A relação com o médico na era do paciente expert: uma análise epistemológica

Doctor-patient relationships in the era of the expert patient: an epistemological analysis

La relación con el médico en la era del paciente expert: un análisis epistemológico

Gabriel Rocha Santos Knorst Victor Machado Jesus Antônio da Silva Menezes JuniorSobre os autores

Resumos

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica de cunho epistemológico, com objetivo de evidenciar possibilidades na relação do médico com paciente expert. Selecionaram-se vinte artigos, os quais foram analisados dialeticamente com obras específicas de Foucault e Buber e integrados em quatro categorias de análise, intituladas: “a descontinuidade de paradigmas”; “a relação”; “a informação”; e “navegar é preciso”. Para tanto, colocou-se em foco o papel da Internet na gestão da saúde e do paciente expert munido pelas informações pesquisadas da Internet. O encontro clínico pode ser compreendido a partir das perspectivas: “relações de poder”, “encontro dialógico” e “fuga da relação”. Contudo, a possibilidade do empoderamento do paciente expert perante a autoridade do médico ainda permanece questionável, sobretudo quando se trata da redistribuição do poder que emana do saber.

Relação médico-paciente; Paciente expert; Internet; Poder-saber; Relação dialógica


Taking the epistemological point of departure, a bibliographic research was conducted to evidence possibilities in doctor-expert patient relationships. Using specific works of Foucault and Buber, twenty articles were selected and analyzed dialectically based four analytical categories: “discontinuity of paradigms “; “the relationship”; “information”; and “it is necessary to navigate”. Focus was given to the role of the Internet in the management of health and the expert patient equipped with information found on the Internet. The clinical encounter can be understood from the following perspectives: “power relations”, “dialogical encounter”, and “evading the relationship”. However, the possibility of empowering the expert patient in the face of doctor authority remains questionable, especially when it comes to the redistribution of the power that emanates from knowledge.

Doctor-patient relationship; Expert patient; Internet; Power-knowledge; Dialogical relationship


Se trata de una investigación bibliográfica de cuño epistemológico, con el objetivo de poner en evidencia las posibilidades en la relación del médico con el paciente expert. Se seleccionaron veinte artículos, que se analizaron dialécticamente con obras específicas de Foucault y Buber e integrados en cuatro categorías de análisis, tituladas: “la discontinuidad de paradigmas”, “la relación”, “la información”, y “navegar es preciso”. Para ello, se colocó el enfoque en el papel de la internet en la gestión de la salud y del paciente expert que investiga las informaciones en Internet. El encuentro clínico puede entenderse a partir de las perspectivas: “relaciones de poder”, “encuentro dialógico” y “fuga de la relación”. No obstante, la posibilidad del empoderamiento del paciente expert ante la autoridad del médico todavía permanece cuestionable, principalmente cuando se trata de la redistribución del poder que emana del saber.

Relación médico-paciente; Paciente expert; Internet; Poder-saber; Relación dialógica


Introdução

Em 1995, segundo Moretti et al., iniciou-se no Brasil o uso comercial da Internet; em 2002, a quantidade de usuários ativos em residências era de 7,68 milhões 11. Moretti FA, Oliveira VE, Silva EMK. Access to health information on the Internet: a public health issue? Rev Assoc Med Bras. 2012; 58(6):650-8. (p. 651). O número de pessoas que utilizavam a Internet passou para 56 milhões em 2008, aumentou para 67,9 milhões em 2009 22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional por amostra de domicílios: síntese de indicadores 2009. Rio de Janeiro: IBGE; 2010. (p. 79), até aproximadamente 116 milhões de usuários, correspondendo a 64,7% das pessoas de 10 anos ou mais de idade em 2016. Destes, cerca de 85% eram jovens de 18 a 24 anos de idade que, em 94,6% das vezes, utilizaram o telefone celular para acessar a rede 33. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal : 2016. Rio de Janeiro: IBGE; 2018. (p. 1).

Segundo relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), o Brasil possuía 120 milhões de usuários de Internet em 2015, sendo que 24 milhões de pessoas entraram online pela primeira vez no período entre 2012 a 2015. O documento apontou que o Brasil é o quarto país com maior número absoluto de usuários de Internet 44. United Nations Conference on Trade and Development. Information economy report 2017: digitalization, trade and development. Geneva: UNCTAD; 2017. (p. 19).

De acordo com a pesquisa BUPA Health Pulse 2010, 86% dos brasileiros com acesso à Internet utilizam a rede para buscar orientações sobre saúde, remédios e suas condições médicas. Este percentual coloca o país no quinto lugar no ranking do estudo. As informações mais acessadas foram sobre: medicamentos (68%), autodiagnóstico (46%) e experiências de saúde (39%) 55. McDaid D, Park A. Bupa health pulse 2010. Online health: untangling the web. London: Bupa House; 2010. (p. 3 e 14).

Esses dados reiteram o surgimento de um novo perfil de indivíduos capazes de buscar informações na Internet sobre doenças, diagnósticos, medicamentos, sintomas e tratamento não só para si, mas, também, para terceiros, e de levar essas informações para serem discutidas com o médico. A esses pacientes dá-se o nome de paciente expert 66. Garbin HBR, Pereira Neto AF, Guilam MCR. A internet, o paciente expert e a prática médica: uma análise bibliográfica. Interface (Botucatu). 2008; 12(26):579-88.

7. Masters K, Ng’ambi D, Todd G. “I Found it on the Internet”: preparing for the e-patient in Oman. Sultan Qaboos Univ Med J. 2010; 10(2):16979.
-88. Silvestre JCC, Rocha PAC, Silvestre BDC, Cabral RV, Trevisol FS. Uso da internet pelos pacientes como fonte de informação em saúde e a sua influência na relação médico-paciente. Rev AMRIGS. 2012; 56(2):149-55. (p. 581, p. 170, p. 154).

Para entender o impacto na relação médico-paciente, que permeia além do campo meramente biológico envolvendo concepções éticas, filosóficas, psicológicas e sociológicas, é necessário abordá-la em sua completude, sendo compreendida de forma omnilateral 99. Namazi H, Aramesh K, Larijani B. The doctor-patient relationship: toward a conceptual re-examination. J Med Ethics Hist Med. 2016; 9:10.,1010. Onor ML, Misan S. The clinical interview and the doctor-patient relationship in telemedicine. Telemed J E Health. 2005; 11(1):102-5. (p. 2, p. 102-3).

A possibilidade de uma fissura paradigmática, nas palavras de Foucault 1111. Foucault M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8a ed. São Paulo: Martins Fontes; 1999. , pode ser considerada quando se analisa a mudança de comportamento no cuidado à saúde que vem de uma abordagem centrada no médico (modelo biomédico) e passa, gradativamente, para uma abordagem centrada no paciente, na qual é visto como um parceiro na atenção à saúde ao introduzir uma nova lógica de discussão de condutas e compartilhamento de decisões 77. Masters K, Ng’ambi D, Todd G. “I Found it on the Internet”: preparing for the e-patient in Oman. Sultan Qaboos Univ Med J. 2010; 10(2):16979. (p. 173).

Por tais motivos, o estudo tem por objetivo evidenciar as possibilidades e limites entre a relação do médico com paciente expert no encontro clínico.

Percurso metodológico

O presente artigo caracteriza-se como um estudo qualitativo cujo procedimento utilizado consiste em pesquisa bibliográfica de cunho epistemológico.

A pesquisa bibliográfica como procedimento metodológico consiste numa pesquisa científica em que há a análise de documentos fontes associada à reflexão pessoal dos pesquisadores no intuito de levantar informações e encontrar soluções para determinado problema por meio da teoria e compreensão crítica do seu significado 1212. Gerhardt TE, Silveira DT. Métodos de pesquisa. Porto Alegre: UFRGS; 2009.,1313. Lima TCS, Mioto RCT. Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Rev Katálysis. 2007; 10 Spe:37-45. (p. 37, p. 40). A análise epistemológica consiste “no estudo geral dos métodos, história, critérios, funcionamento e organização do conhecimento sistemático, seja ele especulativo (teologia e filosofia) ou científico”, podendo ser evocada como a “Filosofia da Ciência” ou em outras palavras: “o estudo sistemático das condições de possibilidades, métodos e critérios deste corpo especial de conhecimento, o conhecimento científico” 1414. Castañon GA. Introdução à epistemologia. São Paulo: EPU; 2007. (p. 6-7).

A coleta de dados foi realizada por meio das plataformas eletrônicas Google Acadêmico e Pubmed de artigos científicos publicados entre os anos 2007 a 2017 nas línguas Português, Inglês, Espanhol, Francês e Alemão. “Relação Médico-Paciente” e “Internet” foram utilizados como termos de busca. Os artigos encontrados foram analisados individualmente para avaliar a adequação ao objeto de pesquisa.

Dos 113 artigos identificados, vinte foram selecionados segundo critérios de elegibilidade. Foram excluídos os artigos em que Relação Médico-Paciente e Paciente Expert não eram abordados como temas centrais do artigo; artigos que não possuíam conexão entre a Relação Médico-Paciente e a busca por informações de saúde na Internet, e artigos que retratavam situações especiais ou únicas, tais como: uso de um software específico ou mudanças na relação médico-paciente devido a interferência de redes sociais, por fugirem ao objetivo de nosso estudo.

A organização das informações obtidas na coleta de dados passou por uma sequência ordenada e contínua de procedimentos descrita por Salvador 1515. Salvador AD. Métodos e técnicas de pesquisa bibliográfica. Porto Alegre: Sulina; 1986. (p. 41) num total de quatro fases: elaboração do projeto de pesquisa, investigação das soluções, análise explicativa das soluções e síntese integradora.

Na fase de investigação das soluções, o material bibliográfico encontrado foi estudado seguindo-se um roteiro de leitura elaborado pelos pesquisadores. Durante a análise explicativa das soluções os pesquisadores teceram dialeticamente uma análise crítica dos documentos selecionados norteados pelos referenciais teóricos estabelecidos: “Microfísica do poder” e “Ditos e Escritos IV” de Michel Foucault, e “EU-TU” de Martin Buber.

Na fase da síntese integradora, estabeleceram-se as seguintes categorias de análise: A descontinuidade de paradigmas: uma imagem da historicidade da Medicina; Relação: embate ou reciprocidade?; Informação, conhecimento e poder, e Navegar é preciso: a Internet para além dos limites

A Tabela 1 lista os títulos dos artigos analisados, seus autores, o ano de publicação e o periódico em que foram publicados.

Tabela 1
Artigos analisados

Resultados e discussão

A descontinuidade de paradigmas: uma imagem da historicidade da Medicina

A partir do levantamento bibliográfico, se faz necessário compreender como se chegou ao cenário descrito por Wald et al. 1717. Wald HS, Dube CE, Anthony DC. Untangling the Web-The impact of Internet use on health care and the physician-patient relationship. Patient Educ Couns. 2007; 68(3):218-24. (p. 219) em que “Os médicos agora encontram pacientes que esperam que seus médicos interpretem suas informações adquiridas na Web”. Para isso, se requer uma visão panorâmica de mudanças históricas de influências, pensamentos, contextos, e formas de relações, decorrentes de um passado abordado pela genealogia 3535. Foucault M. A arqueologia do saber. 7a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2008. (p. 201) e arquivologia de Michel Foucault.

Durante o século XVIII, o autor aponta para o surgimento da Medicina moderna, cujo capitalismo se fez protagonista ao investir no corpo biológico, reconhecendo-o como força de produção. O corpo passa a ser uma realidade biopolítica e a Medicina a sua estratégia 3636. Foucault M. Microfísica do poder. 18a ed. Machado R, editor. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. (p. 47).

Uma atenção à saúde que outrora já se voltou primordialmente a um controle desprovido de preocupação social, motivado por uma necessidade política e econômica com a intenção de tornar as pessoas mais aptas ao trabalho 3636. Foucault M. Microfísica do poder. 18a ed. Machado R, editor. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. (p. 107), se desconhece no medo expresso pelo médico atual de “perder o controle da consulta” diante do paciente expert descrito por Ahluwalia 2222. Ahluwalia S, Murray E, Stevenson F, Kerr C, Burns J. “A heartbeat moment”: Qualitative study of GP views of patients bringing health information from the internet to a consultation. Br J Gen Pract. 2010; 60(571):88-94. (p. 89).

Não só as relações humanas como também a formação médica e a prática da Medicina nos séculos XVII e XVIII eram completamente diferentes da realidade atual. Foucault descreve uma formação baseada no “conhecimento de textos e transmissão de receitas” em que a “experiência hospitalar estava excluída” desse processo, ou seja, a iniciação e exercício da profissão estavam edificados no acúmulo de informações teóricas dissonantes do contato com os pacientes. Quando o contato ocorria, não era no intuito do cuidado, mas da observação daquilo que o autor denomina de “crise”, o ápice da luta entre a natureza e a doença, e cujo objetivo do médico, ao entrar nesse jogo, baseava-se única e exclusivamente na cura. Não existia olhar global, amplo, compassivo, mas uma visão focada, restrita, amparada numa “relação individual” em que o médico exercia o papel de “prognosticador, árbitro e aliado da natureza contra a doença” 3636. Foucault M. Microfísica do poder. 18a ed. Machado R, editor. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. (p. 60). Essa era uma visão sobre a relação médico-paciente completamente contrária da descrita por Silvestre et al.:

A relação médico-paciente não é apenas um encontro ocasional, é mais do que a anamnese e o exame físico, receitar medicamentos e prescrever condutas; ela mescla habilidades técnicas e pessoais. É necessária, portanto, a sensibilização do médico pelas mudanças sentidas e refletidas a cada momento pelo paciente, ou seja, a empatia, essencial neste encontro 88. Silvestre JCC, Rocha PAC, Silvestre BDC, Cabral RV, Trevisol FS. Uso da internet pelos pacientes como fonte de informação em saúde e a sua influência na relação médico-paciente. Rev AMRIGS. 2012; 56(2):149-55. . (p. 154)

Nota-se um contexto que se contrasta com a contemporaneidade refletida na postura do paciente que historicamente passa de um receptáculo de uma doença capaz de drenar toda a atenção do médico para um ser proativo como descrito por Bowes et al. 2424. Bowes P, Stevenson F, Ahluwalia S, Murray E. “I need her to be a doctor”: Patients’ experiences of presenting health information from the Internet in GP consultations. Br J Gen Pract. 2012; 62(604):732-8. (p. 734), ao afirmar que muitos pacientes levam informações da Internet para a consulta no intuito de que o médico notasse que eles haviam investido “tempo, pensamento e energia” e por isso suas queixas deveriam ser levadas a sério. A percepção sobre a atuação do médico no encontro clínico também vem modificando na atualidade, conforme relata De Rosis et al.: "Os médicos podem ter um papel no impacto da e-saúde, se tratarem não apenas as doenças do paciente, mas também atenderem às necessidades de informação do paciente [...] e construir o relacionamento durante os encontros" 3333. De Rosis S, Barsanti S. Patient satisfaction, e-health and the evolution of the patient–general practitioner relationship: evidence from an Italian survey. Health Policy (New York). 2016; 120(11):1279-92. (p. 1289).

A necessidade de enxergar o indivíduo como um todo numa relação é apresentada por Martin Buber, ao afirmar a não possibilidade de endereçar o “Tu” apenas a parte do corpo sem considerá-lo de forma global 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 51). Não há como fundamentar a relação quando se exprime a palavra princípio “Eu-Isso”, quando se experienciam os fenômenos da doença, sem considerar o doente: “[...] Na medida em que se profere o ‘Tu’, coisa alguma existe. O ‘Tu’ não se confina a nada [...] Ele permanece em relação [...] A palavra-princípio Eu-Tu fundamenta o mundo da relação” 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 52-53).

Segundo Ahluwalia et al., alguns pacientes “valorizam mais a informação advinda da Internet” 2222. Ahluwalia S, Murray E, Stevenson F, Kerr C, Burns J. “A heartbeat moment”: Qualitative study of GP views of patients bringing health information from the internet to a consultation. Br J Gen Pract. 2010; 60(571):88-94. (p. 91), levando a crer que o crescimento do mundo do Eu-Isso seja uma via de mão dupla, e tanto médico quanto paciente estejam evitando um ao outro como o seu “Tu”. Em contraposição a esse processo, Buber reforça que é na “contemplação do face a face que o ser se revela a quem o quer conhecer”. É na “reciprocidade do face a face” que se encontra a relação: o indivíduo se apresentando como o “Tu” para o médico e o médico para o paciente, exercendo influência mútua e traduzindo o fenômeno do encontro 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 75).

Assim, percebe-se um contraste entre a opinião de Buber, que afirma que a relação só pode acontecer no encontro, “no face a face”, e o exposto por Ahluwalia et al., ao demonstrarem a construção de um caminho de valorização da Internet que vai de encontro com a palavra-princípio Eu-Tu.

Relação: embate ou reciprocidade?

Diante do entendimento dialógico do relacionamento entre o médico e o paciente expert, partindo de uma análise interpretativa das obras de Buber e Foucault, aliada aos dados colhidos dos artigos estudados, é possível compreender o encontro clínico a partir de três perspectivas: a perspectiva das relações de poder, abordada por Foucault; a do encontro dialógico baseado na reciprocidade, defendida por Buber, e a da fuga da relação quando há uma materialização do mundo do Eu-Isso em detrimento do Eu-Tu.

Na perspectiva do encontro dialógico, Buber define: “Toda vida atual é encontro” 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 57). Por meio de suas obras, o autor traz o entendimento de que o “Eu” existe quando, concomitantemente, se apresenta ao “Tu”, ou seja, o “Eu” só passa a existir a partir da existência do outro com o qual há a relação, de forma que a expressão das palavras-princípio “fundamentam uma existência” 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 51-52).

Assim sendo, de acordo com o autor, as relações humanas são entendidas por meio de uma compreensão dialógica, na qual as palavras-princípio são pares: “Eu-Tu”, “Eu-Isso” e “Eu-Ele” 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 51). O “Eu” está em uma autêntica relação com o “Tu” quando um atua sobre o outro de forma mútua 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 56).

Todavia, na concepção de Foucault, as relações humanas carregam consigo forças intrínsecas intercaladas numa rede produtiva que atravessa todo o corpo social, e são capazes de fornecer o poder necessário para produzir coisas, discursos e formar saberes 3636. Foucault M. Microfísica do poder. 18a ed. Machado R, editor. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. (p. 8). A essas forças as quais as relações geram e são geradas dá-se o nome de relações de poder, de forma que cada relação é responsável por gerar graus diferentes de enfrentamentos 3838. Foucault M. Poder e saber. In: Foucault M. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2003. p. 223-40. (p. 231).

Bowes et al. 2424. Bowes P, Stevenson F, Ahluwalia S, Murray E. “I need her to be a doctor”: Patients’ experiences of presenting health information from the Internet in GP consultations. Br J Gen Pract. 2012; 62(604):732-8. (p. 734) sugerem que a aquisição de informações na Internet poderia permitir que o paciente participasse de forma mais efetiva da consulta, bem como torná-la em si mais efetiva, sinalizando, assim, “tanto a capacidade quanto o desejo de se envolver em discussões e autocuidado”. Já De Rosis et al. 3333. De Rosis S, Barsanti S. Patient satisfaction, e-health and the evolution of the patient–general practitioner relationship: evidence from an Italian survey. Health Policy (New York). 2016; 120(11):1279-92. (p. 1289) demonstrou que pacientes que decidiram compartilhar informações da Internet com seu médico permaneceram mais satisfeitos com ele. Em uma visão buberiana, percebe-se a busca pela reciprocidade, onde o paciente deseja deixar o campo da palavra-princípio “Eu-Isso”, para ser também sujeito em uma relação dialógica 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 51).

Percebe-se a tênue linha traçada entre a reciprocidade do paciente que busca colaborar de forma igualitária com seu médico, e o confronto na busca por reconhecimento de seus esforços para identificar informações relevantes e se tornar sujeito ativo no autocuidado 2424. Bowes P, Stevenson F, Ahluwalia S, Murray E. “I need her to be a doctor”: Patients’ experiences of presenting health information from the Internet in GP consultations. Br J Gen Pract. 2012; 62(604):732-8. (p. 735).

A perspectiva da fuga da relação pode ser vista em situações como a descrita por Hewitt-Taylor et al. em que alguns pacientes afirmam: “Os médicos só são úteis porque eles podem fazer prescrições e pedir exames de sangue”; “Por enquanto, você precisa seguir o conselho do seu médico e usar a dose de insulina que ele prescreve. Mais tarde, você pode ajustar suas doses para obter melhor controle” 2525. Hewitt-Taylor J, Bond CS. What E-patients want from the doctor-patient relationship: content analysis of posts on discussion boards. J Med Internet Res. 2012; 14(6):1-9. (p. 4).

Do ponto de vista de Buber, situações como essa evidenciam o abandono do “Tu” na relação, representado pelo médico, que passa a ser limitada por outros “Eles” ou “Issos”. Para Buber “A união e a fusão em um ser total não pode ser realizada por mim e nem pode ser efetivada sem mim. [...] É tornando Eu que digo Tu” 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 57). No entanto, para Foucault, reações como essas podem ser explicadas devido às relações de poder que carregam sempre uma possibilidade de resistência contrária responsável por modificar essa relação 3838. Foucault M. Poder e saber. In: Foucault M. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2003. p. 223-40. (p. 232).

A resistência gerada pelos embates da relação pode ter diferentes faces, como descrito por Ahluwalia et al., que evidenciou a ansiedade como o principal sentimento dos médicos ao se depararem com informações da Internet trazidas por pacientes para a consulta, levantando três possíveis motivos para tal: “O medo de ser visto ou interpretado como ignorante ou incompetente; o medo de perder o controle da consulta, e o medo de ser subvalorizado ou desvalorizado” 2222. Ahluwalia S, Murray E, Stevenson F, Kerr C, Burns J. “A heartbeat moment”: Qualitative study of GP views of patients bringing health information from the internet to a consultation. Br J Gen Pract. 2010; 60(571):88-94. (p. 90).

Da mesma maneira em que a resistência resultante dessa relação é capaz de influenciar a essência do encontro, o detentor do controle de uma relação de poder, o qual segundo o modelo biomédico está concentrado nas mãos do médico, também o faz de forma que a força empregada por aquele que domina pode ser “tão mais forte quanto a resistência empregada, como uma espécie de luta perpétua e multiforme” 3838. Foucault M. Poder e saber. In: Foucault M. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2003. p. 223-40. (p. 232).

Diferentes exemplos de refutação dos médicos perante o paciente expert podem ser visualizadas nos artigos a partir de reações capazes de “levar a discussões desnecessárias entre médicos e pacientes” 2020. Van Uden-Kraan CF, Drossaert CHC, Taal E, Smit WM, Seydel ER, Van De Laar MAFJ. Experiences and attitudes of Dutch rheumatologists and oncologists with regard to their patients’ health-related Internet use. Clin Rheumatol. 2010; 29(11):1229-36. (p. 1231), ou de “reagir desfavoravelmente quando são informados pelo paciente que ele busca informações na Internet” 3030. Martins MP, Abreu-Rodrigues M, Souza JR. O uso da internet pelo paciente após cirurgia bariátrica: contribuições e entraves para o seguimento do acompanhamento multiprofissional. ABCD Arq Bras Cir Dig. 2015; 28(1):46-51. (p. 49), ou, mesmo, de considerarem “como um desafio direto à sua autoridade ou que não deveriam obedecer para proteger seu banco de dados de conhecimento relacionado à especialidade” 1818. Kim J, Kim S. Physicians’ perception of the effects of Internet health information on the doctor-patient relationship. Inform Health Soc Care. 2009; 34(3):136-48. (p. 141); “o médico é o único que pode interpretar as informações disponíveis e tomar decisões sobre a saúde dos indivíduos” 3434. Fernandez JM, Cenador MBG, Manuel López Millan J, Méndez JAJ, Ledesma MJS. Use of information and communication technologies in clinical practice related to the treatment of pain. Influence on the professional activity and the doctor-patient relationship. J Med Syst. 2017; 41(5):5-10. (p. 5).

O anseio dos pacientes de se atingir a igualdade na relação, a capacidade de decidir sobre a necessidade de um atendimento médico e a crença de que informações colhidas por conta própria poderiam ser mais atualizadas que as referidas pelos médicos 2424. Bowes P, Stevenson F, Ahluwalia S, Murray E. “I need her to be a doctor”: Patients’ experiences of presenting health information from the Internet in GP consultations. Br J Gen Pract. 2012; 62(604):732-8. (p. 734) são exemplos que reforçam o argumento de Foucault de que o poder não deve ser visto como uma entidade a qual se detém o controle de forma sólida e estável, mas como uma variável fluida, que circula e funciona em cadeia, passando pelos indivíduos que o constituíram, neste caso o médico e o paciente, e exercendo seus efeitos de poder 3636. Foucault M. Microfísica do poder. 18a ed. Machado R, editor. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. (p. 103).

Para Haluza et al. 3232. Haluza D, Naszay M, Stockinger A, Jungwirth D. Digital natives versus digital immigrants: influence of online health information seeking on the doctor–patient relationship. Health Commun. 2017; 32(11):1342-9. (p. 3), muitos pacientes buscaram na Internet a oportunidade de se comunicarem com seu médico como iguais. Do ponto de vista dialógico, estes pacientes podem estar em busca de reciprocidade, de forma colaborativa e mútua, onde há no encontro a vivência do essencial para o fluir da consulta. Porém, isso só é possível quando a Internet não interfere limitando o paciente e/ou o médico ao campo do Eu-Isso: “Eu não experiencio o homem a quem digo ‘Tu’. Eu entro em relação com ele no santuário da palavra-princípio” 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 55).

Informação, conhecimento e poder

A facilidade e a disponibilidade do acesso à Internet atualmente vem modificando o modo como indivíduos entram em contato com a imensa quantidade de informações geradas pela sociedade, se estendendo para além do conhecimento lúdico, ao representar um importante fator educativo para os pacientes que desejam consultar-se ou, mesmo, para munirem-se com dados a serem discutidos com o médico num encontro posterior 2929. Beck F, Richard J-B, Nguyen-Thanh V, Montagni I, Parizot I, Renahy E. Use of the Internet as a health information resource among French young adults: results from a nationally representative survey. J Med Internet Res. 2014; 16(5):e128. (p. 9).

Segundo Foucault 3636. Foucault M. Microfísica do poder. 18a ed. Machado R, editor. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. , (p. 5, 8 e 11), o ponto capital de toda análise que individualiza a pura informação da construção do conhecimento é que saber e poder se implicam mutuamente: não há poder sem que se tenha constituído um saber, como, também, o saber estabelece relações intrínsecas de poder. A informação carrega a possibilidade de transmutação na relação do saber constituído. É importante acrescentar: onde há poder, há resistência. Se por um lado, novos saberes e novas tecnologias ampliam e aprofundam os poderes na sociedade de controle 3939. Deleuze G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Deleuze G. Conversações. Pelbart PP, tradutor. Rio de Janeiro: Editora 34; 1992.,4040. Foucault M. A sociedade disciplinar em crise (1978). In: Foucault M. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2003. p. 268. em que vivemos, por outro, sujeitos cada vez mais conscientes lutam contra as forças que tentam reduzi-los a objetos, contra toda heteronomia, contra as múltiplas formas de dominação.

Este instrumento de busca tem não só permitido como também expandido a disseminação do conhecimento relacionado à Medicina. Os artigos apontaram para o fenômeno da informação digital cuja porcentagem referente aos pacientes experts variou entre 41% a 73,75% 2020. Van Uden-Kraan CF, Drossaert CHC, Taal E, Smit WM, Seydel ER, Van De Laar MAFJ. Experiences and attitudes of Dutch rheumatologists and oncologists with regard to their patients’ health-related Internet use. Clin Rheumatol. 2010; 29(11):1229-36.,2626. Coelho EQ, Coelho AQ, Cardoso JED. Informações médicas na Internet afetam a relação médico-paciente? Rev Bioet. 2013; 21(1):142-9.,2828. Katz JE, Roberge D, Coulombe G. The cancer patient’s use and appreciation of the internet and other modern means of communication. Technol Cancer Res Treat. 2013; 13(5):477-84. (p. 1231, p. 145, p. 483). A grande maioria deles possui entre 15 a 44 anos, sendo composta por indivíduos com maior nível educacional e poder aquisitivo mais elevado 1616. Neelapala P, Duvvi SK, Kumar G, Kumar BN. Do gynaecology outpatients use the Internet to seek health information? A questionnaire survey. J Eval Clin Pract. 2008; 14(2):300-4.,2121. Renahy E, Parizot I, Chauvin P. Determinants of the frequency of online health information seeking: results of a web-based survey conducted in France in 2007. Inform Health Soc Care. 2010; 35(1):25-39.,2727. Marin-Torres V, Aliaga JV, Miró IS, Vicente MISC, Polentinos-Castro E, Barral AG. Internet como fuente de información sobre salud en pacientes de atención primaria y su influencia en la relación médico-paciente. Aten Prim. 2013; 45(1):46-53.,2929. Beck F, Richard J-B, Nguyen-Thanh V, Montagni I, Parizot I, Renahy E. Use of the Internet as a health information resource among French young adults: results from a nationally representative survey. J Med Internet Res. 2014; 16(5):e128.,3333. De Rosis S, Barsanti S. Patient satisfaction, e-health and the evolution of the patient–general practitioner relationship: evidence from an Italian survey. Health Policy (New York). 2016; 120(11):1279-92. (p. 1285, p. 5, p. 29, p. 48, p. 301). A justificativa para este perfil pode ser edificada pelo período de desenvolvimento e ampliação do uso comercial da Internet condizente com a idade desses pacientes, denominados “nativos digitais”, que acabaram acompanhando essa revolução tecnológica 3232. Haluza D, Naszay M, Stockinger A, Jungwirth D. Digital natives versus digital immigrants: influence of online health information seeking on the doctor–patient relationship. Health Commun. 2017; 32(11):1342-9. (p. 1).

Empoderados pelas informações retiradas da Internet, frequentemente esses pacientes já iniciam a consulta informados sobre suas doenças, até mesmo em relação às possibilidades terapêuticas, ou colhem informações após o atendimento no intuito de discutirem com o médico no encontro seguinte 1919. Cabral RV, Trevisol FS. A influência da Internet na relação médico-paciente na percepção do médico. Rev AMRIGS. 2010; 54(4):416-20.,2626. Coelho EQ, Coelho AQ, Cardoso JED. Informações médicas na Internet afetam a relação médico-paciente? Rev Bioet. 2013; 21(1):142-9.,3232. Haluza D, Naszay M, Stockinger A, Jungwirth D. Digital natives versus digital immigrants: influence of online health information seeking on the doctor–patient relationship. Health Commun. 2017; 32(11):1342-9. (p. 6, p. 146, p. 417).

Foucault estabelece o chamado “Regime da Verdade” ao manter um círculo de ligações entre a verdade/saber a diversos sistemas de poder 3636. Foucault M. Microfísica do poder. 18a ed. Machado R, editor. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. (p. 11). Essa verdade seria um produto da sociedade responsável por regulamentar toda uma política capaz não só de diferenciar o verdadeiro do falso, como também determinar as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a sua obtenção, os mecanismos utilizados para distingui-la, até mesmo os discursos considerados verdadeiros 3636. Foucault M. Microfísica do poder. 18a ed. Machado R, editor. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. (p. 10).

Ao estabelecer um estatuto da verdade capaz de avaliar e julgar um fato, tal regime desempenha um papel econômico−político importante por influenciar e inspirar a sociedade em que se encontra, pois, se a verdade é “fruto de um organismo social”, quem tem a chave para ela acaba por deter o poder de ditar as regras do jogo 3636. Foucault M. Microfísica do poder. 18a ed. Machado R, editor. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. (p. 11). E, na contemporaneidade, o paciente expert supostamente chega ao jogo com cartas diferentes de outrora.

Aparentemente, na visão do paciente expert, o acesso às informações disponíveis na rede é suficiente para se atingir a verdade e obter o conhecimento sobre determinado assunto, haja vista que 54,5% consideram a Internet como uma boa fonte de informações médicas, sendo, na maioria das vezes, suficiente para sanar dúvidas de saúde para 92,4% deles 2727. Marin-Torres V, Aliaga JV, Miró IS, Vicente MISC, Polentinos-Castro E, Barral AG. Internet como fuente de información sobre salud en pacientes de atención primaria y su influencia en la relación médico-paciente. Aten Prim. 2013; 45(1):46-53. (p. 49). Quando questionados sobre os motivos que os levam a essas pesquisas, os pacientes acabam por reiterar a máxima “conhecimento é poder”, pois afirmam ser capazes de “decidir se há necessidade de se consultar” ou de “considerar as informações dadas pelo médico como insuficientes” ou, até mesmo, de “validar a consulta ao avaliar se o diagnóstico e tratamento propostos pelo médico estão de acordo com os disponíveis na Internet” 3131. Roettl J, Bidmon S, Terlutter R. What predicts patients’willingness to undergo online treatment and pay for online treatment? results from a web-based survey to investigate the changing patient-physician relationship. J Med Internet Res. 2016; 18(2):e32. (p. 1058).

A compreensão dessa lógica permite imaginar que o paciente expert seria capaz de empoderar-se com as verdades adquiridas na Internet a tal ponto que não fosse mais necessária a figura do médico para tomada de decisões 2525. Hewitt-Taylor J, Bond CS. What E-patients want from the doctor-patient relationship: content analysis of posts on discussion boards. J Med Internet Res. 2012; 14(6):1-9. (p. 4).

A análise dos resultados da pesquisa demonstra que a procura por informações soltas, sem passar por um crivo interpretativo e contextual cuja complexidade biológica “naturalmente” exige, vem quase sempre carregada de malefícios e tem sido identificada pelos médicos, e os próprios pacientes, os quais relatam sobre: o aumento de pacientes desnecessariamente preocupados nos consultórios, o aumento do número de demandas irracionais, maior número de conclusões errôneas sobre suas doenças capazes de comprometer a rotina diária devido ao grau de medo e ansiedade gerados ou interrupção de seguimento multiprofissional pelos pacientes usuários da Internet 1818. Kim J, Kim S. Physicians’ perception of the effects of Internet health information on the doctor-patient relationship. Inform Health Soc Care. 2009; 34(3):136-48.,2020. Van Uden-Kraan CF, Drossaert CHC, Taal E, Smit WM, Seydel ER, Van De Laar MAFJ. Experiences and attitudes of Dutch rheumatologists and oncologists with regard to their patients’ health-related Internet use. Clin Rheumatol. 2010; 29(11):1229-36.,2626. Coelho EQ, Coelho AQ, Cardoso JED. Informações médicas na Internet afetam a relação médico-paciente? Rev Bioet. 2013; 21(1):142-9.,3030. Martins MP, Abreu-Rodrigues M, Souza JR. O uso da internet pelo paciente após cirurgia bariátrica: contribuições e entraves para o seguimento do acompanhamento multiprofissional. ABCD Arq Bras Cir Dig. 2015; 28(1):46-51. (p. 1231, p. 49, p. 141, p. 148).

Buber confronta a existência de relação inserida no ambiente em que há disputa de poder 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 52). Para o filósofo, o saber se constrói no mundo do “Eu-Isso”, na experimentação das coisas, onde se toma algo por objeto e o conduz a seus múltiplos fins 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 74), porém é no universo do “Eu-Tu” que se fundamenta a relação e nela não há assimetria de poder, pois não há encontro enquanto o outro é tomado por objeto sujeito ao poder de outrem. É a relação enquanto poder simétrico que se constitui “sem limites e sem costuras”, pois “ o ‘Tu’ não se confina a nada” 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 52 e 55).

A Internet pode ser entendida como um instrumento que permite a utilização do mundo e conduz o paciente aos seus “múltiplos fins”, facilitando e equipando a vida humana. Diante disso, pode-se entender que: "Na medida em que se amplia o mundo do Isso [...] o indivíduo pode, sem dúvida, substituir cada vez mais a experiência direta pela experiência indireta ou pela ‘aquisição de conhecimentos’ [...]" 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 74).

Porém, na realidade do paciente expert o termo mais adequado seria a aquisição de informações, e não de “conhecimentos”, haja vista que Buber discute que essas aquisições se tornam progressivamente “aplicação especializada’”, e reforça que essa capacidade se desenvolve com o tempo, ou seja, toda informação necessitaria de cunho interpretativo, com o experienciar para aplicação adequada à realidade presente na formação do médico.

Navegar é preciso: a Internet para além dos limites

A mudança é um fator presente na historicidade da humanidade, havendo comumente o surgimento de novos conceitos e a transmutação de paradigmas nas diversas áreas do conhecimento humano. A Medicina, desde o princípio, também tem sofrido fortemente a ação dessas alterações, fato que lhe forjou a ideia de “ciência de verdades transitórias”, uma vez que o conhecimento e a técnica médica não estão estagnados e habitualmente buscam a re (construção) 88. Silvestre JCC, Rocha PAC, Silvestre BDC, Cabral RV, Trevisol FS. Uso da internet pelos pacientes como fonte de informação em saúde e a sua influência na relação médico-paciente. Rev AMRIGS. 2012; 56(2):149-55. (p. 154). As transformações e descobertas presentes no ofício são capazes de romper com as proposições consideradas verdadeiras em determinada época, modificando também as maneiras de falar e ver responsáveis por dar fruto a um novo regime no discurso e saber 3636. Foucault M. Microfísica do poder. 18a ed. Machado R, editor. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. (p. 5).

Segundo Foucault, uma variação da percepção e linguagem médica pode ser entendida entre os séculos XVI e XIX, havendo alterações na observação dos fatos, não só em relação a teorias, conceitos, palavras ou vocabulário, mas uma mudança tênue, mas constante e processual, no olhar médico, na sua relação com as palavras (linguagem) e as coisas (saber) 3838. Foucault M. Poder e saber. In: Foucault M. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2003. p. 223-40. (p. 234).

Foucault propõe o surgimento de uma nova tecnologia, que aliada ao sistema de poder atuante pudesse modificar as formas de relação com o meio, utilizando-se do exemplo das grandes navegações como importante marco desta “reviravolta tecnológica” 3636. Foucault M. Microfísica do poder. 18a ed. Machado R, editor. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. (p. 67). Ao discorrer sobre o aparecimento de novos instrumentos que pudessem “atravessar distâncias” para alcançar a verdade “em toda parte e em todos os tempos”, descrevendo sobre a conquista do mar e as profundas mudanças trazidas na sociedade, o autor faz, surpreendentemente, uma metáfora sobre o que a Internet seria capaz de fazer anos depois 2727. Marin-Torres V, Aliaga JV, Miró IS, Vicente MISC, Polentinos-Castro E, Barral AG. Internet como fuente de información sobre salud en pacientes de atención primaria y su influencia en la relación médico-paciente. Aten Prim. 2013; 45(1):46-53. (p. 51). Uma tecnologia “universal” na qual o usuário pudesse navegar de “qualquer lugar”, a “qualquer tempo” submetendo a verdade a se “apresentar a cada vez que for procurada”. Este instrumento permitiu, de forma global, o alcance de “terras e riquezas” até então desconhecidas pelos pacientes por ser lugar habitado somente pelos médicos 2222. Ahluwalia S, Murray E, Stevenson F, Kerr C, Burns J. “A heartbeat moment”: Qualitative study of GP views of patients bringing health information from the internet to a consultation. Br J Gen Pract. 2010; 60(571):88-94. (p. 91), exercendo os efeitos do poder-saber.

Se a “verdade” é produzida na sociedade e de maneira indissociável a mecanismos de poder, aqueles que são capazes de acessar essa verdade seriam detentores do poder implícito que o conhecimento carrega 3838. Foucault M. Poder e saber. In: Foucault M. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2003. p. 223-40. (p. 229). Seria a Internet, por meio do simples acesso à imensa quantidade de informação presente na rede, e, consequentemente, da revelação da verdade oculta entre os mistérios do corpo, um mecanismo capaz de redistribuir o poder que emana do conhecimento? 3636. Foucault M. Microfísica do poder. 18a ed. Machado R, editor. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. (p. 11). Seria ela capaz de empoderar o paciente de tal forma a igualá-lo com o médico em suas relações de saber/poder? 2929. Beck F, Richard J-B, Nguyen-Thanh V, Montagni I, Parizot I, Renahy E. Use of the Internet as a health information resource among French young adults: results from a nationally representative survey. J Med Internet Res. 2014; 16(5):e128. (p. 9).

Os artigos reiteraram que o paciente expert introduz novos conceitos de saúde, modificando a ideia do doente procurando auxílio, ao passo que a maioria desses pacientes são pessoas saudáveis e com visitas regulares ao médico 3333. De Rosis S, Barsanti S. Patient satisfaction, e-health and the evolution of the patient–general practitioner relationship: evidence from an Italian survey. Health Policy (New York). 2016; 120(11):1279-92. (p. 1285). Isso porque o intuito do paciente expert não é apenas obter conhecimento a respeito das doenças, mas empoderar-se por meio dele, abrindo espaço para compartilhar e debater suas pesquisas com o profissional de saúde e adotar uma postura mais ativa perante o médico 1818. Kim J, Kim S. Physicians’ perception of the effects of Internet health information on the doctor-patient relationship. Inform Health Soc Care. 2009; 34(3):136-48.,2626. Coelho EQ, Coelho AQ, Cardoso JED. Informações médicas na Internet afetam a relação médico-paciente? Rev Bioet. 2013; 21(1):142-9.,3131. Roettl J, Bidmon S, Terlutter R. What predicts patients’willingness to undergo online treatment and pay for online treatment? results from a web-based survey to investigate the changing patient-physician relationship. J Med Internet Res. 2016; 18(2):e32. (p. 146, p. 146, p. 9).

De acordo com Renahy et al., a Internet é responsável por exercer atualmente um “papel importante na gestão da saúde no cotidiano dos seus usuários e pode afetar as relações com os profissionais de saúde de diferentes maneiras” 2121. Renahy E, Parizot I, Chauvin P. Determinants of the frequency of online health information seeking: results of a web-based survey conducted in France in 2007. Inform Health Soc Care. 2010; 35(1):25-39. (p. 37). Além da maior rapidez e acessibilidade a informações já descritos por Bowes et al. 2424. Bowes P, Stevenson F, Ahluwalia S, Murray E. “I need her to be a doctor”: Patients’ experiences of presenting health information from the Internet in GP consultations. Br J Gen Pract. 2012; 62(604):732-8. (p. 733), três outras necessidades foram citadas por Caiata-Zufferey et al. 2323. Caiata-Zufferey M, Abraham A, Sommerhalder K, Schulz PJ. Online health information seeking in the context of the medical consultation in switzerland. Qual Health Res. 2010; 20(8):1050-61. (p. 1055 e 1056) como definidoras para o comportamento de busca dos pacientes: necessidade de reconhecimento, no intuito de terem suas percepções, sofrimentos e expectativas consideradas pelo médico; necessidade de redução da incerteza, haja vista que a Internet pode trazer esclarecimentos sobre sua doença e necessidade de perspectiva, ao enxergar, na rede, um suporte no qual possam se amparar e terem esperança de suas condições.

O suporte fornecido pela Internet e a busca por reciprocidade evidenciada nos artigos parece demonstrar a dualidade existente nos mundos. “Eu-Tu” e “Eu-Isso” não se revezam, não se alternam, coexistem mutuamente, porém fundamentando essências opostas: “O Isso é a crisálida, o Tu a borboleta. Porém, não como se fossem sempre estados que se alternam nitidamente, mas, são processos que se entrelaçam confusamente numa profunda dualidade [...]” 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 61).

Buber, no entanto, alerta para o risco de se navegar apenas no universo do “Eu-Isso”, que poderia resultar numa renúncia da humanidade e da condição essencial de ser humano: “o homem não pode viver sem o Isso, mas aquele que vive somente com o Isso não é homem... O essencial é vivido na presença, as objetividades no passado” 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 58 e 72).

A relação recíproca, onde o médico atua sobre o paciente e este atua sobre o médico, relação onde não se toma o outro por objeto, só pode ser vivida na presença e pelo ser em sua totalidade. O médico só passa a ser médico quando vive o encontro com o paciente e o paciente só é paciente diante do terapeuta na vivência do encontro 3737. Buber M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10a ed. São Paulo: Centauro; 2001. (p. 51 a 57).

Considerações finais

A crescente expansão da Internet pelo mundo e o consequente surgimento do paciente expert traz a possibilidade de mudança no modelo biomédico de relação médico-paciente; ao passo que o paciente, munido pelas informações retiradas da Internet, assume, cada vez mais, um papel proativo no cuidado à saúde, e introduz uma nova lógica de discussão de condutas e compartilhamento de decisões no encontro clínico.

Epistemologicamente, o encontro clínico pode ser compreendido a partir de três perspectivas: a perspectiva das relações de poder abordada por Foucault; a do encontro dialógico baseado na reciprocidade defendida por Buber, e a da fuga da relação quando há o abandono do “Tu” em detrimento do mundo do “Eu-Isso”.

Empoderado pelas informações retiradas da Internet, no contexto do “Regime da Verdade”, o paciente expert carrega consigo a possibilidade de transmutação na relação do saber que se encontra intimamente relacionado com o poder. À medida que o poder exerce seus efeitos ao passar “através” dos indivíduos, a resposta desses atores é variável, podendo assumir o corpo da reciprocidade baseada na essência da relação face a face, ou gerar resistência, seja por parte do médico que teme perder o controle da consulta, seja do próprio paciente em excluir o médico de seu papel no encontro clínico.

Contudo, a possibilidade do empoderamento do paciente expert perante a autoridade do médico ainda permanece questionável, sobretudo quando se trata da redistribuição do poder que emana do saber.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2018
  • Aceito
    08 Nov 2018
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