História crítica da hipnose na psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Brasil, entre 1930-1970

Critical history of hypnosis in psychiatry in the School of Medicine at the University of Sao Paulo, Brazil, between 1930 and 1970 (abstract: p. 14)

Historia crítica de la hipnosis en la psiquiatría de la Facultad de Medicina de la Universidad de São Paulo, Brasil, entre 1930-1970 (resumen: p. 14)

Gustavo Gil Alarcão André Mota Sobre os autores

Resumos

O artigo apresentado tem como objetivo o estudo histórico do uso da hipnose, compreendida como prática clínica, na Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, entre os anos de 1930-1970. A transição da psiquiatria paulista nesse período, quando se deu a mudança das atividades do Hospital do Juqueri para a Faculdade de Medicina-USP, apoiou-se decisivamente no poder simbólico do discurso psiquiátrico, que tomou o axioma “ser científico” como filtro valorativo para apreciar ou depreciar determinadas práticas. Exemplarmente, a hipnose permaneceu imune ao crivo “científico” desses mesmos psiquiatras, que a adotavam como prática clínica sem submetê-la ao mesmo escrutínio aplicado a outras práticas, especialmente a psicoterapia psicanalítica. Por meio de documentos produzidos na época analisada, busca-se identificar o teor desses discursos psiquiátricos, imbuídos de sua dimensão considerada científica, redundando como estratégia de manutenção ou não de certas práticas, como foi o da hipnose.

Hipnose; História da psiquiatria; Antônio Carlos Pacheco e Silva; História da Clínica Psiquiátrica FMUSP; História da psicoterapia


The objective of this study was to analyze the history of the use of hypnosis, as a clinical practice, in the Psychiatric Clinic of the School of Medicine, at the University of São Paulo (USP), between 1930 and 1970. There was a transition in psychiatry in São Paulo in this period, when the activities of the Juqueri Hospital were transferred to the School of Medicine at USP. This was decisively supported on the symbolic power of the psychiatric speech, which took over the axiom “scientific being” as an evaluative filter to appreciate or depreciate certain practices. Hypnosis remained immune to the “scientific” sieve of the same psychiatrists who adopted it as a clinical practice without submitting it to the same scrutiny applied to other practices, especially psychotherapy and psychoanalysis. By means of documents produced in the analyzed period, the authors aimed at identifying the thrust of these psychiatric speeches, pervaded with their so-called scientific dimension, which culminated in a strategy to either keep or not keep certain practices, such as hypnosis.

Hypnosis; History of psychiatry; Antônio Carlos Pacheco e Silva; History of clinical psychiatry FMUSP; History of psychotherapy


El objetivo del artículo presentado es el estudio histórico del uso de la hipnosis, entendida como práctica clínica, en la Clínica Psiquiátrica de la Facultad de Medicina de la Universidad de São Paulo entre los años de 1930-1970. La transición de la psiquiatría de São Paulo en ese período cuando hubo el cambio de las actividades del hospital de Juqueri para la Facultad de Medicina-USP, se apoyó decisivamente en el poder simbólico del discurso psiquiátrico que asumió el axioma de “ser científico” como filtro de valor para apreciar o despreciar determinadas prácticas. Ejemplarmente, la hipnosis permaneció inmune al filtro “científico” de esos mismos psiquiatras que la adoptaban como práctica clínica sin someterla al mismo escrutinio aplicado a otras prácticas, especialmente a la psicoterapia psicoanalítica. Por medio de documentos producidos en la época analizada se busca identificar el tenor de esos discursos psiquiátricos, imbuidos de su dimensión considerada científica, resultando como estrategia de mantenimiento o no de determinadas prácticas, como fue la hipnosis.

Hipnosis; Historia de la psiquiatría; Antônio Carlos Pacheco e Silva; Historia de la Clínica Psiquiátrica FMUSP; Historia de la psicoterapia


História crítica da hipnose na formação da psiquiatria paulistana entre 1930-1970

Segundo Ayres 11. Ayres JRCM. Prefácio. In: Mota A, Marinho MGSMC, organizadores. História da psiquiatria: ciência, práticas e tecnologias de uma especialidade médica. São Paulo (USP/UFACB): Casa de Soluções; 2012. p. 7-8. , “não há especialidade médica que necessite mais da história para sua compreensão do que a psiquiatria” (p. 8). História, como disciplina que busca esclarecer os contextos onde emergem os fatos, as falas e as estratégias que os explicam, como bem apontou Farge 22. Farge A. Lugares para a história. São Paulo: Autêntica; 2011. (p. 72). A partir dos anos 1960, com os estudos de Foucault, fica impossível dissociar-se saber e prática psiquiátricos do social, numa via de mão-dupla. Ainda assim, e mesmo que se tenham produzidos importantes investigações nessa direção, há muito por se pesquisar, pois não é raro que a história da psiquiatria ainda seja construída numa versão hagiográfica.

Além disso, não se pode esquecer que a psiquiatria, embora especialidade médica, relaciona-se muito intimamente com áreas de saber e prática profissionais não médicas. Aliás, é desta complexa relação que advêm as maiores problemáticas da vasta e heterogênea área psi, composta, segundo Roudinesco 33. Roudinesco E. O paciente, o terapeuta e o Estado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2005. , pela psiquiatria, psicanálise, psicologia e psicoterapias. O homo psychologicus 44. Foucault M. Doença mental e psicologia. 2a ed. Lisboa: Edições Texto & Grafia; 2012. p. 99-100. é uma realidade do século XX.

Para compreender esta complexa relação entre práticas e saberes que formam a psiquiatria, estudamos o uso da hipnose como psicoterapia na Clínica Psiquiátrica da FMUSP, entre 1936-1970, a partir dos discursos médicos produzidos no período. Refletimos sobre o significado de sua permanência como componente da prática psiquiátrica e do discurso de psiquiatras da FMUSP, notadamente seus principais nomes, ligados a Antônio Carlos Pacheco e Silva (1898-1988). Vale ressaltar que, se por um lado, não traduzem a totalidade do pensamento psiquiátrico produzido, por outro lado, são fontes históricas fundamentais, dado o protagonismo do médico e psiquiatra Pacheco e Silva e dos psiquiatras da FMUSP naquele período. Optamos por este recorte, tomado essa ambiência como um microcosmo, conforme Ginzburg 55. Ginzburg C. Queijos e vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras; 2006. (p. 20), no sentido de trazer maior complexidade ao debate em torno do tema das instituições e agentes da psiquiatria paulista.

Reputamos a permanência da hipnose como prática corrente nessa instituição como uma falha no sentido de Farge 11. Ayres JRCM. Prefácio. In: Mota A, Marinho MGSMC, organizadores. História da psiquiatria: ciência, práticas e tecnologias de uma especialidade médica. São Paulo (USP/UFACB): Casa de Soluções; 2012. p. 7-8. , que alerta para a distância entre a fala e o fato. A hipnose praticada pelos psiquiatras da FMUSP jamais foi analisada a partir dos referenciais científicos que eles mesmos preconizariam. Ela foi sustentada pelo poder real e simbólico destes psiquiatras 66. Bourdieu P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 2007. , defensores da hipnose. Desta maneira adotavam uma postura ambivalente, na qual, por um lado, criticavam tudo que não fosse científico e, ao mesmo tempo, patrocinavam uma prática cujo caráter científico não era investigado a fundo.

A adoção do argumento de cientificidade foi a principal chave para conectar definitivamente a psiquiatria à medicina, e afastá-la de escolas psicológicas no decorrer do século XX. Mota e Schraiber 77. Mota A, Schraiber LB. Mudanças corporativas e tecnológicas da medicina paulista em 1930. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2009; 16(2):345-60. (p. 350-1) examinaram a formação das especialidades médicas entre os anos 1930-50, mostrando que a mesma adesão à cientificidade atuou nos contextos particulares da formação de outras especialidades médicas. A psiquiatria não era associada prontamente à medicina, Pereira 88. Pereira LMF. Reformas da ilusão: a terapêutica psiquiátrica em São Paulo na primeira metade do século XX [tese]. Campinas, SP: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 1995. . Um passo decisivo na história da psiquiatria foi, reiteradamente, dizer-se parte indiscutível da medicina. Dizer-se científica e combater a falta de ciência das demais áreas era uma estratégia muito eficiente, porque separava a “antiga psiquiatria”, asilar, filosófica, não científica e de pouca resolutividade, da “moderna psiquiatria”, hospitalar, laboratorial, científica e eficiente, como diz Pacheco e Silva:

A luta dos psiquiatras

Durante anos sucessivos, lutaram os psiquiatras para eliminar preconceitos seculares, que imperavam não só entre os leigos, mas também entre os médicos das outras especialidades, para demonstrar que o fato de um indivíduo necessitar dos cuidados de um médico especializado em doenças mentais não implica em absoluto, estar em estado de alienação mental 99. Pacheco e Silva AC. A psiquiatria e a vida moderna. In: A psiquiatria e a vida moderna. São Paulo: Edigraf; 1948. p. 5-23. . (p. 5)

[...] Depois de decênios de abandono e de ridículo, quase que inteiramente isolada do resto da profissão médica, a Psiquiatria é agora aceita como matéria essencial à prática médica 99. Pacheco e Silva AC. A psiquiatria e a vida moderna. In: A psiquiatria e a vida moderna. São Paulo: Edigraf; 1948. p. 5-23. . (p. 16)

Essa linha argumentativa da psiquiatria visava ordenar o campo psi em expansão. As profissões da psique (Roudinesco) 1010. Roudinesco E. Histoire de la psychanalyse. Paris: Fayard; 1994. passariam, cada vez mais, a concorrer entre si, e o reconhecimento da psiquiatria como parte da medicina a colocaria numa posição de poder cujas vantagens na configuração do campo seriam indiscutíveis. As fontes históricas demonstrarão como um discurso que se declara apoiado na ciência se constrói com base na autoridade dos agentes que o proferem, calcando-se na força simbólica dessas falas, cujas contradições eram esquecidas para se afirmar a hegemonia do organicismo como diretriz psiquiátrica.

Em suma, a psiquiatria adota, como estratégia de legitimação e ordenamento do campo psi, o argumento da cientificidade que foi usado na sua própria história e na seleção de práticas e saberes, mas não examina a fundo em que consiste este próprio argumento. Ao cabo, temos escolhas ideológicas e pessoais travestidas de argumentações científicas, o que será examinado com o caso da hipnose.

Pacheco e Silva e a “modernização” da psiquiatria

Desde sua chegada ao Hospital do Juqueri até sua aposentadoria na Clínica Psiquiátrica da FMUSP (1923-1968), Antônio Carlos Pacheco e Silva deixou clara sua intenção, tomada como objetivo de vida: aparelhar a psiquiatria para torná-la, enfim e definitivamente, uma especialidade médica. Suas aspirações já são evidentes ainda em 1926, quando realizou uma grande viagem à Europa e aos EUA 1111. Pacheco e Silva AC. A assistência a alienados nos Estados Unidos e Europa. São Paulo: [s.e.]; 1926. (p. 1-3), redigindo, na sua volta, um extenso relatório e o apresentando ao secretário estadual do Interior, com destaque para as enormes instituições psiquiátricas que abrigariam centenas e até milhares de pessoas, e que se aparelhariam para tornarem-se hospitais e centros de pesquisa.

Verifica-se, nesse documento, uma insistente argumentação no sentido de modernizar, com pressupostos cientificistas, a psiquiatria, que então vigoraria em São Paulo. Para isso, considerou a psiquiatria um ramo da neuropatologia e, em seu discurso inaugural na Cátedra de Psiquiatria da FMUSP, em 23 de julho de 1935, declararia:

Meus senhores, dentre os ramos da Medicina, destaca-se a Neuropatologia. Esta, por sua vez, se divide em dois ramos: a Neurologia e a Psiquiatria. A Psiquiatria trata dos distúrbios mentais e das modificações orgânicas que lhe são inerentes. Era a patologia mental, ainda há bem pouco tempo, relegada a um plano inferior, considerada disciplina facultativa, não interessando à grande maioria dos médicos, que a julgavam dispensável e sem valor prático, a não ser para aqueles que pretendiam especializar-se nesse ramo. Poucas eram suas relações com a patologia geral; os psiquiatras viviam totalmente afastados das clínicas e dos laboratórios, insulados nos hospícios, entregues apenas às suas cogitações filosóficas e doutrinárias. Assim, a Psiquiatria não passava de uma fria meditação, aos olhos dos colegas das outras especialidades, eram apontados como os poetas da medicina, que se distraíam elaborando verdadeiros romances, qualificados como observações, buscando no Grego e no Latim a mais arrevezada das terminologias para designar formas clínicas as mais díspares, ou ainda estabelecendo debates em torno de problemas metafísicos 1212. Pacheco e Silva AC, organizador. Palavras de psiquiatra. São Paulo: Edigraf; 1950. Aula inaugural do curso de Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; p. 35-51. . (p. 35)

Contudo, a delicada posição da psiquiatria frente a suas demandas de saber diante de seus objetos de estudo sempre a colocaram em zonas de fronteira com a filosofia, a psicologia, a psicanálise, a sociologia e a antropologia. Impossibilitada de se apresentar como uma disciplina sustentada por uma fisiopatologia demonstrável e clara, a psiquiatria, ou “a medicina da alma”, sempre circulou entre outras fontes para abastecer seu próprio saber. O descompasso entre projeto e realidade é flagrante, e o hospital modelo não se renovaria como o esperado, pelo contrário, se deterioraria. Exemplarmente, ao fim da gestão Pacheco e Silva no Hospital do Juqueri, acumulavam-se quatro mil pacientes, contra os cerca de mil e seiscentos que se registravam em sua entrada, como mostra Tarelow 1313. Tarelow GQ. Entre febres, comas e convulsões: as terapias biológicas no Hospital do Juquery administrado por Pacheco e Silva (1923-1937) [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2011. (p. 123).

Foi nesse contexto, que o núcleo da psiquiatria paulista do Juqueri se muda para a capital a partir dos anos 1940, ganhando centralidade a própria figura de Pacheco e Silva, então catedrático de psiquiatria das duas principais escolas médicas da cidade, a Faculdade de Medicina da USP-FMUSP e Escola Paulista de Medicina-EPM. Sua influência política e suas relações pessoais garantiriam, por exemplo, as verbas necessárias para a construção do prédio da Clínica Psiquiátrica da FMUSP 1313. Tarelow GQ. Entre febres, comas e convulsões: as terapias biológicas no Hospital do Juquery administrado por Pacheco e Silva (1923-1937) [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2011. (p. 40-1).

Ao mesmo tempo em que defendia uma psiquiatria científica, baseada na adequada interpretação dos fenômenos que são submetidos à experimentação, Pacheco e Silva 1414. Pacheco e Silva AC. A pesquisa científica, métodos experimentais, filosofia da experimentação. Bol Bibliogr Clin Psiquiatr. 1962; 1(2):8-9. (p. 8) – e nisso consistiria a grande possibilidade aberta para a psiquiatria –, o catedrático não filtraria suas crenças religiosas, políticas e culturais:

Quando um grupo social se vê ameaçado de desorganização e desintegração, impõe-se a identificação das causas responsáveis, para depois eliminá-las, com base na medicina, na higiene, no combate à desnutrição, ao pauperismo. No sentido de proceder à chamada limpêza orgânica de uma cidade, para escoimá-la dos elementos nocivos, a primeira providência consiste em retirar da circulação todos aquêles que perturbem a vida social e revelam falta de adaptação, submetendo-os à rigorosa a triagem, para, a seguir, encaminhá-los a diferentes lugares, conforme o resultado dos diagnósticos, dos exames e das observações procedidas. Para tanto, além de postos de triagem, dotado de pessoal habilitado, constituído por médicos, psicólogos, sociólogos, assistentes sociais e economistas, o Estado necessita contar com reformatórios, hospitais gerais e especializados, asilos, casas de custódia, a fim de atender a todos os elementos desajustados ao meio em que vivem, buscando descobrir as diferentes causas predisponentes e determinantes que atuaram, em cada caso específico, a fim de eliminá-las 1515. Pacheco e Silva AC. Aspectos da psiquiatria social. São Paulo: Edigraf; 1957. . (p. 19)

Mesmo mencionando que se deveria esquecer a própria opinião em face da experiência para privilegiar o caráter científico dos fatos, ele próprio não o faria, Pacheco e Silva 1515. Pacheco e Silva AC. Aspectos da psiquiatria social. São Paulo: Edigraf; 1957. , (p. 8). Ocorre que o salvo conduto das dúvidas e incertezas seria aplicado com parcialidade nas ideias por ele defendidas, como no caso das lobotomias realizadas nos anos 1950:

O doente não necessita sequer ser anestesiado e a assepsia é muito sumária, visto não haver necessidade de se praticar uma craniotomia.

De acordo com essa nova técnica, conhecida como lobotomia transorbitária, o doente é submetido a uma série de aplicações de eletrochoque, três a quatro, uma imediatamente em seguida à outra e, quando se acha ainda em estado de inconsciência é submetido à intervenção. Os doentes submetidos a essa intervenção recuperam logo depois a consciência e de nada se queixam, a não ser leve cefaleia, em alguns casos. [...] Evidentemente, ainda é cedo para se julgarem os resultados dessa nova técnica, mas segundo se depreende das afirmativas dos seus autores, representa um grande passo no sentido de se simplificarem os métodos até aqui empregados para a leucotomia cerebral, que poderá ser, daqui por diante, executada por qualquer médico, mesmo que não seja cirurgião 1616. Pacheco e Silva AC, organizador. Palavras de psiquiatra. São Paulo: Edigraf; 1950. A primeira conferência internacional de psicocirurgia [publicado em O Estado de S.Paulo, 1948]. p. 367-72. . (p. 368-9)

Ainda que Antônio Egas Moniz tenha sido premiado com o Nobel de Medicina em 1949, as críticas às lobotomias logo surgiriam. Mesmo dizendo que era cedo para julgar os resultados da técnica, e desprezando questões básicas sobre o cuidado com os pacientes (“sequer requer anestesia”), Pacheco a considerará como um grande passo de simplificação técnica, já que se tratava de um procedimento que poderia ser executado por qualquer médico. Não encontramos nenhum texto crítico dele, mesmo com os resultados desastrosos das lobotomias que se seguiram.

O trabalho de Seixas 1717. Seixas AAA. Instituto de Psiquiatria-FMUSP: o contexto histórico social em São Paulo entre as décadas de 1920 a 1950 para recepção da psiquiatria como um saber médico [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2012. sobre a história da Clínica Psiquiátrica da FMUSP aborda justamente as condições de recepção da cidade para a psiquiatria como um saber médico, assentado numa versão condensada do que seria uma ciência. Adotado como uma simplificação para associar ciência à experimentação absolutamente controlável, este modo de pensar sutilmente destituía as ciências humanas de seu valor, insinuando certo descrédito contra tudo aquilo que não era produzido em laboratório ou matematicamente traduzido. Seguindo as investigações de Marinho 1818. Marinho MGSMC. O papel da Fundação Rockefeller na organização do ensino e da pesquisa na Faculdade de Medicina de São Paulo (1916-1931) [dissertação]. São Paulo: Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas; 1993. (p. 13-4), este processo ocorre sob a influência da ideologia da Fundação Rockfeller no campo da saude em São Paulo.

Hipnose em mãos médicas

A hipnose, que adentrara o campo médico desde fins do século XVIII para se espalhar em meados do XIX, jamais foi unanimidade 1919. Roudinesco E, Plon M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1998. (p. 335). O termo hipnotismo (c)(c)Neste texto adotaremos o termo hipnose e hipnotismo com o mesmo significado, como diz Roudinesco (p. 335). foi criado por James Braid (1795-1860) em 1843, e designava um estado alterado de consciência (sonambulismo) produzido por um conjunto de técnicas com finalidades terapêuticas. Ao longo do século XIX, desenvolveram-se técnicas, que foram sendo adotadas pela medicina, nas quais os médicos poderiam influenciar seus pacientes, bases das futuras psicoterapias. A ideia de que a relação entre as pessoas pudesse ser em si mesma terapêutica, desde que controlada por determinadas técnicas, gradativamente ganhava corpo.

Em fins do século XIX, observava-se na França, local de maior pujança da hipnose, o desenvolvimento de duas escolas com pensamentos diferentes e rivais. De um lado, Auguste Liébeault e Hippolyte Bernheim em Nancy e, de outro, Jean Martin Charcot em Salpetrière, principal influência de Pierre Janet. Charcot acreditava que a hipnose era um estado patológico observado na histeria, mas usaria a própria hipnose para remover os pacientes deste estado; enquanto, em Nancy, considerava-se a hipnose uma técnica de sugestão que permitiria tratar os pacientes das mais diversas condições médicas, e não só psiquiátricas Bernheim 2020. Bernheim H. De la suggestion et de ses applications à la thérapeuthique. Paris: Adamant Media Corporation; 2005. (da coleção Elibron Classics, é um fac-símile da edição publicada em 1888 por Octave Doin em Paris). , (p. 164-8).

É impossível avaliar a história da hipnose sem mencionar Sigmund Freud, que teve importante contato com ambas as escolas Waterfield 2121. Waterfield R. Hidden depths: the story of hypnosis [Internet]. London: MacMillan; 2002 [citado 20 Mai 2018]. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=JtJ5F1cr8WEC&hl=pt-BR&source=gbs_slider_cls_metadata_7_mylibrary
https://books.google.com.br/books?id=JtJ...
, (p. 325-49). Freud, inicialmente, reconheceu o valor do seu emprego no tratamento das histerias 2222. Freud S. Sobre a psicoterapia (1905). In: Salomão J, editor. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1996. v. 7, p. 239-51. , no que se chama hoje fase pré-psicanalítica Roudinesco 1919. Roudinesco E, Plon M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1998. , (p. 336), mas, depois, a abandonou, em 1896, em favor da associação livre como metodologia de tratamento, Freud 2323. Freud S. Artigos sobre hipnotismo e sugestão (1888-1892). In: Salomão J, editor. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1996. v. 1, p. 111-20. , (p. 115). Waterfield 2121. Waterfield R. Hidden depths: the story of hypnosis [Internet]. London: MacMillan; 2002 [citado 20 Mai 2018]. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=JtJ5F1cr8WEC&hl=pt-BR&source=gbs_slider_cls_metadata_7_mylibrary
https://books.google.com.br/books?id=JtJ...
identifica fatores tanto pessoais como objetivos para esta posição de Freud, elencando a falta de eficácia da sugestão hipnótica em seus tratamentos como um das principais justificativas do psicanalista Freud 2323. Freud S. Artigos sobre hipnotismo e sugestão (1888-1892). In: Salomão J, editor. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1996. v. 1, p. 111-20. , (p. 242). Este fato corroborou a indicação para que o tratamento psicanalítico não se baseasse na sugestão ou na persuasão. Para Neubern 2424. Neubern MS. Hipnose e psicologia clínica: retomando a história não contada. Psicol Reflex Crit. 2006; 19(3):346-54. (p. 347) e, também, Waterfield 2121. Waterfield R. Hidden depths: the story of hypnosis [Internet]. London: MacMillan; 2002 [citado 20 Mai 2018]. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=JtJ5F1cr8WEC&hl=pt-BR&source=gbs_slider_cls_metadata_7_mylibrary
https://books.google.com.br/books?id=JtJ...
, esse foi um “golpe de força” que baniu da hipnose qualquer relevância científica para a psicanálise, e dificultou seu uso para a psicologia clínica e outras áreas durante até os anos 1950.

No Brasil, em particular em São Paulo, a hipnose seria introduzida por médicos, sem, no entanto, sofrer os mesmos crivos científicos que os observados na Europa Neves 2525. Neves AC. O emergir do corpo neurológico no corpo paulista: neurologia, psiquiatria e psicologia em São Paulo a partir dos periódicos médicos paulistas (1889-1936) [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2008. , (p. 436). Pacheco e Silva descreve o trabalho do médico Domingos Jaguaribe, do começo do século (d)(d)Domingos José Nogueira Jaguaribe foi um médico paulista muito envolvido com hipnose. Em 1901, criou o Instituto Jaguaribe, onde hipnotizava pacientes alcoolistas Massimi, (p. 95-9).:

No seu dispensário, instalado à rua que mui merecidamente recebe o seu nome, o Dr. Jaguaribe empregava a psicoterapia em grupo, reunindo numa sala vários doentes sentados em semicírculo. Depois de hipnotizá-los um a um, o que via de regra conseguia sem a menor dificuldade, graças à sua grande experiência e ao seu grande poder persuasivo, o ilustre médico fazia uma convincente exposição sobre os efeitos nocivos do álcool sobre o organismo humano, enumerando as graves lesões por ele provocadas sobre os órgãos essenciais à vida.

A seguir, estando ainda os pacientes sob a ação da hipnose, ordenava que permanecessem por algum tempo com os braços distendidos e contraturados, insinuando-lhes que, se porventura contrariassem as suas determinações e volvessem a empunhar um recipiente contendo qualquer bebida alcoólica, imediatamente se instalaria uma rigidez dos membros, idêntica à que experimentavam naquele momento, sendo-lhes impossível levar a bebida à boca.

Para reforçar a sua ação sugestiva, obrigava os pacientes, enquanto hipnotizados, a sentir o cheiro das bebidas alcoólicas prediletas, afirmando-lhes que, daí por diante, perceberiam um odor nauseabundo e um gosto repugnante toda vez que tentassem ingeri-las 2727. Pacheco e Silva AC. A psiquiatria e a vida moderna. São Paulo: Edigraf; 1948. O hipnotismo no Brasil, p. 146-54. . (p. 150-1)

Pacheco descreve a retomada de interesse na hipnose (e)(e)De fato, a hipnose ressurge nos anos 1950, impulsionada por médicos e dentistas. Em 1957, é criada a Sociedade Brasileira de Hipnose Médica, no Rio de Janeiro. Organizam-se congressos e publicam-se trabalhos sobre o tema Monteiro (p. 4). nos anos 1950, sobretudo por médicos estadunidenses Pacheco e Silva 2727. Pacheco e Silva AC. A psiquiatria e a vida moderna. São Paulo: Edigraf; 1948. O hipnotismo no Brasil, p. 146-54. , (p. 149). Neste contexto, ele se interessará muito mais em dizer que somente médicos deveriam estar habilitados para hipnotizar, alertando sobre os riscos de charlatães, do que propriamente investigar a hipnose epistemologicamente, ou, mesmo, cientificamente, como preconizava para as áreas de interesse da psiquiatria.

Para a forma de pensar e fazer psicoterapia de Pacheco e Silva, a hipnose nas mãos de médicos seria um instrumento indispensável. Chama atenção sua crença no procedimento que descreve, calcado na força simbólica de seu discurso, dado que não apresenta outros argumentos, como se vê:

A decadência do hipnotismo foi de curta duração, pois volta hoje a ocupar o lugar que justamente lhe cabe dentro da medicina. Os métodos modernos de investigação de que dispõem presentemente os pesquisadores no tocante à atividade cerebral, máxime a eletroencefalografia, facilitam hoje o estudo dos fenômenos que afetam o psiquismo, abrindo um novo e inexplorado campo da fisiopatologia nervosa 2727. Pacheco e Silva AC. A psiquiatria e a vida moderna. São Paulo: Edigraf; 1948. O hipnotismo no Brasil, p. 146-54. . (p. 153)

A história da hipnose em São Paulo ainda não foi devidamente investigada. Segundo Neves 2525. Neves AC. O emergir do corpo neurológico no corpo paulista: neurologia, psiquiatria e psicologia em São Paulo a partir dos periódicos médicos paulistas (1889-1936) [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2008. (p. 227), ela desembarca no Brasil, no Rio de Janeiro, por meio dos trabalhos de Francisco Fajardo, que publica a tese “Hipnotismo” em 1896. Em São Paulo, ela é mencionada em publicações médicas em 1902, veiculada a Franco da Rocha, que alega não ter domínio desta técnica. Enjolras Vampré, destacado neurologista paulista, também aborda o hipnotismo, criticando as demonstrações públicas de hipnose que ocorriam em São Paulo Neves 2525. Neves AC. O emergir do corpo neurológico no corpo paulista: neurologia, psiquiatria e psicologia em São Paulo a partir dos periódicos médicos paulistas (1889-1936) [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2008. , (p. 436). Ao que tudo indica, a hipnose não passou despercebida, recebendo atenção da sociedade e da medicina.

Psicoterapia baseada na hipnose

A hipnose sempre foi central para a psicoterapia de Pacheco e Silva 2727. Pacheco e Silva AC. A psiquiatria e a vida moderna. São Paulo: Edigraf; 1948. O hipnotismo no Brasil, p. 146-54. . Além de afirmar que qualquer consulta médica era por si uma psicoterapia. Ele defende que a persuasão e a sugestão são as maneiras eficazes de psicoterapia, ainda que descrevesse outras formas:

A psicoterapia é empregada de forma inconsciente e empírica, por tôdos os médicos. O médico: informa, solicita, exorta, aconselha, recomenda, determina, intervém, convence. Psicoterapeutas natos: transmitem ao doente a vontade de se curar. É preciso: paciência, bondade, segurança, firmeza, calma, tolerância, domínio sôbre si mesmo, práticas auto sugestivas 2929. Pacheco e Silva AC. Psicoterapia básica. Rev Hosp Clin. 1959; 14:289-99. (Acervo Pacheco e Silva do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz – FMUSP). . (p. 289)

Não se encontraria em sua obra nenhuma tentativa de compreender mais profundamente a hipnose, mas apenas uma defesa reiterada – discursiva – de seus benefícios terapêuticos e que não se circunscreve a determinada época. Nessa direção, situaria a hipnose entre os métodos sugestivos de psicoterapia, afirmando que ela marcaria a fase científica das psicoterapias, iniciadas “em tempos imemoriais pelos padres de todas as religiões em todos os tempos” Pacheco e Silva 2929. Pacheco e Silva AC. Psicoterapia básica. Rev Hosp Clin. 1959; 14:289-99. (Acervo Pacheco e Silva do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz – FMUSP). , (p. 295). Pacheco define a hipnose como: “um estado particular do sistema nervoso determinado por manobras artificiais” Pacheco e Silva 2929. Pacheco e Silva AC. Psicoterapia básica. Rev Hosp Clin. 1959; 14:289-99. (Acervo Pacheco e Silva do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz – FMUSP). , (p. 297). Além disso, define o que entende por sugestão: “[...] é o ato pelo qual uma ideia boa ou má, é introduzida no cérebro de um indivíduo, independentemente de sua vontade” Pacheco e Silva 2929. Pacheco e Silva AC. Psicoterapia básica. Rev Hosp Clin. 1959; 14:289-99. (Acervo Pacheco e Silva do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz – FMUSP). , (p. 297), uma forma bastante particular de conceber uma psicoterapia.

Em 1959, publica “Aspectos médico-legais da hipnose”, uma defesa ampla da hipnose, desde que aplicada exclusivamente por médicos:

Deve a hipnose ser privativa dos médicos?

Indaga-se, na atualidade em tôda a parte, se a hipnose como os demais métodos psicoterápicos, inclusive a psicanálise, pode ser livremente utilizada por psicólogos, dentistas e até mesmo pelos leigos ou, se pelo contrário, o seu emprego deve ser privativo dos médicos, como método terapêutico que é. Essa questão é de fundamental importância, dado que envolve problema de curandeirismo e de charlatanismo. [...] Não há praticamente setor relacionado com a atividade mental normal e patológica que a hipnose não tenha sido sugerida e aplicada. No meu entender, a hipnose só deve e só pode ser utilizada por médicos especializados, com a necessária experiência nas diversas técnicas psicoterápicas 3030. Pacheco e Silva AC. Aspectos médico-legais da hipnose. São Paulo: FMUSP; 1959. p. 1-4. (Separata – Acervo Pacheco e Silva do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz – FMUSP). . (p. 1)

Como se pode depreender, Pacheco e Silva explicitava sua real questão. Não se tratava de avaliar cientificamente a hipnose, mas de garantir que ela, como outras práticas, ficasse nas “mãos seguras“ de médicos. Nota-se, então, que no bojo do discurso da modernização científica seguia-se uma disputa concorrencial, na qual parte da psiquiatria aliava-se à medicina para se proteger dos demais profissionais não médicos, e a defesa de que somente médicos praticassem hipnose somava-se como argumento.

Nota-se, com clareza, a ausência de questionamentos sobre o significado das psicoterapias e da hipnose. Pacheco demonstra, no século XX, o que Foucault 44. Foucault M. Doença mental e psicologia. 2a ed. Lisboa: Edições Texto & Grafia; 2012. p. 99-100. propôs para explicar a transição vivida no surgimento da psiquiatria: a transição do exercício do poder na psiquiatria, da violência explicitada pelas celas e correntes à disciplina e à submissão dos doentes frente ao poder simbólico dos médicos. A hipnose e a psicoterapia defendidas por Pacheco se caracterizam justamente pelo exercício da influência do médico sobre o paciente, como visto.

O uso cotidiano da hipnose no hospital

Em 1959, cria-se a sessão paulista da Sociedade Internacional de Hipnose, que em 1973 se transformaria em Divisão Nacional do Brasil para a Sociedade de Hipnose Médica de São Paulo. A sessão inaugural dessa novel instituição ocorreu em 23 de maio de 1973, no auditório do Instituto de psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo, presidida pelo Prof. Dr. João Carvalhal Ribas sendo, na ocasião, eleita e empossada a sua primeira diretoria, integrada pelos principais nomes da Clínica Psiquiátrica. Sua primeira sede foi na Clínica Psiquiátrica da FMUSP, regida pelo Prof. Fernando de Oliveira Bastos 3131. Clínica Psiquiátrica FMUSP. Livro de Atas n. 3: 06-07-1961 a 22-09-1965. São Paulo: FMUSP; [s.d.]. (Biblioteca do Instituto de Psiquiatria HC-FMUSP). .

A hipnose foi presença constante neste hospital e na prática destes psiquiatras, sobretudo até os anos 1960, sem ter sido examinada criticamente. A hipnose “atalhou” o caminho e manteve-se como indicação segura destes médicos, imune às indagações científicas ou epistemológicas. Com a chegada do eletroencefalograma e das drogas psicotrópicas, sua presença diminuirá, sem contudo desaparecer. Por meio de excertos de discussões clínicas do hospital, pode-se notar que sua indicação era usual como forma de psicoterapia ou esclarecimento diagnóstico.

Por exemplo, em 13 de maio de 1953:

O Dr. Fernando O. Bastos apresentou o caso [nome], vítima de sinistrose, caracterizando-se pela presença de uma contratura psicógena da mão direita. Discutiram o caso em apreço vários médicos presentes, assinalando-se o caráter psicógeno da contratura já patenteado pela busca da renovação do acidente, sempre de duração transitória, obtida às custas de vários métodos psicoterápicos armados. O prof. A. C. Pacheco e Silva, em comprovação da natureza psicógena do distúrbio, hipnotizou o paciente em sessão e, às custas de enérgica determinação, obteve que o paciente voltasse a realizar todos os movimentos normais com a mão direita 3131. Clínica Psiquiátrica FMUSP. Livro de Atas n. 3: 06-07-1961 a 22-09-1965. São Paulo: FMUSP; [s.d.]. (Biblioteca do Instituto de Psiquiatria HC-FMUSP). . (p. 2, grifo nosso)

E, em 3 de junho de 1953:

O paciente era um fiscal da Companhia [...] e, no exercício de seu cargo, traumatizou-se emocionalmente no curso de desinteligências travadas com os companheiros de trabalho. Certa ocasião, por intenção malévola dos companheiros, teria recebido um banho de água fria e, de súbito, a seguir, um jato de água quente. Desde essa época, outubro do ano passado, o paciente vem apresentando abalos musculares em todo o corpo. Internado no Hospital do Juqueri, o eletrochoque determina a melhora da saúde, pois os abalos continuaram a ocorrer apenas nos membros superior e inferior direitos. Internado na Clínica Neurológica da FMUSP, o exame especializado nada teria apurado de anormal no setor orgânico do sistema nervoso. O caso, diagnosticado como histeria de conversão foi encaminhado à Clínica Psiquiátrica, afim de aqui receber novos tratamentos. O caso foi discutido pelo prof. A. C. Pacheco e Silva, drs. Fernando de Oliveira Bastos e João Carvalhal Ribas e outros, concluindo-se tratar-se provavelmente de histeria, devendo ser, dentro de breve prazo, submetido à hipnose 3232. Clínica Psiquiátrica FMUSP. Livro de Atas n. 1: 25-11-1952 a 26-08-1957. São Paulo: FMUSP; [s.d.]. (Biblioteca do Instituto de Psiquiatria HC-FMUSP). . (p. 2)

Na reunião de 29 de fevereiro de 1956:

O caso [nome], conforme comentou Pacheco e Silva, mereceu particular menção, sobretudo sob o ponto de vista terapêutico: com seis sessões de hipnose, a paciente, de modo brilhante, atingiu remissão total do tique. Depois de lida e comentada a observação, a paciente foi apresentada em reunião para melhor interrogação e elucidação do caso. O trabalho foi comentado pelos drs. João Carvalhal Ribas e Heinz Weber (f)(f)Psiquiatra da FMUSP. e outros 3030. Pacheco e Silva AC. Aspectos médico-legais da hipnose. São Paulo: FMUSP; 1959. p. 1-4. (Separata – Acervo Pacheco e Silva do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz – FMUSP). . (p. 1)

Obviamente, as atas são sintéticas, mas indicam a circulação da hipnose, indicada acima nos tratamentos de dois casos de histeria e um caso de tique. A hipnose era usada para determinar se o caso era de origem psicogênica. Ela servia tanto para a formulação dos diagnósticos quanto como parte da terapêutica. . As mesmas atas das reuniões clínicas informavam sobre a relevância da hipnose na época, como o relato sobre o Congresso Internacional de Hipnose e Medicina Psicossomática, realizado em Paris de 28 a 30 de abril de 1965, no qual Pacheco reitera o grande valor da hipnose na pesquisa clínica e terapêutica médica 3333. Clínica Psiquiátrica FMUSP. Livro de Atas n. 3: 06-07-1961 a 22-09-1965. São Paulo; [s.d.]. (Biblioteca do Instituto de Psiquiatria HC-FMUSP). (p. 1).

Clóvis Martins e Fernando de Oliveira Bastos, professor titular em 1968-78 3232. Clínica Psiquiátrica FMUSP. Livro de Atas n. 1: 25-11-1952 a 26-08-1957. São Paulo: FMUSP; [s.d.]. (Biblioteca do Instituto de Psiquiatria HC-FMUSP). , publicam o seguinte sobre hipnose:

Hipnose

A hipnose, como técnica auxiliar da psicoterapia, tem sofrido em nosso meio, avanços e recuos segundo os entusiasmos ocasionais que desperta. Atualmente, um médico paulista, alçado à investidura de presidente da Sociedade Internacional de Hipnose Clínica e Experimental (Dr. A. C. de Moraes Passos (g)(g)Médico defensor e praticante da hipnose. ), realiza grande campanha para imposição da técnica. Destarte, têm sido muitos os trabalhos realizados ou em andamento, mesmo no plano da pesquisa experimental, com a hipnose clínica. O Prof. Pacheco e Silva, pioneiro na sua utilização, emprestando-lhe foros científicos em época de descrédito para a técnica e lutando bravamente para restabelecer-lhe o prestígio, criou seu método original, o do chamado “reflexo hipnocondicionado”, no tratamento do etilismo. Consiste no condicionamento de náusea psicogênica à bebida alcoólica, através da sugestão sob hipnose 3434. Martins C, Bastos FO. Estado atual da psicoterapia no Brasil. Bol Clin Psiquiatr. 1963; 2(1):49-53. . (p. 51)

Chama atenção que psiquiatras experimentados realmente acreditassem no poder de suas falas, como mencionado acima, com a literatura científica já disponível em sua época. Diante de situações clínicas complexas como o alcoolismo, é digno de curiosidade pensar o que levaria estes médicos a sustentarem ideias já superadas há mais de sessenta anos, como a de que seria possível incutir no paciente um reflexo que o impedisse de ingerir álcool. Estas crenças na hipnose não eram verificadas posteriormente e não conhecemos o desfecho destes casos. O “empréstimo deste foro científico” era dado unicamente pela pessoa do psiquiatra, e não pela investigação que desenvolveria.

Finalmente, em 1970, era publicado, no “Boletim da Clínica Psiquiátrica”, um discurso de João Carvalhal Ribas sobre a Divisão Nacional do Brasil da Sociedade Internacional de Hipnose Clínica e Experimental, onde o autor cobra a presença dos associados e a participação ativa junto à sociedade para esclarecer a opinião pública sobre "[...] os problemas sociais ligados à prática da hipnose nas mãos dos charlatães e curandeiros, ao mesmo tempo e reivindicar a valia e a dignidade da terapêutica hipnótica sob a orientação dos técnicos devidamente competentes e idôneos[...]" 3535. Ribas JC. Divisão nacional do Brasil da sociedade internacional de hipnose clínica e experimental. Bol Clin Psiquiatr. 1970; 9(1):37-41. (p. 41).

A grande questão é notar que estas investigações são somente citadas, elas, de fato, não foram realizadas. O que havia era uma sequência de aulas e conferências ministradas por estes médicos a alunos mais jovens que, repetidamente, discursavam sobre a importância da hipnose.

Considerações finais

Somente em 1999, Negro Júnior, Palladino-Negro e Louzã 3636. Negro PJ Jr, Palladino-Negro P, Louzã MR. Dissociação e transtornos dissociativos: modelos teóricos. Rev Bras Psiquiatr. 1999; 21(4):23-34. (psiquiatria da FMUSP) publicam “Dissociação e transtornos dissociativos: modelos teóricos”, que pode ser considerado um estudo aprofundado sobre hipnose. Investigam-se modelos teóricos que poderiam elucidar as questões das dissociações psíquicas, categoria que inclui a hipnose. Conclui-se pela enorme dificuldade de se compreenderem tais fenômenos, pela inexistência de uma teoria que pudesse acoplar questões neurofisiológicas e psicodinâmicas. Nas 88 referências arroladas, encontramos 14 referências sobre hipnose, mas nenhuma produzida pelos psiquiatras da FMUSP entre 1930-70. Além disso, o estudo da hipnose levou à conclusão de que não haveria condições de explorá-la exclusivamente pela metodologia científica preconizada pela psiquiatria biológica, dada a peculiaridade de sua condição. Para tanto era mandatório recorrer à formulação de teorias que envolviam áreas da psicanálise, sociologia e epistemologia.

Em função desta extensa lacuna histórica, investigamos a hipnose no contexto da Clínica Psiquiátrica da FMUSP, o que nos revelou as ambiguidades de um campo em construção nas décadas de 1930-70. Como sublinha Farge 11. Ayres JRCM. Prefácio. In: Mota A, Marinho MGSMC, organizadores. História da psiquiatria: ciência, práticas e tecnologias de uma especialidade médica. São Paulo (USP/UFACB): Casa de Soluções; 2012. p. 7-8. , a distância entre falas e fatos revela o poder simbólico dos discursos 22. Farge A. Lugares para a história. São Paulo: Autêntica; 2011. , em flagrante descompasso com as práticas efetivas. O que se pretendeu foi situar a hipnose no rol das permanências e rupturas na história da psiquiatria da Clínica Psiquiátrica da FMUSP, mostrando que o mesmo argumento com que se preteriram determinadas práticas e teorias foi usado com dois pesos e duas medidas. “Ser científico” passou a ser um crivo na realidade da psiquiatria dos anos 1950-70. Mesmo conscientes da complexidade envolvida na adoção de tal paradigma no campo psi, dada a própria natureza do objeto de estudo, psiquiatras disseminaram discursos diferentes do que efetivamente realizaram 3434. Martins C, Bastos FO. Estado atual da psicoterapia no Brasil. Bol Clin Psiquiatr. 1963; 2(1):49-53. , tendo a hipnose como exemplo.

Se as mudanças que aproximavam a psiquiatria da medicina no momento de organização de outras especialidades médicas convocavam novas explicações para a prática psiquiátrica, donde decorre a necessidade de se questionarem práticas e teorias, a hipnose passou por esse processo imune às críticas e investigações. Isto difere de outras áreas do campo psi, como a psicanálise e as psicoterapias derivadas dela, rotuladas de "especulações" por estes mesmos discursos, sem que também fossem realizadas aprofundadas investigações científicas ou epistemológicas.

A partir dos anos 1960, a concorrência profissional, teórica e institucional no campo psi intensifica-se. Nessa direção, algumas instituições psiquiátricas organizaram estratégias conscientes ou inconscientes para sustentarem sua posição hierárquica nas dinâmicas do campo psi. A proximidade da psiquiatria com a psicanálise começava a ser desfeita, e a psiquiatria reivindicava o monopólio sobre o exercício das psicoterapias.

Adotando um discurso altamente calcado na chegada da ciência ao campo praticaram hipnose sem se importar com os pressupostos científicos que os guiavam. A hipnose fez parte da psicoterapia destes psiquiatras, que tiveram, em Pacheco e Silva, um de seus mais ilustres adeptos e, na Clínica Psiquiátrica da FMUSP, uma de suas mais importantes instituições. Defendeu-se o valor da hipnose, fosse qual fosse, desde que praticada por médicos: uma permanência histórica dos grupos que dirigiam as instituições acadêmicas e hospitalares e produziam discursos em torno do saber psiquiátrico e de sua prática.

Referências

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  • 29
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  • 30
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  • (c)
    Neste texto adotaremos o termo hipnose e hipnotismo com o mesmo significado, como diz Roudinesco (p. 335).
  • (d)
    Domingos José Nogueira Jaguaribe foi um médico paulista muito envolvido com hipnose. Em 1901, criou o Instituto Jaguaribe, onde hipnotizava pacientes alcoolistas Massimi, (p. 95-9).
  • (e)
    De fato, a hipnose ressurge nos anos 1950, impulsionada por médicos e dentistas. Em 1957, é criada a Sociedade Brasileira de Hipnose Médica, no Rio de Janeiro. Organizam-se congressos e publicam-se trabalhos sobre o tema Monteiro (p. 4).
  • (f)
    Psiquiatra da FMUSP.
  • (g)
    Médico defensor e praticante da hipnose.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2018
  • Aceito
    19 Jul 2018
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