Resumo
O objetivo deste artigo é realizar uma análise foucaultiana das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de Medicina. Aprofunda-se essa análise no âmbito da promoção da saúde presente na Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), por esta estar estreitamente relacionada à proposta de integralidade. As novas DCN estão em uníssono com o que se preconiza na PNPS, uma vez que se almeja uma formação geral, humanista, crítica, reflexiva, ética e capaz de atuar com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania e dignidade humana nos diferentes níveis da atenção do processo saúde-doença. Por outro lado, a análise revela que, embora exista a tentativa de situar o graduando como sujeito ativo no seu processo formativo, não há indicação de inclusão desse ator social na formulação de suas práticas formativas.
Palavras-chave:
Educação superior; Recursos humanos em saúde; Promoção da saúde; Integralidade em saúde; Medicina.
Introdução
A reforma do setor saúde na década de 1990, materializada com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), produziu no país a expansão do setor público, implicando em novas formas de trabalho, principalmente para os médicos11 Machado MFAS, Monteiro EMLM, Queiroz DT, Vieira NFC, Barroso MGT. Integralidade, formação de saúde, educação em saúde e as propostas do SUS: uma revisão conceitual. Cienc Saude Colet. 2007; 12(2):335-42.,22 Machado MH. Perfil dos médicos no Brasil. RADIS Dados. 1996; 19.. Consequentemente, a educação superior em saúde vem passando por mudanças visando à reorientação da formação dos profissionais desse campo.
No Brasil, a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases para Educação em 1996 desencadeou reformas curriculares que culminaram na criação das DCN, que orientam a formação dos profissionais de saúde, assegurando as competências e habilidades iguais para a prática profissional. As mais recentes DCN do curso de graduação em Medicina foram homologadas pelo Conselho Nacional de Educação por meio da Resolução no 3 de 20 de junho de 201433 Conselho Nacional de Educação (BR). diretrizes curriculares nacionais para cursos de medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014.. Além disso, legitimam as bases para a atual formação médica, que deve ser humanista, crítica, reflexiva, ética e com capacidade para atuar em diferentes níveis de atenção do processo saúde-doença, com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania e dignidade humana, objetivando-se como promotoras da saúde integral do ser humano33 Conselho Nacional de Educação (BR). diretrizes curriculares nacionais para cursos de medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014..
Reconhece-se que o ideário da promoção à saúde vem desde os anos 1970 influenciando as políticas públicas e modelos de formação em saúde em distintos países44 Carvalho SR. As contradições da promoção à saúde em relação à produção de sujeitos e mudança social. Cienc Saude Colet. 2004; 9(3):669-78.. Diante desse panorama, o objetivo deste artigo é realizar uma análise foucaultiana do discurso das DCN do curso de Medicina. Aprofunda-se essa análise no âmbito da PNPS de 200655 Ministe´rio da Sau´de (BR). Secretaria de Vigila^ncia em Sau´de. Secretaria de Atenc¸a~o a` Sau´de. Poli´tica Nacional de Promoc¸a~o da Sau´de: PNPS: revisa~o da Portaria MS/GM nº 687, de 30 de Marc¸o de 2006. Brasi´lia: Ministe´rio da Sau´de; 2015., revisada em 2014, por estar estreitamente relacionada à proposta de integralidade e de intersetorialidade a partir de soluções inovadoras. O Ministério da Saúde propõe a PNPS em um esforço para o enfrentamento dos desafios de produção da saúde, exigindo a reflexão e qualificação das práticas sanitárias e do sistema público de Saúde. Assim, este estudo lança-se no desafio de analisar criticamente se o processo de educação e formação profissional médica está de acordo com os objetivos apontados na PNPS.
A educação médica em discussão
No Brasil, com a reforma universitária de 1968 (resultante do acordo MEC/Usaid de 1967 e da Lei 5.540/68), as universidades brasileiras passaram a adotar oficialmente o modelo americano, conhecido como biomédico flexneriano66 Lampert JB. Tendências de mudanças na formação médica no Brasil [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2002.
7 Pagliosa FL, Da Ros MA. O relatório Flexner: para o bem e para o mal. Rev Bras Educ Med. 2008; 32(4):492-9.
8 Almeida Filho N. Reconhecer Flexner: inquérito sobre produção de mitos na educação médica no Brasil contemporâneo. Cad Saude Publica. 2010; 26(12):2234-49.-99 Nogueira MI. As mudanças na Educação Médica Brasileira em perspectiva: reflexões sobre a emergência de um novo estilo de pensamento. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(2):262-70.. Alguns autores66 Lampert JB. Tendências de mudanças na formação médica no Brasil [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2002.
7 Pagliosa FL, Da Ros MA. O relatório Flexner: para o bem e para o mal. Rev Bras Educ Med. 2008; 32(4):492-9.
8 Almeida Filho N. Reconhecer Flexner: inquérito sobre produção de mitos na educação médica no Brasil contemporâneo. Cad Saude Publica. 2010; 26(12):2234-49.
9 Nogueira MI. As mudanças na Educação Médica Brasileira em perspectiva: reflexões sobre a emergência de um novo estilo de pensamento. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(2):262-70.
10 Moraes BA, Costa NMSC. Compreendendo os currículos à luz dos norteadores da formação em saúde no Brasil. Rev Esc Enferm USP. 2016; 50(Spe):9-16.-1111 Rocha MND. Educação superior no Brasil: tendências e perspectivas da graduação em saúde no século XXI [tese]. Salvador: Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal Bahia; 2014. tendem a afirmar que esse modelo enfatiza a profissionalização precoce, com tendência à especialização e subespecialização, sendo o hospital o principal espaço de prática. Atribui-se a aplicação desse modelo de formação no Brasil a partir do Relatório Flexner, publicado nos Estados Unidos na década de 1910. Para Pagliosa e Da Ros77 Pagliosa FL, Da Ros MA. O relatório Flexner: para o bem e para o mal. Rev Bras Educ Med. 2008; 32(4):492-9., esse relatório possibilitou a organização e padronização do funcionamento das escolas médicas; no entanto, aniquilou outras formas de atenção à saúde, como a medicina alternativa. Por outro lado, Almeida Filho88 Almeida Filho N. Reconhecer Flexner: inquérito sobre produção de mitos na educação médica no Brasil contemporâneo. Cad Saude Publica. 2010; 26(12):2234-49. destaca a importância desse relatório para a introdução de critérios de cientificidade e institucionalidade necessárias à regulação da formação acadêmica e profissional no campo da Saúde.
Paralelo a esse modelo educacional, observa-se que, a partir da década de 1970, houve uma proliferação de conferências e seminários para repensar o cuidado à saúde da população, entre eles o Relatório Lalonde em 1974, Declaração de Alma-Ata em 1978 e a Conferência de Ottawa em 1986. O primeiro documento questiona o papel exclusivo do médico no tratamento de doenças, evidenciando o seu alto custo e pouca eficácia, principalmente em problemas crônicos. Já a declaração de Alma-Ata é um importante marco político no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS) e estabelece como objetivo “saúde para todos nos anos 2000”, ao propor, na prática, um pacote de serviços básicos à saúde e a incorporação do direito à universalidade e equidade no acesso ao sistema de saúde11 Machado MFAS, Monteiro EMLM, Queiroz DT, Vieira NFC, Barroso MGT. Integralidade, formação de saúde, educação em saúde e as propostas do SUS: uma revisão conceitual. Cienc Saude Colet. 2007; 12(2):335-42.,1212 Buss P. Promoção da saúde e qualidade de vida. Cienc Saude Colet. 2000; 5(1):163-77..
No entanto, foi a partir da Conferência de Ottawa que se formulou oficialmente a proposta da promoção da saúde atrelada a uma concepção mais complexa do processo saúde-doença. Assim, a partir de uma concepção ampla do processo saúde-doença, a promoção de saúde passou a ser tratada como um conjunto de conhecimentos teóricos, políticos ou saberes tradicionais que visam enfrentar os problemas de saúde da população11 Machado MFAS, Monteiro EMLM, Queiroz DT, Vieira NFC, Barroso MGT. Integralidade, formação de saúde, educação em saúde e as propostas do SUS: uma revisão conceitual. Cienc Saude Colet. 2007; 12(2):335-42.,1212 Buss P. Promoção da saúde e qualidade de vida. Cienc Saude Colet. 2000; 5(1):163-77.,1313 Campos GW, Barros RB, Castro AM. Avaliação de política nacional de promoção da saúde. Cienc Saude Colet. 2004; 9(3):745-9..
Destaca-se que o surgimento da promoção da saúde no cenário mundial foi acompanhado de um avanço da política neoliberal nos países capitalistas europeus e norte-americanos. Argumentava-se que a desaceleração/estagnação no processo de desenvolvimento econômico - ou seja, a acumulação de capital dos países - ocorria por conta dos exacerbados gastos na seguridade social. Dessa forma, a solução para essa estagnação seria uma reforma do Estado, limitando os gastos sociais e produzindo uma reforma fiscal para redução de impostos44 Carvalho SR. As contradições da promoção à saúde em relação à produção de sujeitos e mudança social. Cienc Saude Colet. 2004; 9(3):669-78.,1414 Noronha JC, Soares LT. A política de saúde no Brasil nos anos 90. Cienc Saude Colet. 2001; 6(2):445-50.,1515 Stotz EM, Araújo JWG. Promoção da saúde e cultura política: a reconstrução do consenso. Saude Soc. 2004; 13(2):5-19..
É nessa perspectiva que alguns autores têm defendido a ideia de que a promoção da saúde pode ser considerada uma estratégia ideológica que visa à diminuição do Estado no setor saúde, transferindo ao sujeito a responsabilidade pelo cuidado a sua saúde a partir dos conceitos de empowerment, comunidade, participação social e qualidade de vida. Consequentemente, seria então não mais dever do Estado, mas sim dos indivíduos a mudança de seus comportamentos por hábitos saudáveis; assim, os próprios sujeitos deveriam se mobilizar em prol da resolução das suas necessidades de saúde44 Carvalho SR. As contradições da promoção à saúde em relação à produção de sujeitos e mudança social. Cienc Saude Colet. 2004; 9(3):669-78.,1515 Stotz EM, Araújo JWG. Promoção da saúde e cultura política: a reconstrução do consenso. Saude Soc. 2004; 13(2):5-19..
Em dissonância da perspectiva neoliberal, destaca-se que a concepção de promoção da saúde presente no movimento da reforma sanitária está articulada com a determinação social do processo saúde-doença; sendo assim, não considera a saúde apenas nos seus fatores individuais11 Machado MFAS, Monteiro EMLM, Queiroz DT, Vieira NFC, Barroso MGT. Integralidade, formação de saúde, educação em saúde e as propostas do SUS: uma revisão conceitual. Cienc Saude Colet. 2007; 12(2):335-42.,1515 Stotz EM, Araújo JWG. Promoção da saúde e cultura política: a reconstrução do consenso. Saude Soc. 2004; 13(2):5-19..
Assim, em 1988, com a Constituição cidadã e aprovação das Leis Orgânicas da Saúde em 1990, o Estado firma o compromisso com a saúde da população, e a saúde passa a ser um direito do cidadão e dever do Estado. O SUS é então outorgado como a política de Estado para o setor saúde e, como previsto na Lei Orgânica da Saúde, cabe também ao Estado brasileiro garantir o ordenamento da formação de recursos humanos em saúde99 Nogueira MI. As mudanças na Educação Médica Brasileira em perspectiva: reflexões sobre a emergência de um novo estilo de pensamento. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(2):262-70.,1616 Chiesa NA, Nascimento DDG, Braccialli LAD, Oliveira MAC, Ciampone MHT. A formac¸a~o de profissionais de sau´de: a aprendizagem significativa à luz da promoc¸a~o da sau´de. Cogitare Enferm. 2007; 12(2):236-40.
17 Araujo D, Miranda MCG, Brasil SL. Formação de profissionais de saúde na perspectiva da integralidade. Rev Baiana Saude Publica. 2007; 31(1):20-31.
18 Traverso-Yépez MA. Dilemas na promoção da saúde no Brasil: reflexões em torno da política nacional. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):223-38.-1919 González AD, Almeida MJ. Movimentos de mudança na formação em saúde: da medicina comunitária às diretrizes curriculares. Physis. 2010; 20(2):551-70..
Como resposta, no início da década de 1990, a Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) protagonizou, juntamente com o Conselho Federal de Medicina (CFM) e mais nove instituições relacionadas à Medicina, a criação da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação da Educação Médica (Cinaem). Dessa maneira, o projeto do Cinaem foi desenvolvido em três etapas, nas quais se levantou o perfil das escolas médicas a partir de um roteiro da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e do corpo docente das instituições; e as pedagogias adotadas. Os resultados encontrados evidenciaram uma inadequação do profissional frente às necessidades de saúde da população, além de um ensino centrado no docente e uma exacerbada especialização dos conhecimentos99 Nogueira MI. As mudanças na Educação Médica Brasileira em perspectiva: reflexões sobre a emergência de um novo estilo de pensamento. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(2):262-70.,2020 Oliveira NA, Meirelles RMS, Cury GC, Alves LA. Mudanças curriculares no ensino médico brasileiro: um debate crucial no contexto do Promed. Rev Bras Educ Med. 2008; 32(3):333-46..
Observou-se, concomitantemente, o desencadeamento de reformas curriculares estimuladas pela aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) para Educação, em 1996, que confere liberdade às instituições de ensino superior para o desenho de currículos inovadores, adequados às realidades regionais e às vocações das escolas. Substitui-se, assim, o antigo currículo mínimo pelas DCN2121 Dias HS, Lima LD, Teixeira M. A trajetória da política nacional de reorientação da formação profissional em saúde no SUS. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1613-21..
Portanto, além da criação da LDB, a discussão desenvolvida pelo Cinaem gerou propostas que foram incorporadas às DCN de graduação em Medicina por meio da resolução no 4 de 7 de novembro de 2001 do Ministério da Educação88 Almeida Filho N. Reconhecer Flexner: inquérito sobre produção de mitos na educação médica no Brasil contemporâneo. Cad Saude Publica. 2010; 26(12):2234-49.,2020 Oliveira NA, Meirelles RMS, Cury GC, Alves LA. Mudanças curriculares no ensino médico brasileiro: um debate crucial no contexto do Promed. Rev Bras Educ Med. 2008; 32(3):333-46.
21 Dias HS, Lima LD, Teixeira M. A trajetória da política nacional de reorientação da formação profissional em saúde no SUS. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1613-21.-2222 Teixeira CFS, Coelho MTAD, Rocha MND. Bacharelado interdisciplinar: uma proposta inovadora na educação superior em saúde no Brasil. Cienc Saude Colet. 2013, 18(6):1635-46..
Logo em 2002, criou-se o Programa Nacional de Incentivo a Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina (Promed), desenvolvido pelos Ministérios da Saúde e Educação, Opas, Rede Unida e Abem. O programa propunha dar continuidade ao movimento iniciado com a Cinaem por meio de uma cooperação técnica, no intuito de estimular as reformas curriculares visando adequação da formação médica com as necessidades de saúde da população. Ou seja, o programa preconizava um alinhamento com um conceito ampliado de saúde e maior articulação com a atenção básica, as DCN e o SUS2020 Oliveira NA, Meirelles RMS, Cury GC, Alves LA. Mudanças curriculares no ensino médico brasileiro: um debate crucial no contexto do Promed. Rev Bras Educ Med. 2008; 32(3):333-46.,2121 Dias HS, Lima LD, Teixeira M. A trajetória da política nacional de reorientação da formação profissional em saúde no SUS. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1613-21.,2323 Aguiar AC. Cultura de avaliação e transformação da educação médica: a ABEM na interlocução entre academia e governo. Rev Bras Educ Med. 2006; 30(2):98-101..
Outras iniciativas surgiram para reorientação profissional em saúde a partir de 2003 com uma maior integração entre os Ministérios da Saúde e Educação. Entre essas, há a criação do Departamento de Educação na Saúde (Deges), como parte da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (Segets), e os programas VER-SUS e AprenderSUS; a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS); e o Pró-Saúde, inspirado no Promed99 Nogueira MI. As mudanças na Educação Médica Brasileira em perspectiva: reflexões sobre a emergência de um novo estilo de pensamento. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(2):262-70.,2020 Oliveira NA, Meirelles RMS, Cury GC, Alves LA. Mudanças curriculares no ensino médico brasileiro: um debate crucial no contexto do Promed. Rev Bras Educ Med. 2008; 32(3):333-46.,2121 Dias HS, Lima LD, Teixeira M. A trajetória da política nacional de reorientação da formação profissional em saúde no SUS. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1613-21.,2323 Aguiar AC. Cultura de avaliação e transformação da educação médica: a ABEM na interlocução entre academia e governo. Rev Bras Educ Med. 2006; 30(2):98-101..
Segundo Lampert66 Lampert JB. Tendências de mudanças na formação médica no Brasil [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2002., as principais iniciativas de reorientação na formação em saúde estão situadas no fim do século XX, aprofundam-se no século XXI e almejam a promoção da saúde; no entanto, não são totalmente bem-sucedidas por apresentarem dificuldades em traduzir essas propostas para a educação médica. A promoção da saúde foi anunciada desde a construção do SUS; porém, tornou-se uma política institucionalizada apenas em 2006, por meio da portaria no 687 do Ministério da Saúde (MS)55 Ministe´rio da Sau´de (BR). Secretaria de Vigila^ncia em Sau´de. Secretaria de Atenc¸a~o a` Sau´de. Poli´tica Nacional de Promoc¸a~o da Sau´de: PNPS: revisa~o da Portaria MS/GM nº 687, de 30 de Marc¸o de 2006. Brasi´lia: Ministe´rio da Sau´de; 2015.. Recentemente, o documento passou por uma atualização que colocou como desafio uma maior articulação intersetorial, reconhecendo que o setor da saúde pública não conseguirá solucionar sozinho todos os condicionantes que influenciam a saúde. De fato, as discussões que resultaram na Política Nacional de Promoção da Saúde, consolidaram a necessidade de um conceito de saúde ampliado que possibilite ao indivíduo um cuidado integral, por meio de ações articuladas entre os diversos níveis de atenção (integralidade) e entre os diferentes setores, pela intersetorialidade1212 Buss P. Promoção da saúde e qualidade de vida. Cienc Saude Colet. 2000; 5(1):163-77.,2424 Carvalho YM, Ceccim RG. Formação e educação em saúde: aprendizados com a saúde coletiva. In: Campos GW, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2009.. Sendo assim, considera-se indispensável para a consolidação do SUS a existência de políticas efetivas tanto no que diz respeito às relações de trabalho e políticas de vinculação dos trabalhadores ao sistema quanto aos aspectos relacionados à formação e desenvolvimento dos trabalhadores de saúde2525 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Ceccim RB. Educacio´n permanente em salud: una estrategia para intervenir em la micropoli´tica del trabajo em salud. Salud Colect. 2006; 2(2):147-60.. Ademais, isso já era previsto desde a publicação do Relatório Final da VIII Conferência Nacional de Saúde (1986), que recomenda que a estrutura dos serviços em saúde e a definição dos perfis profissionais fossem adequadas às necessidades do país. Desse modo, a formação dos profissionais de saúde deve ser integrada ao sistema de Saúde, regionalizado e hierarquizado.
Chiesa et al.1616 Chiesa NA, Nascimento DDG, Braccialli LAD, Oliveira MAC, Ciampone MHT. A formac¸a~o de profissionais de sau´de: a aprendizagem significativa à luz da promoc¸a~o da sau´de. Cogitare Enferm. 2007; 12(2):236-40. ressaltam que as formas de organização curricular têm passado por mudanças paradigmáticas e que, quanto mais se avançar nesse sentido, mais a atuação do pessoal formado será transformada. Para esses autores, um processo dialógico acontece em um processo participativo no qual a educação deve ser bidirecional, estando ambas as partes envolvidas e com o compromisso de transformar seus próprios saberes. No princípio dialógico, a teoria e a prática precisam estar conectadas para aproximar a formação profissional das necessidades de saúde da população. Nessa perspectiva, deve-se atentar principalmente às DCN do curso de graduação, pois orientam os currículos universitários com as competências e habilidades necessárias para a formação profissional de nível superior. No caso de Medicina, objetivam formar o graduando para “observar as dimensões das diversidades biológica, subjetiva, étnico-racial, socioeconômica, cultural e ética que singularizam cada pessoa ou cada grupo social”33 Conselho Nacional de Educação (BR). diretrizes curriculares nacionais para cursos de medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014. (p. 4). Contudo, nesse teor de reflexão crítica, é necessário questionar se as práticas discursivas, ou formas de ação perpassadas pela linguagem, implícitas nas novas DCN, viabilizam as mudanças apontadas (ou desejadas) pela PNPS.
Método
O presente artigo traz uma análise documental das DCN do curso de graduação em Medicina. Tais diretrizes são recomendações, já que, no Brasil, as universidades gozam de autonomia, definida pela LDB.
Essas DCN foram inicialmente publicadas em 2001, mas foram revistas e reformuladas em 2014, sendo homologadas pelo Conselho Nacional de Educação, pela Resolução no 3 de 20 de junho de 201433 Conselho Nacional de Educação (BR). diretrizes curriculares nacionais para cursos de medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014.. Para suas aplicações, os cursos de Medicina devem estar em funcionamento a partir de um ano a contar da data da publicação do documento.
As DCN foram elaboradas pela Comissão da Câmara de Educação Superior do Ministério da Educação, possuem 19 páginas e apresentam-se divididas em três capítulos. O capítulo I apresenta as diretrizes a serem observadas na organização; e desenvolvimento e avaliação do curso de Medicina no âmbito das instituições de educação superior do Brasil. O capítulo II apresenta as competências que permitem a transformação das diretrizes. O último capítulo apresentado nas DCN indica os conteúdos curriculares fundamentais para o curso de graduação em Medicina, assim como a orientação para a organização do Projeto Pedagógico.
Para a análise desse documento, foi utilizado o método de análise foucaultiana do discurso. Essa abordagem da Análise do Discurso foi introduzida pela psicologia anglo-americana nos anos 1970. A partir das ideias de Foucault2626 Foucault M. A arqueologia do saber. 7a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2008. acerca da relação poder e conhecimento, os psicólogos começaram a explorar a relação estabelecida entre a linguagem e a subjetividade. Essa abordagem influencia essencialmente o trabalho de Carla Willig2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010. que, a partir do ponto de vista foucaultiano, focaliza a relação entre discursos e instituições, já que esses discursos estão ligados a práticas institucionais, ou seja, com formas de organizar, regular e administrar a vida social.
Por meio dos discursos, relações de poder e controle social são estabelecidas, aprisionando os sujeitos a uma naturalização dessas relações discursivas e uma reprodução de práticas baseadas no controle e poder, produzindo subjetividades que operam pelos discursos e os legitimam. Portanto, tendo o discurso um efeito decisivo no modo como se configura o mundo social, as práticas discursivas são práticas sociais produzidas por meio de relações de poder concretas em uma determinada época2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010..
Além disso, esse tipo de análise questiona a relação entre discurso e a forma como as pessoas pensam ou sentem (subjetividade), o que podem fazer (práticas) e o cotidiano no qual ocorrem tais experiências.
O processo analítico
A análise da linguagem elaborada para est e estudo, sob o enfoque foucaultiano da análise do discurso utilizada por Carla Willig2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010., pretende compreender a disposição dos discursos utilizados no documento oficial e de que maneira podem influenciar a forma como as pessoas pensam ou agem2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010..
Willig2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010. estrutura a análise foucaultiana do discurso a partir de seis etapas: 1) identificação das construções discursivas que lidam com a temática da formação médica; 2) tipo de discurso que agrupa essas construções em categorias mais abrangentes; 3) orientação para ação que esses discursos apontam, considerando o seu caráter funcional; 4) estudo dos posicionamentos que os discursos viabilizam aos atores sociais envolvidos; 5) estudo das práticas ou formas em que as construções discursivas e os posicionamentos dos sujeitos, nelas contidos, abrem ou fecham oportunidades para a ação; e 6) formas de subjetivação possíveis, a partir da orientação para a ação, dos posicionamentos e das práticas presentes no texto.
Esses estágios permitem ao pesquisador mapear alguns recursos discursivos utilizados no texto e as posições subjetivas que eles contêm, assim como explorar as suas implicações para a subjetividade e prática2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010.. O primeiro autor lê os textos por, pelo menos, quatro vezes na intenção de se tornar familiar e engajado em relação a eles. Os discursos são identificados e discutidos com o segundo autor. O segundo passo é desenhar um plano de análise utilizando as seis etapas descritas, no intuito de apresentar os discursos identificados no estudo.
Análise dos discursos das DCN
Com base nas discussões apresentadas até o momento, considera-se importante ressaltar que qualquer leitura ou análise de ordenamentos educativos deve ser acompanhada de processos de reflexão e de autorreflexão, pela tendência a reproduzir os parâmetros simbólicos aos quais as pessoas estão condicionadas1818 Traverso-Yépez MA. Dilemas na promoção da saúde no Brasil: reflexões em torno da política nacional. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):223-38.,2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010.. Justifica-se a necessidade dessa análise por se tratar de um momento de transformação e de mudança de paradigmas na educação médica.
Nesse sentido, reconhece-se a potência da promoção da saúde na reorientação da formação médica ao questionar o modelo biomédico, principalmente a perspectiva curativa centrada no indivíduo, abrindo a possiblidade de se deslocar do processo formativo dos discentes e da centralidade da Biomedicina. Oferta-se assim aos estudantes um contato com uma concepção de saúde interdisciplinar, sendo condição intrínseca para a promoção da saúde o diálogo com outros saberes, sejam eles científicos ou populares, para a oferta de cuidados em saúde44 Carvalho SR. As contradições da promoção à saúde em relação à produção de sujeitos e mudança social. Cienc Saude Colet. 2004; 9(3):669-78.,2828 Marcondes WB. A convergência de referências na Promoção da Saúde. Saude Soc. 2004; 13(1):5-13..
Assim, para o estudo das DCN33 Conselho Nacional de Educação (BR). diretrizes curriculares nacionais para cursos de medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014., adotou-se a estratégia de análise foucaultiana do discurso, sintetizada por Willig2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010. e utilizada na análise do Programa de Promoção da Saúde 1996-2000 da Comissão Europeia2929 Sykes CM, Willig C, Marks DF. Discourses in the European Commission's 1996-2000 Health Promotion Programme. J Health Psychol. 2004; 9(1):131-41. e da PNPS1818 Traverso-Yépez MA. Dilemas na promoção da saúde no Brasil: reflexões em torno da política nacional. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):223-38..
As construções discursivas
Nessa primeira etapa da análise, a intenção é identificar o modo como cada discurso foi construído. Para Willig2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010. e Foucault2626 Foucault M. A arqueologia do saber. 7a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2008., todas as formas de conhecimento são construídas por meio do discurso e das práticas discursivas. Tendo como base a organização das diretrizes a partir das competências, a discussão acerca da formação médica aparece organizada nas três construções discursivas, conforme sequenciamento disposto nas DCN.
Da atenção à saúde - Nessa área, recomenda-se que o graduando em Medicina tenha a formação necessária para considerar as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, socioeconômica, cultural e ética que singularizam cada pessoa ou grupo social. Nesse sentido, a atenção à saúde é desdobrada a partir de dois campos: as necessidades individuais de saúde e as necessidades de Saúde Coletiva.
Nota-se que esses campos apontados nas DCN são coincidentes com o texto presente na no artigo 2o da PNPS55 Ministe´rio da Sau´de (BR). Secretaria de Vigila^ncia em Sau´de. Secretaria de Atenc¸a~o a` Sau´de. Poli´tica Nacional de Promoc¸a~o da Sau´de: PNPS: revisa~o da Portaria MS/GM nº 687, de 30 de Marc¸o de 2006. Brasi´lia: Ministe´rio da Sau´de; 2015.:
A PNPS traz em sua base o conceito ampliado de saúde e o referencial teórico da promoção da saúde como um conjunto de estratégias e formas de produzir saúde, no âmbito individual e coletivo, caracterizando-se pela articulação e cooperação intra e intersetorial, pela formação de Rede de Atenção à Saúde (RAS), buscando articular suas ações com as demais redes de proteção social, com ampla participação e controle social. (p. 26)
Igualmente, a promoção da saúde é colocada na PNPS como uma estratégia de fortalecimento dos princípios de integralidade, equidade, responsabilidade sanitária, mobilização e participação social, intersetorialidade, informação, educação e comunicação. Para viabilizar essa ação, as DCN indicam as competências em duas áreas: atenção às necessidades individuais de saúde e atenção às necessidades coletivas de saúde.
Está clara a relação entre as práticas almejadas pela formação proposta nas DCN e o texto constante na PNPS em relação à consideração da autonomia e singularidade dos sujeitos, das coletividades e dos territórios. No entanto, destaca-se nas construções discursivas presentes no documento a prevalência da responsabilidade individual para com estilos de vida saudáveis e consequentemente a ênfase na competência para atuar individualmente. As necessidades individuais dependem não apenas da vontade ou liberdade individual, mas principalmente das condições determinadas pelos contextos social, econômico, político e cultural em que vivem55 Ministe´rio da Sau´de (BR). Secretaria de Vigila^ncia em Sau´de. Secretaria de Atenc¸a~o a` Sau´de. Poli´tica Nacional de Promoc¸a~o da Sau´de: PNPS: revisa~o da Portaria MS/GM nº 687, de 30 de Marc¸o de 2006. Brasi´lia: Ministe´rio da Sau´de; 2015.; porém, o documento apresenta um discurso tendencioso à formação para competências na área da atenção às necessidades individuais. Esse tipo de formação está em dissonância com a atual realidade de iniquidades sociais e de saúde existentes no Brasil. Ressalta-se que Testa3030 Testa M. Ensen~ar medicina. In: Testa M. Pensar em salud. Buenos Ares: Lugar Editorial; 2006. p. 49-84. considera necessário o processo de constituição de sujeitos sociais; a partir disso, existe transformação das práticas. Se não há indicação de formação médica voltada para as necessidades sociais brasileiras, certamente a prática de atendimentos individuais prevalecerá.
Da gestão em saúde - Nas DCN, as seções que tratam da gestão em saúde apontam como imprescindíveis para a formação em Medicina a capacidade em empreender ações de gerenciamento e administração para promover o bem-estar da comunidade, por meio de dimensões como gestão do cuidado, valorização da vida, tomada de decisões, comunicação, domínio da língua estrangeira, liderança e trabalho em equipe. A gestão em saúde pode ser estruturada em duas ações-chave para efetivação da competência nessa área: organização do trabalho em saúde; e acompanhamento e avaliação do trabalho em saúde33 Conselho Nacional de Educação (BR). diretrizes curriculares nacionais para cursos de medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014..
A gestão aparece na PNPS como um dos eixos operacionais em que se priorizam processos democráticos e participativos de regulação e controle, de planejamento, de monitoramento, de avaliação, de financiamento e de comunicação55 Ministe´rio da Sau´de (BR). Secretaria de Vigila^ncia em Sau´de. Secretaria de Atenc¸a~o a` Sau´de. Poli´tica Nacional de Promoc¸a~o da Sau´de: PNPS: revisa~o da Portaria MS/GM nº 687, de 30 de Marc¸o de 2006. Brasi´lia: Ministe´rio da Sau´de; 2015..
Há, portanto, uma confluência de ideias na formulação das diretrizes para a formação médica, com base nos processos democráticos e participativos. No entanto, observa-se a existência de um discurso presente nas DCN que prioriza a elaboração, implementação, monitoramento e acompanhamento dos planos de intervenção para o processo de trabalho. As competências para o trabalho baseado na intersetorialidade, estimulado pela PNPS, não é indicado nas DCN. Ressalta-se que atualmente um dos entraves para a gestão da saúde pública é justamente a incapacidade de se trabalhar transversalmente1818 Traverso-Yépez MA. Dilemas na promoção da saúde no Brasil: reflexões em torno da política nacional. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):223-38.. Os gestores possuem dificuldades para se comunicar uns com os outros e de elaborar planos de trabalho transversais em prol da intersetorialidade.
Essa estratégia poderia contribuir para a superação da falta de novas tecnologias do cuidado apontado por Feuerwerker3131 Feuerwerker LM. Além do discurso de mudança na educação médica: processos e resultados. Rio de Janeiro: Hucitec; 2002.. A priorização em novos modelos de trabalho em saúde que privilegiem a intersetorialidade implicam em uma reorganização das práticas em saúde, superando o modelo flexneriano utilizado até hoje.
Da educação em saúde - Nessa área, espera-se que o graduando esteja apto à corresponsabilidade com a própria formação inicial e continuada para conquistar autonomia intelectual e responsabilidade social; e adquirir compromisso com a formação das futuras gerações de profissionais de saúde, estimulando a promoção da mobilidade acadêmica e profissional. Sua formação deve objetivar: aprender a aprender; aprendizagem interprofissional; aprender com o erro; envolvimento na formação do médico (conciliando ensino, pesquisa e extensão); e mobilidade e formação de redes33 Conselho Nacional de Educação (BR). diretrizes curriculares nacionais para cursos de medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014..
Citando a Declaração de Adelaide3232 World Health Organization. Declaração de Adelaide sobre a saúde em todas as políticas: no caminho de uma governança compartilhada em prol da saúde e do bem-estar. Genebra: WHO; 2010. e a Declaração de Helsinque3333 World Medical Association. Declaração de Helsinque da Associação Médica Mundial: princípios éticos para a investigação médica em seres humanos. Ferney-Voltaire: WMA; 2013., a PNPS enfatiza que é mais fácil alcançar os objetivos do governo quando todos os setores incorporam a saúde e o bem-estar como componentes centrais no desenvolvimento de políticas. Essa interação é necessária por entender que as bases da saúde e do bem-estar se encontram fora do setor Saúde, sendo formadas social e economicamente. Sabe-se que a educação está diretamente relacionada às questões sociais e econômicas, tanto a educação básica ofertada pelas esferas municipais e estaduais quanto ao ensino superior público. Mesmo tendo este último passado por algumas mudanças que objetivaram a democratização do acesso, reconhece-se a elitização dessa instituição. Esses fatores dificultam a inserção de indivíduos de todos os extratos socioeconômicos ao ensino superior3434 Almeida Filho N. Higher education and health care in Brazil. Lancet. 2011; 377(9781):1898-900..
Portanto, mesmo que as DCN tenham seus objetivos consoantes com os temas prioritários para a promoção da saúde apontados pela PNPS, não se observa correlação com as políticas de reforma universitária necessárias para se efetivar a formação voltada para as práticas de atenção primária à saúde. Essa lacuna denuncia mais uma vez a falta de discurso que privilegie a intersetorialidade objetivada na PNPS.
Tipo de discurso
Esta etapa da análise se destina a situar o viés das diferentes construções discursivas, atentando especialmente para os juízos de valor que perpassam os discursos. Por se tratar de um documento político, observa-se um único tipo de discurso - o “político prescritivo”. Percebe-se a ênfase político-prescritiva na maioria das construções discursivas, utilizando-as como norma de ação:
Art. 3. O graduado em Medicina terá formação geral, humanista, crítica, reflexiva e ética, com capacidade para atuar em diferentes níveis de atenção do processo saúde-doença, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação de saúde, nos âmbitos individual e coletivo, com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania e da dignidade humana, objetivando-se como promotor da saúde integral do ser humano33 Conselho Nacional de Educação (BR). diretrizes curriculares nacionais para cursos de medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014.. (p. 3)
Orientação para a ação
Esse terceiro estágio de análise envolve um exame mais acurado, a fim de analisar de que maneira as construções discursivas estão sendo empregadas no documento. Sob um ponto de vista foucaultiano, os discursos engendram práticas sociais, produzidas por meio de relações de poder concretas, em uma determinada época, formando um conjunto de afirmações que estabelece uma gama de posicionamentos do sujeito. O enfoque dos documentos, no que tange à orientação para ação, permite um olhar sobre a construção do objeto discursivo que disponibiliza o que o sujeito pode fazer (práticas) e as condições materiais dentro das quais ocorrem tais experiências2626 Foucault M. A arqueologia do saber. 7a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2008..
Apesar de o tipo de discurso presente nas DNC ser o político prescritivo, que pressupõe um caráter hierárquico-prescritivo, é estimulado nesse documento que a formação médica esteja integrada com outros profissionais, tanto na área de educação (a partir da educação interprofissional), nas competências para atenção às necessidades de Saúde Coletiva (estímulo à inclusão da perspectiva de outros profissionais e representantes de segmentos sociais); quanto na competência Gestão em Saúde (abertura para opiniões diferentes e trabalho colaborativo em equipes de saúde)33 Conselho Nacional de Educação (BR). diretrizes curriculares nacionais para cursos de medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014..
Assim, o capítulo III, que trata dos conteúdos curriculares e do projeto pedagógico do curso de graduação em Medicina, orienta em relação à formatação da estrutura curricular para atingir os objetivos previstos nas DCN. Os discursos ali presentes se voltam para o estímulo à inclusão de metodologias que privilegiam a participação ativa do aluno na construção do conhecimento, a fim de promover a integração e interdisciplinaridade em coerência com uma proposta radical de formação médica voltada para humanização e integralidade objetivadas na PNPS.
Posicionamentos
O posicionamento subjetivo presente nos discursos identifica a localização da pessoa dentro da estrutura de direitos e deveres para os que utilizam daquele repertório2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010.,3535 Davies B, Harré R. Positioning: the discursive production of selves. J Theory Soc Behav. 1990; 20(1):43-63. doi: 10.1111/j.1468-5914.1990.tb00174.x.
https://doi.org/10.1111/j.1468-5914.1990... . Assim, nessa etapa da análise, atenta-se para as formas como a construção dos objetos discursivos se reflete no posicionamento dos diversos atores.
Percebe-se que, embora a organização do curso utilize “metodologias que privilegiem a participação ativa do aluno na construção do conhecimento e na integração entre os conteúdos, além de estimular a interação entre o ensino, a pesquisa e a extensão”33 Conselho Nacional de Educação (BR). diretrizes curriculares nacionais para cursos de medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014. (p. 17), não há indicação de como esse papel ativo será outorgado nos projetos pedagógicos dos cursos.
Alguns autores3636 Petersen A, Lupton D. The new public health: health and self in the ag of risk. Londres: Sage Publications; 1996.,3737 Lupton D. Risk. New York: Routlege; 1996. destacam que a autonomia baseada no modelo neoliberal é sempre regulada, uma vez que os indivíduos tendem a seguir regras e normas concebidas por expertos e pelos parâmetros construídos pelas Políticas Públicas Saudáveis. Assim, mesmo com a centralidade do discurso enfocando o empowerment e a autonomia no sujeito nas DCN, as estratégias presentes na PNPS e nas DCN não aprofundam as discussões sobre as desigualdades e iniquidades no Brasil3838 Coburn D. Beyond the income inequality hipótesis: class, neo-liberalism, and health inequalities. Soc Sci Med. 2004; 58(1):41-56.,3939 Paim JS, Almeida Filho N. A crise da saúde pública e a utopia da saúde coletiva. Salvador: Casa da Qualidade; 2000..
Práticas
De acordo com Willig2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010., certas práticas se tornam formas legítimas de comportamento por meio dos discursos. Para essa autora, é necessário realizar uma leitura do tipo de práticas que tais construções discursivas viabilizam no documento.
É evidente que, por ser um documento oficial que orienta a formação médica, este é direcionado para os gestores da educação superior em Medicina. O artigo 7o prescreve que o “graduando deverá estar apto à corresponsabilidade com a própria formação inicial e continuada”33 Conselho Nacional de Educação (BR). diretrizes curriculares nacionais para cursos de medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014. (p. 6). No entanto, o graduando que deve assumir “a participação ativa” em seu processo formativo não é considerado nesse documento. Não há qualquer menção do caminho a ser seguido para se alcançar esse fim. Pelo fato de esses atores não serem incluídos na orientação do seu processo formativo, revela-se uma enorme distância entre os gestores e os graduandos, principais atores nesse processo e para quem essas práticas são, supostamente, desenhadas.
Processos de subjetivação
O estágio final dessa análise explora a relação entre discurso e subjetividade. Os discursos disponibilizam certas formas de ver o mundo e certas formas de estar no mundo. Eles constroem as realidades sociais e psicológicas por meio da interanimação dialógica ou de influências mútuas1818 Traverso-Yépez MA. Dilemas na promoção da saúde no Brasil: reflexões em torno da política nacional. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):223-38.,2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010..
A análise já vem mostrando que os discursos não são neutros, carregando em suas linhas (e entrelinhas) intenções, juízos de valor e posicionamentos que viabilizam ou não certo tipo de práticas em detrimento de outras. Tais práticas constituem realidades sociais e psicológicas, encenando formas de ser e estar no mundo2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010..
Os processos de subjetivação dos sujeitos mostram-se por meio dos posicionamentos e práticas a que são delegados, indicando a necessidade do cumprimento da norma e dos princípios prescritos, instituindo um projeto de previsão e regulação. Destaca-se que o documento é um recurso a ser utilizado pelos os gestores, a fim de se reorganizar o processo formativo em Medicina consoante com os princípios e diretrizes da PNPS, que requer, para sua aplicação, práticas de atenção à saúde inovadoras. No entanto, os discursos constantes nas DCN desconsideram a potencialidade dos graduandos em participar ativamente do seu processo formativo, contribuindo para a relação hierarquizada e passividade tão combatida pelo paradigma da integralidade. Sabe-se que a valorização da autonomia devolve ao indivíduo a responsabilidade pelas suas competências potenciais.
Esses posicionamentos possibilitam a compreensão da construção das relações na instituição e nos cursos de Medicina, emergindo a ideia do instituído enquanto espaço de poder e tomada de decisão, que previamente regula comportamentos, podendo reproduzir determinados enunciados e realidades, e afeta subjetividades.
Considerações finais
Reconhece-se que as novas DCN estão predominantemente em uníssono com o que se preconiza na PNPS, uma vez que se almeja uma formação geral, humanista, crítica, reflexiva, ética e capaz de atuar com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania e dignidade humana nos diferentes níveis da atenção do processo saúde-doença. No entanto, é importante ressaltar que o paradigma de promoção da saúde possui múltiplas leituras, sendo então responsabilidade dos pesquisadores, professores, gestores, técnicos e estudantes ressignificar à luz das necessidades de saúde do povo brasileiro, levando em consideração seu potencial explicativo e transformador44 Carvalho SR. As contradições da promoção à saúde em relação à produção de sujeitos e mudança social. Cienc Saude Colet. 2004; 9(3):669-78.,2828 Marcondes WB. A convergência de referências na Promoção da Saúde. Saude Soc. 2004; 13(1):5-13..
Assim, reforça-se a ideia de que o tensionamento histórico na construção das DCN evidencia as problemáticas e lacunas da pauta sobre a formação médica no país e como estas repercutem nos modelos e propostas de formação atual.
Igualmente, a análise também revela que, embora exista a tentativa de situar o graduando como sujeito ativo no seu processo formativo, não há indicação de inclusão desse ator social na formulação de suas práticas formativas. Segundo Ortega y Gasset4040 Ortega Y, Gasset J. Missão da universidade. Porto: Seara Nova; 1946., esse é um dos erros essenciais de uma universidade que se perde entre as definições de cultura e ciência: desconsiderar os estudantes.
Entretanto, o que realmente deve ser ressaltado nessa análise, principalmente, é a teia de interdependências na qual a formação acadêmica e o trabalho em saúde estão inseridos4141 Briceño-León R. Siete tesis sobre la educación sanitaria para la participación comunitaria. Cad Saude Publica. 1996; 12(1):7-30.. Para se consolidar as mudanças na formação médica, de modo que considerem as singularidades, ofereçam tecnologias para o cuidado e lidem com os aspectos subjetivos envolvidos no processo de viver e adoecer, serão necessários espaços de reflexão mais profundos do que apenas publicação de novas diretrizes curriculares.
Destaca-se também que as realidades construídas em consequência dos discursos analisados aqui não foram objeto de estudo, podendo evidenciar elementos outros que contradizem ou reafirmam os enunciados. Ainda que compreendamos que a formação não acontece a priori, não se realiza somente por meio do prescrito, mas também, a partir do encontro e na relação, os enunciados do texto certamente ativam práticas institucionais e organizam condições nas quais experiências acontecem1818 Traverso-Yépez MA. Dilemas na promoção da saúde no Brasil: reflexões em torno da política nacional. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):223-38.,2727 Willig C. Introduction to qualitative research in psychology: adventures in theory and method. Buckingham: Open University Press; 2010..
É nessa perspectiva que os trabalhos de Paulo Freire vêm ganhando espaço entre as propostas educacionais baseadas na liberdade e emancipação4242 Laverack G. Health promotion practice: power and empowerment. London: Sage Publications; 2004.,4343 Wallerstein N, Bernstein E. Empowerment education: Freire's ideas adapted to health education. Health Educ Q. 1988; 15(4):379-94.. Essa abordagem suscita a elaboração de estratégias a fim de promover a participação dos indivíduos visando maior controle sobre a vida, eficácia das políticas públicas, justiça social e melhoria da qualidade de vida44 Carvalho SR. As contradições da promoção à saúde em relação à produção de sujeitos e mudança social. Cienc Saude Colet. 2004; 9(3):669-78..
Portanto, considera-se que, ao se adotar um processo reflexivo e relacional na construção de políticas e projetos para a formação médica, não há como se conceber as DCN como algo acabado, mas como um vir-a-ser e como uma categoria de orientação para ação. É com base nesse pensamento que se aponta para a necessidade de ênfase na reflexividade, por meio das relações dialógicas e do senso crítico, como uma nova alternativa para a ação social.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
31 Jan 2019
Histórico
- Recebido
30 Out 2017 - Aceito
01 Out 2018