada cidadão tem que a res publica, ou seja, a República, seja utilizada para fins públicos. Eu dizia que estava aparecendo no final do século XX, porque tinha uma parte da esquerda falando em “privatização do Estado”, e da direita falando em “captura do Estado”. Todas são visões críticas, preocupadas com o grande número de pessoas que captura o Estado. Gostaria de deixar bem claro que eu não estava me referindo à corrupção. Para “corrupção” é preciso uma nova definição. Corrupção é caso de polícia essencialmente…

Pensando ainda historicamente e de acordo com os pressupostos desenvolvidos em seus textos dos anos 1990, nós tivemos um momento patrimonialista, um momento getulista desenvolvimentista e, por fim, a sua Reforma Gerencial. Como o senhor enxerga hoje essa linha de tempo longo?

Eu não vejo esse tempo longo em termos de progresso. Claramente. Eu uso uma classificação histórica do Estado Moderno, que nasce no mercantilismo; a primeira forma de capitalismo foi o mercantilismo. O nome político desse Estado é Estado Absoluto, já o nome administrativo é Estado Patrimonialista. Por que patrimonialista? Porque existe um patrimônio e a pertença desse patrimônio é completamente confusa. A quem ele pertence? Aos monarcas, nobres ou burocratas? Eles se apropriavam do patrimônio do Estado muito naturalmente. Fazia parte da lógica do jogo. Isso era essencial ao sistema.

Na sequência veio a revolução capitalista, que se completou com a formação do Estado-nação, criando um grande mercado interno e condições para a revolução industrial. Assim aconteceu na Inglaterra, França, Holanda e Bélgica. No momento em que se fez essa revolução, o patrimonialismo perdeu sentido. A separação entre o patrimônio público e o patrimônio privado se tornou essencial. A forma de apropriação do excedente econômico não se daria mais por meio da violência ou do poder, mas do mercado. Como dizia Marx, há uma troca de equivalentes: o capitalista fica com a mais-valia. É a lógica do sistema. Essa é a mudança que o capitalismo fez. Mas estou falando de um capitalismo clássico, liberal, de um Estado que tem quatro ministérios: da guerra, da diplomacia, da justiça ou do interior e o da fazenda.

Estou falando, portanto, de um Estado minúsculo. Ele tem que garantir a ordem, tem que defender o país contra o inimigo externo e tem que conseguir dinheiro para pagar essas duas coisas. É isso e nada mais. Esse é o Estado que o Weber descreveu, em que apareceu a burocracia pública. As grandes reformas, que eu chamo de burocráticas, foram feitas no século XIX na França e na Inglaterra; nos EUA, na virada do século XIX para o XX; no Brasil, com Getúlio Vargas. Em inglês eles se referem à reforma do serviço civil.

Só que houve um pequeno problema: não era mais o Estado liberal. Não tinha mais quatro ministérios. Havia também que se considerar toda a área social, que o tornava imenso, a área de segurança virou praticamente uma área social... O Estado não representava mais 5% do PIB, o Estado passou a representar 40% do PIB. Isso pensando só nos países ricos.

Por isso era preciso que a administração do Estado fosse eficiente. Para o aumento da produtividade não bastava o crescimento nos setores da indústria ou do comércio privado. Isso tornou a Reforma Gerencial uma necessidade. E é por isso que eu digo que só há duas reformas dentro do Estado capitalista: uma administrativa e outra gerencial, e esta ocorre quando o país se desenvolve e se torna um Estado de Bem-Estar Social.

Quem começou a adotar esse tipo de reforma foram Reino Unido, Nova Zelândia e Austrália. Os EUA também adotaram essa reforma, aliás, eu li e aprendi lá inicialmente, mas no nível municipal. Só no governo Clinton essa reforma foi levada para um nível nacional – e é mais ou menos na mesma época em que eu estou fazendo a minha aqui no Brasil.

O hospital tem uma situação empresarial muito característica, na qual o trabalho é mais coletivizado, com um tipo específico de articulação que demanda gerência. Na Atenção Primária, é um pouco diferente, ela está baseada no pequeno produtor do consultório; trata-se de uma equipe muito pequena e o médico é uma referência de maior hierarquia e maior saber. A Atenção Primária é uma realidade bem diferente do hospital e quando se depara com uma lógica empresarial, a interferência pode ser negativa, especialmente considerando a lógica do médico responsável pelo caso, do acompanhamento do caso específico.

Eu não fiz qualquer proposta relativa ao atendimento básico. Se eu fiz referência a isso em alguns dos meus textos, foi tendo como referência o sistema do chamado “médico de família”, ou family doctor. E pelo que eu entendi sobre o assunto, em cada país há variações. O sistema que eu achei mais interessante (e talvez continue sendo) foi o family doctor da Inglaterra. Ele opera da seguinte maneira: o médico é uma pessoa física, com seu consultório, que se registra no Sistema Nacional de Saúde e se dispõe a atender os pacientes no distrito onde ele tem seu consultório. Feito isso, os habitantes daquele distrito podem ser atendidos por ele gratuitamente. Em contrapartida, o family doctor recebe uma remuneração pelo número de clientes que o escolheram.

Eu sempre gostei também do sistema cubano. Esse sistema é formado por pequenos postos de saúde, não tem family doctor individual. Não sei como é atualmente, mas acho que no Brasil optou-se por um sistema similar ao cubano. Não me refiro às políticas que estão sendo adotadas, refiro-me à questão estrutural, isto é, a Unidade Básica de Saúde como elemento estruturante. Eu não vejo muita vantagem em OS nesse esquema, mas também não vejo desvantagens... sinceramente, eu estava muito mais interessado nos hospitais e nos ambulatórios grandes.

Eu acho compreensível a crítica de que a Reforma foi neoliberal, porque, afinal, o Fernando Henrique chegava ao poder e adotava, para surpresa minha, uma perspectiva neoliberal. Especialmente na Economia. Mas na área social não. Na área social e na área de Saúde ele fez um bom trabalho. Na área de Educação menos, porque privatizar as entidades sem fins lucrativos foi uma vergonha, foi uma captura do patrimônio público autorizada pelo Estado. E deram origem a essas universidades voltadas para o lucro, abertas à bolsa... Acho tudo isso um absurdo!

Eu poderia discutir essa questão de várias maneiras, mas a melhor maneira é dizer o seguinte: Quem foi a entidade que o governo dos EUA e os demais governos dos países ricos recomendaram? Foi o Banco Mundial. O Fundo Monetário Internacional (FMI) é responsável pelos ajustes macroeconômicos; mas as reformas, é Banco Mundial. Qual foi a posição do Banco Mundial diante da minha Reforma? Contra! Um grupo de técnicos do Banco Mundial me visitou entre maio ou junho de 1995, eu expliquei sobre a Reforma e eles foram embora. Não tive mais notícia deles. Algum tempo depois, eu fiz um trabalho grande com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O melhor foi ver que, no final do evento, um diretor de Reforma do Estado do BID me disse assim: “Veja, Bresser, agora nós temos um modelo de Reforma do Estado que o Banco Mundial não tem”.

Em 1998, eu fui convidado pelo Banco Mundial para participar de uma conferência de treinamento interno. Isso aconteceu na Universidade de Maryland. Lá foi uma batalha campal, havia técnicos do Banco Mundial contra a minha Reforma porque ela não obedecia ao princípio do sequence. Quer dizer, primeiro era preciso fazer toda a reforma burocrática e só depois fazer a reforma gerencial. Respondi que estava de acordo, que se eles quisessem eu voltava para o Brasil e desmontava tudo que havia feito. Mas eu impus uma condição: teríamos que fazer o mesmo em relação ao problema da revolução da Informática. Ou seja, primeiro, o Brasil teria que completar toda a sua revolução mecânica para depois fazer a informática. Obviamente eles não concordaram.

O princípio da Reforma Gerencial não afeta em nada os interesses fundamentais dos cidadãos. Muito pelo contrário! O que incomoda é a própria burocracia. Há uma confusão entre uma posição de esquerda e uma posição burocrática. Geralmente a burocracia tende a ser de esquerda. Na França, pelo menos, até hoje continua sendo. É uma base dos partidos social-democratas. Eu tenho muita simpatia pela burocracia. Os professores universitários são burocráticos aqui no Brasil, as boas universidades são burocráticas – na França, todas são. São duas coisas muito diferentes. Uma coisa é uma ideologia da justiça social, da liberdade, da igualdade, e outra coisa são os interesses burocráticos. Eu entendo que a Reforma Gerencial atende muito mais aos interesses dos trabalhadores, dos pobres, do que a reforma burocrática, porque a burocrática, sendo ineficiente, presta poucos serviços; há a ameaça constante da privatização, porque qualquer justificativa serve para desmoralizar o sistema.

Gostaríamos de retornar ao assunto dos hospitais. O senhor falou que pensou nos hospitais, e está bem claro no argumento da transformação dos hospitais em organizações públicas não estatais e competitivas, notadamente com as entidades filantrópicas e privadas. Como o senhor vê as práticas filantrópicas dos hospitais brasileiros, no mais das vezes beneficiados por isenções fiscais?

Eu não pensei em isenções fiscais! Nunca imaginei que uma OS não vai pagar impostos na sua atividade. Não tem lucro, tudo bem, mas não acho que essas entidades sejam filantrópicas. Eu não gosto da palavra “filantrópico” nesse contexto. O problema é que uma atividade filantrópica propriamente dita é uma atividade em que alguém está pegando o seu dinheiro e sustentando uma atividade. Não é isso que faz o Einstein. O Einstein é uma entidade que realiza lucros, o que permite ampliar suas atividades. A única diferença entre o Einstein e uma empresa privada é que eles não distribuem os lucros. Mas eles pagam os seus servidores e diretores como e do jeito que querem. Todos os médicos que estão lá são médicos muito bem pagos, o leito lá também é muito bem pago. Os serviços deles são altissimamente muito bem pagos, ou seja, eles não atendem de nenhuma forma os pobres.

A questão é que existe uma variedade muito grande dessas entidades sem fins lucrativos. Eu não uso essa expressão “filantrópica”! Não são filantrópicas! As isenções delas deveriam ser proporcionais a isso. Não há mínima razão para eu dar isenção para o Sírio Libanês para eles me atenderem. Se ele atende SUS, aí tudo bem. Com o SUS, dever-se-ia fazer a proporção de todos os pacientes atendidos naquele ano, por exemplo, se 2% foi SUS, a isenção seria 2%, não mais que isso.

Na verdade, naquela época, eu estava preocupado em transformar o Hospital das Clínicas (HC) em OS. Foi uma besteira minha. Gostaria de contar essa história: foi na época em que o Marcelo Marcondes foi diretor e o Dário, vice. Os dois são meus médicos e sabiam que eu tinha esse desejo. Eu disse que iria lhes fazer uma proposta. Foi feita uma reunião com o Conselho, mas eles não gostaram da minha proposta e o assunto morreu. Por que o Conselho não gostou? Porque eu disse que para fazer uma OS haveria uma dificuldade com a lei federal – com a lei estadual não, porque a lei do Mário Covas era mais flexível quanto ao Conselho... o Hospital poderia gradualmente ir se transformando em uma OS fora do aparelho do Estado. Era perfeitamente possível fazer o HC ficar sob o comando da Congregação, de alguém que fosse da Universidade de São Paulo (USP) ou da faculdade de Medicina da USP. Mas eu não expliquei isso para eles, não me ocorreu no momento da discussão.

Uma crítica que se faz é que o governo poderia gerir diretamente o dinheiro que é repassado para as OS. Por que ele não faz isso?

A proposta que eu fiz estava baseada em uma ideia das autarquias, no Decreto-Lei 200. Eu tinha experiência da administração pública brasileira, não tinha a mínima dúvida de que isso seria muito melhor para os cidadãos brasileiros. Agora, essa lei foi criada em 1997. Faz vinte anos. Tem um monte de OS. São Paulo foi o estado que mais avançou nesse campo. O número de hospitais que são OS é muito grande.

Certa vez eu li que o custo desses hospitais que são OS para o mesmo serviço é bem mais barato do que o hospital direto. É isso que interessa! Quem primeiro fez um estudo sobre isso foi um economista do Banco Mundial. Quando eu digo, “você tem as funções exclusivas de Estado”, as funções exclusivas do Estado devem ser realizadas por servidores públicos, que no Brasil ainda devem ser concursados, têm uma carreira, mas têm uma estabilidade quase completa – até hoje a questão da estabilidade não foi mudada!

O Fernando Henrique foi incapaz de fazer essa pequena reforma. Eu mudei a Constituição com três quintos do congresso! Duas vezes no Senado e na Câmara, e eles tinham que fazer uma lei normal e não conseguiram! O fato de não se poder demitir pessoas é algo muito ruim para a eficiência de um sistema. Eu contrato um sujeito, o sujeito começa a enrolar, não quer trabalhar, etc. – o que eu posso fazer? Se ele tem estabilidade, eu não posso fazer nada. Nas OS não tem isso. Eles são demitidos simples e sumariamente.

Eu sou a favor de um Estado grande, em termos de custos, e pequeno em termos de servidores. Como pode ser isso? Eu só contratarei como servidores aquelas pessoas que realizam funções realmente exclusivas de Estado. Refiro-me à administração do Tesouro, os técnicos do Tesouro, orçamento, etc. Quanto aos outros cargos, não há nenhuma razão para eu colocar funcionário no sistema. Nos países ricos, essa ideia de concurso está desaparecendo completamente, não se faz mais concurso, no máximo um processo seletivo comum; os salários são muito parecidos em um campo e no outro, a relação está bem mais equilibrada. O Brasil está bem longe disso ainda. É preciso separar, essa é a lógica. Como administrar um sistema em que seus funcionários podem não obedecer, não trabalhar como devem e continuar tudo a mesma coisa? Isso é inaceitável!

No nível federal foram poucas as OS. Foram fundamentalmente na área de pesquisa científica, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mas houve uma do Ministério da Cultura, que era a Rádio MEC e a TV MEC do Rio. O que fez o Ministério da Fazenda? Cortou o orçamento da empresa! Eu protestei porque absolutamente não é essa a ideia. Eu não estou fazendo OS para diminuir os custos do Estado, eu quero manter os custos e melhorar muito a quantidade e a qualidade do serviço que eu presto. Em resumo, eu preciso de um Estado grande por causa do Estado de Bem-Estar Social, mas, ao mesmo tempo, ele é pequeno porque eu posso ter OS e, portanto, um corpo de servidores públicos pequeno, que administra todo o sistema e define as políticas junto com os outros políticos.

Como o senhor avalia a cultura política do funcionalismo no Brasil? Considera que houve mudanças desde a época em que empreendeu a Reforma Gerencial do Estado?

Há uma ideologia burocrática muito profunda. Eu passei aqueles quatro anos no Ministério e eu falava com os servidores o tempo todo. O meu problema fundamental era convencer os altos servidores públicos de Brasília, mas também do resto do Brasil, de que a Reforma era boa para eles, de que eu não estava contra os servidores públicos, mas a favor deles. Que eu não estava contra o país, mas jamais consegui plenamente isso.

Eu sempre me lembro de uma coisa curiosa: lá no Rio de Janeiro há uma cientista política chamada Lucia Hippolito. Quando foi anunciada a Reforma, fiz um discurso rápido, dei entrevistas. Cerca de dez dias depois, fui para o RJ, abri o jornal O Globo e lá tem um artigo dessa senhora. Era uma crítica de uma violência feroz! Isso em um terço do artigo. Depois ela continuava, dizendo como deveria ser e era tudo o que eu estava fazendo! Seis meses depois ela veio me procurar para fazer uma grande entrevista. Isso aconteceu com várias pessoas.

Gostaríamos que o senhor falasse um pouco sobre como setores do Partido dos Trabalhadores (PT) acabaram por adotar as OS.

O PT nessa matéria é a ideologia burocrática. Não é ideologia de esquerda a do PT, é ideologia burocrática. O PT acabou por adotar as OS porque elas são objetivamente um sucesso. Por isso eu estou muito tranquilo, muito feliz por ter feito essa Reforma, porque deu certo. Mas a questão da estabilidade do funcionário público ainda é problemática. Acho que as OS nos ajudaram um pouco nesse sentido, mas não conseguiram resolver tudo, apenas uma política econômica melhor poderia, que é o problema do financiamento das atividades.

Gostaríamos que o senhor comentasse sobre sua proposta de Novo Desenvolvimentismo. Há uma discordância sobre a forma como tradicionalmente se lida com o câmbio no Brasil. Como o senhor vê essa dependência que existe hoje dos bancos, isso é um problema? O novo desenvolvimentismo poderia enfrentar essas questões?

O objetivo do Novo Desenvolvimentismo é construir uma teoria nova. A partir da segunda guerra mundial, alguns economistas desenvolveram todo um conjunto de ideias e fizeram a crítica do Liberalismo econômico, da ideia de que o Brasil era um país essencialmente agrícola e de que deveria continuar agrícola. Destaco Celso Furtado e Raúl Prebisch, que mostraram que há desenvolvimento e industrialização no Brasil. Essa foi a grande contribuição deles. E isso ajudou muito, porque essa ideia tornou-se vitoriosa no Brasil e quem iniciou tudo isso foi o Getúlio Vargas. Ele adotou uma política de industrialização muito forte e o Brasil teve êxito nesse processo. Eu fui formado com esses economistas, tinha vinte anos em janeiro de 1955, foi quando eu decidi ser economista e sociólogo do desenvolvimento.

Mas o problema é que essa teoria parou aí. Não conseguiu desenvolver novas ideias, continuou acreditando que o Brasil poderia crescer com o endividamento externo. Nos anos de 1980 houve uma grande crise, a crise da dívida externa e da alta inflação, as teses desenvolvimentistas ficaram desmoralizadas. Foram um tanto esquecidas e seguiram apenas entre alguns grupos de esquerda. A Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) perdeu totalmente a sua natureza. Hoje ela é uma agência subordinada aos EUA, como as demais – ainda tem uma entidade da Organização das Nações Unidas (ONU) que não é subordinada: a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), em Genebra; uma parte da UNCTAD, na verdade. A partir daí, eu comecei a observar o que estava acontecendo na América Latina e em 2001 comecei a desenvolver essa teoria nova.

A minha convicção é que essa teoria é realmente inovadora, ela explica várias coisas que nós não sabíamos antes e abre um caminho para os países que quiserem ouvi-la. Mas ela só promove mais desenvolvimento econômico. E a parte social, como é que fica? Essa eu quero defender. O meu entendimento é que o capitalismo é inerentemente corrupto, é inerentemente injusto e é relativamente ineficiente. Não é inerentemente ineficiente, porque ele é mais eficiente do que os sistemas anteriores. Como ele é inerentemente injusto, a função do Estado não é só promover o desenvolvimento econômico, mas é promover a distribuição da renda para a diminuição das desigualdades.

Se me perguntassem “Qual é o problema fundamental do Brasil: desenvolvimento ou desigualdade?”, eu diria que é a desigualdade, e se diminui a desigualdade no Brasil e se melhora os padrões de vida da população se houver desenvolvimento. Para ter desenvolvimento é preciso que as empresas invistam, especialmente as empresas industriais, porque é nelas que há mais produtividade e são elas que proporcionam o crescimento. Há uma tendência nas economias capitalistas periféricas, ou em desenvolvimento, de isso não acontecer, pelo fato de a taxa de câmbio ser apreciada, a taxa de juros ser alta e a taxa de lucro esperada pelas empresas, muito baixa. Elas não investem e o país se desindustrializa e cresce pouco. É preciso resolver esse assunto.

Por outro lado, tem que resolver a parte social. Há um erro muito grande da esquerda. A esquerda acha que resolve tudo gastando mais, é o oposto da direita. A direita acha que resolve todos os problemas cortando as despesas. A esquerda quer aumentar despesas, quer que aumente os salários e a demanda. A Dilma, por exemplo, teve um custo para a esquerda brasileira muito alto. Eu a defendi ferozmente, escrevi alguns artigos, mas o fazia porque estava defendendo a democracia. Ela foi má presidenta, eu não tenho a menor dúvida. Lamentavelmente.

Então, como é que se distribui renda? Não é gastando mais. Para se ter um Estado de Bem-Estar Social, é preciso recursos para gastar de forma eficiente em Educação, Saúde, Previdência, etc. É preciso aumentar salário mínimo, e essa foi a grande realização do Lula. Tinha espaço para isso, ele aumentou o salário mínimo naquela hora e isso teve um efeito distributivo importante.

Só que isso não pode continuar. Se continuar aumentando salário mínimo é um desastre! Porque a diferença entre o salário médio e o salário mínimo diminuiu muito. É muito menor que em outros países. Além disso, há que se considerar o imposto progressivo. Eles esqueceram completamente do imposto progressivo! O imposto progressivo faz uma diferença absolutamente brutal! Nós sabemos que o país desenvolvido mais desigual by far são os EUA. Nós sabemos que a Suécia é um país em que a distribuição é bastante igual. Cerca de cinco ou seis anos atrás, eu vi uma comparação entre o coeficiente Gini desses países antes e depois do imposto. Antes do imposto progressivo, o Gini da Suécia era só um pouco mais baixo do que o nível americano, não havia muita diferença. Depois do imposto, a diferença foi considerável. E isso porque o Reagan havia começado um processo que foi tornando o sistema tributário americano cada vez mais regressivo. Profundamente regressivo! E o sistema tributário brasileiro também é profundamente regressivo, quando deveria ser progressivo.

Por fim, como o senhor avalia a sua Reforma?

Eu acho que a minha Reforma foi um sucesso em termos. Ela ganhou corações e mentes dos altos servidores públicos brasileiros e das escolas de Administração Pública pelo Brasil afora. É impressionante o número de teses, dissertações, artigos sobre a Reforma. Mas isso não significa que o Estado brasileiro esteja uma maravilha.

Se por um lado houve avanço na parte gerencial, por outro tivemos um atraso brutal com o Neoliberalismo. Isso foi uma desgraça para o mundo! Eu não faço muita diferença entre Neoliberalismo e Liberalismo, para mim, é tudo a mesma coisa. Eles são profundamente contra os pobres e contra os trabalhadores. Quando se pensa em capitalismo, há duas maneiras de fazê-lo: uma primeira se refere ao capitalismo do tempo do Marx, em que havia duas classes, os trabalhadores e os capitalistas. Os capitalistas eram todos bandidos, exploradores, e os trabalhadores iriam fazer a revolução e substituir os capitalistas. Tem muita esquerda que continua pensando assim.

A outra maneira é pensar que a configuração da sociedade mudou. Quer dizer, os empresários capitalistas foram substituídos, primeiro na gestão das empresas pelos burocratas; e depois, mais recentemente, na propriedade das empresas pelos rentistas, pelos herdeiros rentistas. “Rentistas”, o que quer dizer? É o capitalista que vive de juros, aluguéis e dividendos. Não gera empregos. Empresário é quem inventou a empresa, inovou, assumiu riscos. Então, pode-se pensar que há os trabalhadores, os empresários industriais, os empresários agrícolas e de serviços, que são os que interessam, e tem os rentistas. O problema todo é a taxa de câmbio e a taxa de juros para os industriais.

O novo desenvolvimentismo diz que é preciso baixar a taxa de juros e colocar a taxa de câmbio no lugar certo. Aí vem a esquerda populista, os intervencionistas populistas, e dizem que não se deprecia o câmbio, porque isso implicaria em redução de salários. Eu estou cansado de saber que reduz! Reduz mesmo. Mas é pouca coisa. Se fizer uma depreciação de 30%, isso deve representar uns 5% ou 6% de redução de salário para os trabalhadores e isso pesa. Mas é temporário e depois recupera.

Claro que colocar o câmbio no lugar certo pode diminuir salários. Tudo bem que o sujeito não goste. Está ótimo! Mas o que acontece com os rentistas? Os aluguéis, juros e dividendos que eles recebem perdem valor da mesma forma como os salários. Segundo, a riqueza deles perde valor. Já os trabalhadores não têm riqueza para perder. Além disso, para pôr a taxa de câmbio no lugar certo, é preciso abaixar a taxa de juros. Os trabalhadores acham ótimo isso. Os rentistas acham um horror isso. É a coisa que eles menos querem! Quarto, os trabalhadores logo vão ter emprego, porque a economia começa a reagir e depois vão voltar a ter aumento de salários. Os rentistas não terão. Diante disso, como fica essa esquerda? O que está fazendo essa esquerda quando ferozmente foi contra o Novo Desenvolvimentismo? Inventaram um tal de Social-Desenvolvimentismo. Ridículo! Eles estavam fazendo o jogo dos rentistas! Não dos trabalhadores.

O senhor considera que há uma mudança na matriz econômica, na qual a maior parte dos trabalhadores não estaria nas indústrias, mas sim migrando para os serviços?

É verdade, porque a indústria representava ٣٠٪ do Produto Interno Bruto (PIB), hoje representa 10%! Para onde foram esses trabalhadores? Mas como eu desenvolvo a economia de um país? O que é o desenvolvimento econômico? É fundamentalmente a transferência de renda de trabalhadores de atividades com baixo valor agregado per capita para atividades com alto valor agregado per capita. Onde estão as atividades com baixo valor: na agricultura, nos serviços e também em algumas indústrias muito simples. Todo o objetivo do país é conseguir se desenvolver em setores que sejam sofisticados tecnologicamente e tenham, portanto, um valor adicionado per capita alto e possam pagar salários altos. A industrialização é isso. Atualmente eu não uso tanto a expressão “industrialização”, acho melhor falar em “sofisticação produtiva”. É a mesma coisa, mas aí inclui os serviços, os serviços sofisticados.

O meu problema é transformar as atividades sofisticadas tecnologicamente em atividades competitivas. E não só empresas que existem por aí, mas potencialmente todas as empresas que os nossos filhos e os nossos netos queiram construir aqui no Brasil. Se elas forem boas e de boa qualidade, que elas sejam competitivas e possam prosperar. Com essa taxa de câmbio, é impossível.

E o Estado de Bem-Estar Social? O senhor é otimista neste momento?

Não. Eu digo que o Neoliberalismo, que se tornou dominante no mundo em 1980 e no Brasil em 1990, é profundamente contra o Estado de Bem-Estar Social. Eles querem fazer dois tipos de reforma: a reforma trabalhista, ou seja, querem reduzir os custos do emprego e dos direitos associados ao emprego para as empresas. Isso é a reforma trabalhista, é a precarização do trabalho. E querem reduzir os benefícios que o Estado oferece aos trabalhadores. E eles estão com essa campanha faz mais de quarenta anos.

O que aconteceu com a área de legislação trabalhista, eles conseguiram alguns avanços. Alguns recursos, como se costuma chamar. Os trabalhadores perderam uma parte de seus salários indiretos e da sua segurança devido ao Neoliberalismo. Mas no que diz respeito ao Estado de Bem-Estar Social, conseguiram praticamente nada. O Estado de Bem-Estar Social na Europa continuou o mesmo basicamente. Nos EUA, o Obama até começou a fazer, mas...

Por que o Estado de Bem-Estar Social é tão resistente? Isso é uma coisa importante das pessoas saberem. É porque ele é intrinsicamente muito mais eficiente do que sua alternativa. Qual é a alternativa? A alternativa é, ao invés de gastar com o SUS, acabar com o SUS, de alto abaixo.

O que vai acontecer com o padrão de vida da população brasileira? Vai ser um desastre. Por quê? Porque o consumo coletivo é muito mais eficiente do que o consumo privado. É por isso que é resistente. Por isso eu defendo maior eficiência no sistema de saúde. Com a Reforma, eu estava realmente tornando mais eficiente uma coisa que já é eficiente. E digo isso por mais que haja ineficiência no serviço público. Imagine se médicos e hospitais pudessem cobrar quanto quisessem, o que aconteceria com a saúde dos brasileiros? Iria ser um desastre completo. Para a classe média alta não haveria problema, claro, mas para o resto da população seria um desastre.

Aliás, eu escrevo sobre isso e tem uma prova numérica. Nós sabemos que o sistema de saúde na Europa Ocidental, nos países ricos do Ocidente, do norte da Europa, é público. Basicamente. Nos EUA, é privado. Na Europa, o custo da saúde é 11% do PIB, nos EUA está passando de 17% para 18%. Então a ineficiência é muito maior.

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    Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2018
  • Aceito
    26 Abr 2018
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