Resumos
Este artigo traz os resultados de uma pesquisa que teve como principal objetivo investigar se, e como, o Programa Música Viva, realizado em uma cidade do estado de Minas Gerais, Brasil, promove o desenvolvimento positivo de adolescentes que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Trata-se de um estudo qualitativo, fundamentado nos pressupostos da bioecologia do desenvolvimento humano proposta por Bronfenbrenner e na teoria do Desenvolvimento Positivo de Lerner. Os procedimentos metodológicos utilizados na investigação incluíram observação participante, diário de campo, entrevista semiestruturada e análise de conteúdo. Os resultados mostraram que o programa favorece o desenvolvimento positivo dos sujeitos, uma vez que, ao oferecer-lhes aulas gratuitas de instrumentos musicais, oportuniza a esses jovens o acesso à cultura e ao lazer e, assim, possibilidades mais amplas de exercerem suas cidadanias, mudarem suas trajetórias de vida e se desenvolverem de maneira saudável.
Adolescência; Desenvolvimento humano; Pesquisa qualitativa
This article provides the results of a study that aimed to investigate whether – and how - the program Música Viva , carried out in a city of the state of Minas Gerais, Brazil, promotes the positive development of socially vulnerable adolescents. It is a qualitative study grounded on the presuppositions of the Bioecological Model of Human Development, proposed by Bronfenbrenner, and on Lerner’s Positive Youth Development Theory. The methodological procedures used in the investigation were participatory observation, field diary, semi-structured interview and content analysis. The results showed that the program fosters subjects’ positive development: by offering them free musical instrument lessons, it enables them to have access to culture and leisure. Therefore, the program provides broader possibilities for youths to exercise their citizenship, change their life trajectories, and develop in a healthy way.
Adolescence; Human development; Qualitative research
Este artículo muestra los resultados de un estudio cuyo principal objetivo fue investigar si, y de qué manera, el programa Música Viva, realizado en una ciudad del Estado de Minas Gerais, Brasil, promueve el desarrollo positivo de adolescentes que se encuentran en situación de vulnerabilidad social. Se trata de un estudio cualitativo, basado en las presuposiciones de la bioecología del Desarrollo Humano propuesta por Bronfenbrenner y en la teoría del Desarrollo Positivo de Lerner. Los procesamientos metodológicos utilizados en la investigación fueron: observación participativa, diario de campo, entrevista semiestructurada y análisis de contenido. Los resultados mostraron que el programa favorece el desarrollo positivo de los sujetos, puesto que, al ofrecerles clases gratis de instrumentos musicales, ofrece a esos jóvenes la oportunidad del acceso a la cultura y al ocio, así como posibilidades más amplias de que ejerzan su ciudadanía, cambien sus trayectorias de vida y se desarrollen de manera saludable.
Adolescencia; Desarrollo humano; Investigación cualitativa
Introdução
Este artigo traz os resultados de uma pesquisa de iniciação científica desenvolvida na UFSJ em 2016, intitulada ‘‘O Programa Música VivaddPrograma Música Viva: valorização da cidadania por meio da música, financiado pelos editais Proext 2014 e Proext 2015-2016. como contexto promotor do desenvolvimento positivo de adolescentes’’. Fruto de uma parceria entre os cursos de Psicologia e de Música da instituição, o programa consiste em um projeto de extensão universitária que se divide em duas ações distintas e complementares: a primeira oferece atividades de musicalização para crianças abrigadas em Casas Lares da cidade de São João del Rei, Minas Gerais; e a segunda disponibiliza o ensino de instrumentos de corda (viola, violino e violoncelo) para adolescentes, com a finalidade de formar uma orquestra jovem.
Uma vez mencionado o Programa Música Viva, cabe esclarecer que esta pesquisa se ateve ao núcleo da orquestra de cordas enquanto campo de investigação. O estudo contou com a colaboração de discentes dos cursos de Psicologia e de Música, que atuaram como estagiários nas atividades da orquestra, e foi desenvolvido juntamente com um trabalho de pós-graduação em Psicologia da UFSJ, que teve como escopo investigar o mesmo grupo musical.
As atividades da orquestra aconteceram no município de Santa Cruz de Minas, localizado na mesorregião do Campo das Vertentes em Minas Gerais, Brasil, cidade que, em 2008, foi incluída entre as mais violentas do Brasil e elencada em terceiro lugar no que se refere a assassinatos de jovens, considerando o tamanho da população11. Globo Minas. Santa Cruz de Minas e Betim são as cidades mais violentas do estado [Internet]. 2008 [citado 7 Jun 2019]. Disponível em: http://globominas.globo.com/GloboMinas/Noticias/Plantao/0,,MUL279298-9076,00-SANTA+CRUZ+DE+MINAS+E+BETIM+SAO+AS+CIDADES+MAIS+VIOLENTAS+DO+ESTADO.html
http://globominas.globo.com/GloboMinas/N... . Os dados do Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE)22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (). Santa Cruz de Minas. Panorama [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2010 [citado 7 Jun 2019]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/santa-cruz-de-minas/panorama
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/sa... , produzidos no Censo de 2010, demonstraram que nessa ocasião o município possuía 7.865 habitantes, sendo que 22,7% dessa amostra estava inserida na faixa etária entre zero e 14 anos, e 2,3% encontrava-se em situação de extrema pobreza.
Os dados mencionados permitem inferir que os jovens do município, público-alvo do projeto extensionista, encontram-se em situação de vulnerabilidade social. Esse termo se caracteriza pela carência de recursos materiais e simbólicos apresentada por alguns indivíduos ou grupos, bem como pela falta de acesso a oportunidades sociais, econômicas e culturais que provêm da sociedade, do mercado e do Estado33. Ambromovay M, Castro MG, Pinheiro LC, Lima FS, Martinelli CC. Juventude, violência e vulnerabilidade social na América Latina: desafios para políticas públicas. Brasília: UNESCO; 2002. , podendo significar também a não satisfação de necessidades básicas. Tal situação pode se traduzir em desvantagens para o desempenho pessoal e a mobilidade social dessas pessoas, pois o ser humano socialmente vulnerável tem acesso restrito a atividades de lazer e cultura e possui sua cidadania fragilizada, estando mais suscetível a não alcançar patamares satisfatórios de qualidade de vida44. Carmo ME, Guizardi FL. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cad Saude Publica. 2018; 34(3):1-14. .
O material produzido durante a pesquisa confirma que os participantes do programa vivenciam situações que podem ser compreendidas a partir do conceito de vulnerabilidade social. Foi possível perceber alguns contextos nos quais esses indivíduos estão inseridos que podem comprometer suas cidadanias, seus desenvolvimentos saudáveis e suas qualidades de vida, tais como: dificuldades financeiras na família, o que por vezes resulta na não satisfação de necessidades básicas; acesso precário à educação, cultura e lazer; assassinatos que acontecem no âmbito familiar dos jovens; pais e/ou outros cuidadores que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas ou que estão em situação de encarceramento no sistema prisional brasileiro; e danos psicológicos sofridos pelos adolescentes em decorrência das situações que vivenciam cotidianamente.
Apesar da situação de não usufruto dos direitos de cidadania e de dificuldade de acesso a diversas oportunidades sociais na qual geralmente se encontra o jovem em situação de vulnerabilidade social, este pode receber apoio e oportunidades que lhe possibilitem criar ou aprimorar as capacidades necessárias para modificar essa condição44. Carmo ME, Guizardi FL. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cad Saude Publica. 2018; 34(3):1-14. . De acordo com Bronfenbrenner55. Bronfenbrenner U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas; 2002. , 66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. , por meio do respaldo de instituições e do planejamento de políticas públicas, programas e projetos, é possível a criação de contextos que oportunizem qualidade de vida, cidadania e desenvolvimento saudável a adolescentes socialmente vulneráveis.
Segundo o relatório da Organização Mundial de Saúde (WHO)77. World Health Organization. Study Group on Young People and ‘Health for All by the Year 2000’ & World Health Organization. Young people’s health - a challenge for society: report of a WHO Study Group on Young People and “Health for All by the Year 2000”. Geneva: WHO; 1986 [citado 7 Jun 2019]. Disponível em: http://www.who.int/iris/handle/10665/41720
http://www.who.int/iris/handle/10665/417... , a juventude se estende dos dez aos 24 anos de idade, momento em que o indivíduo passa por inúmeras transformações. Inicia-se com a puberdade, trazendo alterações hormonais e corporais, bem como mudanças cognitivas, psicológicas e sociais. Trata-se de um período em que a pessoa caminha em direção à idade adulta, como ser individual que procura seu lugar no mundo, adquirindo seus próprios valores e perspectivas diante da vida. É uma fase de emancipação e de busca por um espaço próprio para ocupar na sociedade enquanto cidadão e, portanto, caracteriza-se como um importante momento do desenvolvimento humano88. Lerner RM. Early adolescence: perspectives on research, policy, and intervention. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates; 1993.
9. Lerner RM. Promoting positive youth development: theoretical and empirical bases. Washington, DC: National Academies of Science; 2005.
10. Lerner RM. The good teen. New York: The Stonesong Press; 2007.
11. Lerner RM. Promoting positive human development and social justice: Integrating theory, research and application in contemporary developmental science. Int J Psychol. 2015; 50(3):165-73. - 1212. Senna SRCM, Dessen MA. Reflexões sobre a saúde do adolescente brasileiro. Psicol Saude Doenças. 2015; 16(2):217-29. .
Bronfenbrenner66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. compreende o desenvolvimento humano como processo que ocorre ao longo da vida das pessoas, períodos de estabilidades e mudanças em seus cursos de vida. O autor enfatiza a interação entre o indivíduo e o seu contexto nesse processo e propõe o desenvolvimento como dependente de quatro fatores: processo, pessoa, contexto e tempo (PPCT). Partindo dessa perspectiva e lançando mão dos conceitos que formam o modelo PPCT, o desenvolvimento do homem é influenciado por suas características genéticas e por sua trajetória de vida individual, bem como pela relação que ele estabelece com o contexto sociocultural no qual está inserido, considerando ainda que tal relação se desdobra em determinado período espaço-temporal.
Dado que o desenvolvimento do homem é afetado positiva ou negativamente pelos contextos socioculturais nos quais ele se insere e considerando que os adolescentes estão em uma fase importante do desenvolvimento humano, é fundamental oferecer-lhes condições favoráveis para que se desenvolvam de maneira saudável88. Lerner RM. Early adolescence: perspectives on research, policy, and intervention. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates; 1993.
9. Lerner RM. Promoting positive youth development: theoretical and empirical bases. Washington, DC: National Academies of Science; 2005.
10. Lerner RM. The good teen. New York: The Stonesong Press; 2007. - 1111. Lerner RM. Promoting positive human development and social justice: Integrating theory, research and application in contemporary developmental science. Int J Psychol. 2015; 50(3):165-73. , fator que se refere a uma pessoa ativa no seu próprio processo de desenvolvimento e nas relações com o seu contexto. Essa atenção se torna mais necessária quando se trata de adolescentes em situação de vulnerabilidade social, uma vez que encontram oportunidades restritas de acesso à cultura, ao lazer e à cidadania, o que pode dificultar a vivência do processo de emancipação individual de forma satisfatória e a construção de seus próprios espaços na sociedade de maneira efetiva44. Carmo ME, Guizardi FL. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cad Saude Publica. 2018; 34(3):1-14. .
Pensar em desenvolvimento positivo de jovens implica promover suas características positivas, e não simplesmente a “ausência de problemas”99. Lerner RM. Promoting positive youth development: theoretical and empirical bases. Washington, DC: National Academies of Science; 2005.
10. Lerner RM. The good teen. New York: The Stonesong Press; 2007. - 1111. Lerner RM. Promoting positive human development and social justice: Integrating theory, research and application in contemporary developmental science. Int J Psychol. 2015; 50(3):165-73. . Nesse sentido, é preciso efetivar a criação de contextos que possibilitem aos adolescentes as condições necessárias para um desenvolvimento sadio, destacadas pelos autores a partir do modelo do 5 Cs: competência, cuidado, confiança, caráter e conexão99. Lerner RM. Promoting positive youth development: theoretical and empirical bases. Washington, DC: National Academies of Science; 2005.
10. Lerner RM. The good teen. New York: The Stonesong Press; 2007. - 1111. Lerner RM. Promoting positive human development and social justice: Integrating theory, research and application in contemporary developmental science. Int J Psychol. 2015; 50(3):165-73. . Bronfenbrenner propõe que em contextos grupais de interação pode-se abrir espaço para que esses jovens participem de modo mais ativo no ambiente sociocultural66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. . Espaços como o proposto pelo programa aqui investigado, que possibilitam a vivência grupal, o contato com a música e o ensino de instrumentos musicais, podem ser contextos de promoção de cidadania, saúde e abertura de novas possibilidades no que se refere à trajetória de vida dos indivíduos, elementos que contribuem para que estes experimentem um desenvolvimento saudável ao longo da adolescência66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. , 1313. Santos GJ, Santos LMM. Interlocuções entre Moreno e Bronfenbrenner no contexto de grupos musicais. Rev Bras Psicodrama. 2017; 25(2):66-75. .
No âmbito das neurociências, a música é considerada como instrumento que favorece o desenvolvimento cognitivo e motor das pessoas1414. Magalhães LCM. A interface música e psicologia: uma perspectiva histórico-analítica. Rev Musica. 2015; 15(1):127-46.
15. Casarotto FD, Vargas LDS, Mello-Carpes PB. Música e seus efeitos sobre o cérebro: uma abordagem da neurociência junto a escolares. Rev ELO–Diálogos Ext. 2017; 6(2):55-9. - 1616. Rodrigues CAM, Rosin SM. A importância do ensino de música para o desenvolvimento infantil. Maringá: UEMA; 2011. . Estudos sobre música e musicoterapia indicam que a primeira pode ser compreendida tanto enquanto promotora de bem-estar quanto como potencializadora de sofrimento1717. Puchivailo MC, Holanda AF. A história da musicoterapia na psiquiatria e na saúde mental: dos usos terapêuticos da música à musicoterapia. Rev Bras Musicoterapia. 2014; XVI(16):122-42. , a depender de questões relacionadas ao seu significado para a pessoa, inclusive, no que se refere à própria música e seus compassos1818. Barcellos LRM, Santos MAC. A natureza polissêmica da música e a musicoterapia. Rev Bras Musicoterapia. 1996; 1(1):5-18. . Cardoso e Lima1919. Cardoso TM, Lima EMFA. Terapêutica musical na Saúde Mental de São Paulo: recorte sobre higienismo, psiquiatria e disciplina no hospital do Juqueri, início do século XX [Internet]. 2017 [citado 7 Jun 2019]. p. 112-143. Disponível em: https://bibliotecadigital.butantan.gov.br/arquivos/167/PDF/PDF-completo-113-144.pdf
https://bibliotecadigital.butantan.gov.b... demonstram que no século XX, período higienista, a música foi utilizada em hospitais psiquiátricos para controlar e disciplinar os pacientes, em um processo de controle da medicina sobre os corpos.
Considera-se aqui que a música, como elemento da cultura, é uma ferramenta que pode facilitar a mediação social significativa entre o indivíduo e os contextos pelos quais circula2020. Vieira-Silva M, Miranda SF. Poder e identidade grupal: um estudo em corporações musicais da Região das Vertentes. Psicol Soc. 2013; 25(3):642-52. , se respeitarmos os significados e sentidos que a música tem para o indivíduo e o grupo. No fazer musical, o homem pode atentar-se para aquilo que há de bom em si mesmo e vislumbrar novas possibilidades de estar no mundo, encontrando suporte para desenvolver suas características positivas; realizar-se pessoalmente e profissionalmente; e modificar sua trajetória de vida2121. Araújo RC, Andrade MA. Experiência de fluxo e prática instrumental: dois estudos de caso. Rev Pesqui. 2011; 9(8):553-63.
22. Avila DC. Das (im)possibilidades de uma psicologia musical. TransForm Psicol. 2009; 2(2):81-99. - 2323. Queiroz AM. Experiências formativas em música na construção dos projetos de vida dos jovens: um estudo a partir de entrevistas narrativas. Rev Bras Pesqui. 2017; 2(5):470-82. . Quando a vivência musical é realizada em grupo, além de propiciar o desenvolvimento das habilidades necessárias para se tocar um instrumento, contribui para o estabelecimento de relações interpessoais entre aqueles que a praticam, impulsionando o desenvolvimento de capacidades importantes relativas à convivência grupal e social1616. Rodrigues CAM, Rosin SM. A importância do ensino de música para o desenvolvimento infantil. Maringá: UEMA; 2011. , 2020. Vieira-Silva M, Miranda SF. Poder e identidade grupal: um estudo em corporações musicais da Região das Vertentes. Psicol Soc. 2013; 25(3):642-52. .
Considerando os benefícios que a música pode trazer para aqueles que a executam, bem como a relevância de um contexto sadio para que adolescentes socialmente vulneráveis se desenvolvam de maneira saudável, o Programa Música Viva tem como proposta promover a cidadania, a inclusão sociocultural e o desenvolvimento positivo de adolescentes. A partir do oferecimento de atividades musicais em grupo, incluindo a aprendizagem de instrumentos e apresentações protagonizadas pelos participantes, esse projeto almejou a criação de um ambiente saudável para se contrapor àquele em que esses jovens estavam inseridos.
Iniciativas como as do programa em questão, que buscam fornecer o acesso ao ensino de música gratuito a adolescentes em situação de vulnerabilidade, são estratégias que acontecem em muitos lugares. Um dos exemplos mais bem consolidados é o El Sistema, um projeto venezuelano de inclusão social por meio da música sinfônica, que já foi reproduzido em mais de sessenta países, incluindo o Brasil2424. Sarrouy AD. Atores da educação musical: etnografia comparativa entre três núcleos que se inspiram no programa El Sistema na Venezuela, no Brasil e em Portugal [tese]. Braga: Universidade do Minho; 2017. . Todavia, a pesquisa aqui apresentada foi desenvolvida em um contexto diferenciado, tanto pelas particularidades da cidade quanto por ter sido realizada antes da consolidação do programa, ou seja, enquanto esse ainda estava em seus primeiros anos de implementação.
A proposta do projeto fundamenta-se nos pressupostos da bioecologia do desenvolvimento humano trazida por Bronfenbrenner66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. , 2525. Bronfenbrenner U. Developmental research, public policy, and the ecology of childhood. Child Dev. 1974; 45(1):1-5.
26. Bronfenbrenner U. The bioecological model from a life course perspective: Reflections of a participant observer. In: Moen P, Elder Jr GH, Luscher K, editors. Examining lives in context. Washington, DC: American Psychological Association; 1995. p. 599-618.
27. Bronfenbrenner U. Environments in developmental perspective: theoretical and operational models. In: Friedman SL, Wachs TD, editors. Measuring environment across the life span: emerging methods and concepts. Washington, DC: American Psychological Association; 1999. p. 3-28. - 2828. Bronfenbrenner U, Morris PA. The ecology of developmental processes. In: Damon W, Sigel IE, Renninger KA, editors. Handbook of child psychology. New York: John Wiley & Sons; 1998. p. 993-1027. e na teoria do desenvolvimento positivo construída por Lerner88. Lerner RM. Early adolescence: perspectives on research, policy, and intervention. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates; 1993.
9. Lerner RM. Promoting positive youth development: theoretical and empirical bases. Washington, DC: National Academies of Science; 2005.
10. Lerner RM. The good teen. New York: The Stonesong Press; 2007. - 1111. Lerner RM. Promoting positive human development and social justice: Integrating theory, research and application in contemporary developmental science. Int J Psychol. 2015; 50(3):165-73. , 2929. Lerner RM, Almerigi JB, Theokas C, Lerner JV. Positive youth development a view of the issues. J Early Adolesc. 2005; 25(1):10-6. . Essa pesquisa teve como objetivo compreender se o programa possibilitou a criação de um contexto promotor do desenvolvimento sadio dos adolescentes que participam das atividades oferecidas e, se sim, como esse processo ocorreu.
Método de investigação
O presente estudo é de cunho qualitativo, pois buscou compreender de maneira aprofundada a realidade de determinados atores sociais, suas práticas cotidianas e as atividades que realizam em um grupo musical. Tomando como ponto de partida o contexto grupal, bem como as falas e perspectivas de todos os integrantes, almejou-se investigar os significados que eles atribuem às suas experiências na orquestra. Admitindo que, para compreender determinada fala, faz-se fundamental analisar o contexto daqueles que se pronunciam, a investigação foi conduzida em meio ao cotidiano dos sujeitos de pesquisa. O ambiente em que eles desenvolvem as atividades musicais foi tomado como fonte direta para produção dos dados3030. Minayo MCS. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta. In: Minayo MCS, Delandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Editora Vozes; 2011. p. 61-78. , 3131. Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qualitativa. 2017; 5(7):1-12. da investigação, com vistas a esclarecer se tal contexto propiciou o desenvolvimento positivo dos jovens durante o período de um ano de permanência no grupo, momento em que o estudo foi realizado.
O campo de pesquisa se caracterizou pelo grupo de adolescentes que compõem a orquestra de cordas criada no Programa Música Viva. O grupo é formado por 15 integrantes, sendo quatro professores de música e 11 alunos, esses com idades entre dez e 17 anos. Trata-se de um grupo ativo, que participa semanalmente de aulas de instrumentos musicais (viola, violino e violoncelo), oferecidas em uma escola da cidade de Santa Cruz de Minas, e que realiza apresentações em diversos locais do município e da região.
A proposta de pesquisa foi submetida à Comissão de Ética em Pesquisas Envolvendo Seres Humanos (Cepes) da UFSJ (CEP nº 1.599.988 – CAAE: 54565216.9.0000.5151 ). Em seguida, os adolescentes que compõem a orquestra foram formalmente convidados a participar do estudo como voluntários, por meio de um termo de Assentimento Individual e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), com autorização dos pais ou responsáveis.
No primeiro momento, fez-se um contato inicial com o grupo, com vistas a estabelecer um vínculo entre o pesquisador e os sujeitos envolvidos, bem como para que os últimos tomassem conhecimento sobre os objetivos da investigação. Posteriormente, realizaram-se observações participantes durante algumas atividades da orquestra. Ao longo dessas observações, foram confeccionados diários de campo na perspectiva da inserção ecológica, com base na bioecológica do desenvolvimento humano3232. Afonso T, Silva SSC, Pontes FAR, Koller SH. O uso do diário de campo na inserção ecológica em uma família de uma comunidade ribeirinha amazônica. Psicol Soc. 2015; 27(1):131-41. . Por último, deu-se início à realização de entrevistas semiestruturadas com os jovens que se voluntariaram a participar do estudo.
As observações participantes exigiram a presença constante do investigador no campo de pesquisa, em contato direto com os observados. Tiveram como escopo compreender a visão de mundo dos sujeitos envolvidos, principalmente suas percepções acerca do fenômeno investigado3030. Minayo MCS. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta. In: Minayo MCS, Delandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Editora Vozes; 2011. p. 61-78. . As observações foram realizadas durante aulas e apresentações musicais da orquestra, momentos de interação entre os sujeitos que forneceram dados relevantes para o estudo. As aulas aconteceram duas vezes por semana e os concertos, em média, uma vez por mês. Portanto, as observações ocorreram na mesma frequência, ao longo de um ano.
Durante as observações foram confeccionados diários de campo, que consistiram em cadernos de notas nos quais o pesquisador registrou os fatos que observou, suas impressões pessoais, bem como as falas e atitudes dos interlocutores, que se relacionaram com a temática e com os referenciais teóricos que nortearam o estudo3232. Afonso T, Silva SSC, Pontes FAR, Koller SH. O uso do diário de campo na inserção ecológica em uma família de uma comunidade ribeirinha amazônica. Psicol Soc. 2015; 27(1):131-41. . Esses registros foram feitos na ocasião de todas as observações com o intuito de, a posteriori , retomar os eventos ocorridos e avaliar as questões a serem investigadas de maneira mais aprofundada3030. Minayo MCS. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta. In: Minayo MCS, Delandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Editora Vozes; 2011. p. 61-78. .
As entrevistas semiestruturadas caracterizaram-se por instrumentos que permitiram a abertura para que questões relevantes para a pesquisa pudessem ser exploradas no desdobramento da discussão com os entrevistados. A utilização dessa ferramenta contribuiu para a produção de dados importantes para o estudo e possibilitou ao pesquisador compreender novos elementos que foram surgindo no campo, acessando informações que só poderiam ser fornecidas pelos indivíduos que vivenciaram a realidade em questão3030. Minayo MCS. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta. In: Minayo MCS, Delandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Editora Vozes; 2011. p. 61-78. .
As questões priorizadas nas entrevistas foram elaboradas com base na bioecologia do desenvolvimento humano proposta por Bronfenbrenner66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. , 2525. Bronfenbrenner U. Developmental research, public policy, and the ecology of childhood. Child Dev. 1974; 45(1):1-5.
26. Bronfenbrenner U. The bioecological model from a life course perspective: Reflections of a participant observer. In: Moen P, Elder Jr GH, Luscher K, editors. Examining lives in context. Washington, DC: American Psychological Association; 1995. p. 599-618. - 2727. Bronfenbrenner U. Environments in developmental perspective: theoretical and operational models. In: Friedman SL, Wachs TD, editors. Measuring environment across the life span: emerging methods and concepts. Washington, DC: American Psychological Association; 1999. p. 3-28. e na teoria do desenvolvimento positivo de Lerner88. Lerner RM. Early adolescence: perspectives on research, policy, and intervention. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates; 1993.
9. Lerner RM. Promoting positive youth development: theoretical and empirical bases. Washington, DC: National Academies of Science; 2005.
10. Lerner RM. The good teen. New York: The Stonesong Press; 2007. - 1111. Lerner RM. Promoting positive human development and social justice: Integrating theory, research and application in contemporary developmental science. Int J Psychol. 2015; 50(3):165-73. . Contemplando um total de 14 perguntas, o roteiro abarcou questões como: significados que a música e a orquestra têm para os indivíduos; mudanças nas trajetórias de vida dos alunos propiciadas pelo programa; aprendizados adquiridos pelos jovens em relação aos instrumentos musicais e também no que se refere ao desenvolvimento de habilidades para além do fazer musical; relações estabelecidas pelos adolescentes com os colegas e com os professores ao longo da permanência no programa; e surgimento de projetos de vida pautados na música enquanto atividades de lazer e profissão.
As entrevistas foram realizadas na escola em que as aulas do programa aconteceram e, do total de 11 jovens, contou com a participação de sete, em razão de que quatro não puderam ou não quiseram ser entrevistados. Os voluntários tinham idades entre dez e 17 anos, sendo três do sexo feminino e quatro do sexo masculino. Por fim, todas as entrevistas foram transcritas e analisadas.
Para tratamento das entrevistas e dos diários de campo, foi utilizada a análise de conteúdo, à luz das proposições de Minayo3030. Minayo MCS. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta. In: Minayo MCS, Delandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Editora Vozes; 2011. p. 61-78. , 3131. Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qualitativa. 2017; 5(7):1-12. . Essa metodologia possibilitou realizar uma exploração profunda do conteúdo transcrito e explorar seu sentido, permitindo fazer inferências acerca das falas dos sujeitos e das observações participantes. A análise de conteúdo parte do pressuposto de que a realidade é um produto social e que as visões de mundo dos indivíduos são representadas em suas falas. O método oportunizou apreender a visão interpretativa da realidade do ponto de vista dos entrevistados, bem como relacionar suas falas com os referenciais teóricos priorizados.
Foi realizada uma análise do tipo temática, que aconteceu em três etapas. A pré-análise envolveu a leitura de todos os materiais produzidos e a escolha daqueles que iriam compor o corpo de análise. A exploração do material foi o momento em que as falas dos sujeitos e os fatos observados foram descritos em torno de categorias de análise, as quais consistiram em recortes do material produzido e funcionaram como quadros de referência para se buscar relações entre os resultados construídos e as proposições teóricas. O tratamento dos resultados se caracterizou pela fase da análise propriamente dita: foram realizadas considerações acerca dos dados selecionados, explicitando-se conexões entre estes e as teorias aqui utilizadas3030. Minayo MCS. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta. In: Minayo MCS, Delandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Editora Vozes; 2011. p. 61-78. .
Cabe mencionar as categorias analíticas que foram construídas nessa fase de análise dos dados, a saber: novos padrões de funcionamentos individuais adquiridos; aumento da autoestima e da autoconfiança dos adolescentes; a atuação da música enquanto elemento de construção e fortalecimento de vínculos; processo de transição ecológica por meio da música; significados que a música tem para cada um; o estímulo da música sobre a concentração e a criatividade; projetos de vida pautados na atividade musical; significados da orquestra para os adolescentes; desenvolvimento da habilidade de trabalhar em grupo; e mudança de trajetória de vida dos jovens por meio do programa.
Com base em tais categorias de análise e nas teorias propostas por Bronfenbrenner66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. , 2525. Bronfenbrenner U. Developmental research, public policy, and the ecology of childhood. Child Dev. 1974; 45(1):1-5.
26. Bronfenbrenner U. The bioecological model from a life course perspective: Reflections of a participant observer. In: Moen P, Elder Jr GH, Luscher K, editors. Examining lives in context. Washington, DC: American Psychological Association; 1995. p. 599-618. - 2727. Bronfenbrenner U. Environments in developmental perspective: theoretical and operational models. In: Friedman SL, Wachs TD, editors. Measuring environment across the life span: emerging methods and concepts. Washington, DC: American Psychological Association; 1999. p. 3-28. e Lerner88. Lerner RM. Early adolescence: perspectives on research, policy, and intervention. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates; 1993.
9. Lerner RM. Promoting positive youth development: theoretical and empirical bases. Washington, DC: National Academies of Science; 2005.
10. Lerner RM. The good teen. New York: The Stonesong Press; 2007. - 1111. Lerner RM. Promoting positive human development and social justice: Integrating theory, research and application in contemporary developmental science. Int J Psychol. 2015; 50(3):165-73. , foi possível compreender que o Programa Música Viva propiciou o desenvolvimento positivo dos participantes. Os resultados produzidos, que apontam para tal conclusão, desdobraram-se em categorias temáticas de análise, as quais estão destacadas entre aspas e são apresentadas a seguir. Com o intuito de respeitar e assegurar os critérios de confidencialidade e sigilo dos entrevistados, os autores das falas foram indicados por “participante A”, “participante B”, e assim por diante.
Resultados e discussão
De acordo com Bronfenbrenner66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. , o desenvolvimento humano se caracteriza por um conjunto de processos por meio dos quais o homem e o ambiente interagem, produzindo mudanças no indivíduo e em seu curso de vida. Nesse sentido, durante a pesquisa foi realizada uma análise de fatores que contribuíram para compreender se o contexto criado pelo programa propiciou o desenvolvimento positivo dos adolescentes. Dentre esses fatores destacam-se: características biológicas, psicológicas, sociais e culturais apresentadas pelos jovens. Essa análise foi feita estabelecendo-se uma sequência temporal e observando-se diferentes habilidades apresentadas pelos alunos no início, durante, e no fim de um ano de permanência no Projeto, período em que a pesquisa foi realizada.
Bronfenbrenner66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. , 2626. Bronfenbrenner U. The bioecological model from a life course perspective: Reflections of a participant observer. In: Moen P, Elder Jr GH, Luscher K, editors. Examining lives in context. Washington, DC: American Psychological Association; 1995. p. 599-618. propõe que, ao longo do processo de desenvolvimento da pessoa, surgem reorganizações no seu funcionamento individual, aumentando gradativamente a complexidade do organismo. Isso ficou evidenciado durante a investigação e se refere à categoria ‘‘novos padrões de funcionamentos individuais adquiridos’’. Observou-se que, ao longo de um ano de permanência no projeto, os adolescentes desenvolveram significativamente a habilidade de tocar instrumentos musicais, apresentando evolução constante ao longo do processo de aprendizagem. A título de ilustração, cabe mencionar que, quando se deu início à realização da pesquisa, os jovens conseguiam tocar somente algumas notas e acordes nos instrumentos e ainda não realizavam apresentações. No fim, eles participaram de concertos, nos quais tocaram peças musicais inteiras, de diferentes autorias e em ritmos variados, demonstrando maior domínio dos instrumentos, bem como capacidade para protagonizar apresentações enquanto músicos de uma orquestra.
De acordo com Bronfenbrenner66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. , as variações que acontecem no desenvolvimento do indivíduo têm implicações em suas funções psicológicas. Em concordância com a afirmação do autor, verificou-se que o desenvolvimento da habilidade de tocar instrumentos musicais trouxe como resultado o ‘‘aumento da autoestima e da autoconfiança dos adolescentes’’, pois, durante as aulas, alguns afirmaram que, ao entrarem no projeto, perceberam-se capazes de aprender a tocar um instrumento e de atuar como artistas de uma orquestra. Além disso, eles destacaram que a participação no grupo contribuiu para acreditarem que são capazes de realizarem outras conquistas que almejam desde que se dediquem a isso, assim como fizeram com a música.
A música contribui para o desenvolvimento da afetividade e favorece a criação de vínculos entre as pessoas que a praticam em espaços grupais1313. Santos GJ, Santos LMM. Interlocuções entre Moreno e Bronfenbrenner no contexto de grupos musicais. Rev Bras Psicodrama. 2017; 25(2):66-75. , 2020. Vieira-Silva M, Miranda SF. Poder e identidade grupal: um estudo em corporações musicais da Região das Vertentes. Psicol Soc. 2013; 25(3):642-52. . Nesse sentido, houve “atuação da música enquanto elemento de construção e fortalecimento de vínculos’’ entre aqueles que fazem parte do programa, pois a orquestra tornou-se um espaço de construção e consolidação de amizades entre os próprios alunos, bem como entre eles e os professores. Além disso, percebeu-se que, a partir da relação afetuosa desenvolvida nesse espaço grupal, os docentes tornaram-se referências afetivas e profissionais para os jovens, que relataram enxergar seus professores de música como exemplos a serem seguidos, em âmbito tanto pessoal quanto profissional.
Bronfenbrenner66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. utilizou o conceito de transição ecológica para se referir às transformações que acontecem na posição que o indivíduo ocupa em seu ambiente ecológico, quando o contexto no qual está inserido é alterado e ele vivencia uma mudança de status social mais elevado. Desde o século XVII, a música tem um status diferenciado na sociedade, pois por meio dela as pessoas conseguem encontrar um novo papel para assumir e, assim, ascender socialmente, alcançando prestígio e valorização2020. Vieira-Silva M, Miranda SF. Poder e identidade grupal: um estudo em corporações musicais da Região das Vertentes. Psicol Soc. 2013; 25(3):642-52. . Evidenciou-se que os adolescentes experimentaram um ‘‘ processo de transição ecológica por meio da música’’, pois passaram a atuar como artistas de uma orquestra de cordas e a integrar universos como o ambiente acadêmico e profissional que, segundo eles, ainda não conheciam ou não tinham acesso. Isso permitiu aos alunos vislumbrar ascensão e mudança de status na sociedade por meio da atividade musical, pois relataram que, em contato com professores da orquestra, passaram a ser esclarecidos sobre os meios de adentrarem em universidades e no mercado de trabalho.
O indivíduo que executa atividades musicais pode atribuir diversos sentidos à música, e esta pode se tornar algo significativo para aquele que canta e/ou toca algum instrumento2020. Vieira-Silva M, Miranda SF. Poder e identidade grupal: um estudo em corporações musicais da Região das Vertentes. Psicol Soc. 2013; 25(3):642-52. . Foi possível perceber que a música passou a fazer parte do cotidiano dos integrantes da orquestra e a ter um papel relevante na vida destes. Tornou-se algo prioritário para os jovens, uma vez que em suas falas eles conferiram um sentido particular e extremamente importante a essa ferramenta cultural, o que ficou evidenciado em seus relatos quando questionados acerca dos ‘‘significados que a música tem para cada um’’:
Ah música é tudo, né, porque você não consegue, sei lá, viver sem escutar música, assim, parece que fica tudo meio que chato. (Participante A)
Acho que tudo. Tudo aquilo que há de bom. Acho que tem uma importância que deve ser valorizada [...] Tanto que não é só na orquestra que eu escuto música [...] Música faz parte da minha vida. (Participante C)
A música consiste em um instrumento de desenvolvimento cognitivo e motor, que estimula a concentração, a criatividade e o intelecto daquele que a executa, pois exige esforço mental e requer várias funcionalidades do corpo ativas simultaneamente1515. Casarotto FD, Vargas LDS, Mello-Carpes PB. Música e seus efeitos sobre o cérebro: uma abordagem da neurociência junto a escolares. Rev ELO–Diálogos Ext. 2017; 6(2):55-9. , 1616. Rodrigues CAM, Rosin SM. A importância do ensino de música para o desenvolvimento infantil. Maringá: UEMA; 2011. . Nessa mesma direção apareceram as falas de alguns alunos, que relataram que aprender a tocar instrumentos musicais implicou em melhorias em outros campos, como no desempenho escolar. Esses jovens consideraram que isso se deu pelo “estímulo da música sobre a concentração e a criatividade’’.
Legal, bacana pra caramba. Porque ajuda bastante em muitas coisas [...] Na escola, por exemplo: violino, não é só ele, mas como todos os outros instrumentos, ele tem aquele som que relaxa, ajuda na concentração, e você concentra nas coisas e consegue fazer melhor. (Participante C)
A música, ela também tem um ar livre [...] A gente pode cantar, por exemplo, a música que nós canta, nós até inventa. Aí vem música da minha cabeça. (Participante F)
A música contribui para a realização pessoal do artista, bem como para que ele construa novos projetos de vida2020. Vieira-Silva M, Miranda SF. Poder e identidade grupal: um estudo em corporações musicais da Região das Vertentes. Psicol Soc. 2013; 25(3):642-52. . A partir do momento em que os alunos começaram a participar do programa, encontraram a oportunidade de pensar ou consolidar outros projetos para suas vidas e a música apareceu como possibilidade de atuação profissional para alguns. Isso ficou evidente nas falas dos jovens, quando disseram com o que pretendem trabalhar e falaram sobre ‘‘projetos de vida pautados na atividade musical’’:
Com música! [...] Ensinar os outros ou então até formar uma banda mesmo pra mim. (Participante B)
Pretendo trabalhar com música ou então veterinária. Mas eu prefiro música. (Participante D)
Meu sonho foi sempre ser cantora! Tocar também. (Participante F)
O grupo musical pode se tornar um espaço permeado de afeto para aqueles que o integram2020. Vieira-Silva M, Miranda SF. Poder e identidade grupal: um estudo em corporações musicais da Região das Vertentes. Psicol Soc. 2013; 25(3):642-52. , 2121. Araújo RC, Andrade MA. Experiência de fluxo e prática instrumental: dois estudos de caso. Rev Pesqui. 2011; 9(8):553-63. . Os membros do Programa atribuíram um significado afetivo à participação na orquestra, uma vez que se referiram a ela como um lugar familiar e aconchegante, no qual encontraram apoio dos colegas e estímulo dos professores para se desenvolverem em âmbitos pessoal, sociocultural e musical. Isso pôde ser constatado nas falas dos alunos, quando disseram sobre o que a orquestra representa para eles, e se refere à categoria ‘‘significados da orquestra para os adolescentes’’:
Tudo. Família. Pra mim é isso [...] Bom, pra mim é família porque aqui é tipo uma segunda casa pra mim, porque eu venho, eles me ajuda, me apoia, entendeu? [...] O que eu menos gosto é que tem só dois dias, por mim podia ser a semana inteira. (Participante B)
Quando chega no dia da aula de música eu falo assim: Eba! Oba! Hoje tem aula de música! [...] Dá uma paixão, dá tipo uma paixão no peito! (Participante F)
A vivência musical, quando realizada em grupo, propicia o desenvolvimento de habilidades necessárias para se tocar um instrumento, bem como de capacidades para além do fazer musical. Uma vez que contribui para o estabelecimento de relações interpessoais entre aqueles que a praticam em determinado espaço, a música impulsiona o desenvolvimento de capacidades importantes, tais como aprender a lidar melhor com outras pessoas, reconhecer limites e possibilidades do outro, ouvir o parceiro e trabalhar em conjunto1616. Rodrigues CAM, Rosin SM. A importância do ensino de música para o desenvolvimento infantil. Maringá: UEMA; 2011. , 2020. Vieira-Silva M, Miranda SF. Poder e identidade grupal: um estudo em corporações musicais da Região das Vertentes. Psicol Soc. 2013; 25(3):642-52. . Essas questões foram ressaltadas pelos alunos e se desdobraram na categoria ‘‘desenvolvimento da habilidade de trabalhar em grupo’’:
Ah sei lá, é bom assim que você aprende com os outros que é todo mundo junto, aí um erra, você aprende com o erro dele [...] Sempre assim, quando não sabe, aí eles ajudam [...] Você consegue mais, parece que escutar os outros, entender mais as coisas que eles falam. (Participante A)
E a coisa que eu mais gosto mesmo é aprender e ensinar os outros que tiver dificuldade. (Participante B)
Quanto à ideia de que a música pode ser potencializadora de sofrimento1717. Puchivailo MC, Holanda AF. A história da musicoterapia na psiquiatria e na saúde mental: dos usos terapêuticos da música à musicoterapia. Rev Bras Musicoterapia. 2014; XVI(16):122-42. , não foram encontradas evidências que referiam esse aspecto no discurso dos participantes. Todavia, durante as observações, foi possível notar uma certa ansiedade dos adolescentes antes das apresentações musicais. Os medos relativos à performance musical são comuns entre os músicos e a angústia decorrente dela pode desencadear um processo de sofrimento. Porém, os estagiários de Música, juntamente com os discentes de Psicologia, buscaram frequentemente estratégias para amenizar os desconfortos relacionados a esse processo.
No fazer musical o indivíduo pode despertar sua atenção para aquilo que há de bom em si mesmo e vislumbrar novas possibilidades de estar no mundo, encontrando suporte para desenvolver suas características positivas, em vez de se concentrar em seus defeitos ou naquilo que há de ruim em seu contexto2121. Araújo RC, Andrade MA. Experiência de fluxo e prática instrumental: dois estudos de caso. Rev Pesqui. 2011; 9(8):553-63. , 2222. Avila DC. Das (im)possibilidades de uma psicologia musical. TransForm Psicol. 2009; 2(2):81-99. , 3232. Afonso T, Silva SSC, Pontes FAR, Koller SH. O uso do diário de campo na inserção ecológica em uma família de uma comunidade ribeirinha amazônica. Psicol Soc. 2015; 27(1):131-41. . Tais considerações foram mencionadas por alguns adolescentes, quando questionados sobre possíveis transformações que ocorreram em suas vidas após a participação na orquestra, e consistiram na categoria ‘‘mudança de trajetória de vida dos jovens por meio do programa’’:
Às vezes eu ficava na rua, indo nos colega. Aí meu irmão já tinha entrado, né, aí minha mãe falou comigo: vai caçar meio de entrar na orquestra também [...] Pra não ficar com essas coisas perigosas na rua. Tipo assim, pros outros não me bater, fazer mal comigo [...] Minha mãe, às vezes ela ficava passando mal porque a gente irritava ela muito. Aí agora a gente não irrita ela muito [...] Porque a gente agora fica concentrado na orquestra, na música, a gente não para de pensar na orquestra. (Participante E)
Foi possível estabelecer relações entre os dados produzidos com este estudo e as ideias defendidas por Bronfenbrenner66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. , 2626. Bronfenbrenner U. The bioecological model from a life course perspective: Reflections of a participant observer. In: Moen P, Elder Jr GH, Luscher K, editors. Examining lives in context. Washington, DC: American Psychological Association; 1995. p. 599-618. , 2727. Bronfenbrenner U. Environments in developmental perspective: theoretical and operational models. In: Friedman SL, Wachs TD, editors. Measuring environment across the life span: emerging methods and concepts. Washington, DC: American Psychological Association; 1999. p. 3-28. e Lerner88. Lerner RM. Early adolescence: perspectives on research, policy, and intervention. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates; 1993. , 99. Lerner RM. Promoting positive youth development: theoretical and empirical bases. Washington, DC: National Academies of Science; 2005. . Os autores apontam que, quando se altera o contexto no qual o adolescente em situação de vulnerabilidade social está inserido, ampliam-se as possibilidades de que este experimente um desenvolvimento sadio ao longo dessa fase de sua vida. Nesse sentido, verificou-se que o Programa Música Viva permitiu a criação de um contexto saudável e propício para o desenvolvimento positivo dos jovens.
Com base nas observações realizadas e nas falas dos participantes, concluiu-se que o ambiente construído por meio de um programa proveniente de uma instituição pública promoveu transformações significativas na trajetória de vida dos adolescentes, que vão desde a aquisição de habilidades para se tocar instrumentos musicais até o desenvolvimento de capacidades que ultrapassam o fazer musical66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. . A utilização da música enquanto mediação social entre os jovens e os contextos pelos quais circulam lhes oportunizou maior inclusão nos espaços socioculturais que permeiam seus convívios, garantindo-lhes ainda o acesso a espaços de lazer e o exercício da cidadania1111. Lerner RM. Promoting positive human development and social justice: Integrating theory, research and application in contemporary developmental science. Int J Psychol. 2015; 50(3):165-73. .
Considerações finais
Ao longo da realização desta pesquisa, procurou-se compreender se a música influenciou no desenvolvimento sadio do grupo de adolescentes que participam do Programa Música Viva e se a participação nesse projeto impulsionou transformações em suas vidas e cotidianos. Os resultados construídos apontaram que o contexto de atividades musicais criado pelo Projeto possibilitou aos jovens o desenvolvimento da habilidade de tocar instrumentos musicais e de atuar como protagonistas de uma orquestra. Os dados mostraram também que essa vivência musical teve implicações positivas em diversos outros âmbitos da vida desses indivíduos.
Durante as aulas, os jovens experimentaram um aumento da autoconfiança e passaram a acreditar em suas capacidades de investir em projetos pessoais e profissionais. Tiveram a oportunidade de desenvolver a habilidade de trabalhar em grupo, bem como de construir vínculos com os colegas de classe e com os professores. Os docentes atuaram como facilitadores para oportunizar o acesso dos adolescentes a outros campos, como o ambiente acadêmico e profissional. Assim, esses indivíduos entraram em contato com espaços de cultura e lazer, encontrando possibilidades mais amplas de exercerem suas cidadanias e modificarem suas trajetórias de vida. A partir daí, muitos construíram novos projetos de vida, até mesmo pautados na atividade musical como profissão.
Os participantes, que vêm de situações sociais vulneráveis, experienciaram no grupo uma realidade distinta da que estão inseridos. Encontraram um ambiente saudável, no qual aprenderam música e conheceram pessoas que lhes apresentaram novas possibilidades diante da vida. Dessa forma, vivenciaram o que Bronfenbrenner66. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artes Médicas; 2011. chamou de transição ecológica, pois a atividade musical e o contexto criado pelo programa se trata de uma experiência que, conforme definem Vieira-Silva et al3333. Vieira-Silva M, Paiva DLO, Miranda SF. O uso de oficinas como método de intervenção em grupos comunitários [Internet]. In: Anais do 2o Congresso Brasileiro de Extensão Universitária; 2004; Belo Horizonte, MG. Belo Horizonte: UFMG; 2004 [citado 7 Set 2019]. Disponível em: https://www.ufmg.br/congrext/Trabalho/Trabalho26.pdf
https://www.ufmg.br/congrext/Trabalho/Tr... , ‘‘[...] estimula o acesso a novos universos, outras comunidades, abrindo portas à inclusão social e ao combate a toda e qualquer forma de marginalização’’ (p. 2).
A música e o grupo formado assumiram papel central na vida dos adolescentes e, por isso, o programa promoveu transformações visíveis no cotidiano e nas visões de mundo de cada um deles. Esse é mais um dos aspectos que, somado a tantos outros, permite afirmar que a orquestra de cordas criada pelo programa foi um contexto promotor do desenvolvimento positivo dos adolescentes que dele participaram. Nesse sentido, espera-se que esse projeto possa servir como referência para iniciativas similares no campo da música, direcionadas a jovens que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Assim, almeja-se que essa pesquisa contribua para fomentar novos trabalhos na mesma direção.
Os maiores desafios encontrados para a condução deste trabalho foram relacionados à frequência dos alunos nas aulas e ao baixo envolvimento dos responsáveis no processo de aprendizagem dos jovens, além da pequena disponibilidade de alguns adolescentes em participar da pesquisa e da dificuldade de conseguir assinatura dos termos de consentimento e assentimento. Além disso, no momento da realização de levantamento bibliográfico para embasamento da pesquisa, deparou-se com certa carência de estudos que tratam sobre trabalhos na área da música realizados com pessoas socialmente vulneráveis, sobretudo no que diz respeito à população jovem. Portanto, coloca-se como questão a necessidade do desenvolvimento de pesquisas que tomem como escopo a investigação de atividades musicais enquanto elementos potentes para a promoção de desenvolvimento humano positivo, bem como para a viabilização de novas oportunidades pessoais, profissionais e sociais em grupos diversos.
Agradecimentos
Agradecemos à coordenação e aos participantes da Orquestra de Cordas, por viabilizarem a realização da pesquisa, e à Echiley Mirelem Nascimento Ferreira, que contribuiu com o processo de investigação.
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- dPrograma Música Viva: valorização da cidadania por meio da música, financiado pelos editais Proext 2014 e Proext 2015-2016.
- *Financiada pelo Programa Primeiros Projetos de iniciação científica da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
09 Dez 2019 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
28 Jun 2019 - Aceito
03 Set 2019