Fundamentos teóricos do projeto pedagógico de um curso de Medicina no sertão paraibano: contribuições ao debate sobre educação médica

Henrique Gonçalves Dantas de Medeiros Thiago Gomes da Trindade Sobre os autores

Resumo

Considerando os processos de reforma da educação médica, necessita-se estudar experiências surgidas recentemente. Assim, analisou-se o projeto pedagógico do curso (PPC) de Medicina da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), campus Cajazeiras (Paraíba, Brasil), procurando reconhecer seus fundamentos teóricos. Trata-se de pesquisa qualitativa, de caráter descritivo e exploratório, utilizando documentação indireta e observação direta intensiva para coleta de dados e o método hermenêutico-dialético para sua análise. Partindo de pressupostos da Medicina Rural, o projeto é eclético: contempla o Materialismo Histórico e Dialético, por meio da Epidemiologia Crítica Latino-Americana e da Metodologia da Problematização; referenciando-se na Pedagogia das Competências, aproxima-se de correntes racionalistas, individualistas e neopragmatistas; e, finalmente, dialoga com a Pós-Modernidade de Contestação e o Pensamento Complexo. Buscando superar o Paradigma Flexneriano, conclui-se que o projeto aproxima-se do Paradigma da Integralidade, mas enfrenta dificuldades para materializar-se, apontando-se propostas práticas para viabilizá-lo.

Palavras-chave:
Educação médica; Currículo; Educação em Saúde.

Introdução

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) motivou o esforço para consolidação de uma rede de Atenção Primária à Saúde (APS) e para mudança do modelo de atenção no Brasil. Isso tem exigido que se repense a formação dos profissionais de saúde, de modo que estejam alinhados aos princípios ético-políticos que embasam o Direito à Saúde. Assim, nos últimos anos os cursos de graduação vivenciaram um conjunto de reformas curriculares objetivando adequar o perfil do egresso à nova realidade. Tais reformas expressam a tentativa de superar o modelo flexneriano a partir de uma nova perspectiva: o paradigma da integralidade.

O modelo flexneriano se caracteriza por predominância de aulas teóricas, enfocando a doença e o conhecimento fragmentado em disciplinas; processo de ensino-aprendizagem centrado no professor em aulas expositivas e demonstrativas; predominância da prática desenvolvida em hospital; capacitação docente centrada unicamente na competência técnico-científica; e referência ao mercado de trabalho a partir do tradicional consultório e do exercício da Medicina de forma privada e médico-centrada11 Lampert JB. Tendências de mudanças na formação médica no Brasil: tipologia das escolas. 2a ed. São Paulo: Hucitec, ABEM; 2009..

Por outro lado, o paradigma da integralidade, embora tenha uma definição ainda difusa, nortear-se-ia por: abordagem do processo saúde-doença com maior ênfase no polo saúde; processo ensino-aprendizagem centrado no estudante; desenvolvimento de atividades práticas na rede assistencial do SUS em seus diversos níveis de atenção, voltado para as necessidades básicas de saúde da população; valorização tanto da competência técnico-científico quanto da didático-pedagógica de seu corpo docente; e referência ao mercado de trabalho em Saúde a partir da reflexão crítica sobre seus aspectos econômicos e humanísticos e suas implicações éticas11 Lampert JB. Tendências de mudanças na formação médica no Brasil: tipologia das escolas. 2a ed. São Paulo: Hucitec, ABEM; 2009..

É nesse cenário de mudanças na educação médica que o curso de Medicina do campus Cajazeiras da UFCG (Paraíba) é criado em 2007, incorporando as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) modificadas em 2001 e colocando como eixo estruturante do curso, enquanto módulo transversal e integrador, as disciplinas de Saúde da Família e Comunitária, assentadas sobre os saberes da Saúde Coletiva, da Medicina de Família e Comunidade, da Clínica Ampliada e da Pedagogia de matriz freireana, tendo como principal campo de prática a rede básica de saúde daquele município de pouco mais de sessenta mil habitantes, localizado no sertão paraibano22 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Panorama: Cajazeiras, PB, Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2018 [citado 7 Out 2017]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=250370&idtema=16&search=paraiba%7ccajazeiras%7csintese-das-informacoes.

Tendo em vista as mais recentes mudanças nas DCN em 2014, que buscam aprofundar o processo de reforma inaugurado em 2001 e considerando o contexto de expansão de vagas e de cursos de Medicina em regiões de difícil fixação de médicos, inaugurado pelo Programa Mais Médicos para o Brasil (PMMB), é fundamental a realização de estudos sobre as experiências acumuladas até aqui.

Assim, analisou-se o PPC de Medicina da UFCG - campus Cajazeiras -, procurando reconhecer seus pressupostos e fundamentos teóricos e filosóficos e extrair contribuições que possam embasar tanto projetos pedagógicos surgidos ou em processo de reformulação após as DCN de 2014 quanto políticas públicas relacionadas à educação médica.

Material e métodos

Considerando as reflexões metodológicas de Marconi e Lakatos33 Marconi LA, Lakatos EM. Fundamentos de metodologia científica. 5a ed. São Paulo: Atlas; 2003., trata-se de pesquisa localizada no quadro referencial marxista, partindo da teoria do materialismo histórico e dialético e do método de abordagem dialético, utilizando os métodos de procedimento histórico e monográfico, com uma abordagem qualitativa, de caráter descritivo e exploratório. Tem, como técnicas específicas de coleta de dados, a documentação indireta - pesquisas documental e bibliográfica, utilizando o PPC, as DCN de 2001 e 2014, portarias e resoluções da universidade, bem como documentos da Organização Mundial dos Médicos de Família (WONCA) e da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC); e a observação direta intensiva - e a observação participante, assistemática, natural, individual e na vida real. Assistemática porque consistiu em recolher e registrar os fatos da realidade sem que o pesquisador utilizasse meios técnicos especiais ou precisasse fazer perguntas diretas. É mais empregada em estudos exploratórios (como este) e não tem planejamento e controle previamente elaborados; caracterizando-se pelo fato de: "[...] o conhecimento ser obtido através de uma experiência casual, sem que se tenha determinado de antemão quais os aspectos relevantes a serem observados e que meios utilizar para observá-los"33 Marconi LA, Lakatos EM. Fundamentos de metodologia científica. 5a ed. São Paulo: Atlas; 2003. (p. 192).

Participante em razão da participação real do pesquisador na comunidade ou grupo (no caso, a comunidade universitária da UFCG em Cajazeiras). A observação participante pode ser classificada em artificial ou natural, sendo esta última a que melhor se encaixa no caso, já que observador pertence à mesma comunidade ou grupo que investigou. Individual porque partiu de um único observador/pesquisador. E na vida real porque as observações foram feitas no ambiente do próprio curso, a partir da experiência do pesquisador em posições-chave enquanto ex-coordenador de curso, ex-coordenador de internato, ex-membro do colegiado de curso e atual coordenador de residência médica, participando de reuniões da unidade acadêmica e outras instâncias administrativas.

Enquanto técnica de análise dos dados, trabalhou-se a partir do método hermenêutico-dialético44 Gomes R. A análise de dados em pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS, organizador. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 14a ed. Petrópolis: Vozes; 1999. p. 67-80. no reconhecimento dos pressupostos e fundamentos teóricos e filosóficos do PPC. Tal método de análise busca localizar a fala dos atores sociais (no caso, o texto do PPC) em seu contexto (possível graças à observação direta intensiva) para melhor ser compreendida. Tal compreensão tem como ponto de partida o interior da fala (do texto) e, como ponto de chegada, o campo da especificidade histórica e totalizante que produz a fala (texto). Para a operacionalização da proposta, seguiram-se os passos recomendados: organização e classificação dos dados e análise final. Na primeira etapa, recolheram-se todos os documentos relacionados ao PPC do curso. Na segunda, procedeu-se a uma leitura exaustiva e repetida dos textos, estabelecendo interrogações para fazer surgir o que há de relevante neles, partindo da compreensão de que o dado não existe por si só, mas é construído a partir dos questionamentos que fazemos sobre ele, com base em uma fundamentação teórica. Apoiado no que é relevante, elaboram-se categorias específicas, no caso, os pressupostos e fundamentos teóricos e filosóficos do curso. Por fim, na terceira e última fase, procurou-se estabelecer a relação entre os dados levantados e categorias elaboradas com a fundamentação teórica da pesquisa.

No que tange aos aspectos éticos, a pesquisa não envolveu a participação de seres humanos, não necessitando de aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

Resultados e discussão

O PPC da UFCG campus Cajazeiras tem como pressuposto para sua existência - não somente em sua Justificativa, mas também em diversas seções do texto (a exemplo da Apresentação) - a necessidade de enfrentar o passivo histórico no campo das políticas públicas de educação superior e de saúde na promoção do bem-estar social da população sertaneja. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, a Justificativa tem como foco de sua argumentação a discussão sobre a má distribuição de médicos e sua concentração nos grandes centros urbanos, a crítica aos limites da expansão do ensino superior brasileiro a partir do setor privado e a valorização das necessidades de saúde da população local como elemento a ser considerado na perspectiva do desenvolvimento da região55 Universidade Federal de Campina Grande. Centro de Formação de Professores. Unidade Acadêmica de Ciências da Vida. Projeto pedagógico do curso de medicina. Cajazeiras: UFCG; 2013..

A expansão de matrículas no ensino superior em instituições públicas e, especialmente, em regiões geograficamente menos desenvolvidas, além de melhor qualificar a assistência prestada, oferece a oportunidade de permanência e fixação dos filhos da terra que, em outras circunstâncias, provavelmente, não poderiam cursar uma faculdade de medicina55 Universidade Federal de Campina Grande. Centro de Formação de Professores. Unidade Acadêmica de Ciências da Vida. Projeto pedagógico do curso de medicina. Cajazeiras: UFCG; 2013.. (p. 23)

Ainda que não haja referência explícita, é interessante observar que as duas seções dialogam com a perspectiva da chamada Medicina Rural, definida pela WONCA como a atividade médica executada fora das zonas urbanas, onde o local de prática obriga alguns médicos generalistas a ter, ou a adquirir, habilidades procedurais e outras que geralmente não são necessárias na prática urbana66 Working Party on Rural Practice WONCA. Política de formação para a prática rural. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2013; 8 Supp 1:25-34. doi: 10.5712/rbmfc8(1)730.
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. Apesar de ser considerada um polo urbano regional, Cajazeiras ainda mantém um perfil de ruralidade inegável. Isso porque o rural não pode ser entendido conceitualmente de maneira restrita, apenas como o espaço por excelência da produção agrícola, mas de modo amplo, envolvendo as pequenas e médias cidades. Assim, o modo de ser rural se faz presente no campo e na cidade e passa a ser denominado ruralidade77 Verde VV. Território, ruralidade e desenvolvimento. Curitiba: IPARDES; 2004..

Nesse sentido, partindo do problema da escassez de médicos de família em regiões rurais, a WONCA faz nove recomendações para qualificar os serviços de saúde nessas áreas:

  1. Aumentar o número de estudantes de medicina recrutados de áreas rurais.

  2. Exposição substancial da prática rural no currículo médico de graduação.

  3. Programas de treinamento vocacional em medicina rural específicos, flexíveis, integrados e coordenados.

  4. Educação continuada específica adaptada e programas de desenvolvimento profissional que satisfaçam as necessidades identificadas dos médicos de família rurais.

  5. Posições acadêmicas apropriadas, desenvolvimento profissional e apoio financeiro para médicos-professores rurais para incentivar a pesquisa e educação rural.

  6. Escolas médicas devem assumir a responsabilidade de formar médicos devidamente qualificados para atender às necessidades da sua região geográfica geral, incluindo áreas carentes, e desempenhar um papel fundamental no fornecimento de apoio regional para os profissionais de saúde e cuidados de saúde terciários acessíveis.

  7. Desenvolvimento das necessidades rurais adequadas de base e recursos culturalmente sensíveis para cuidados de saúde rural com o envolvimento da comunidade local, com a cooperação regional e apoio do governo.

  8. Melhoria das condições profissionais e pessoais/familiares na prática rural para promover a retenção de médicos rurais.

  9. Desenvolvimento e implementação de estratégias nacionais de saúde rural, com apoio do governo central.66 Working Party on Rural Practice WONCA. Política de formação para a prática rural. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2013; 8 Supp 1:25-34. doi: 10.5712/rbmfc8(1)730.
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    (p. 25)

Como se pode verificar, o sentido de tais recomendações aponta na mesma direção que a dos textos introdutórios do PPC de Cajazeiras, ou seja, para o desenvolvimento local a partir da identificação das necessidades sociais, para o enfrentamento das quais o curso teria um papel de extrema relevância. Isso é ainda mais evidente quando se toma a recomendação no 6, mas também nas demais se percebe essa direcionalidade geral, ao apontar para aspectos que extrapolam simplesmente a graduação, como a educação continuada e de programas de desenvolvimento profissional (recomendação no 4), como é o caso das residências médicas; da participação comunitária e da parceria com os gestores locais (recomendação no 7), que aqui no Brasil denominaríamos de integração ensino-serviço-comunidade; e as estratégias nacionais de saúde rural (recomendação no 9), que, no contexto brasileiro a partir de 2013, tem como principal política pública o PMMB, o qual, apesar de voltado tanto para as regiões urbanas quanto para as rurais com escassez de médicos, tem exatamente nas últimas um grande destaque.

Contudo, quanto aos aspectos voltados mais estritamente ao âmbito da graduação, seria interessante frisar que o curso os absorveu apenas parcialmente em sua organização. No que tange à formação e prática rural (recomendação no 2), além do perfil de ruralidade que Cajazeiras ainda mantém e que molda seus serviços de saúde, é previsto o desenvolvimento do estágio supervisionado em Saúde Coletiva II em cidades ainda menores do entorno ou em Unidades Básicas de Saúde de zonas rurais propriamente ditas.

Porém, o curso não conta com nenhuma estratégia de seleção ou recrutamento de estudantes provenientes das áreas rurais, conforme recomendação no 1. Tendo como processo seletivo em seus primeiros anos o vestibular organizado pela Comissão de Processos Vestibulares (Comprov/UFCG) e, a partir de 2011, o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) como critério de seleção88 Universidade Federal de Campina Grande. Resolução nº 7/2010, de 20 de Julho de 2010. Regulamenta o Concurso Vestibular 2011, para ingresso nos cursos de graduação da Universidade Federal de Campina Grande, e dá outras providências [Internet]. Campina Grande: Conselho Universitário, Câmara Superior de Ensino; 2010 [citado 7 Out 2017]. Disponível em: http://www.ufcg.edu.br/~costa/resolucoes/res_16072010.pdf, somente a partir de 2015 aderiu ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu) do Ministério da Educação99 Universidade Federal de Campina Grande. Resolução nº 7/2013, de 1 de Outubro de 2013. Autoriza o procedimento de adesão ao Sistema de Seleção Unificada - Sisu/MEC, para ingresso nos cursos de graduação da UFCG e dá outras providências [Internet]. Campina Grande: Conselho Universitário, Câmara Superior de Ensino; 2013 [citado 7 Out 2017]. Disponível em: http://www.ufcg.edu.br/~costa/resolucoes/res_16072013.pdf, quando a UFCG também passar a se adequar ao estabelecido pela Lei Federal no 12.711, de 29 de agosto de 2012, que dispõe sobre o ingresso nas instituições federais de ensino (superior, técnico e médio), estabelecendo reserva de vagas para estudantes oriundos de escolas públicas, de baixa renda e de acordo com a proporção de negros, pardos e indígenas da população de cada estado1010 Presidência da República (BR). Lei nº 12.711, de 29 de Agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial da União. 30 Ago 2012.. Portanto, só muito recentemente a UFCG e, por extensão, o curso de Medicina de Cajazeiras, passou a adotar outros critérios de seleção que não apenas a meritocracia.

O fato de a UFCG ter aderido ao Sisu tardiamente explica apenas parcialmente um dos problemas que o curso tem enfrentado nos últimos anos: a evasão estudantil. Em 2011, o curso de Medicina já reduzira seus ingressos anuais de oitenta (quarenta por semestre) para trinta (entrada única), em razão dos problemas envolvendo a capacidade de absorção da rede de saúde local. Também é a partir desse ano que a UFCG adota o Enem como critério de seleção, mas não se incorpora ao Sisu. Por este, é possível disputar vagas de um curso em instituições diferentes, mas só é possível matricular-se em apenas uma, evitando que um mesmo candidato ocupe duas vagas, otimizando-as. Como a UFCG não aderia então ao Sisu, os estudantes se matriculavam no curso de Medicina de Cajazeiras, porém, na medida em que eram aprovados em outras instituições superiores nas sucessivas chamadas do sistema, abandonavam o curso, o qual, em razão de seu calendário de matrículas, acumulava vagas ociosas. É nesse contexto que as turmas ingressantes em 2011.1, 2012.1 e 2013.1 contavam em 2016 com 23, 12 e dez discentes, respectivamente.

Entretanto, mesmo após a adesão ao Sisu, esses números, embora relativamente melhores, ainda mantêm índices de evasão preocupantes, já que isso reduz o impacto social do curso, como previsto em seu PPC. Assim, as turmas 2014.1, 2015.1 e 2016.1 contam, respectivamente, com 23, 14 e 28 estudantes. Portanto, as raízes para tal fenômeno deveriam ser investigadas na própria dificuldade de consolidação do curso, o que mantém parcela do corpo discente nos anos seguintes ainda em busca de aprovação em outras escolas médicas; e essa é a parte que interessa aqui: a baixa capacidade de absorção de estudantes da própria região. Apenas a título de ilustração, a porcentagem do corpo discente oriunda de capitais na turma concluinte em 2016.1 em sua entrada em 2010.2 é de 69,2%, sendo que 38,4% são de Fortaleza (CE) e absolutamente nenhum é de Cajazeiras ou das cidades que compõem a Nona Região de Saúde da Paraíba.

Experiências em todo o mundo mostram que os estudantes de origem rural são muito mais propensos a se inserir na prática rural após a graduação. [...] A fim de assegurar que uma proporção adequada dos estudantes de origem rural seja recrutada em escolas de medicina, é necessário que haja mecanismos específicos incluídos no processo de seleção66 Working Party on Rural Practice WONCA. Política de formação para a prática rural. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2013; 8 Supp 1:25-34. doi: 10.5712/rbmfc8(1)730.
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. (p. 28-29)

Assim, o que se depreende é que o PPC, ainda que implicitamente, parte de elementos contemplados no debate sobre Medicina Rural, porém, talvez exatamente por não tomar esse campo do conhecimento de maneira explícita como seu pressuposto, apenas parcialmente aponta medidas congruentes com a intenção manifesta no texto em relação ao desenvolvimento social da região. Há que se considerar, por outro lado, que avanços em tal direção dependem eminentemente de definições políticas claras por parte da instituição, que vá além das declarações de boa vontade, mas se concretize em ação. Nesse sentido, o histórico da UFCG em relação às políticas afirmativas, por exemplo - quando a universidade as adota somente depois de promulgação de lei federal e apenas quase uma década após as primeiras experiências de processos seletivos com reserva de vagas (seja para parcelas mais vulneráveis economicamente, seja para grupos étnicos particulares ou para estudantes originários de escolas públicas) - parece traduzir resistências ao processo de democratização do ensino superior (aspecto inerente e inseparável das mudanças no âmbito da educação médica) e que, em última instância, vão de encontro ao potencial transformador embutido em sua proposta pedagógica.

Seguindo na análise, procede-se à investigação das correntes teóricas e campos do conhecimento expressados no Marco Teórico, apresentado em sua quarta seção. Nele são abordados oito aspectos ou pressupostos, como define o texto, a saber: a Medicina, a Articulação Dialética Teoria-Prática, a Diversificação dos Espaços de Aprendizagem, a Pesquisa como Eixo Condutor do Ensino, o Currículo baseado no Humanismo, o Ser Humano, o Aluno como Sujeito e a Flexibilidade Curricular.

Na definição da Medicina, sumariza-se o desenvolvimento científico desta ao longo da história, destacam-se as contribuições da medicina hipocrática, passando pela Medicina Social e seus expoentes na Europa no século XIX, pelas descobertas no campo da microbiologia, pelo conceito de saúde da Organização Mundial de Saúde e, finalmente, pelo reconhecimento da chamada Epidemiologia Social Latino-Americana e sua contribuição à compreensão da determinação social do processo saúde-doença.

O que fica claro no tratamento desse aspecto é a marcante influência da Epidemiologia Social Latino-Americana na compreensão do papel da Medicina, expressa inclusive na abordagem - ainda que sumarizada, mas histórica - com que o texto trabalha o tema. Partindo do materialismo histórico-dialético, o característico dessa corrente do pensamento epidemiológico é o pressuposto teórico de que é preciso analisar as condições de saúde da população tendo em conta os componentes estruturais das sociedades capitalistas: processo de trabalho, relações de produção, classe social, etc1111 Centro Brasileiro de Estudos em Saúde. Rediscutindo a questão da determinação social da saúde: termo de referência para seminário do CEBES [Internet]. Rio de Janeiro; 2009 [citado 19 Jul 2016]. Disponível em: http://lms.ead1.com.br/upload/biblioteca/curso_11301/17054949449031130159091.pdf
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. Ela também atravessa outras seções do PPC, como no Perfil do Egresso, na qual se afirma que o concluinte seja:

[...] capaz de ações clínicas, dialógicas e sociais focadas não meramente na doença, mas de forma integral centradas na pessoa, na família, na comunidade em que o indivíduo se insere, interagindo em sua análise com a estrutura da sociedade e a determinação social do processo saúde-doença55 Universidade Federal de Campina Grande. Centro de Formação de Professores. Unidade Acadêmica de Ciências da Vida. Projeto pedagógico do curso de medicina. Cajazeiras: UFCG; 2013.. (p. 30)

Apesar da influência do materialismo histórico e dialético, chama a atenção a incongruência teórica em relação ao núcleo filosófico que embasa o segundo aspecto dessa seção, no caso, a “articulação dialética teoria/prática”. Isso porque, apesar de o termo apontar para a relação dialética entre essas duas dimensões, alimentando a expectativa de abordá-las sob a perspectiva do conceito de práxis, sua referência teórica é, na verdade, a Pedagogia das Competências.

Dentro da Pedagogia das Competências, o aprendizado se pauta pela construção integrada de conhecimentos, habilidades e atitudes que juntas são capazes de articular dialeticamente o saber e o fazer sintetizando um novo patamar que é o saber-fazer55 Universidade Federal de Campina Grande. Centro de Formação de Professores. Unidade Acadêmica de Ciências da Vida. Projeto pedagógico do curso de medicina. Cajazeiras: UFCG; 2013.. (p. 23)

Essa pedagogia, todavia, baseia-se, segundo Araújo1212 Araújo RML. As referências da pedagogia das competências. Perspectivas (Florianópolis). 2004; 22(2):497-524., em pressupostos de cunho racionalista, individualista e neopragmatista, em contradição com uma concepção educacional fundada na filosofia da práxis.

O racionalismo expressa-se a partir da influência das ciências cognitivas, fundado no trio saber, saber-fazer e saber-ser. A ideia de objetivação (identificação e normalização) das competências estaria subjacente à tentativa de explicitação dos atos humanos, particularmente no trabalho, em uma sequenciação lógica, para a qual se acredita na possibilidade de controle e autocontrole de modo a gerar performances e eficácia. Tal perspectiva, todavia, não poderia capturar alguns elementos subjetivos que definem o comportamento competente, como a imaginação, a criatividade e a transgressão, mostrando-se apta, somente, a promover a conformação dos alunos aos processos nos quais viessem a se inserir.

Outra marca da Pedagogia das Competências seria a sua inspiração individualista, pois, apesar de permanecer vaga, a noção de competência é utilizada supondo-se individualização na formação, nas avaliações e nos balanços de competências. Assim, uma pedagogia individualista promove um processo formativo em que se valoriza o desenvolvimento de capacidades individuais, que sejam de caráter individual e não social. Desvaloriza-se, por conseguinte, a ideia de desenvolvimento de capacidades motoras, intelectuais e comportamentais comum a todos os indivíduos de um processo formativo.

Finalmente, a última característica atribuída seria o neopragmatismo. O pragmatismo em si, contraditoriamente, conformaria uma corrente antirracionalista, pois o método pragmático se oporia ao movimento do racionalismo ao propor uma atitude de olhar para além das “categorias” e de procurar por frutos, consequências e fatos, negando a possibilidade do conhecimento verdadeiro, objetivo. O neopragmatismo, por sua vez, aproximaria-se do discurso pós-moderno do irracionalismo ao considerar a impossibilidade de um conhecimento verdadeiro acerca da realidade, colocando em descrédito as teorias que se propõem objetivas e definindo-as apenas como narrativas. Ou seja, o pragmatismo e o neopragmatismo questionariam todo o edifício construído pelas ciências cognitivas em torno da ideia de competências objetivadas, considerando-as apenas como representações ou narrativas. Assim, a Pedagogia das Competências buscaria realizar uma combinação entre o ideário racionalista e o pragmatista. Do racionalismo, resgatar-se-iam as tentativas de objetivação das competências tendo em vista o planejamento e controle do sistema de formação. Do pragmatismo, retomar-se-iam o utilitarismo, o imediatismo, a adaptabilidade, a busca por produzir aprendizagens úteis, aplicáveis e de ajustamento do indivíduo à realidade extremamente dinâmica e móvel1212 Araújo RML. As referências da pedagogia das competências. Perspectivas (Florianópolis). 2004; 22(2):497-524..

Ressalte-se, todavia, que, apesar das críticas à Pedagogia das Competências, essa concepção pedagógica tem sido amplamente difundida e valorizada em diversos fóruns educacionais Brasil afora. O próprio Araújo1212 Araújo RML. As referências da pedagogia das competências. Perspectivas (Florianópolis). 2004; 22(2):497-524. observa que ela traz também aspectos positivos, como o resgate do papel da atividade nos processos de ensino-aprendizagem e a preocupação com a vinculação desses processos com a realidade na qual estão inseridos. Ademais, no âmbito da Educação Médica e nos espaços da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), essa é uma concepção bastante presente, assim como no seio da SBMFC, como mostram documentos como o Currículo Baseado em Competências para Medicina de Família e Comunidade1313 Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Currículo baseado em competências para medicina de família e comunidade [Internet]. Rio de Janeiro; 2014 [citado 7 Out 2017]. Disponível em: http://www.sbmfc.org.br/media/Curriculo%20Baseado%20em%20Competencias(1).pdf
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. Na verdade, as próprias DCN apontam para o desenvolvimento dessas competências, em franco diálogo com essa concepção pedagógica. Logo, o PPC estaria em perfeita consonância com essa perspectiva das DCN e aqui caberia apenas destacar essa contradição entre o fundamento filosófico desse aspecto da articulação dialética teoria-prática com o da medicina.

O terceiro elemento trabalhado no marco teórico é a Diversificação dos Espaços de Aprendizagem, pela qual se compreende que “o eixo da formação, até então centrado na instituição, passa a incorporar os vários locais onde a vida e o trabalho em saúde acontecem”55 Universidade Federal de Campina Grande. Centro de Formação de Professores. Unidade Acadêmica de Ciências da Vida. Projeto pedagógico do curso de medicina. Cajazeiras: UFCG; 2013. (p. 24). Remetendo implicitamente ao conceito de Integração Ensino-Serviço-Comunidade, prevê-se: "[...] a inserção precoce do estudante na realidade social e sanitária onde se produz o processo saúde-doença, bem como uma prática de ensino que acompanhe uma cadeia progressiva de cuidados constituída a partir dos diversos níveis de atenção [...]"55 Universidade Federal de Campina Grande. Centro de Formação de Professores. Unidade Acadêmica de Ciências da Vida. Projeto pedagógico do curso de medicina. Cajazeiras: UFCG; 2013. (p. 24-25).

Segundo Albuquerque et al.1414 Albuquerque VS, Gomes AP, Rezende CHA, Sampaio MX, Dias OV, Lugarinho RM. A integração ensino-serviço no contexto dos processos de mudança na formação superior dos profissionais da saúde. Rev Bras Educ Med. 2008; 32(3):356-62., um dos entraves para a integração ensino-serviço seria as metodologias pedagógicas baseadas na transmissão de conhecimentos, enfatizando mais o ensino do que a aprendizagem, reforçando a ideia de que a universidade não teria outro papel com a sociedade a não ser o de criar, preservar ou transmitir o saber, deixando de lado a missão de atuar na produção de serviços. Por outro lado, um dos focos da mudança curricular na área da Saúde seria a formação de profissionais para conformação de um modelo de atenção à saúde centrado no usuário. Porém, a integração ensino-serviço pressupõe a presença de estudantes em formação e docentes em cenários onde ainda se produz atenção à saúde sob um modelo tecnoassistencial hegemônico centrado no procedimento, isto é, um modelo no qual o principal compromisso é com a produção de procedimentos e apenas secundariamente com as necessidades dos usuários.

Tal desarticulação entre teoria e prática suscita a reflexão crítica de que a prática se torna uma exigência, sem a qual a teoria pode tornar-se falácia, e a prática, ativismo. Quando a integração ensino-serviço acontece efetivamente, focada no usuário, dilui-se esta dicotomia entre o ensino e a produção dos cuidados em saúde1414 Albuquerque VS, Gomes AP, Rezende CHA, Sampaio MX, Dias OV, Lugarinho RM. A integração ensino-serviço no contexto dos processos de mudança na formação superior dos profissionais da saúde. Rev Bras Educ Med. 2008; 32(3):356-62..

Assim, a Metodologia da Problematização é apontada como estratégia de integração ensino-serviço-comunidade. Associada a outros métodos baseados em problemas como estratégia de ensino-aprendizagem, é uma alternativa para introduzir modelos inovadores, pois, quando o estudante interage com a cultura sistematizada de forma ativa, como ator na construção do conhecimento, ocorre a aprendizagem significativa1515 Vieira MNCM, Pinto MPPA. Metodologia da problematização (MP) como estratégia de integração ensino-serviço em cursos de graduação na área de saúde. Medicina (Ribeirão Preto). 2015; 48(3):241-8.. Logo, pela problematização do conhecimento vulgar mediado pela teoria, é possível promover reconstruções conceituais nesse saber, apreensão e aprofundamento do conhecimento científico1616 Borille DC. A aplicação do método do arco da problematização na coleta de dados em pesquisa de enfermagem: relato de caso. Texto Contexto Enferm. 2012; 21(1):209-16..

Portanto o pressuposto da integração ensino-serviço-comunidade presente na Diversificação de Espaços de Aprendizagem caminha pari passu com o pressuposto do Aluno como Sujeito, um quarto elemento do marco teórico do PPC, tendo como solda a Metodologia da Problematização. Essa, por sua vez, remete aos acúmulos teóricos propiciados, entre outros, por Paulo Freire. Sendo assim:

Pautado no humanismo, a Metodologia Problematizadora reconhece o homem e os valores humanos acima de todos os outros valores. Da fenomenologia, adota o postulado básico da noção de intencionalidade da consciência humana, ao afirmar que o objeto só existe para o sujeito que lhe dá significado e que a consciência do objeto se desvela progressivamente, e nunca acaba, se tornando uma exploração exaustiva do mundo. Do existencialismo, utiliza a crença de que o homem se constrói e pode ser sujeito. Quando integrado em seu contexto, reflete a respeito dele e com ele se compromete na busca de realização do trabalho de conscientização, pelo processo de tomada de consciência crítica da realidade que se desvela progressivamente. Por fim, do marxismo utiliza o conceito de práxis como uma atividade transformadora, ao tornar possível a passagem da teoria à prática consciente, entre pensamento e ação intencionalmente realizada1616 Borille DC. A aplicação do método do arco da problematização na coleta de dados em pesquisa de enfermagem: relato de caso. Texto Contexto Enferm. 2012; 21(1):209-16.. (p. 210)

Podemos apontar, assim, uma segunda concepção pedagógica, cujas bases filosóficas são diversas da Pedagogia das Competências, embora contenham aproximações, como a valorização da atividade prática.

Como visto, uma das correntes filosóficas tributárias da Metodologia Problematizadora é o humanismo. Esse é um elemento reafirmado no pressuposto do Currículo Baseado no Humanismo presente no PPC. Contudo, o Humanismo é um termo polissêmico. Do ponto de vista da filosófico, compreende concepções que colocam o ser humano no centro de suas preocupações e reflexões. Assim, além do Humanismo Clássico, poder-se-ia citar o Humanismo Renascentista, o Racionalista, assim como uma miríade de escolas filosóficas que deitam raízes sobre esse conceito, como a Fenomenologia e o Existencialismo. O próprio marxismo apresenta correntes que reivindicam para si a herança humanista do Iluminismo1717 Coutinho CN. O estruturalismo e a miséria da razão. 2a ed. São Paulo: Expressão Popular; 2010.. Porém, o que se depreende da leitura do PPC quanto a esse quesito é a influência da Bioética e, sobretudo, de uma Ética na compreensão do que seria um Currículo Baseado no Humanismo.

Essa Ética, por sua vez, remeteria ao multifacetado movimento sociocultural da pós-modernidade, do qual Boaventura de Sousa Santos e Edgar Morin estão entre os mais importantes teóricos; o primeiro estando dentro da corrente que ele mesmo cunhou de pós-modernidade de contestação1818 Gonçalves MB. Boaventura de Sousa Santos e a "Pós-modernidade de contestação": algumas notações marxistas. Aurora (Marília). 2011; 4(2):1-17., e o segundo, a partir do chamado Pensamento Complexo ou Teoria da Complexidade. Essa influência transparece quando o PPC afirma ser no cotidiano das práticas “que podemos construir uma ética ‘que alimente o desejo de todos os homens de buscarem menos sofrimento para si e para outro, impedindo-os de separar espaços de cidadania na vida cotidiana.’”55 Universidade Federal de Campina Grande. Centro de Formação de Professores. Unidade Acadêmica de Ciências da Vida. Projeto pedagógico do curso de medicina. Cajazeiras: UFCG; 2013. (p. 25), reafirmando a concepção de ser humano como um conjunto de possibilidades históricas.

A influência desses autores se estende para dois outros atributos levantados no Marco Teórico do PPC: o ser humano e a pesquisa como eixo condutor do ensino, em que essa ética atravessaria e nortearia a compreensão de ambos. Dessa forma, ao se reivindicar um “novo paradigma ‘de um conhecimento prudente para uma vida decente’”; a compreensão do ser humano “na sua complexidade como um ser biológico, cultural, histórico, social e linguístico”, “não tendo ‘uma identidade fixa e estável, mas identidades abertas, contraditórias, inacabadas e fragmentadas’”; a constatação de que “frente à complexidade do real não há saber único, como também não há resposta única”; e a “busca da interconexão entre saberes discursivos, na articulação teoria-prática, nas melhores evidências científicas para assegurar uma prestação de serviços de qualidade”55 Universidade Federal de Campina Grande. Centro de Formação de Professores. Unidade Acadêmica de Ciências da Vida. Projeto pedagógico do curso de medicina. Cajazeiras: UFCG; 2013. (p. 25), enfim, perante essas afirmações, têm-se fortes evidências da influência do filósofo português, especialmente quando as relacionamos com sua proposta de Ecologia de Saberes.

Dentro dela, uma ética estaria implicada na abordagem do ser humano, das ciências, do conhecimento e da pesquisa, estimulando, assim, uma relação dialógica decorrente da vontade de conhecer para compreender, ao invés de conhecer para dominar ou para ditar um conjunto de regras e preceitos orientadores da conduta moral1919 Oliveira FB, Silva AO. Enfermagem em saúde mental no contexto da reabilitação psicossocial e da interdisciplinaridade. Rev Bras Enferm. 2000; 53(4):584-92., como decorreria do postulado da primazia da ciência nos marcos da modernidade. Essa perspectiva ética está em sintonia com as proposições de Edgar Morin ao sublinhar que todo conhecimento pode ser empregado para manipulação e que o pensamento complexo leva a uma ética da solidariedade e da não coerção (alimentando assim a ética), reivindicando uma ciência com consciência cujo princípio de ação não ordene, não manipule, não dirija, mas organize, comunique e estimule2020 Santos SSC, Hammerschmidt KSA. A complexidade e a religação de saberes interdisciplinares: contribuição do pensamento de Edgar Morin. Rev Bras Enferm. 2012; 65(4):561-5..

Finalmente, o oitavo e último pressuposto do Marco Teórico do PPC é a Flexibilidade Curricular, dentro da qual o currículo é compreendido como “terreno de produção e de política cultural”, e não como um mero “veículo de algo a ser transmitido e passivamente absorvido”, contrapondo à “rigidez da ‘grade curricular’” uma “dinâmica flexível, onde a interdisciplinaridade e a participação do aluno são fundamentais na construção de uma formação crítica”55 Universidade Federal de Campina Grande. Centro de Formação de Professores. Unidade Acadêmica de Ciências da Vida. Projeto pedagógico do curso de medicina. Cajazeiras: UFCG; 2013. (p. 26). Essa perspectiva vai ao encontro do que afirma Lampert2121 Presidência da República (BR). Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. quando diz que o currículo deve ser localizado no âmbito das determinações sociais, históricas e de seu contexto, e que, portanto, ao se tratar de currículos, além das questões de procedimentos, de técnicas e de métodos, o fundamental seria incluir uma concepção crítica da realidade, guiada por abordagens sociológicas, políticas e epistemológicas.

Resta claro, portanto, que o PPC apresenta uma concepção crítica da realidade. Partindo implicitamente de pressupostos comuns à problemática da chamada Medicina Rural, subárea do conhecimento ligada à Medicina de Família e Comunidade, apresenta grande ecletismo teórico e filosófico: contempla o Materialismo Histórico e Dialético, que marca fortemente as concepções da Epidemiologia Crítica Latino-Americana (aqui fundamentando a compreensão da Medicina) e da Metodologia da Problematização (subjacente à compreensão do aluno como sujeito e à integração Ensino-Serviço-Comunidade implícita no pressuposto da diversificação dos espaços de aprendizagem); referenciando-se na Pedagogia das Competências dentro do pressuposto da articulação dialética teoria-prática; dialoga com correntes filosóficas de cunho racionalista, individualista e neopragmatista; e, finalmente, bebe de fontes do pensamento pós-moderno, mais especificamente, da Pós-Modernidade de Contestação de Boaventura de Sousa Santos e do Pensamento Complexo de Edgar Morin, que fundamentam uma compreensão ética do ser humano e da ciência, a qual, por sua vez, norteia os pressupostos de currículos baseados no humanismo e da pesquisa como eixo condutor do ensino.

Se esse ecletismo em alguns momentos traz à tona contradições relevantes entre as diferentes correntes filosóficas, por outro lado, está em perfeita sintonia com o princípio do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas expressos no parágrafo III do Art. 206 da Constituição Federal2121 Presidência da República (BR). Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988., bem como nas DCN de 2001 que embasam o PPC, em especial, no seu Art. 10, no qual se afirma que o currículo deverá: "[...] contribuir, também, para a compreensão, interpretação, preservação, reforço, fomento e difusão das culturas nacionais e regionais, internacionais e históricas, em um contexto de pluralismo e diversidade cultural"2222 Ministério da Educação (BR). Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 4, de 7 de Novembro de 2001. Institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília, DF: MEC; 2001. (p. 4).

Conclusão

Enquanto o paradigma flexneriano está fundado na Biomedicina, o paradigma da integralidade contemplará uma miríade de correntes filosóficas, diversas epistemologicamente, mas que comungam da crítica aos pressupostos positivistas e neopositivistas da Biomedicina. Assim, considerando a necessidade de superação do primeiro pelo segundo, pode-se afirmar que os pressupostos e fundamentos teóricos e filosóficos do curso de Cajazeiras se aproximam substancialmente do paradigma da integralidade em sua proposta pedagógica.

Todavia, sabe-se que não bastam apenas a normatização e rearranjos institucionais para que o processo de mudança na Educação Médica ocorra, pois este, enquanto processo político, depende da capacidade de conquistar hegemonia na sociedade em torno de seu projeto alternativo. Isso também se depreende da experiência de Cajazeiras, que, tendo no plano teórico de seu PPC uma proposta avançada, apresenta dificuldade na sua materialização.

A Observação Direta Intensiva nos espaços de gestão acadêmica revela a dificuldade de apreensão dos princípios do PPC por parte dos docentes, especialmente entre médicos especialistas focais. A baixa participação nas reuniões da unidade acadêmica, o fato de grande parte morar em outras cidades, a postura de encarar o trabalho docente como algo secundário (dados os baixos salários quando comparados aos rendimentos na assistência médica), a enorme proporção de professores com carga horária parcial (T-20) e o pouco acúmulo na preparação didático-pedagógica são alguns obstáculos que reforçam a dificuldade em concretizar o PPC.

Assim, enfrentar a tendência de ressurgimento de uma concepção pedagógica tradicional exige respostas que, longe de fazer concessões ao modelo flexneriano, aprofundem o potencial transformador do PPC. Aqui caberia apenas listar algumas propostas:

Estimular a composição de quadro docente formado majoritariamente por Médicos de Família e Comunidade e especialistas gerais (pediatras gerais, cirurgiões gerais, etc.), reservando espaço menor para especialistas focais naquilo que for demanda da rede de saúde local.

Valorizar, nos concursos públicos, os profissionais que moram ou desenvolvem suas atividades assistenciais na cidade-sede.

Estimular processos seletivos que adotem critérios de discriminação positiva de candidatos oriundos de regiões interioranas e que não se centrem na valorização dos conhecimentos das ciências naturais, mas que deem maior peso aos conhecimentos humanísticos, adequando o perfil dos novos discentes aos pressupostos das DCN.

Fomentar a capacitação gerencial e didático-pedagógica por meio de programas de pós-graduação lato sensu, eventos regionais, oficinas e cursos na área da Administração e no âmbito das metodologias ativas de ensino-aprendizado em parcerias com entidades científicas, como a Abem e a SBMFC.

Certamente o aprofundamento dessas propostas transborda o escopo deste artigo e coloca a necessidade de novas pesquisas, mas aponta caminhos a serem seguidos no atual processo de reforma da educação médica desencadeado pelo PMMB.

Agradecimentos

Agradecemos a toda a comunidade acadêmica do curso de Medicina da Unidade Acadêmica de Ciências da Vida da Universidade Federal de Campina Grande - campus Cajazeiras, cujo projeto pedagógico foi objeto desta pesquisa; bem como ao Programa de Pós-Graduação em Saúde da Família no Nordeste da Universidade Federal do Rio Grande do Norte; ao Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Nesc/UFRN); e à Rede Nordeste de Formação em Saúde da Família (Renasf), que possibilitaram a viabilização da dissertação de mestrado que originou o presente artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Fev 2019

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2017
  • Aceito
    08 Out 2018
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