Resumos
A exposição Sentidos do Nascer (SDN) é uma ação de educomunicação inovadora que visa contribuir para mudança de cultura sobre o parto e nascimento no Brasil, incentivar o parto normal e apoiar a redução das elevadas taxas de cesarianas desnecessárias. Trata-se de uma exposição imersiva e interativa que articula linguagens e técnicas para sensibilizar o grande público e instigá-lo, de forma lúdica, a conhecer mais e se posicionar criticamente sobre a temática. Este artigo descreve as estratégias e dispositivos desenvolvidos para sensibilização e envolvimento do público no debate sobre o modelo assistencial ao parto e nascimento, bem como a metodologia utilizada para avaliar os efeitos e mudanças no conhecimento e percepção dos visitantes. Houve considerável mudança de opinião e percepção e ampliação do conhecimento sobre o parto e nascimento, revelando o potencial dessa estratégia em saúde.
Exposição interativa; Educação em saúde; Mudança cultural; Parto normal; Cesariana
La exposición “Sentidos del nacer” es una acción de educomunicación innovadora cuyo objetivo es contribuir con el cambio de cultura sobre el parto y el nacimiento en Brasil, incentivar el parto normal y dar apoyo a la reducción de los elevados índices de cesárea innecesarias. Se trata de una exposición de inmersión e interactiva que articula lenguajes y técnicas para sensibilizar al gran público e instigarlo, de forma lúdica, para que conozca más y se posicione críticamente sobre la temática. Este artículo describe las estrategias y dispositivos desarrollados para la sensibilización y el envolvimiento del público en el debate sobre el modelo asistencial al parto y al nacimiento, así como la metodología utilizada para evaluar los efectos y cambios en el conocimiento y percepción de los visitantes. Hubo un considerable cambio de opinión, percepción y ampliación del conocimiento sobre el parto y el nacimiento, revelando el potencial de esta estrategia de salud.
Exposición interactiva; Educación en salud; Cambio cultural; Parto normal; Cesárea
Introdução
O Brasil registra um dos índices mais elevados de cesariana do mundo, 56% em 2018, atrás apenas da República Dominicana 11. Brasil. Ministério da Saúde. Painel de monitoramento de nascidos vivos: informação e análise epidemiológica. Brasília: Ministério da Saúde; 2018. , 22. Brasil. Ministério da Saúde. Mortalidade materna no Brasil: principais causas de morte e tendências temporais no período de 1990 a 2010. In: Brasil. Ministério da Saúde. Uma análise da situação de saúde e a vigilância da saúde da mulher. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. p. 345-59. . No setor privado, esse índice atinge 83% dos nascimentos 33. Brasil. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Taxas de partos cesáreos por operadora de plano de saúde [Internet]. Brasília: Agência Nacional de Saúde Suplementar; 2017. p. 1-2. . Predomina no Brasil o modelo de atenção obstétrica e neonatal tecnocrático e hipermedicalizado, reforçando representações do parto e nascimento como situações de risco ou doença, por um lado, e de grande sofrimento, por outro 44. Leal MC, Pereira AP, Domingues RSM, Theme MM, Dias MAB, Nakamura-Pereira M, et al. Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cad Saude Publica. 2014; 30 Suppl 1:17-32. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00151513 .
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00151...
5. Souza JP, Pileggi-Castro C. Sobre o parto e o nascer: a importância da prevenção quaternária. Cad Saude Publica. 2014; 30 Supl 1:11-3. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE02S114 .
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE02S... - 66. Lansky S, Souza KV, Peixoto ERM, Oliveira BJ, Diniz SG, Vieira NF, et al. Violência obstétrica: influência da Exposição Sentidos do Nascer na vivência das gestantes. Cienc Saude Colet. 2019; 24(8):2811-24. . Os procedimentos utilizados rotineiramente e desprovidos de validade científica, como a realização frequente da episiotomia, muitas vezes sem o consentimento da mulher; e o uso indiscriminado de ocitocina artificial para acelerar o trabalho de parto e de manobras dolorosas para expulsar o bebê no momento do nascimento, como a manobra de Kristeller, transformam o cenário do parto em um momento de sofrimento, reunindo condições para a sua identificação como violência obstétrica 66. Lansky S, Souza KV, Peixoto ERM, Oliveira BJ, Diniz SG, Vieira NF, et al. Violência obstétrica: influência da Exposição Sentidos do Nascer na vivência das gestantes. Cienc Saude Colet. 2019; 24(8):2811-24. . O Sistema Público de Saúde (SUS) apresenta menores taxas de cesariana sem justificativa técnica, indicando interesses comerciais de setores do sistema privado de saúde 44. Leal MC, Pereira AP, Domingues RSM, Theme MM, Dias MAB, Nakamura-Pereira M, et al. Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cad Saude Publica. 2014; 30 Suppl 1:17-32. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00151513 .
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00151... , 55. Souza JP, Pileggi-Castro C. Sobre o parto e o nascer: a importância da prevenção quaternária. Cad Saude Publica. 2014; 30 Supl 1:11-3. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE02S114 .
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE02S... . Além do medo de sofrerem violência no parto, o modelo atual de atenção obstétrica no Brasil é reforçado pela cultura do consumo e da praticidade, que faz com que muitas gestantes “optem”, ou de fato sejam induzidas, à realização de cesarianas eletivas desnecessárias 77. Diniz S, Pires AFP, Lansky S. Equity and women’s health services for contraception, abortion and childbirth in Brazil. Reprod Health Matters. 2012; 20(40):94-101. .
O país ainda não atingiu os níveis recomendados para a taxa de mortalidade infantil e não alcançou as metas dos Objetivos do Milênio das Nações Unidas para 2015 de redução em dois terços da mortalidade materna. As mortes infantis se concentram no primeiro mês de vida e, em especial, nas primeiras 24 horas de vida, guardando relação estreita com a qualidade da assistência hospitalar, na qual ocorrem 98% dos nascimentos no Brasil 88. Lansky S, Friche AAL, Silva AAM, Campos D, Bittencourt SD, Carvalho ML, et al. Pesquisa nascer no Brasil: perfil da mortalidade neonatal e dos fatores associados à assistência à gestante e ao recém-nascido. Cad Saude Publica. 2014; 30 Supl 1:192-207. . A morte materna, por sua vez, reflete a qualidade do cuidado e a importância das mulheres na sociedade, configurando-se como uma discriminação de gênero que permeia as práticas em saúde. O desafio para o alcance das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030 das Nações Unidas é a redução dessas mortes evitáveis e preveníveis pela melhoria do acesso e qualificação da atenção em saúde para mulheres e crianças 99. United Nations. Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. Nova Iorque: Division for Sustainable Development Goals; 2015. .
Iniciativas no campo das políticas públicas, como a Rede Cegonha 1010. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.459, de 24 de Junho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede Cegonha. Brasília: Ministério da Saúde; 2011. , e da sociedade civil organizada buscam reverter esse quadro com campanhas de informação e de mobilização para a humanização da assistência ao parto e nascimento. Ainda assim, o predomínio do nascimento por via cirúrgica se mantém estabilizado e não demonstra tendência de queda desde 2015 11. Brasil. Ministério da Saúde. Painel de monitoramento de nascidos vivos: informação e análise epidemiológica. Brasília: Ministério da Saúde; 2018. . Políticas públicas que dependem de mudança cultural não podem se restringir à difusão de informações. Demandam também ações de sensibilização que gerem reflexão. Diante desse cenário e visando contribuir para a mudança de cultura sobre o parto e nascimento no Brasil, com incentivo ao parto normal e redução das taxas de cesarianas desnecessárias, foi a exposição SDN, pesquisa-ação de educomunicação, em 2015. Imersiva e interativa, a exposição foi desenvolvida para provocar no visitante o desejo de conhecer mais, instigando-o de forma lúdica, encantando-o pela estética e levando-o a refletir sobre a banalização da cesariana e a postura consumista que vem ganhando terreno sobre diversas dimensões da existência humana.
Articulando campos distintos que se potencializam, como a comunicação e a educação, a educomunicação vem se constituindo como campo de conhecimento para a transformação cultural. Sua abordagem de ecossistemas comunicativos com o foco na participação social tem se mostrado aporte promissor para atuação e análise de práticas museais 1111. Soares I. Educomunicação e terceiro entorno: diálogos com Galimberti, Echeverría e Martín-Barbero. Comun Educ. 2010; 5(15):57-66. tem se mostrado aporte promissor para atuação e análise de práticas museais 1212. Santana C. De(legando) o futuro: mediações e educomunicação nas relações entre museus e públicos [dissertação]. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes, USP; 2016. .
Esse olhar da educomunicação sobre museus e exposições se insere em um contexto em que a visitação a museus e exposições não é no Brasil uma tradição popular ou prática cultural difundida, o que se deve em parte à concentração dessas iniciativas em poucas cidades e com pequeno alcance de público. Levantamento do Instituto Nacional de Museus (Ibram) revela que 79% dos municípios brasileiros não possuem museus e, mesmo nas capitais com ampla oferta de equipamentos culturais, grande parte da população brasileira não os frequenta 1313. Brasil. Ministério da Cultura. Instituto Brasileiro de Museus. Museus em números. Brasília: Ministério da Cultura; 2011. v. 1. . Assim, estratégias alternativas são importantes para fazer circular acervos e exposições, com a promoção de itinerâncias em praças e parques e montagens em caminhões ou ônibus para ampliar o acesso do público. Considerando esse desafio, a exposição SDN foi estruturada em quatro contêineres de forma a facilitar sua itinerância por diferentes cidades e montagens em locais públicos de grande movimentação hhO custo da exposição em quatro containers ficou em torno de 260 mil reais, ao passo que a dos caminhões-exposições do mesmo tipo e tamanho custam oito vezes este valor e, embora facilitem a logística, não diminuem o custo do transporte. .
Outro reconhecido desafio de ações culturais, como a divulgação científica e intervenções para mudanças de percepção, é a avaliação de seus efeitos 1414. Jensen E. The problems with science communication evaluation. J Sci Comun. 2014; 13(1):2-4. . A formação cultural envolve um complexo processo de trocas e aprendizagens que permeiam diversas dimensões de nossas vidas e é difícil mensurar os efeitos de experiências pontuais na mudança de cultura. Habitualmente, as análises se limitam ao número de ações e ao público alcançado, raramente abordando os significados da experiência do público ou os aspectos que impactam ou não os visitantes. Esse foi um dos desafios estruturantes do projeto SDN, concebido como uma pesquisa-ação com o propósito de avaliar os efeitos na percepção sobre o parto e nascimento, além de avaliar sua potencialidade para possível replicação em diferentes regiões do país.
O objetivo deste artigo é descrever as estratégias e dispositivos desenvolvidos para sensibilização e envolvimento do público no debate sobre o modelo assistencial obstétrico e neonatal no Brasil, bem como a metodologia de avaliação e resultados dos efeitos da exposição sobre o conhecimento, percepção e preferências dos visitantes com relação ao parto e nascimento.
Metodologia
A exposição SDN foi estruturada em 2015 com parceria entre a UFMG e a Prefeitura de Belo Horizonte, financiada pelo edital de Prevenção da Prematuridade (CNPq; Ministério da Saúde; e Fundação Bill e Melinda Gates, 2013), um desafio da agenda prioritária em políticas de saúde.
Trata-se de projeto de pesquisa-ação de educomunicação que contou com equipe multidisciplinar composta por artistas, comunicólogos, designers , diretor teatral, educadores, médicos, enfermeiras, epidemiologistas, historiadora, museóloga, psicólogo e jornalistas para desenvolvimento de uma exposição interativa com uma abordagem inovadora do tema, a partir da exploração de linguagens tocantes e lúdicas, capazes de gerar ações educativas potentes, as quais, por sua vez, poderiam ser reproduzidas e inspirar outras ações. Considerando a complexidade da questão, de modo a informar, engajar e despertar emoções, a SDN foi estruturada como uma vivência imersiva, sensibilizando o visitante para a necessidade de mudança do modelo de assistência ao parto e ao nascimento e para a melhoria das práticas de saúde para mulheres, bebês e suas famílias. A expografia foi inspirada nas discussões sobre a interação público-exposição, visando à implicação dos sujeitos. Conjugou diferentes linguagens (artedigital com técnicas teatrais) e suportes (vídeos, fotografias, cenários e painéis escritos) de forma a despertar nos visitantes diversas sensações e estímulo à ação. Um dos pressupostos adotados é o de que a arte é capaz de provocar uma experiência de afetação estética e reflexão. A essa abordagem foram articuladas ações com públicos diversos, como rodas de conversa e grupos de discussão, promovendo-se também uma experiência participativa de diálogo e compartilhamento de saberes e experiências.
Abordagem e estratégias desenvolvidas para a intervenção
Descrição da exposição
A exposição SDN está estruturada em um circuito com cinco seções. Na entrada, no ambiente chamado Gestação, o visitante vê a sua imagem em uma grande tela de TV com um bebê projetado em sua barriga, posicionado e pronto para nascer.
Enquanto o sensor tira fotos para o visitante compartilhar a novidade, a mediadora da exposição lhe felicita e entrega um Plano de Parto, um folheto informativo iiMaterial desenvolvido pelo movimento BH pelo Parto Normal, sugerido para a gestante se informar sobre as boas práticas; e direitos e escolhas durante o trabalho de parto relacionados a acompanhante, posição mais confortável no parto, métodos de conforto da dor, entre outros. que apresenta as possibilidades das boas práticas e os direitos da mulher e da criança durante a assistência ao parto. Um adesivo de um bebê é colocado em sua barriga para que o visitante se mantenha grávido(a) ao longo da exposição. Em seguida, dirige-se para o segundo ambiente, a Loja de Conveniências da Maternidade Cirúrgica, uma caricatura da mercantilização do parto. Gôndolas de supermercado com produtos “irresistíveis” (como o Big Brother do Bebê, Sentinadolol, Spa Mamy Beauty e Teta Burka) e cesarianas programadas são ironicamente oferecidos aos visitantes, inspirados em ofertas e promoções reais disponíveis em publicidades comerciais.
Em seguida, adentra-se no terceiro ambiente, Controvérsias, onde os visitantes são expostos a opiniões divergentes de personagens fictícios que buscam influenciar as gestantes sobre a escolha da melhor forma de nascer, um debate sobre o parto normal e a cesariana, expressando argumentos e valores diversos. Projeções de vídeos gravadas com atores reproduzidos em tamanho real em seis telas de TV simulam a conversa entre a mãe, a avó e o pai da criança; a amiga cesarista e a que vivenciou e valoriza o parto normal; o médico cesarista; a médica da assistência humanizada; a doula; a enfermeira obstetra; e o pediatra.
Após acompanharem o debate, os visitantes são acolhidos no quarto ambiente, que simula um grande útero, onde vivenciam experiências sensoriais do nascimento, como o “sofá-placenta” e o som dos batimentos do coração da mãe, enlaçam-se no cordão umbilical e passam por um canal vaginal escutando a voz de um bebê que pede a sua mãe calma e que espere o nascimento no seu tempo.
Após saírem pela vagina, são recebidos por uma imagem enorme de uma mãe feliz e acolhedora, esperando-os de braços abertos. No último ambiente – denominado Conversas –, o visitante encontra painéis e vídeos informativos, um local para possíveis encontros e trocas de experiências, parte da estratégia do percurso expositivo de instigar a curiosidade e a demanda de informações.
O visitante pode então se aprofundar na percepção sobre sua própria experiência e visão sobre o tema a partir de textos, infográficos e imagens sobre o tempo; a história do nascimento; o parto normal; a taxa de cesariana no mundo, no Brasil, nos estados e nas principais maternidades da cidade onde a exposição está montada; o parto e nascimento na ótica da mulher e do bebê; e a violência obstétrica. Nesse ambiente, tecidos esvoaçantes preenchem os espaços com imagens inspiradoras. Esse é também um espaço para acolhimento das pessoas que aguardam a participação no percurso, interagem com os mediadores, assistem vídeos e se contagiam com as reações das pessoas que saem da exposição. A visita completa dura em torno de cinquenta minutos, incluindo o circuito de vinte minutos nas quatro seções realizado em grupos de dez pessoas acompanhado por mediadores; o acolhimento inicial; e as conversas e trocas após a visitação, propiciando a interação e diálogo entre os visitantes com diferentes experiências e pontos de vista.
Modos de interação na exposição
Inspirados na noção de museu total de Wagensberg 1515. Wagensberg J. The “total” museum, a tool for social change. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 2005; 12 Supp:309-21. , exploramos interações paralelas com o público no blog e nas redes sociais, com o objetivo de ampliação da potencialidade de documentação e difusão da estratégia, de modo a possibilitar ainda a revisitação virtual de parte da exposição e o compartilhamento de questionamentos e de experiências. Assim, o site www.sentidosdonascer.org aloja os conteúdos da exposição, informações, programação, artigos e notícias relacionadas ao parto e nascimento. A SDN se vale de muitos outros recursos interativos além das habituais telas touchscreen e gadgets 1616. Oliveira B, Campos VS, Reis DA, Lommez R. O fetiche da interatividade em dispositivos museais: eficácia ou frustração na difusão do conhecimento científico. Museol Patrim. 2014; 7(1):21-32. . O próprio cenário, ambientação, interações com a mediação no acolhimento, no compartilhamento e/ou no divertimento dos visitantes são recursos bastante explorados. A ação dos mediadores pode fazer diferença no envolvimento do visitante e a relação criada é determinante na visitação. Não há uma fórmula única para cativar os visitantes e independentemente da maneira de agir de cada mediador, as situações suscitam o desenrolar de um percurso de sensibilização/provocações.
Duas estratégias se destacaram na exposição: a ironia e a controvérsia. A Loja de Conveniências da Maternidade Cirúrgica é uma paródia do mercado do parto, com produtos e merchandising caricaturais e visa à implicação do visitante no debate, incitando-o a refletir sobre o tema e a tomar uma posição. A ironia é uma linguagem que nos instiga a um movimento do pensamento, de modo a rever nossas ilusões e preconceitos. Enquanto algumas formas de transmissão de informações e explicações demandam a recepção ou assimilação de conhecimentos sem reflexão, a ironia gera dúvidas sobre a interpretação – “Será que ouvi direito?”; “Estão falando sério?”. Os produtos expostos nas prateleiras da loja são atraentes e as ofertas muitas vezes refletem o cotidiano do consumo de supérfluos. Com a explicitação de alguns absurdos, a provocação se evidencia. Como a visita é realizada em grupo, instaura-se uma perplexidade compartilhada, com reações e discussões; e é fundamental a atuação do mediador. A visita pode ser considerada uma interatividade horizontal, pois depende do grupo, da reação de estranhamento, do riso e/ou de outras manifestações das pessoas. O mediador atuando como vendedor da loja pode aumentar as provocações ou distensioná-las com ponderações, sem aprovação ou desaprovação das questões colocadas – “Isso é apenas uma brincadeira, uma crítica que será discutida a seguir na exposição”.
Nas Controvérsias, as formas de interação trazem à tona uma pluralidade de perspectivas e discursos com os quais as pessoas se identificam ou buscam se contrapor. O mapeamento de controvérsias sociotécnicas é uma estratégia que vem sendo utilizada nos estudos sobre as ciências para a compreensão de questões em que aspectos sociais, naturais ou técnicas se entrelaçam jjO mapeamento de controvérsias sociotécnico é uma abordagem que procura explorar diferentes perspectivas e interesses que interagem nas questões científicas e tecnológicas. Essa metodologia nasce no campo dos estudos sociais da ciência e da tecnologia, em que são indecidíveis de antemão o que conta como social e o que conta como técnico. . Essa abordagem possibilita observar como diferentes perspectivas se enfrentam, articulam-se e se complementam ou divergem. Além de estratégia metodológica para análise de problemas científicos e tecnológicos, é uma potente estratégia educativa e, por isso, muito utilizada em jogos educativos, exposições e museus 1717. Marandino M, Contier D, Navas AM, Bizerra A, Neves AL. Controvérsias em museus de ciências: reflexões e propostas para educadores. São Paulo: FEUSP; 2016. , 1818. Contier D. A ação dos educadores-mediadores de museus e exposições em controvérsias sociotécnicas [tese]. São Paulo: Faculdade de Educação, USP; 2018. . A diversidade de argumentos contraditórios facilita a identificação (e conscientização) do ponto de vista de cada um e as formulações divergentes ou contrárias que devem ser levadas em conta. Com isso, possibilita a revisão e o enriquecimento das opiniões.
Em geral, as exposições sobre o parto e nascimento retratam o discurso biomédico, reduzindo-o à sua dimensão fisiológica. Tal perspectiva traz implícito um projeto biopolítico que reforça a intervenção médica sobre o comportamento social e domínio do corpo feminino e dos direitos sexuais e reprodutivos 1919. Palharini L. A história da atenção ao parto e nascimento: possibilidades dos museus como espaços de comunicação e formação sobre o tema [tese]. Campinas: Faculdade de Educação, Unicamp; 2015. . Mesmo quando as exposições sobre o parto e nascimento incluem aspectos históricos e culturais, geralmente são apresentados de forma pretensamente neutra e/ou folclóricas, distantes das controversas questões macro e micropolíticas. Diferentemente, a exposição SDN traz à cena as dimensões sociopolíticas e problematiza as representações sociais sobre o parto e nascimento, explorando as disputas dentro do campo da saúde, como as entre categorias profissionais, das perspectivas de gênero, étnico-raciais, dos interesses de mercado, dos modismos, do consumismo, das práticas ultrapassadas, das evidências científicas, dos saberes tradicionais e das ideologias dominantes.
Embora a exposição SDN tenha um posicionamento crítico ao excesso de cesariana desnecessária, à mercantilização do parto e à violência contra a mulher, não significa que estejam ausentes vozes dissonantes. O personagem Dr. Cesário encarna o discurso da prática médica tradicional. A personagem Amiga recomenda a escolha de uma maternidade pela hotelaria, expressando a comodidade e a sedução do consumo. O temor das dores do parto, expresso pela personagem Mãe, intercala-se com a fala do pai, do pediatra, da enfermeira obstetra e da doula, que alertam sobre tabus e convidam o visitante grávido a ressignificar a experiência do nascimento.
Além dessas estratégias expográficas para sensibilização e envolvimento do público, a itinerância atendeu à perspectiva inclusiva da SDN como forma de facilitar o acesso de visitantes que habitualmente não frequentam museus ou exposições. Há ainda estratégias de acessibilidade na exposição para possibilitar a inclusão de pessoas com deficiência auditiva e restrição de movimento.
Alcance e repercussão da intervenção
A SDN foi montada em oito locais em 2015: Belo Horizonte/MG ( campus UFMG, Parque Municipal e Shopping Boulevard); Rio de Janeiro (Praça Tiradentes); Niterói (Caminhos de Niemeyer); Ceilândia (Praça do Rolo) e Brasília (Conjunto Nacional e Pavilhão de Exposições na XV Conferência Nacional de Saúde). Em 2016, em BH, ganharam montagens também a Feira da Gestante kkA Feira da Gestante ocorre em várias cidades brasileiras para venda de mercadorias de gestantes e bebês. Na impossibilidade de se montar a exposição dentro da feira, obtivemos a licença da prefeitura municipal para desviar o trânsito e ocupar uma das ruas de acesso ao local. e o campus Saúde da UFMG (Faculdade de Medicina, Escola de Enfermagem e Hospital das Clínicas). Contou com o apoio dos governos locais por meio das Secretarias Municipais de Saúde e obteve sucesso de público e crítica: houve mais de 31 mil visitantes no primeiro ano, com ampla e elogiosa cobertura na mídia llHouve reportagens em diversos jornais e programas televisivos de grande audiência, como o Jornal Nacional ( https://www.youtube.com/watch?v=CYAaR538EuM ) e programa Bem Estar (https:// www.youtube.com/ watch?v=n2sy7DGZ suk&t=8s). . Teve em média 180 visitantes por dia, o que equivale à frequência de museus bem estruturados. Além disso, duas cópias da exposição foram reproduzidas e instaladas: uma no Parque das Mangabeiras, em BH, com financiamento do Prêmio InovaSUS do Ministério da Saúde, e outra no Centro Cultural do Ministério da Saúde, na Praça XV no Rio de Janeiro, uma parceria do Ministério da Saúde e da Secretaria Municipal de Saúde mmAinda não foi inaugurada, aguardando um complicado processo de licenciamento do corpo de bombeiros, pois se trata de imóvel tombado pelo Patrimônio Histórico. . Essas duas últimas foram articuladas com ações de educação permanente de profissionais de saúde das redes municipais, das quais trataremos mais à frente.
Visitantes e mobilização
A exposição propiciou encontros, conversas e reforço das redes de apoio, fomentando a articulação dos movimentos locais de mulheres e entidades de apoio a essa temática, catalisando processos. Em todas as montagens foram realizadas atividades formativas e de mobilização, como rodas de conversa com gestantes, yoga, shantala , lançamento de livros, pintura na barriga e mostras de iniciativas locais.
A parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte possibilitou a divulgação na rede pública de ensino e a integração com os programas Circuito de Museus e Escola Aberta, que asseguravam ônibus escolares para o transporte de turmas agendadas e suas famílias.
A participação de crianças junto com suas famílias e escolas foi incentivada e, para acolher o público infantil, criou-se um espaço na entrada com materiais sobre o tema do parto/nascimento para crianças nnEsse espaço foi composto por mesinha com cadeiras baixas sobre placas de EVA, com jogos e livros como “Que cegonha o quê!” (2014), da Universidade das Crianças ( http://www.universidadedascriancas.org/ ). , de forma que pais e responsáveis, em conjunto com os mediadores, pudessem abordar e explorar o tema. A importância da participação de crianças se coloca também pelo desafio de transformação cultural com a construção de um referencial de normalidade para o nascimento, contrapondo-se à naturalização do nascimento cirúrgico, difundido na atualidade. As visitas de escolas são indicadas para crianças a partir de dez anos e adolescentes. Pela diversidade etária das turmas de Educação de Jovens e Adultos, que reúne pessoas com maior vulnerabilidade, experiências de vida e pouco acesso a bens culturais desse tipo, esse público interage com a exposição de forma extraordinária. Para acolher esse público, procuramos sempre que possível estender a exposição até 22 horas.
Outro grupo de visitantes a ser destacado é o de estudantes de graduação, pós-graduação e residências em áreas da saúde; e profissionais da saúde com atuação na atenção básica, especialidades, hospitais e maternidades. Muitos desconheciam conteúdos importantes para sua atuação, como evidências científicas atualizadas e recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde que contrapõem muitas das práticas habituais e realizadas de maneira acrítica. Grande parte se interessava pelas formas de se abordar os tabus sobre o parto e aproveitavam o acesso a materiais criativos que poderiam ser úteis na lida para a mudança do atual modelo obstétrico.
Com o intuito de atender à necessidade de educação permanente em saúde, foi estabelecida uma parceria com a Gerência de Educação em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde em 2016, com a oferta de um curso de sensibilização destinado aos profissionais de saúde da atenção primária de saúde do SUS-BH. Nessas oficinas, foram conjugadas a participação na exposição, a exibição do filme o Renascimento do Parto e roda de discussão estruturada com diálogo sobre as experiências de vida e no trabalho. Os encontros possibilitaram o estímulo à participação, levantamento e reflexão crítica e motivação dos profissionais para a atuação em seus locais de trabalho. Essa iniciativa teve participação de 564 profissionais e reconhecimento nacional com os prêmios InovaSus ooNo InovaSus 2015 – Gestão da Educação na Saúde, o projeto SDN ficou em 1º lugar na região Sudeste. , do Ministério da Saúde (MS) em 2015, e Laboratório de Inovação da Educação na Saúde da Organização Pan-Americana de Saúde/MS em 2018 pphttp://portalms.saude.gov.br/noticias/sgtes/43332-laboratorio-de-inovacao-em-educacao-na-saude-divulga-resultado-final .
Formação de mediadores e multiplicadores
Como a exposição é itinerante, uma das estratégias fundamentais foi preparar equipes de mediação em cada localidade, principalmente para promover uma ancoragem/nucleação em cada local e, ao mesmo tempo, formação na temática do parto e nascimento. Buscou-se, assim, parcerias com as universidades de cada cidade, em articulação com projetos de extensão, para atuarem como mediadores na exposição e em atividades de divulgação e mobilização local. Com esse intuito, foi estruturado o curso semipresencial para o processo formativo dessas equipes, com 30 horas de duração, na modalidade de educação a distância no Ambiente Virtual de Aprendizagem (CAED) da UFMG. Foram utilizados materiais da exposição e as mesmas diretrizes estéticas e pedagógicas: sensibilização para o acolhimento, interação, criação, controvérsias e debates. Foram formados 120 alunos e, a partir dessa experiência, estruturamos a formação de multiplicadores em assistência humanizada ao parto e nascimento com um curso semipresencial de 30 horas na plataforma Moodle e 16 horas presenciais na exposição, ofertando esse curso como de extensão e como disciplina do mestrado profissional “Promoção de Saúde e Prevenção da Violência”, da UFMG, com cerca de 150 alunos em cinco edições do curso.
Efeitos da exposição: metodologia de avaliação
Para a avaliação dos efeitos da exposição na percepção e conhecimento dos visitantes, foi utilizada uma conjugação de estratégias multimetodológicas, elencadas a seguir:
Totem na saída da exposição para o registro pelos visitantes das suas opiniões sobre o parto normal antes e depois da visita em uma escala Likert (péssimo, ruim, sem opinião, bom, excelente).
Entrevistas com amostra de 5% dos visitantes antes e 5% dos visitantes depois da participação na exposição, com utilização de questionário estruturado para analisar o perfil socioeconômico dos visitantes, suas percepções sobre o parto normal como medo, prazer, segurança e seus conhecimentos sobre boas práticas na atenção ao parto.
Entrevista com as 1287 gestantes que visitaram a exposição em 2015, por meio de questionário estruturado para avaliar, além do perfil socioeconômico, seu conhecimento sobre a assistência ao parto, sua experiência atual e pregressa sobre o parto e nascimento, suas preferências e sentimentos sobre o parto normal e suas impressões sobre a exposição.
22 grupos focais, com grupos de interesse: gestantes, profissionais de saúde, professores e estudantes, totalizando 139 participantes.
Pesquisa com o “não público”, isto é, pessoas que passavam pelas imediações, mas que não entravam na exposição, por amostragem, para análise do perfil socioeconômico, hábitos culturais e percepções sobre o tema do parto e nascimento.
Análise da repercussão nas redes sociais da SDN.
Análise dos depoimentos registrados pelos visitantes após sua participação na SDN.
Análise da experiência de parto das mulheres que visitaram a exposição durante a gestação ( follow up ), por e-mail ou telefone. 650 (50,5% das respondentes no item 3) responderam às questões após o parto.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da UFMG sob o número CAAE 23072.027258-2018-43.
Resultados
De forma geral, a exposição SDN contribuiu para melhorar o conhecimento e a mudança nas percepções e preferências sobre o parto normal a partir de avaliações com diferentes abordagens. Apresentamos aqui uma síntese dos resultados; o detalhamento metodológico e os resultados estão disponíveis em publicações específicas 2020. Lansky S, Oliveira BJ, Peixoto ERM, Souza KV, Fernandes LMM, Friche AAL. The Senses of Birth intervention to decrease cesarean and prematurity rates in Brazil. Int J Gynaecol Obstet. 2019; 145(1):91-100. doi: https://dx.doi.org/10.1002/ijgo.12765 .
https://dx.doi.org/10.1002/ijgo.12765...
21. Lansky S, Souza KV, Peixoto ERM, Oliveira BJ, Diniz CSG, Vieira NF, et al. Violência obstétrica: influência da Exposição Sentidos do Nascer na vivência das gestantes. Cienc Saude Colet. 2019; 24(8):2811-24. doi: https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018248.30102017 .
https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018... - 2222. Santos FSR, Souza PA, Lansky S, Oliveira BJ, Matozinhos FP, Abreu ALN, et al. Os significados e sentidos do plano de parto para as mulheres que participaram da Exposição Sentidos do Nascer. Cad Saude Publica. 2018; 35(6):e00143718. doi: https://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00143718 .
https://dx.doi.org/10.1590/0102-311X0014... .
Do total de 22.621 visitantes em 2015, 17.501 (77,9%) fizeram a avaliação da exposição imediatamente após a sua participação: 77,4% dos participantes registraram mudança de opinião sobre o parto normal depois da visita à exposição. A avaliação do parto normal como “excelente” aumentou de 42% para 81,4% depois da intervenção e a visão negativa sobre o parto normal (“péssima” = 4.5%, “ruim” = 7,7% e “sem opinião” = 10,1%) baixou de 22,9% para 3,7%; 78% dos visitantes eram do sexo feminino; 58,3% tinham entre 25 e 49 anos, 31,4% tinham menos de 24 anos e 9,5% tinham cinquenta anos ou mais; 21,6% dos visitantes declararam renda familiar menor que dois salários mínimos; 33%, entre dois e cinco; 22,9%, entre cinco e dez salários; e 14,2% tinha renda maior que dez salários mínimos. A maioria dos entrevistados tinha ensino superior (74,8%); 19,9%, ensino médio; e 4,9%, ensino fundamental. 50,9% dos entrevistados se autodeclararam negros e 47,8%, brancos. O grupo de gestantes apresentou perfil de renda e de cor de pele semelhantes, porém, menor escolaridade, concentração de idade na faixa vinte e 34 anos (76,5%) e 74,6% tinha plano de saúde privado.
O estudo mostrou que o conhecimento sobre as práticas recomendadas por evidências científicas pela OMS e pelo Ministério da Saúde do Brasil aumentou significativamente após a vista à exposição, especialmente entre gestantes, com a mudança de 40% declarando bom conhecimento para 82,5%. Houve aumento do conhecimento dos visitantes sobre a assistência ao parto e nascimento, como os riscos da cesariana, práticas recomendadas de atenção ao parto normal e violência obstétrica. Houve também expressiva mudança na percepção dos visitantes sobre o parto normal, com aumento da associação a sentimentos e sensações como alegria, segurança, realização e confiança; e redução significativa da associação com dor e sofrimento. A percepção positiva sobre o parto normal passou de 46% para 84%. Mesmo levando-se em conta que boa parte dos visitantes já tinha interesse pelo parto normal, a avaliação positiva (“boa” e “excelente”) aumentou de 77,9% para 96,8% após a intervenção.
Por meio de depoimentos nos grupos focais, nos livros de comentários e nas redes sociais e de entrevistas após o parto com mulheres que participaram da exposição durante a gestação, verificamos que muitas mães ressignificaram sua experiência e perceberam que foram mal-assistidas ou desrespeitadas na gestação e no trabalho de parto, sendo que uma grande parte sofreu violência no parto, apesar de apenas 12,6% nomeá-la como tal 55. Souza JP, Pileggi-Castro C. Sobre o parto e o nascer: a importância da prevenção quaternária. Cad Saude Publica. 2014; 30 Supl 1:11-3. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE02S114 .
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE02S... .
Foram analisados 3144 depoimentos dos visitantes após participação na exposição, agrupados em cinco categorias pela recorrência dos temas: Elogios à exposição (61,5%); Maternidade, poder feminino e o divino (21,9%); Informação/pensamento crítico/reflexão (12,1%); Relato de experiência pessoal (3,8%); e Críticas e sugestões (0,8%).
Esclarecedor e bem relevante. A naturalidade deve ser preservada a fim de darmos melhor saúde aos nossos filhos e mães. Prioridade ao parto normal! (Maria) qqOs nomes foram alterados para preservar o anonimato dos autores.
Em contraposição à associação do parto normal como um “retorno” à natureza, mensagens associavam a influência de interesses econômicos, desinformação, tabus e a tomada de consciência. “Parir é normal, cesárea é capital” (Nina).
Como homem, viver a experiência da exposição nos leva a crer que a decisão final é da mulher, sempre. Espero que todas pensem em ter um parto normal. (Pedro)
Foi duro depois de vinte anos acordar para a realidade de que fui violentada no momento mais bonito da minha vida! (Tânia)
A SDN apostou no formato interativo e sensorial e tocou o visitante com depoimentos destacando a emoção da experiência vivida: “...me emocionei” (Marina), “...chorei” (Francisco); “...nasci de novo” (Raul).
Tive três cesarianas e nunca havia pensado no quanto meus bebês poderiam se sentir mal ao serem arrancados do meu útero. Se tivesse sido informado com tanta segurança que nos foi passado teria sido diferente. Parabéns por conscientizarem novas mães! (Rosilene)
Gostaria que todos os obstetras compartilhassem dessem sentido humanitário e que não tratassem com violência e mercantilismo esse momento mágico e divino. (Meire)
Muitas mulheres, ao passarem pela experiência da exposição, indagavam como poderiam atuar para que outras mulheres pudessem fazer melhores opções, de modo mais informado e empoderado. Tal situação é interpretada como a conscientização dessas mulheres a respeito do papel de cada uma como formadoras de opinião para o enfrentamento do problema e de desafios da cidadania na construção de políticas públicas adequadas, com circulação de informações de qualidade. Assim, para além da difusão dos conhecimentos e das reflexões provocadas, a SDN contribui para promoção da assistência respeitosa e baseada em evidências, fortalecendo o território envolvido em articulação com políticas públicas existentes e catalisando os atores locais, usuários, conselhos de saúde e trabalhadores/agentes da área cultural.
Uma avaliação que expressa a mobilização social é a interação por meio das redes sociais, que atingiu 68.204 seguidores no Facebook e 5229 no Instagram. Nos anos de 2015 e 2016 foram realizadas 1250 postagens, com 210.722 interações, sendo 34.442 compartilhamentos, com um alcance total de 2.604.683 visualizações.
Por fim, a análise da experiência de parto das mulheres que visitaram a exposição durante a gestação revelou que a maioria (55,2%) fez uso do plano de parto, 76,7% acessaram métodos não farmacológicos de alívio da dor durante o trabalho de parto, 27% contaram com apoio de doula e 48%, de enfermeira obstetra. A taxa de cesariana nesse grupo foi de 46%, menor do que os índices no setor de saúde suplementar (84%). Constatou-se também que a taxa de prematuridade de 7,4% nesse grupo foi menor do que a taxa brasileira de 12,5% no mesmo período 11. Brasil. Ministério da Saúde. Painel de monitoramento de nascidos vivos: informação e análise epidemiológica. Brasília: Ministério da Saúde; 2018. .
Considerações finais
Embora tenha-se buscado estratégias multimetodológicas para avaliação dos efeitos da exposição, muitos aspectos subjetivos e de intensidades variáveis envolvidos no propósito de mudança cultural não foram contemplados, uma vez que é praticamente impossível abarcar todas os aspectos e influências subjetivas e culturais cabalmente. Por exemplo, a emoção e o choro, tão frequentes entre os visitantes na saída da exposição, têm tantas razões e sentidos que a contagem de lágrimas não ajudaria a decifrar. Conscientes de que os métodos para aferição dos efeitos têm limitações, buscamos construir marcadores que ajudassem a dimensionar e compreender alguns efeitos da exposição nos visitantes.
Os resultados constataram a mudança de opinião e a aquisição de conhecimentos sobre o tema e, dessa forma, evidenciam o potencial dessa exposição como instrumento de transformação cultural. Iniciativas de mobilização social como essa contribuem para ampliar o conhecimento e a divulgação sobre o problema e apoiar a disseminação das boas práticas na assistência ao parto e nascimento. Essa iniciativa pode ser replicada para apoiar a mudança de cultura e reduzir as taxas de cesarianas desnecessárias e seus efeitos deletérios sobre a saúde da mulher e da criança. Além dos resultados dessa experiência concreta sobre a mudança de percepção sobre o parto e nascimento, consideramos que as estratégias de educomunicação desenvolvidas – como a conjunção de diferentes linguagens e suportes, de forma a despertar diferentes sensações nos visitantes; o cuidado estético para que situações criadas sejam tocantes, divertidas e reflexivas; o uso de controvérsias e ironia; e a avaliação sistemática de seus efeitos – se mostraram potentes para ativação do debate público também sobre outros temas candentes da sociedade brasileira.
Essas estratégias merecem atenção dos interessados em processos de educação não formal e formal, bem como de estudiosos de comunicação e educação, não apenas porque podem vir a ser reproduzidas, desdobradas ou inspirar outras ações semelhantes, mas também porque enriquecem a compreensão da complexidade dos processos formativos na dinâmica de transformações culturais.
Agradecimentos
Às inestimáveis contribuições de Miriam Rego, Daphne Rattner, Maria Helena Bastos, Quésia Villamil, Cleise Soares, Isabel Cristina, Pollyana do Amaral, Hospital Sofia Feldman e demais participantes dos Movimentos BH pelo Parto Normal e Sentidos do Nascer.
Referências
- 1Brasil. Ministério da Saúde. Painel de monitoramento de nascidos vivos: informação e análise epidemiológica. Brasília: Ministério da Saúde; 2018.
- 2Brasil. Ministério da Saúde. Mortalidade materna no Brasil: principais causas de morte e tendências temporais no período de 1990 a 2010. In: Brasil. Ministério da Saúde. Uma análise da situação de saúde e a vigilância da saúde da mulher. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. p. 345-59.
- 3Brasil. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Taxas de partos cesáreos por operadora de plano de saúde [Internet]. Brasília: Agência Nacional de Saúde Suplementar; 2017. p. 1-2.
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» http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00151513 - 5Souza JP, Pileggi-Castro C. Sobre o parto e o nascer: a importância da prevenção quaternária. Cad Saude Publica. 2014; 30 Supl 1:11-3. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE02S114 .
» http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE02S114 - 6Lansky S, Souza KV, Peixoto ERM, Oliveira BJ, Diniz SG, Vieira NF, et al. Violência obstétrica: influência da Exposição Sentidos do Nascer na vivência das gestantes. Cienc Saude Colet. 2019; 24(8):2811-24.
- 7Diniz S, Pires AFP, Lansky S. Equity and women’s health services for contraception, abortion and childbirth in Brazil. Reprod Health Matters. 2012; 20(40):94-101.
- 8Lansky S, Friche AAL, Silva AAM, Campos D, Bittencourt SD, Carvalho ML, et al. Pesquisa nascer no Brasil: perfil da mortalidade neonatal e dos fatores associados à assistência à gestante e ao recém-nascido. Cad Saude Publica. 2014; 30 Supl 1:192-207.
- 9United Nations. Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. Nova Iorque: Division for Sustainable Development Goals; 2015.
- 10Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.459, de 24 de Junho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede Cegonha. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.
- 11Soares I. Educomunicação e terceiro entorno: diálogos com Galimberti, Echeverría e Martín-Barbero. Comun Educ. 2010; 5(15):57-66.
- 12Santana C. De(legando) o futuro: mediações e educomunicação nas relações entre museus e públicos [dissertação]. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes, USP; 2016.
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- 20Lansky S, Oliveira BJ, Peixoto ERM, Souza KV, Fernandes LMM, Friche AAL. The Senses of Birth intervention to decrease cesarean and prematurity rates in Brazil. Int J Gynaecol Obstet. 2019; 145(1):91-100. doi: https://dx.doi.org/10.1002/ijgo.12765 .
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» https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018248.30102017 - 22Santos FSR, Souza PA, Lansky S, Oliveira BJ, Matozinhos FP, Abreu ALN, et al. Os significados e sentidos do plano de parto para as mulheres que participaram da Exposição Sentidos do Nascer. Cad Saude Publica. 2018; 35(6):e00143718. doi: https://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00143718 .
» https://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00143718
- gDados de 2017 mostram um crescimento das visitações, mas estima-se que 85% da população não frequenta museus. Mesmo em São Paulo, estado com maior concentração de museus, 55% dos jovens nunca frequentaram museus (p. 27).
- hO custo da exposição em quatro containers ficou em torno de 260 mil reais, ao passo que a dos caminhões-exposições do mesmo tipo e tamanho custam oito vezes este valor e, embora facilitem a logística, não diminuem o custo do transporte.
- iMaterial desenvolvido pelo movimento BH pelo Parto Normal, sugerido para a gestante se informar sobre as boas práticas; e direitos e escolhas durante o trabalho de parto relacionados a acompanhante, posição mais confortável no parto, métodos de conforto da dor, entre outros.
- jO mapeamento de controvérsias sociotécnico é uma abordagem que procura explorar diferentes perspectivas e interesses que interagem nas questões científicas e tecnológicas. Essa metodologia nasce no campo dos estudos sociais da ciência e da tecnologia, em que são indecidíveis de antemão o que conta como social e o que conta como técnico.
- kA Feira da Gestante ocorre em várias cidades brasileiras para venda de mercadorias de gestantes e bebês. Na impossibilidade de se montar a exposição dentro da feira, obtivemos a licença da prefeitura municipal para desviar o trânsito e ocupar uma das ruas de acesso ao local.
- lHouve reportagens em diversos jornais e programas televisivos de grande audiência, como o Jornal Nacional ( https://www.youtube.com/watch?v=CYAaR538EuM ) e programa Bem Estar (https:// www.youtube.com/ watch?v=n2sy7DGZ suk&t=8s).
- mAinda não foi inaugurada, aguardando um complicado processo de licenciamento do corpo de bombeiros, pois se trata de imóvel tombado pelo Patrimônio Histórico.
- nEsse espaço foi composto por mesinha com cadeiras baixas sobre placas de EVA, com jogos e livros como “Que cegonha o quê!” (2014), da Universidade das Crianças ( http://www.universidadedascriancas.org/ ).
- oNo InovaSus 2015 – Gestão da Educação na Saúde, o projeto SDN ficou em 1º lugar na região Sudeste.
- p
- qOs nomes foram alterados para preservar o anonimato dos autores.
- *Este trabalho foi apoiado financeiramente pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig), pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo Ministério da Saúde, pela Fundação Bill e Melinda Gates e pela Organização Pan-Americana da Saúde.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
23 Mar 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
16 Jul 2019 - Aceito
23 Out 2019