Amor e violência em jogo: descortinando as relações afetivo-sexuais entre jovens à luz de gênero

Amor y violencia en juego: descortinar las relaciones afectivo-sexuales entre jóvenes a la luz del género (resumen: p. 16)

Rebeca Nunes Guedes de Oliveira Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca Sobre os autores

Resumos

Objetivou-se analisar, à luz da categoria gênero, as concepções de relacionamentos afetivo-sexuais entre jovens a partir da interação em um jogo on line que ambienta as temáticas sexo, sexualidade e violência. Trata-se de um estudo de caso, de abordagem qualitativa, que realizou a análise dos comentários discursivos, produzidas a partir da interação com o jogo Papo Reto. Constituíram sujeitos do estudo, estudantes de uma escola pública de São Paulo-SP. A análise fundamentou-se na categoria gênero e revelou que os relacionamentos entre jovens constituem parte de um contexto de relações influenciadas por modelos e normas de gênero que configuram iniquidades, determinantes tanto da violência quanto da sua invisibilidade enquanto problema. A ambivalência de significados que a violência assume nas relações de intimidade traduz-se em discursos de superação e, ao mesmo tempo, de reiteração de estereótipos e iniquidades de gênero.

Violência de gênero; Juventude; Comunicação em Saúde; Jogo


El objetivo fue analizar, a la luz de la categoría de género, las concepciones de relaciones afectivo-sexuales entre jóvenes a partir de la interacción en un juego on line que ambienta las temáticas sexo, sexualidad y violencia. Se trata de un estudio de caso, de abordaje cualitativo, que realizó el análisis de los comentarios discursivos producidos a partir de la interacción con el juego Papo Reto. Se constituyeron sujetos del estudio estudiantes de una escuela pública de la capital del Estado de São Paulo. El análisis tuvo fundamento en la categoría de género y reveló que las relaciones entre jóvenes constituyen parte de un contexto de relaciones que sufren la influencia de modelos y normas de género que configuran iniquidades, determinantes tanto de la violencia como de su invisibilidad como problema. La ambivalencia de significados que la violencia asume en las relaciones de intimidad se traduce en discursos de superación y, al mismo tiempo, de reiteración de estereotipos e iniquidades de género.

Violencia de género; Juventud; Comunicación en Salud; Juego


Introdução

As transformações da condição juvenil são marcadas pelo avanço das novas tecnologias da comunicação e informação (TIC). As TIC constituem pano de fundo para a produção de novos sentidos, subjetividades e maneiras de se relacionar e se posicionar no mundo. Os jovens são extensos usuários de dispositivos digitais, a ponto de serem designados como “nativos digitais”, cuja inserção no mundo é permeada pelas novas mídias, que impactam significativamente essa geração, no que concerne aos valores e normas sociais compartilhados 11. Giunti G , Baum A , Giunta D , Plazzotta F , Benitez S , Gómez A . Serious games: a concise overview on what they are and their potential applications to healthcare . Stud Health Technol Inform . 2015 ; 216 : 386 - 90 . .

No tocante às relações afetivo-sexuais, a vivência dos jovens convive com as transformações sociais da contemporaneidade e a manutenção de valores advindos do paradigma patriarcal, historicamente construídos, que perpassam todas as esferas da realidade. São exemplos desse paradigma: os estereótipos de gênero, cujas identidades binárias e hierarquizadas fundamentam a desigualdade entre homens e mulheres. Tais pressupostos cerceiam a formulação de políticas e práticas condizentes com as necessidades e motivações dessa geração, desconsiderando as multiplicidades de vivências e o protagonismo desse grupo social. Nesse sentido, há de se priorizar estratégias comunicacionais que possibilitem a mobilização livre e democrática de conhecimentos.

A violência constitui um fenômeno de elevada prevalência, e tem repercutido, sobremaneira, na qualidade de vida da população jovem. No Brasil, os jovens são as principais vítimas de homicídios por violência 22. Cerqueira D , Lima RS , Bueno S , Valencia LI , Hanashiro O , Machado PHG , et al . Atlas da violência 2017 . Brasília, DF : IPEA ; 2017 . . No tocante à violência de gênero, no âmbito global, 30% das meninas com idade entre 15 e 19 anos vivenciam violência em seus relacionamentos 33. World Health Organization . Preventing intimate partner and sexual violence against women: taking action and generating evidence . Geneva : WHO ; 2012 . . Estudo realizado em nove países, com 24.000 mulheres, sugere que a violência por parceiro íntimo acomete, em maior número, adolescentes e mulheres jovens, quando comparada às de idade adulta 33. World Health Organization . Preventing intimate partner and sexual violence against women: taking action and generating evidence . Geneva : WHO ; 2012 . . No Brasil, estudo realizado em dez centros urbanos revelou que 86,9% dos jovens pesquisados sofreram e 86,8% cometeram algum tipo de violência durante um relacionamento afetivo 44. Stöckl H , March L , Pallitto C , Garcia-Moreno C . Intimate partner violence among adolescents and young women: prevalence and associated factors in nine countries: a cross-sectional study . BMC Public Healt . 2014 ; 14 : 751 . .

A violência de gênero é produzida socialmente, e tem relação direta com o processo histórico e econômico de formação da sociedade e do Estado. Assim, as instituições sociais, pelas diferentes possibilidades de comunicação, veiculam e produzem ideologias que podem imprimir um sentido conservador ou transformador das concepções dominantes. A iniquidade de gênero tem comprometido a saúde de homens e mulheres ao se apresentar transversal a todos os aspectos da vida, legitimando a opressão que se manifesta nas diversas violências.

O advento da cultura digital, a exemplo dos espaços e tempos sociais da internet, assume importante significado na constituição dos sujeitos, uma vez que produz discursos e veicula símbolos engendrados nas tramas da linguagem e cultura 55. Lévi P . A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço . 4a ed. São Paulo : Loyola ; 2003 . . Desse modo, urge a necessidade de se compreenderem esses espaços sociais com os quais os jovens convivem e se relacionam, buscando novos usos para a promoção de espaços dialógicos disruptivos, que possibilitem condições reflexivas para o desenvolvimento da autonomia e da equidade nas relações de gênero.

Neste estudo, ressalta-se a análise da aplicação de um jogo on line como artefato mobilizador do debate e da reflexão acerca dos temas sexo, sexualidade e violência nos relacionamentos. Diante da necessidade de práticas inovadoras para abordagem generificada da saúde sexual e reprodutiva, o jogo Papo Reto foi desenvolvido como produto de pesquisa 33. World Health Organization . Preventing intimate partner and sexual violence against women: taking action and generating evidence . Geneva : WHO ; 2012 . com a finalidade de promover o protagonismo e autonomia de adolescentes nesse campo. Vislumbra a mobilização da reflexão crítica por meio de um ambiente lúdico e livre de respostas preconcebidas, priorizando temas cuja complexidade e estigma social dificultam a abordagem pelas instituições sociais tradicionais, a exemplo da família e da escola.

O presente estudo concebe o jogo como um espaço e tempo social por onde emergem e se cruzam vivências produtoras e informantes das relações afetivo-sexuais entre os jovens. Assim, este artigo tem como recorte os conteúdos produzidos na interação com o jogo e que evidenciam as concepções acerca das relações afetivo-sexuais. Objetiva-se analisar, a partir das narrativas de jovens produzidas no jogo Papo Reto, como se configura o discurso acerca dos relacionamentos afetivo-sexuais, à luz da categoria gênero.

Método

O estudo constitui parte dos resultados de estágio pós-doutoral. A pesquisa original envolveu o processo de validação, aplicação e avaliação do jogo Papo Reto 66. Souza V , Gazzinelli MF , Soares NA , Fernandes MM , Oliveira RN , Fonseca RMGS . O jogo como estratégia para abordagem da sexualidade com adolescentes: reflexões teórico-metodológicas . Rev Bras Enferm . 2018 ; 70 ( 2 ): 376 - 83 . , cujos sujeitos foram jovens, estudantes do Ensino Médio de São Paulo e Belo Horizonte. Aspectos relacionados à ludicidade e aos elementos formativos da aprendizagem em torno das temáticas sexo, sexualidade e violência constituíram objeto de estudos anteriores de aplicação do jogo Papo Reto 66. Souza V , Gazzinelli MF , Soares NA , Fernandes MM , Oliveira RN , Fonseca RMGS . O jogo como estratégia para abordagem da sexualidade com adolescentes: reflexões teórico-metodológicas . Rev Bras Enferm . 2018 ; 70 ( 2 ): 376 - 83 .

7. Fonseca RMGS , Santos DLA , Gessner R , Fornari LF , Oliveira RNG , Schoenmaker MC . Gênero, sexualidade e violência: percepção de adolescentes mobilizadas em um jogo online . Rev Bras Enferm . 2018 ; 71 Supl 1 : 607 - 14 .
-88. Oliveira RNG , Gessner R , Souza V , Fonseca RMGS . Limites e possibilidades de um jogo online para a construção de conhecimento de adolescentes sobre a sexualidade . Cienc Saude Colet . 2016 ; 21 ( 8 ): 2383 - 92 . , de modo que o presente estudo não contempla esse escopo.

Trata-se de um estudo de caso, de abordagem qualitativa, que realizou a análise das narrativas de jovens acerca das relações afetivo-sexuais mobilizadas no jogo Papo Reto, em São Paulo. O jogo ancora-se: na problematização da realidade, no protagonismo, na livre expressão e na interação, com vistas a motivar a (re)construção do conhecimento no campo da sexualidade 66. Souza V , Gazzinelli MF , Soares NA , Fernandes MM , Oliveira RN , Fonseca RMGS . O jogo como estratégia para abordagem da sexualidade com adolescentes: reflexões teórico-metodológicas . Rev Bras Enferm . 2018 ; 70 ( 2 ): 376 - 83 . . O quadro 1 apresenta uma descrição resumida.

Quadro 1
Descrição resumida das regras- jogo Papo Reto 66. Souza V , Gazzinelli MF , Soares NA , Fernandes MM , Oliveira RN , Fonseca RMGS . O jogo como estratégia para abordagem da sexualidade com adolescentes: reflexões teórico-metodológicas . Rev Bras Enferm . 2018 ; 70 ( 2 ): 376 - 83 .
Figura 1
Imagem da tela inicial (Jogo Papo Reto)
Figura 2
Imagem de tela com situação-problema (Jogo Papo Reto)

O caso estudado recorta um grupo de jovens, estudantes de uma escola pública de Ensino Médio de São Paulo/SP, com idade entre 14 e 18 anos, que vivenciaram a experiência com o jogo Papo Reto por um período de seis meses. O convite para os participantes foi feito pessoalmente a todos os estudantes nas ocasiões de contato com a escola. Participaram do estudo aqueles que demonstraram interesse e disponibilidade.

Foram cadastrados 67 jovens, entre os quais, 27 acessaram o jogo. Seis meses após o cadastro, os dados gerados pela interação com o jogo foram extraídos para fins de análise, constituindo o material empírico para apreensão das narrativas.

O corpus foi produzido a partir de dados compostos pelas respostas discursivas às situações-problema do jogo e pelos comentários dos adolescentes, frente às respostas dos pares. Os diálogos armazenados em conjunto, no jogo, pelos adolescentes foram submetidos à análise de conteúdo 99. Bardin L . Análise de conteúdo . São Paulo : Edições 70 ; 2011 . , fundamentada na categoria gênero. O estudo recebeu aprovação do Comitê de Ética da Escola de Enfermagem da USP (CAAE 01850612.0.0000.5149).

Na década de 1980, Joan Scott 1010. Scott J . Gênero: uma categoria útil para análise histórica . Recife : SOS corpo ; 1991 . definiu gênero como “elemento constitutivo de relações sociais, baseado nas diferenças percebidas entre os sexos”. A partir dos efeitos do gênero enquanto dispositivo social, os sujeitos, historicamente, são definidos com base em um sexo. Assim, o gênero constitui o campo primordial no qual as relações assimétricas de poder se articulam, fundamentadas em diferenças socialmente construídas, mas hegemonicamente concebidas como essenciais, naturais e inquestionáveis 1010. Scott J . Gênero: uma categoria útil para análise histórica . Recife : SOS corpo ; 1991 . .

Gênero não constitui um efeito do sexo, mas compreende o próprio sexo como categoria significada pelo aparato social do gênero, de modo que o sexo não teria uma suposta natureza essencial anterior ao gênero, mas seria, também, um dos efeitos de discurso e de práticas reguladoras de poder, que instauram as hierarquias de gênero no imaginário social em torno do corpo e do sexo 1111. Butler J . Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade . Rio de Janeiro : Editora Civilização Brasileira ; 2017 . . O quadro teórico-metodológico dos estudos de gênero possibilita uma análise dos fenômenos sociais como efeito de relações de poder historicamente engendradas, perspectiva que permite um questionamento, para fins de análise crítica, de discursos hegemonicamente compreendidos como verdades pre estabelecidas 1010. Scott J . Gênero: uma categoria útil para análise histórica . Recife : SOS corpo ; 1991 .,1212. Focault M . História da sexualidade 1. A vontade de saber . Rio de Janeiro : Graal ; 1993 . .

A concepção de juventude que norteia o presente estudo a compreende para além de concepções centradas nos aspectos cronológicos e biológicos. A escolha pelo termo “jovem”, visa superar a visão biologicista implícita na utilização histórica do termo adolescência. Nessa perspectiva, os sujeitos não possuem identidades fixas e impermeáveis, mas são atravessados por intersubjetividades engendradas em um contínuo e dialético processo de construção 1313. Silva C , Lopes R . Adolescência e juventude: entre conceitos e políticas públicas . Cad Ter Ocup UFSCar . 2009 ; 17 ( 2 ): 87 - 106 . .

É importante considerar os aspectos que se relacionam à sua inserção social e às relações de poder estabelecidas pelas iniquidades de gênero, que trazem à tona importantes polaridades hierarquizadas e que precisam ser problematizadas na apreensão crítica acerca dos fenômenos sociais. A geração define o lugar ocupado pelos jovens, de modo que tais sujeitos são parte da sociedade e do mundo, sendo necessário conectá-los a estruturas sociais maiores, que impactaram as suas relações, como as guerras, os movimentos sociais e o desenvolvimento das TIC, que facilitaram a circulação rápida das informações e balizaram novas configurações de relacionamento e inserção social 1414. Minayo MCS . Amor e violência: um paradoxo das relações de namoro e do “ficar” entre jovens brasileiros . Rio de Janeiro : Fiocruz ; 2011 .,1515. Egry EY , Fonseca RMGS , Oliveira MAC . Ciência, Saúde Coletiva e Enfermagem: destacando as categorias gênero e geração na episteme da práxis . Rev Bras Enferm . 2013 ; 66 Esp : 119 - 33 . .

Resultados e discussão

A dinâmica do jogo Papo Reto tem como cerne o posicionamento dos jogadores em torno de histórias apresentadas em formato de situações-problema ( figura 2 ). Essas situações propõem desafios que envolvem, desde a construção de desfechos, até a emissão de opinião. O jogo Papo Reto propõe a interação entre jovens para a reconstrução ou ressignificação das narrativas. A narrativa, que pode ser pensada como o lugar onde as mediações ocorrem, inscreve uma dimensão temporal que é da ordem do humano. Assim, “o ato de narrar, através dos meios, pode revelar legitimações, valores, representações e faltas, dados preponderantes para o processo de compreensão e leitura do mundo”. As categorias empíricas, apresentadas a seguir, sintetizam o discurso revelado nas narrativas, que informam concepções acerca das suas relações afetivo-sexuais 1616. Resende F . O jornalismo e suas narrativas: as brechas do discurso e as possibilidades do encontro . Galaxia . 2009 ; ( 18 ): 31 - 43 . .

A normatização de estereótipos como efeito discursivo do gênero nas concepções dos adolescentes

A análise das narrativas mobilizadas pela interação dos adolescentes durante o jogo, à luz da categoria gênero, revelou discursos relacionados à reprodução de normas sociais e estereótipos de gênero nos relacionamentos afetivo-sexuais. Esses padrões influenciam a compreensão acerca de diferentes papéis assumidos, tendo modelos polarizados associados às identidades feminina e masculina como referências que se reproduzem nas suas relações.

Para a menina (a primeira transa) é mais fácil porque normalmente é o menino que conduz e que tem boa parte da responsabilidade para a transa dar certo. (F)

Aconselharia ele a buscar conversar sobre isso (orientação sexual homoafetiva) com a sua mãe, pois a mãe é sempre mais compreensiva. (F)

O paradigma da ciência moderna instaurou concepções fundadas na dicotomia entre natureza e cultura. O patriarcado consolidou, historicamente, a associação do feminino com a natureza e do masculino com a cultura, alicerçando a oposição binária e hierárquica entre os sexos. Assim, os valores e características relacionados à natureza e ao feminino, a exemplo da emoção, da intuição e do corpo, precisariam ser controlados, dominados pela ação da cultura masculina. Esse discurso é reproduzido pelos sujeitos do estudo, instaurando padrões de comportamento compreendidos como inerentes a uma suposta natureza essencial dos sexos. O discurso da hierarquia de gênero é reproduzido, também, na concepção acerca da relação sexual, cuja condução seria, supostamente, domínio do masculino.

Na perspectiva dos estudos feministas, a neutralidade do corpo é questionada, criticada, uma vez que ele é eminentemente político. O gênero, enquanto dispositivo ideológico, produz estereótipos e padrões culturalmente inteligíveis de identidades reconhecíveis como normais, portanto, desejáveis. A vigilância dos corpos pela estrutura político-ideológica, que se traduz nas diversas instituições sociais (como escola, família, igreja e ciência médica), estabelece padrões sociais de vivência da sexualidade e normatiza a maneira de ser e agir no espaço público. Desse modo, a performatividade do gênero é continuamente reiterada, materializando aquilo que ela mesma nomeia 1111. Butler J . Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade . Rio de Janeiro : Editora Civilização Brasileira ; 2017 . .

Foi evidenciado o discurso que remete à rejeição de papéis de gênero que fogem aos modelos binários socialmente desejáveis. Os padrões que instauram um sistema de continuidade, culturalmente desejável, entre corpo, sexo, gênero, desejo e prática sexual, se estabelecem no registro de uma heterossexualidade compulsória 1111. Butler J . Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade . Rio de Janeiro : Editora Civilização Brasileira ; 2017 . . As identidades que fogem a essa “coerência” acabam por não serem socialmente reconhecidas como compreensíveis, incorrendo no risco de serem interpretadas enquanto anormais ou imorais e, supostamente, deveriam ser corrigidas, tratadas como patologia ou mesmo ocultadas, em “respeito à sociedade”, conforme referido nos depoimentos.

Isso é uma aberração, coisa de gente doente. (M - refere-se a situação em que um menino deseja usar roupas femininas)

Ele deve parar de gostar de garotos e gostar de garotas. (M)

Sou contra o preconceito, mas acho que homossexuais devem respeitar a sociedade também. (F)

A homofobia é a expressão do medo em relação à perda do modelo hegemônico de gênero, ou seja, da identificação com os modelos socialmente valorizados de homem e de mulher. Relaciona-se à ideia de abjeção 1111. Butler J . Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade . Rio de Janeiro : Editora Civilização Brasileira ; 2017 . , na qual as identidades não condizentes com a heteronormatividade são colocadas à margem da sociedade, subsumidas do direito à cidadania e aos espaços democráticos e participativos de construção de políticas públicas para a garantia de uma vida justa e digna, nas diversas esferas sociais. Estudo que analisa a construção da masculinidade hegemônica 1717. Welzer-Lang D . A construção do masculino: a construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia . Rev Estud Fem . 2001 ; 9 ( 2 ): 460 - 82 . define homofobia como:

Uma forma de controle social que se exerce entre os homens, desde os primeiros passos da educação masculina[...] Homofobia e dominação das mulheres são as duas faces de uma mesma moeda. Homofobia e viriarcado constroem entre as mulheres e entre os homens as relações hierarquizadas de gênero. A homofobia é o produto, no grupo dos homens, do paradigma naturalista da superioridade masculina que deve se exprimir na virilidade. (p. 118)

Assim, identidades sexual e de gênero se relacionam em um processo social de regulação da sexualidade pela censura do gênero. Diferente de identidade sexual (relacionada à prática sexual, desejo e prazer), porém não independente, a identidade de gênero diz respeito à identificação dos sujeitos social e historicamente com aquilo que se compreende socialmente como masculino e feminino, nas diferentes sociedades e contextos históricos 1818. Louro GL . Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista . São Paulo : Vozes ; 2014 . . Tanto dinâmica do gênero, quanto do sexo, as identidades são múltiplas, estão em um processo de construção e nunca estarão completamente finalizadas, uma vez que somos seres históricos, em constante transformação 1111. Butler J . Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade . Rio de Janeiro : Editora Civilização Brasileira ; 2017 . .

As narrativas e os discursos não apenas enunciam os fenômenos, mas os instituem, determinando também identidades subjetivas engendradas no campo dos signos e normas sociais 55. Lévi P . A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço . 4a ed. São Paulo : Loyola ; 2003 . , relacionados à estrutura político-ideológica dominante 1010. Scott J . Gênero: uma categoria útil para análise histórica . Recife : SOS corpo ; 1991 . . Essas ordens discursivas instituem, inclusive, o que deve ser dito e silenciado. No que se refere aos discursos dos jovens, a heterossexualidade compulsória 1111. Butler J . Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade . Rio de Janeiro : Editora Civilização Brasileira ; 2017 . aparece como tema importante, evidenciando uma representação anômala das identidades sexuais que fogem a essa lógica. Embora, na contemporaneidade, o discurso veiculado nas diversas mídias evidenciem múltiplas formas de vivência da sexualidade, a ambivalência de significados é revelada em narrativas que enunciam e reiteram os binarismos antagônicos dos padrões hegemônicos 1818. Louro GL . Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista . São Paulo : Vozes ; 2014 . .

Na dinâmica do jogo, espera-se que as respostas sejam comentadas e avaliadas pelos pares. Foram avaliadas positivamente, predominantemente, aquelas que remetem ao discurso da equidade de gênero. Os depoimentos que seguem, referem-se a comentários sobre a opinião de que a liberdade sexual deveria ser orientada de maneira diferente para meninos e meninas. Tais relatos revelam divergência temática em relação ao discurso de reprodução dos estereótipos de gênero, anteriormente discutidos.

Você está sendo machista, pois com o menino o pai não só autoriza o namoro no quarto, como estimula que faça sexo e para a menina impõe várias condições. (F)

A atitude do pai deveria ser igual para os dois. Existem meninos sensíveis, portanto, mais vulneráveis também. (M)

O gênero é compreendido enquanto dispositivo que resulta de um processo de repetição de um conjunto de normas. Contudo, ao mesmo tempo que a linguagem atua na manutenção desse discurso, apresenta um potencial desestabilizador 88. Oliveira RNG , Gessner R , Souza V , Fonseca RMGS . Limites e possibilidades de um jogo online para a construção de conhecimento de adolescentes sobre a sexualidade . Cienc Saude Colet . 2016 ; 21 ( 8 ): 2383 - 92 . . As redes sociais digitais configuram espaços de mediação da reiteração, assim como de questionamento de símbolos, valores e normas produzidos pelo gênero. O cyberespaço tem proporcionado o engajamento de atores não políticos em questões que representam dificuldades vivenciadas. Ao mesmo tempo, esse mundo virtual constitui pano de fundo para as diversas violências de gênero expressas on line . A ambivalência de sentidos que as normas e estereótipos de gênero assumem no discurso dos jovens traduz um processo contraditório e dialético, inerente às transformações sociais 1111. Butler J . Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade . Rio de Janeiro : Editora Civilização Brasileira ; 2017 .,1212. Focault M . História da sexualidade 1. A vontade de saber . Rio de Janeiro : Graal ; 1993 . .

Estudo que avaliou o Papo Reto a partir de oficinas de trabalho realizadas após a experiência com o jogo, apontou para a interação entre os pares como recurso capaz de mobilizar emoções, reflexões e (re)construção de conhecimentos. No ambiente livre e descontraído dos jogos, esse processo se dá de uma forma mais livre que as abordagens fundamentadas em concepções preestabelecidas. A motivação para o diálogo e a reflexão foi evidenciada, nas entrelinhas dos relatos dos adolescentes, acerca da experiência com o jogo 77. Fonseca RMGS , Santos DLA , Gessner R , Fornari LF , Oliveira RNG , Schoenmaker MC . Gênero, sexualidade e violência: percepção de adolescentes mobilizadas em um jogo online . Rev Bras Enferm . 2018 ; 71 Supl 1 : 607 - 14 . .

Neste estudo, a necessidade de discussão acerca dos papéis e normas de gênero ganha sentido, tendo em vista que os discursos reproduzem estereótipos que reiteram categorias hierárquicas para homens e mulheres. As manifestações compreendidas como naturais nas relações entre jovens – entre elas a violência de gênero – resultam de posturas acríticas frente à realidade. Assim, qualquer estratégia que se proponha a lidar com a violência entre parceiros íntimos deve considerar a importância de abranger, também, a violência simbólica 1919. Bourdieu P . A dominação masculina . 3a ed. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil ; 2015 . , cujo enfrentamento deve partir do estranhamento das marcas identitárias e performáticas de gênero 88. Oliveira RNG , Gessner R , Souza V , Fonseca RMGS . Limites e possibilidades de um jogo online para a construção de conhecimento de adolescentes sobre a sexualidade . Cienc Saude Colet . 2016 ; 21 ( 8 ): 2383 - 92 . , por meio da sua desnaturalização.

Violência de gênero como balizadora dos relacionamentos entre jovens: da vivência à banalização

As mudanças que as novas mídias representam na vida dos jovens têm sido objeto de estudos 2020. Livingstone S . Internet literacy: a negociação dos jovens com as novas oportunidades on-line . MATRIZes . 2011 ; 4 ( 2 ): 11 - 42 .,2121. Gobbi MC . Nativos digitais: autores na sociedade tecnológica . São Paulo : Ed. Cultura Acadêmica ; 2010 . . A internet constitui um campo que revela e, ao mesmo tempo, instaura sentidos que influenciam formas de ser e de se relacionar, configurando símbolos, valores e normas sociais da contemporaneidade, com profundos significados no campo das relações afetivo-sexuais 2222. Unger LGS , Santos C . Curti, comentei, compartilhei: modos de subjetivação e relações de gênero em uma rede social digital . Rev Forum Identidades . 2017 ; 23 : 51 - 67 . . Pensar no potencial disruptivo do jogo, significa também assumir uma perspectiva de análise crítica dos próprios discursos mobilizados pelo jogo, permeados por ambivalências, contradições e estereótipos socialmente cristalizados, que reiteram e reproduzem iniquidades e violência nos relacionamentos.

As narrativas produzidas no jogo evidenciam a importância da liberdade e da autonomia feminina, conforme exemplificam os depoimentos abaixo, que criticam a vigilância social ao corpo feminino, assim como a sua reificação e sujeição ao masculino.

A saia curta dela incomoda tanto assim? Será que é por que ela tem liberdade sobre o próprio corpo? Ou será que é por que você é animalesco e não consegue segurar seus instintos? Não é só porque ela está de roupa curta que está à sua disposição. (F)

Calma! Procure conversar, entender o lado dela. Ela não é seu cachorrinho nem seu objeto. (F)

Embora essa geração apresente, até certo ponto, um discurso subversivo, com expressão de maior liberdade, no campo da sexualidade, ainda reproduz os padrões de comportamento sexistas. Este é um aspecto esperado, uma vez que, nas transformações históricas, convivem, dialeticamente, o progresso e o retrocesso 77. Fonseca RMGS , Santos DLA , Gessner R , Fornari LF , Oliveira RNG , Schoenmaker MC . Gênero, sexualidade e violência: percepção de adolescentes mobilizadas em um jogo online . Rev Bras Enferm . 2018 ; 71 Supl 1 : 607 - 14 .,1414. Minayo MCS . Amor e violência: um paradoxo das relações de namoro e do “ficar” entre jovens brasileiros . Rio de Janeiro : Fiocruz ; 2011 . . Nos depoimentos que seguem, as meninas utilizaram o ambiente de interação do jogo para expressar vivências pessoais de violência nos relacionamentos. Tais achados, além de evidenciarem o jogo como canal de comunicação em que as jogadoras identificaram abertura para compartilhar experiências, indicam que as concepções sobre a autonomia feminina, expressas em outras situações, nem sempre se traduzem na vivência concreta de relações igualitárias.

Gostaria que meu namorado me ouvisse mais quando digo que não quero mais daquela forma, para poder tentarmos, de outras formas, nos conhecermos com relação aos prazeres. (F)

Me incomoda os ciúmes e a maneira grosseira como ele me trata. (F)

Fica rindo de mim com a amiguinhas dele, é grosso às vezes. (F)

Que ele pensa estar sempre certo, não ouve a minha opinião, pois acha que a dele está sempre certa e é única. (F)

Se fazer de indiferente comigo na frente dos outros. (F)

Ele se fecha completamente, foge das conversas, se vitimiza ou me culpa demais. (F)

A despeito da expressão de vivências pessoais de violência psicológica pelas jogadoras, o corpus de análise não permite evidenciar se elas reconhecem essas situações como tal. Entretanto, o compartilhar dessas vivências indica o seu reconhecimento enquanto um problema, algo que incomoda e gera sofrimento. É evidente a violência psicológica como a forma de manifestação predominante nesses diálogos que denunciam relacionamentos abusivos. Todavia, essas expressões não foram comentadas e nem avaliadas pelos pares. A situação que motivou o primeiro depoimento desencadeou o de muitas outras meninas, que compartilharam vivências semelhantes. Esse aspecto evidencia a necessidade dos sujeitos de compartilharem experiências, abrindo canais de comunicação para a visibilidade do problema.

As relações desiguais de poder encontram-se na gênese da violência quando perpetrada no âmbito das relações interpessoais. Os significados que conformam a imagem social do feminino estão arraigados nessas relações, determinando subalternidade e dominação. Quando praticada entre parceiros íntimos, a violência acaba por ser parte do cotidiano, compreendida como essencial e inerente a essas relações. Tal compreensão assume um significado contraditório, uma vez que é um tipo de violência materializada em relações fundadas no afeto.

A violência entre parceiros íntimos assume diversos significados para os jovens, incluindo a ambivalência de sentidos que lhe é inerente. Assim, urge a necessidade de se tomar a problemática como foco de estudos nas diversas áreas das ciências humanas, sociais e da saúde coletiva. Estudo indicou que, no que concerne à agressão física, as meninas são mais vitimadas 1414. Minayo MCS . Amor e violência: um paradoxo das relações de namoro e do “ficar” entre jovens brasileiros . Rio de Janeiro : Fiocruz ; 2011 . , embora, também agridam física e psicologicamente. Ademais, os adolescentes, muitas vezes, têm dificuldades de perceber essas agressões como algo prejudicial ao relacionamento e, não raro, tendem a associar comportamentos controladores e ciumentos como sinal de amor 2323. Oliveira QBM , Assis SG , Njaine K , Pires TO . Violência física perpetrada por ciúmes no namoro de adolescentes: um recorte de gênero em dez capitais brasileiras . Psic Teor Pesq . 2016 ; 32 ( 3 ): 1 - 12 .,2424. Cecchetto F , Oliveira QBM , Njaine K , Minayo MCS . Violências percebidas por homens adolescentes na interação afetivo-sexual em dez cidades brasileiras . Interface (Botucatu) . 2016 ; 20 ( 59 ): 853 - 64 . .

A interação dos jovens com o jogo revelou respostas que remetem a comportamentos violentos. Essas respostas, assim como as situações do jogo que abordavam situações de violência, muitas vezes, não foram problematizadas nem questionadas pelos pares, mas compreendidas como situações corriqueiras ou aceitáveis. Este achado é observado no relato a seguir, de uma menina, sobre uma situação do jogo sobre violência sexual, em que o parceira toca os seus seios, contra a sua vontade.

Se eu não estivesse gostado, iria tirar [a mão dele]. Mas acho que não tem o porquê, afinal, estou namorando com ele. (F)

Quando não reconhecida, a violência reflete um processo mais amplo de produção e reprodução de violências simbólicas, naturalizadas por um longo processo histórico de inculcação cultural. Trata-se, portanto, de mecanismos sutis de dominação e de exclusão social utilizados por indivíduos, grupos ou instituições 1919. Bourdieu P . A dominação masculina . 3a ed. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil ; 2015 . . Nessa linha de concepção acerca da violência, alguns depoimentos revelam a culpabilização das meninas pela violência vivenciada. Assim, o comportamento feminino é que determinaria a violência contra as mulheres, sendo identificadas como desencadeadoras dessas situações:

Ela é safada por estar brincando disso com o namorado. Ela devia ter a consciência que o namorado dele iria fazer isso. Menina burra! [comentário sobre situação do jogo em que o namorado divulga vídeos e fotos íntimas do casal sem roupas nas redes sociais] (F)

Seria viável ela se proteger usando as roupas mais curtas em ambientes mais seguros, como nos familiares. [situação que discute o estupro e o uso de roupas curtas pelas mulheres] (M)

Os depoimentos destacam a culpabilização feminina pela violência de gênero manifesta nas relações on line . Tais discursos, engendrados socialmente pelo símbolo da mulher profana, foram sendo historicamente introjetados, inclusive pelas mulheres. O discurso da cultura do estupro também é evidenciado enquanto violência que opera sutilmente por vias puramente simbólicas da linguagem e da comunicação que justificam o estupro 1919. Bourdieu P . A dominação masculina . 3a ed. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil ; 2015 . .

A lógica da relação de dominação masculina chega a impor e inculcar, nos homens e nas próprias mulheres, todas as propriedades negativas atribuídas ao valores femininos. Essa visão de mundo é continuamente confirmada e legitimada pelas próprias práticas que determina, fazendo com que toda a sociedade a incorpore. Sendo assim, a dominação masculina tem todas as condições favoráveis para seu pleno exercício, uma vez que sua primazia se afirma e é incorporada por toda a estrutura social, como resultado de mecanismos ideológicos que ocultam ou dissimulam a realidade 1919. Bourdieu P . A dominação masculina . 3a ed. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil ; 2015 . .

Neste estudo, os discursos evidenciam uma banalização e naturalização em relação a determinados atos de agressão, que não são compreendidos como violência pelos sujeitos – aspecto que invisibiliza o fenômeno enquanto um problema para esse grupo social. Os relacionamentos entre adolescentes constituem parte de um contexto de relações influenciadas por modelos e normas de gênero, que configuram iniquidades, determinantes da violência e de sua invisibilidade. A violência psicológica, sexual e a violência no ciberespaço aparecem no discurso como situações corriqueiras, banalizadas e justificadas a partir da culpabilização feminina.

A imagem social em torno das relações afetivas remete concepções idealistas de relacionamento. Os depoimentos, sobretudo das meninas, apontam para um discurso que tem relação com o ideário socialmente construído a partir do símbolo do amor romântico. A partir desse imaginário, as relações são concebidas como monogâmicas e isentas de conflitos. É importante ressaltar que a idealização das relações cerceia o desenvolvimento de atitudes assertivas para resolução de conflitos.

A partir do momento que ela se interessa por outras pessoas existe algo errado. Quando você está namorando, teoricamente, você só tem olhos para o companheiro. (F)

Respeitar o namorado dela, quem ama não trai. (F)

Morreria de muita tristeza. Você faz de tudo e ela te trai? (M)

Os achados revelam a reprodução de padrões de relacionamentos idealizados, que trazem a ideia de fidelidade como central nas concepções acerca das relações afetivo-sexuais. Os depoimentos também revelaram os ciúmes e a infidelidade como disparadores de situações de violência física. É importante ressaltar a importância da influência da mídia na produção dos valores socializados entre essa geração, e quanto a representação das relações afetivo-sexuais e da violência nessas relações é veiculada, problematizada ou naturalizada pelos jovens.

Daria um soco na cara dele kkkkkk. [situação que simula uma traição] (F)

Daria uma voadora nele e faria um barraco. [situação que remete aos ciúmes] (M)

Estudo brasileiro, que analisou o papel dos ciúmes nos relacionamentos entre jovens, aponta para achados convergentes. Os entrevistados apresentaram significativa concordância com a ideia de que a infidelidade ou os ciúmes justificariam a ocorrência de agressões em um relacionamento. Além de ser valorizado como manifestação de cuidado e prova de amor, o ciúme constitui importante mobilizador de conflitos e violência nas relações afetivo-sexuais entre jovens 2121. Gobbi MC . Nativos digitais: autores na sociedade tecnológica . São Paulo : Ed. Cultura Acadêmica ; 2010 .

22. Unger LGS , Santos C . Curti, comentei, compartilhei: modos de subjetivação e relações de gênero em uma rede social digital . Rev Forum Identidades . 2017 ; 23 : 51 - 67 .
-2323. Oliveira QBM , Assis SG , Njaine K , Pires TO . Violência física perpetrada por ciúmes no namoro de adolescentes: um recorte de gênero em dez capitais brasileiras . Psic Teor Pesq . 2016 ; 32 ( 3 ): 1 - 12 . . Estudos 2525. Gessner R , Fonseca RMGS , Oliveira RNG . Violência contra adolescentes: uma análise à luz das categorias gênero e geração . Rev Esc Enferm . 2014 ; 48 Esp : 102 - 8 .,2626. Brancaglioni BCA , Fonseca RMGS . Intimate partner violence in adolescence: an analysis of gender and generation . Rev Bras Enferm . 2016 ; 69 ( 5 ): 890 - 905 . realizados com adolescentes em Curitiba (Brasil) revelaram que muitos sofrem e perpetram violência, mas não a reconhecem como tal, compreendendo as agressões como atos naturais, corriqueiros e inerentes às supostas naturezas essenciais feminina e masculina.

A punição pela infidelidade constitui uma realidade historicamente constituída por símbolos e normas culturais fundamentadas no patriarcado, que autoriza a violência como uma forma de punição da infidelidade feminina. Neste estudo, a violência física disparada pela infidelidade aparece cristalizada, e não problematizada. Esse aspecto reitera um discurso de primazia da dominação masculina inscrita e reproduzida e no imaginário de meninos e meninas, ambos produtos de uma mesma estrutura social androcêntrica 1919. Bourdieu P . A dominação masculina . 3a ed. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil ; 2015 . .

Os depoimentos a seguir fazem referência a padrões de relacionamento característicos dessa geração, em que o acordo entre os pares é que determina as diferenças de compromisso entre o “namoro” e o “ficar”. Mesmo no namoro, os adolescentes expressaram múltiplas possibilidades de relacionamentos, a depender de acordo prévio. Assim, essa categoria revela a fidelidade como uma importante questão, conforme representado a seguir.

Colocaria a mão na consciência e lembraria que também já traí. Mas conversaria e faria um acordo para que nunca mais aconteça. (F)

Entraria em um acordo de um amor livre. Mas acho que devem conversar. (F)

Vocês colocam como se, quando você estiver namorando, a pessoa tem poder em relação ao corpo do outro, como se fossem donos. Não é assim! (F)

É importante ressaltar que, a despeito das ambivalências e complexidades reveladas, algumas manifestações críticas sinalizam potencialidade de (re)significação das concepções acerca de relações afetivo-sexuais. Concepções assertivas de resolução de conflitos que apontam para a crítica dos padrões idealizados são expressas, sobretudo, pelas meninas.

Entre as respostas avaliadas negativamente pelos pares, sinalizadas como “não curtidas”, predominaram aquelas com conteúdo violento ou que reiteram as desigualdades de gênero. Essas respostas, algumas vezes, foram comentadas com um discurso de recusa e avaliação negativa pelos pares. Em algumas situações, tais manifestações foram respondidas com comentários que expressam mudança de opinião ou pedido de desculpas. A seguir, estão exemplificados alguns desses diálogos gerados pelo jogo.

Situação A

[Menino]: Larga de ser piranha.

[Menina Comenta]: Eu acho que você deveria ser expulso do jogo só porque eu te odeio.

Situação B

[Menino]: Sei lá, faz o que achar melhor, se você quer transar que transe.

[Menina comenta]: Meio grosso da sua parte!

[Menino responde ao comentário]: Desculpe a grosseria que cometi.

Situação C

[Comentário sobre resposta de um jogador à situação de múltipla escolha em que a menina não deseja uma relação sexual naquele momento. O jogador escolheu a alternativa em que, supostamente, a menina deveria masturbar o namorado]

[Menina]: Imagina como deve ser chato para a garota masturbar o namorado sem vontade alguma. Se ela não está com vontade vai fazer algo por obrigação? É chato para os dois. Masturbação não deixa de ser uma forma de sexo e não querer é uma opção dela.

Os achados revelam a potencialidade dos jogos na construção de relações dialógicas. Tais relações podem constituir um solo fértil para a subversão de concepções hegemônicas de gênero nas relações afetivo-sexuais. As narrativas revelam aspectos importantes das suas vivências que foram mobilizados pelo processo de interação com o jogo. Os achados revelam potencialidades reflexivas advindas dessa interação, mas, também, a necessidade de intervenções que extrapolam os objetivos iniciais do jogo: a problematização da violência entre parceiros íntimos e a iniquidade de gênero nessas relações.

Nesse contexto, é importante o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento da violência entre jovens, sobretudo no contexto latino-americano, dada a escassez de estudos e estratégias sobre o tema. Nesse sentido, a perspectiva de gênero, assim como a abordagem lúdica, despontam como possibilidades inovadoras para promoção da reflexão crítica dos sujeitos para reconstruírem relações, interpretações e posicionamentos acerca da realidade.

Embora a inovação tenha se tornado muito evidente na referência às novas mídias e interfaces tecnológicas, ela também está presente no impacto social dessas tecnologias e na nova configuração dos sujeitos que produzem e recebem as informações. Os significados compartilhados pelos jovens nas redes sociais digitais, reproduzidas no jogo Papo Reto, engendram a produção de sentidos e subjetividades que alicerçam as representações em torno do corpo, dos relacionamentos e das identidades sociais e subjetivas. Assim, pensar no seu potencial para a problematização dos processos discursivos fomenta desafios para a (re) construção de estereótipos, normas e práticas cristalizadas de desigualdades.

Estudo anterior revelou a (re)significação de saberes, promovida pelo protagonismo, irreverência e liberdade do lúdico. Em uma lógica que, “desprovida de interesses educacionais, educa à medida que transforma pela experiência” 88. Oliveira RNG , Gessner R , Souza V , Fonseca RMGS . Limites e possibilidades de um jogo online para a construção de conhecimento de adolescentes sobre a sexualidade . Cienc Saude Colet . 2016 ; 21 ( 8 ): 2383 - 92 . (p. 2389). O jogo favoreceu uma imersão simbólica que promoveu a projeção do jogador na sua própria história. A tensão compartilhada, a interação, o anonimato, a representação simbólica e a progressão de dificuldades foram aspectos inerentes à ludicidade, reconhecidos pelos jogadores como potencialidade subversiva do jogo Papo Reto para discutir com os pares, de forma lúdica, temas socialmente velados 88. Oliveira RNG , Gessner R , Souza V , Fonseca RMGS . Limites e possibilidades de um jogo online para a construção de conhecimento de adolescentes sobre a sexualidade . Cienc Saude Colet . 2016 ; 21 ( 8 ): 2383 - 92 . .

Considerações finais

Descortinar o discurso que se revela nas entrelinhas do jogo Papo Reto desponta necessidades sociais concretas relativas a uma melhor compreensão acerca das relações afetivo-sexuais entre jovens, assim como ao desenvolvimento de estratégias inovadoras de enfrentamento da violência nesse contexto, fenômeno ainda pouco investigado no cenário nacional.

Embora o presente estudo não esgote as possibilidades analíticas que os achados permitem, as categorias empíricas desveladas pelo olhar de gênero revelam as relações afetivo-sexuais enquanto um fenômeno contraditório, permeado por concepções que tanto superam como reiteram a violência e a desigualdade de gênero. Ao mobilizar a expressão desses discursos, o jogo desponta como artefato cuja mediação de linguagem e experiências se revela como possibilidade dialógica para construção de sentidos e de novos modos de subjetivação acerca das relações afetivo-sexuais. Os resultados também evidenciam necessidades sociais concretas, relativas à problematização das concepções que envolvem a construção de gênero, fundamentada em hierarquias binárias e que alicerçam a violência.

Contudo, nessa fase do estudo, o debate acerca da violência se expressa muito timidamente nas ocasiões em que a temática foi mobilizada, seja nas respostas dos jogadores, seja nas situações-problema apresentadas no jogo. A reconstrução dessas concepções requer a busca de um caminho processual e dialético para desenvolvimento de um agir comunicativo, pautado na promoção da equidade de gênero. Assim, é necessário que estratégias disruptivas possibilitem o debate, a reflexão e a disseminação da informação acerca dessa problem

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP, pela concessão de bolsa de pós-doutorado (Processo 2013/06796-1)~.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2018
  • Aceito
    06 Ago 2018
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br