Em meio às transformações e às instabilidades que marcaram as eleições de 2018, com a prisão de Lula, aconteceram milagres judiciais, como a leitura e apreciação de processos em tempo recorde, com juízes trabalhando nos fins de semana, feriados ou férias. Esse clima de insegurança acabou eliminando os favoritos e vários candidatos se apresentaram como possibilidade de mudança nessa disputa. Porém, o episódio da facada, que Adélio protagonizou em Juiz de Fora, juntamente com o esquema de informações falsas via Facebook, WhatsApp e Twitter, contribuiu para aumentar a votação de Jair Bolsonaro por todo o país. Todos esses acontecimentos, com suas doses de planejamento e de acaso, estão conectados com outras questões regionais, nacionais e internacionais, que ajudam a impulsionar esse clima de ascensão da extrema direita.
Foi nesse contexto que Bolsonaro conseguiu vencer o segundo turno sem participar de um debate. Os empresários investiram pesado nas redes sociais, nos canais de rádio e televisão e nas suas empresas.
Essa campanha mobilizou os movimentos sociais de direita, os grupos religiosos, os empresários e os grandes latifundiários. A extrema direita ocupou as ruas, espalhando ideias apaixonadas, suas verdades e pós-verdades ou suas mentiras e pós-mentiras. Os discursos de ódio passaram a ser ostentados à luz do dia, as ações criminosas se tornaram banais e os assassinos do passado e do presente ganharam muitos defensores públicos, prontos para destruir os inimigos, como verificamos no período de campanha eleitoral: travesti assassinada por homens gritando o nome de Bolsonaro; algumas torcidas de futebol gritando “Bolsonaro vai matar viado”, entre outras formas de violência.
Essas atitudes revelam a expectativa de colocar em prática um desejo velado de destruição da população de lésbicas; gays; bissexuais; transexuais e transgêneros; e intersexuais (LGBTI+). Sem nenhum pudor, eles e elas se sentem no direito de agredir e até matar pessoas pelo simples fato de não estarem de acordo com as normas heterossexuais.
Esses pensamentos e ações do presente, que disputam o futuro, dialogam com outras temporalidades, criando uma novidade que nunca é completamente nova, nem totalmente velha. Esses pensamentos e essas ações estavam escondidos, presos dentro de um enquadramento nomeado de “politicamente correto”. Ao longo dos séculos, por motivos variados, foi surgindo uma gama de direitos, uma rede de proteção social que inclui leis locais, nacionais e internacionais, além de uma série de políticas públicas. Por mais que esse entendimento do que significa ser humano e ter direitos nunca tenha sido totalmente respeitado, transformando-se em espaço de disputa e de produção de desigualdades, não podemos negar que se produziu pelo menos um esboço de projeto civilizacional.
Foi por causa desses ideais, por mais contraditórios que muitas vezes são, que parte dessas pessoas se esconderam, camuflaram-se, evitando expressar publicamente as suas fantasias de superioridade, a sua dose de xenofobia, de machismo, de racismo, de sexismo ou de LGBTfobia. O que vimos nessa última eleição foi a ostentação desse movimento, as pessoas perderam a vergonha de dizer o que antes parecia ser indizível e passaram a fazer questão de dizer o que antes tinham vontade, mas ficava preso na garganta. A face escrota da banalidade do mal ganhou corpo e se fez carne, atuando por meio de performances discursivas e corporais.
O projeto de rebanho da Havan dialoga com o projeto de rebanho das igrejas; a economia neoliberal se encontra com a sociedade conservadora; e o projeto de flexibilização do capital, da economia, da legislação, das políticas públicas e de fluidez do Estado se encontra com territórios existenciais duros e fechados, que odeiam a flexibilização dos costumes. Foi por meio dessa aliança que esses grupos inventaram a ideia de um salvador da pátria que continua sendo patriota mesmo querendo vender o país, de um militar que continua sendo nacionalista mesmo depois de bater continência para a bandeira dos EUA, de um cristão que permanece cristão mesmo depois de defender a tortura e a morte.
Na nossa versão do neoliberalismo, as elites locais assumem a liderança e definem suas prioridades usando recursos estatais, como demonstraram Richard e Pereira1. O presidente e o vice-presidente estão diretamente ligados aos militares e defendem abertamente os regimes ditatoriais do passado e as intervenções militares do presente. O nosso neoliberalismo é militar e se diz patriota, produzindo um conservadorismo religioso que prima pelo empreendedorismo da fé. Não é por acaso que Jair Bolsonaro nomeou 22 ministros que estão alinhados a esses grupos, o antigo loteamento de cargos por partidos foi substituído, pelo menos parcialmente, pelo das igrejas, das instituições militares, dos gurus da internet, etc. A troca de favores permanece a mesma, a diferença é que a indicação política e o nepotismo aparecem disfarçados de escolha técnica. Tanto no Congresso Nacional quanto no Senado Federal, os presidentes eleitos são aliados de Bolsonaro e ambos são acusados de corrupção.
Essa configuração política poderia deixar o governo em uma situação confortável se não fossem as contradições internas da própria gestão. Apesar do apoio de uma grande quantidade de parlamentares, que giram em torno das bancadas da bala, da Bíblia, dos bancos e do boi, o governo Bolsonaro parece tão despreparado quanto o governo Temer. O único elemento que mantém essa base coesa, apesar de todas as disputas, é o desejo de colocar em prática esses interesses de cunho tradicional e conservador. Isso implica em retrocesso para as populações que foram historicamente discriminadas, promovendo uma necropolítica.
Na divulgação do(a)s ministro(a)s do novo governo, ficou explícito que as promessas de campanha de Bolsonaro seriam postas em prática com sua equipe de militares, pastores/religiosos fundamentalistas e neoliberais. Uma das mudanças do novo governo foi a substituição do nome do Ministério dos Direitos Humanos para Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, o que impõe elementos de defesa da bancada religiosa, colocando mulher e família no singular. Como ficam as políticas para as mulheres que mais necessitam do apoio do Estado, como as mulheres travestis e transexuais? Como ficam as políticas para as famílias não heterossexuais? Para manter o alinhamento das ideias conservadoras, o governo nomeou Damares Alves, uma pastora evangélica fundamentalista que logo na posse revelou sua forma de compreender gênero, pois afirma que é inaugurada agora uma “nova era” no país, em que “menino veste azul e menina veste rosa”.
A ministra em suas declarações apresenta explicitamente sua visão ultrapassada da biomedicina para sexo e gênero como sendo um dependente do outro. Essa compreensão tradicional promove a negação da identidade de gênero de travestis e transexuais por não reconhecer que ser homem ou ser mulher são construções sociais. A Nova Era representa a ascensão dos retrocessos históricos que negam todos os conhecimentos produzidos sobre gênero e sexualidade.
Alinhado à doutrina de Damares, o ministro da Educação, ao se manifestar contra a suposta ideologia de gênero, afirma que “quem define os gêneros é a natureza”. Mas, além de fazer essa fala, ele extinguiu do MEC a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), responsável por assuntos relacionados a direitos humanos e étnico-raciais e ainda revelou que não permitiria “pautas nocivas aos nossos costumes” impostas por agências internacionais. Esse ministro fortalece o preconceito e a discriminação por meio da alegação de que existe uma ideologia de gênero para justificar a retirada das discussões sobre gênero e diversidade sexual das escolas. Além disso, ele concorda com a imposição de uma “escola sem partido”, que exclui o poder de criticidade dentro da escola, com a invasão de práticas religiosas e militares no espaço escolar.
O ministro da Saúde foi além e retirou do ar a cartilha “Homens trans: vamos falar sobre prevenção de infecções sexualmente transmissíveis?”, que tratava da saúde e prevenção para homens trans.
O Governo sabe lidar com as duas estratégias – da violência direta contra essas pautas e da simulação de defesa –, fazendo com que as duas se transformem em uma só, contexto no qual o ataque é apresentado como defesa ou a defesa carrega dentro de si um ataque.
Foi isso que aconteceu, por exemplo, no julgamento que analisa os pedidos de criminalização da LGBTfobia no Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 13 de fevereiro de 2019. O governo se posicionou por meio do advogado-geral da União contra o pleito, mas tentou justificar que sua posição não era contra LGBTs, pois mantinha no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos uma Diretoria e um Conselho – Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT) – que estavam desenvolvendo ações para o referido grupo.
Apesar de todos os desencontros, das trapalhadas governamentais e das divergências internas, o atual governo está alinhado, possuindo uma equipe que comunga com os ideais neoliberais e conservadores, que dificultam e/ou impossibilitam o atendimento das demandas LGBTI+.
Estamos diante de uma nova proposta de poder disciplinar principalmente na escola, na qual o poder pastoral se encontra com as estratégias militares, disciplinando os corpos e as mentes; monitorando o que pode e o que não pode ser ensinado; apagando personagens como Mandela dos murais das escolas como forma de excluir a história dos movimentos sociais; e obrigando homens a terem cabelos curtos, mulheres a terem coques e o uso de fardamento militares de acordo com os padrões de gênero e sexualidade. Nesse espectro, temos sim uma ideologia de gênero, criada por meio do adestramento militar e religioso no qual homens vestem azul e mulheres vestem rosa.
Assim, é importante que os órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos tenham conhecimento desta triste realidade e atuem junto com os movimentos sociais no sentido de garantir à multidão LGBTI+ no Brasil o direito à vida.
Referências
- 1Miskolci R, Pereira PPG. Educação e saúde em disputa: movimentos anti-igualitários e políticas públicas. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180353. https://doi.org/10.1590/Interface.180353
» https://doi.org/10.1590/Interface.180353
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Jun 2019 - Data do Fascículo
2019
Histórico
- Recebido
14 Mar 2019 - Aceito
17 Mar 2019