O cotidiano revelado por imagens da cidade * * O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-Brasil (CAPES), código do financiamento 001.

Everyday life revealed through images of the city

El cotidiano revelado por imágenes de la ciudad

Monica Villaça Gonçalves Luiz Rafael Bezerra Neto Ana Paula Serrata Malfitano Sobre os autores

Resumos

Durante uma pesquisa de doutorado, a produção de dados foi realizada em conjunto com os jovens participantes, que narraram sua mobilidade urbana pela cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Um desses jovens apresentou, durante o processo, suas fotografias e o desejo de exibi-las, representando os lugares pelos quais circulava na cidade. Elaboramos conjuntamente uma exposição virtual de suas fotografias, nomeada “Cotidiano”. A exposição está disponível on-line e pode ser acessada em diferentes redes sociais. Apresentamos aqui o processo de criação da exposição e as histórias de algumas das imagens que a compõem. A partir deste relato, tendo como foco o processo de pesquisa, buscamos refletir sobre a produção colaborativa de dados e a utilização de atividades significativas para os sujeitos participantes do processo. Acreditamos na implicação do pesquisador no processo de pesquisa e na composição conjunta com seus colaboradores.

Terapia Ocupacional; Fotografia; Liberdade de circulação; Cidades; Urbanização


During a Doctoral research, data were produced jointly with young participants who narrated their urban mobility across the city of Rio de Janeiro, Brasil. One of these youths presented the photographs he took during the process, which represented the places he visited round the city, and the desire to exhibit them. Together, we created a virtual exhibition of his photographs that was called “Everyday Life”. The exhibition is available online and can be accessed in different social media. We present, here, the creation process of the exhibition and the stories of some of the images that compose it. Based on this report and focusing on the research process, we aim to reflect on collaborative data production and on the utilization of significant activities for the subjects who participate in the process. We believe in the researcher’s involvement in the research process and in a joint composition with his or her collaborators.

Occupational therapy; Photography; Freedom of movement; Cities; Urbanization


Durante una investigación de doctorado, la producción de datos se realizó en conjunto con los jóvenes participantes que narraron su movilidad urbana por la ciudad de Río de Janeiro, Brasil. Uno de esos jóvenes presentó, durante el proceso, sus fotografías y el deseo de exhibirlas, representando los lugares por los cuales circulaba en la ciudad. Elaboramos en conjunto una exposición virtual de sus fotografías, denominada “Cotidiano”. La exposición está disponible online y el acceso puede realizarse por medio de diferentes redes sociales. Presentamos aquí el proceso de creación de la exposición y las historias de algunas de las imágenes que la componen. A partir de este relato, utilizando como enfoque el proceso de investigación, buscamos reflexionar sobre la producción colaborativa de datos y la utilización de actividades significativas para los sujetos participantes del proceso. Creemos en la implicación del investigador en el proceso de investigación y en la composición conjunta con sus colaboradores.

Terapia ocupacional; Fotografía; Libertad de circulación; Ciudades; Urbanización


Contextualizando

Durante a pesquisa de doutorado em Terapia Ocupacional intitulada “A mobilidade urbana de jovens em projetos sociais do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, e suas relações com a terapia ocupacional social”, a produção de dados foi realizada em conjunto com os jovens participantes da pesquisa, que narraram como é a sua mobilidade urbana pela cidade do Rio de Janeiro.

O projeto foi apresentado para avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa e aprovado conforme o parecer 2.761.319.

Nesta pesquisa, filiada teoricamente à terapia ocupacional social 11. Lopes RE, Malfitano APS. Terapia ocupacional social: desenhos teóricos e contornos práticos. São Carlos: EdUFSCar; 2016 .

2. Barros DD, Ghirardi MIG, Lopes RE. Terapia ocupacional social. Rev Ter Ocup USP. 2002 ; 13(3):95-103.
- 33. Barros DD, Lopes RE, Galheigo SM. Terapia ocupacional social: concepções e perspectivas. In: Cavalcanti A, Galvão C, organizadores. Terapia ocupacional: fundamentação e prática. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2007 . p. 347-53. , o foco de discussão se deu sobre o conceito de mobilidade urbana, que é aqui compreendido como uma noção que supera a ideia de deslocamento físico e analisa também as suas causas e consequências. Ou seja, busca olhar para as transformações sociais relacionadas ao movimento; e aos significados dos deslocamentos para a vida dos sujeitos e coletivos, entendendo, portanto, a mobilidade como uma prática social 44. Balbim R. Mobilidade: uma abordagem sistêmica. In: Balbim R, Krause C, Linke CC, organizadores. Cidade e movimento mobilidades e interações no desenvolvimento urbano. Brasília: Ipea; 2016 . p. 23-42. , 55. Souza ASB. Presos no círculo, prostrados no asfalto: tensões entre o móvel e o imóvel [tese]. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP; 2014 . marcada pelo lugar social ocupado pelos sujeitos individuais e coletivos em suas vidas cotidianas.

Para a compreensão dos significados sociais da mobilidade, foi imprescindível o relato de quem vive o seu cerceamento, no nosso caso os jovens moradores de favela. A construção histórica das favelas no Rio de Janeiro incide até os dias atuais na percepção daqueles territórios pelo imaginário social de toda aquela cidade. As favelas são comumente relacionadas com a pobreza, a desordem, a criminalidade e a marginalidade 66. Observatório de Favelas. Declaração: o que é favela, afinal? In: Silva JS, organizador. O que é favela, afinal? Rio de Janeiro: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro; 2009 . p. 96-7. , 77. Valladares LP. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Editora FVG; 2005 . . Os jovens moradores das favelas especialmente são vistos como potencialmente criminosos, vivendo sob o princípio da “sujeição criminal” 88. Misse M . Violence, criminal subjection and political merchandise in Brazil: an overview from Rio . Int J Criminol Sociol . 2018 ; 7 : 135 - 48 . , ou seja, estão marcados como bandidos pela sua condição de pobreza e de ser morador de favela. Ser jovem e viver na favela, portanto, acarreta uma sobreposição de estigmas diretamente ligados ao território de moradia. Tal condição restringe, simbólica e concretamente, seu acesso a alguns espaços públicos. Essa restrição leva a um cerceamento da mobilidade urbana e consequentemente do seu acesso aos direitos sociais. Os direitos sociais são aqueles que buscam garantir aos sujeitos e coletivos a “aquisição de um padrão mínimo de bem-estar e segurança sociais que devem prevalecer na sociedade” 99. Lopes RE. Cidadania, direitos e terapia ocupacional social. In: Lopes RE, Malfitano APS, organizadores. Terapia ocupacional Social: desenhos teóricos e contornos práticos. São Paulo: EdUFSCar; 2016 . p. 29-48. (p. 25), constituindo um padrão de proteção social teoricamente para todos os cidadãos. São, portanto, direitos como o acesso ao trabalho, à educação, à saúde, ao lazer, à cultura, entre outros 1010. Benevides MV. Cidadania e direitos humanos. São Paulo: IEA; 1998 . .

O cerceamento da mobilidade acarretado pelos marcadores sociais de classe, raça e local de moradia constituem uma experiência própria, que só pode ser apreendida por meio das experiências de quem as vive. Portanto, mais do que apenas analisar os deslocamentos físicos pela cidade, ou inferirmos seus significados, o que buscamos foi ouvir o que os jovens tinham para nos dizer sobre o assunto. Isso porque, a partir de nosso entendimento da mobilidade urbana como uma prática social, seus significados diferem a depender do contexto e vivências de diferentes sujeitos, com distintas posições sociais e acessos.

Nesse contexto, este trabalho teve como objetivo relatar a experiência da produção de dados da pesquisa junto a um dos jovens participantes, que, particularmente pelas suas características e habilidades, desdobrou-se na criação de uma exposição fotográfica virtual sobre a mobilidade urbana daquele jovem, produzida por ele no contexto de colaboração com a pesquisa. A partir desse relato, buscamos refletir sobre a produção colaborativa de dados de pesquisa e sobre a utilização de atividades significativas para os sujeitos participantes do processo. Além dos resultados que puderam fornecer informações sobre a mobilidade urbana dos jovens participantes, buscamos que as atividades realizadas também pudessem contribuir com processos de reflexão e conscientização sobre o tema em foco: a mobilidade urbana.

O processo de produção conjunta sobre vivências e experiências

A produção de dados da pesquisa foi realizada junto a um projeto de extensão d universitária, desenvolvido desde 2015 em parceria com uma Organização Não Governamental (ONG) localizada no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Assim, diante do tempo e da continuidade com que as ações foram (e continuam sendo) desenvolvidas com a mesma população, estabeleceu-se uma relação de vínculo que ultrapassa os percursos de pesquisa, traduzindo-se em práticas que continuam se desenvolvendo no local.

As narrativas dos jovens a respeito de sua mobilidade urbana foram contadas, para além do discurso verbal, por meio de atividades gráficas e artísticas. As atividades, entendidas como recursos utilizados pelos terapeutas ocupacionais para a sua prática profissional, são cada vez mais empregadas também como instrumento para coleta de dados em pesquisas:

Esse processo, se bem conduzido, associado às outras formas de apreensão, permite, ao pesquisador terapeuta ocupacional, fazer uma leitura do universo daquele que faz de uma forma mais ampla, complementando, corroborando ou contradizendo os dados obtidos por meio da observação (participante ou não), da entrevista ou da ação conjunta 1111. Pereira PE , Malfitano APS . Olhos de ver, ouvidos de ouvir, mãos de fazer: oficinas de atividades em terapia ocupacional como método de coletas de dados . Interface (Botucatu). 2014 ; 18 ( 49 ): 415 - 22 . . (p. 549)

A produção de dados aconteceu tanto de forma coletiva, por meio de oficinas de atividades, quanto por meio de atividades individuais, produzidas a partir dos desejos e demandas dos jovens que participaram dessa etapa.

Um dos jovens, Luiz Neto, optou por produzir uma série de fotografias para contar a história de suas andanças cotidianas pelo Rio de Janeiro e assim colaborar com a produção de dados para a nossa pesquisa. Conhecemo-nos na ONG, em uma conversa com a coordenadora do local. Naquela ocasião, Luiz estava acompanhando uma amiga, que também desenvolve projetos em parceria com a ONG, sendo que em nossa conversa se interessou pelo tema da pesquisa e se dispôs a participar das oficinas. A partir das atividades realizadas em grupo, aproximamo-nos e começamos a conversar de forma mais individualizada, ocasião na qual contou sobre seu interesse por fotografias.

Nas conversas específicas sobre sua mobilidade urbana, fomos vendo as fotografias que Luiz fez e marcando os lugares visitados por ele em um mapa impresso da cidade do Rio de Janeiro, conversando sobre as possibilidades concretas e os sentimentos envolvidos em cada um dos lugares em que circulava, como foi seu acesso àqueles espaços, a frequência com que os visitava, os motivos etc. Após uma primeira conversa, Luiz relatou que fotografava com seu celular os lugares que frequentava. Revisitamos as imagens em seu celular, organizando-as primeiro por data, depois pelo local. As fotografias foram realizadas antes e durante o período da pesquisa, portanto, entre 2017 e 2018. Após essa organização, Luiz contou mais detalhadamente sobre sua mobilidade e outros assuntos que emergiram a partir de suas lembranças trazidas pelas imagens.

A partir desse processo de colaboração com a pesquisa, que compreendeu um reviver de suas andanças pela cidade, a partir de suas fotografias, surgiu a ideia de expor as imagens registradas, colocando-as em um mapa, de forma que representassem efetivamente os diferentes lugares da cidade pelos quais Luiz circulou.

O cotidiano revelado por imagens

As fotografias, que compõem a série chamada “Cotidiano”, resultaram em uma exposição virtual. A exposição foi desenvolvida para compartilhamento pelas redes sociais virtuais e pode ser visualizada em https://sites.google.com/view/cotidianoluiz/home. Após a organização da exposição virtual, reunimo-nos para escrever este artigo, também em parceria, como mais uma forma de divulgar o trabalho.

Sobre a primeira imagem que Luiz escolheu para a exposição, trata-se de um registro fotográfico de uma paisagem do Complexo do Alemão. Sobre essa imagem, Luiz conta que a fez em um dia de andança pelo local:

Eu caminhava todo dia na pista que tem em Olaria pra ajudar com a ansiedade…. hoje, eu não me lembro mais qual era o motivo dessa ansiedade. Mas nesse dia eu resolvi mudar meu lugar de caminhada... fui para a Vila Olímpica do Complexo do Alemão e tinha chovido no dia anterior e ainda tinham algumas poças d’água pelo chão. Essa foto foi de um momento que eu parei de caminhar e fui me alongar, foi quando eu vi a poça e lembrei de todas aquelas fotos muito estilosas que fazem da poça um espelho. Eu estava com um celular novo e com uma câmera decente, então estava tirando foto de praticamente tudo. [...] Sobre a escolha de fotografar esse espelho, inspirei-me na brincadeira dos contos de fadas, especificamente Branca de Neve. Nesta reflexão, pergunto: “espelho, espelho meu, onde está o direito que me prometeu?”. Ainda não tenho essa resposta, mas é uma pergunta constante na vida de quem mora na favela. Essas palavras me lembram de outra frase dita em um curso de direitos humanos que fiz no Raízes em Movimento, no Complexo do Alemão mesmo: A favela pede direitos, pois quando pedimos paz vocês invadem . (Luiz)

Figura 1
Vila Olímpica do Complexo do Alemão. Fotografia de Luiz Rafael Neto

Luiz é estudante universitário e tem relatado, por meio das fotos, a ampliação de sua mobilidade a partir deste novo lugar de pertencimento e circulação: a universidade pública.

A fotografia do Parque Lage eeO Parque Lage é um parque público do Rio de Janeiro, componente do Parque Nacional da Tijuca, e que abriga a Escola de Artes Visuais do Instituto de Belas Artes. demonstra o quanto Luiz “ganhou” a cidade, ampliando sua mobilidade, a partir do ingresso no ensino superior. Sobre essa imagem:

Após a faculdade meus amigos e eu marcamos de ir ao Parque Lage. Dois ônibus para chegar lá, saindo da UFRJ. Entrar na universidade tem aberto diversos lugares novos pra mim. (Luiz)

Figura 2
Parque Lage. Fotografia de Luiz Rafael Neto.

Outra imagem da série Cotidiano é uma fotografia da Faculdade de Letras da UFRJ, no campus do Fundão, o mesmo campus onde se localiza a Escola de Belas Artes, onde Luiz estuda. Sobre esse lugar, disse que “A Letras é o meu forte” e, quando questionado o porquê dessa afirmação, respondeu que “é um espaço muito aconchegante, porque o pessoal é muito diverso e muito plural”. Devido a um incêndio no prédio onde estudava, Luiz estava tendo aulas em outros prédios da universidade, sendo a Faculdade de Letras um deles.

Ah, Letras. Letras é um lugar que eu me sinto muito bem. É minha fortificação. (Luiz)

Figura 3
Faculdade de Letras, na UFRJ. Fotografia de Luiz Rafael Neto.

No centro do Rio de Janeiro, Luiz fotografou a imagem de sua amiga Sabrina, a MC Martina e a Mc Dall Farras, em uma exposição que tinha como foco a militância política nas favelas. Contudo, a exposição foi censurada, ficando em cartaz menos tempo que o previsto. A censura a manifestações artísticas e culturais das favelas representa o preconceito e os estigmas referentes àquele lugar. Com o avanço do conservadorismo nas instâncias políticas do país, atos de censura contra manifestações artísticas que não sigam o modelo heteronormativo hegemônico e conservador têm sido institucionalizados. Exposições ffPor exemplo, a exposição Queer Museu ( https://revistacult.uol.com.br/home/queermuseu-censura-avanco-conservador-democracia/ ). e livros ggCensura a livros na Bienal do Rio de Janeiro ( https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/09/08/autores-e-editores-fazem-manifesto-contra-censura-na-bienal-do-livro-do-rio.ghtml ). têm sido censurados e existem projetos de lei para criminalizar manifestações culturais como o funk hhVer reportagem: https://g1.globo.com/musica/noticia/projeto-de-lei-de-criminalizacao-do-funk-repete-historia-do-samba-da-capoeira-e-do-rap.ghtml , por exemplo. Tal cenário aponta para a fragilidade da democracia brasileira, o que afeta toda a população, mas de forma mais violenta e em primeira instância as populações vulneráveis, como os jovens das favelas iiPor exemplo, na recente chacina na favela de Paraisópolis, em São Paulo ( https://g1.globo.com/musica/noticia/projeto-de-lei-de-criminalizacao-do-funk-repete-historia-do-samba-da-capoeira-e-do-rap.ghtml ). .

Figura 4
Exposição no Centro do Rio. Fotografia de Luiz Rafael Neto.

Saí de casa apenas para ver essa foto. Da grande potência que é a MC Martina e a MC Dall Farras. A Sabrina é uma amiga minha do ensino médio e estou acompanhando de perto a evolução pessoal dela, o que está sendo muito gratificante para mim. Por causa dela, eu tenho um documentário com meu nome como cocriador (ou algo assim, é “co-algo”). Mais conhecida como MC Martina jjPágina oficial da MC Martina no Facebook: https://www.facebook.com/McMartinaOficial/ , ela já foi até para fora do país para palestrar. Fez palestra no Ted Talks. Sobre a foto, eu não lembro muito bem sobre o que era a exposição, mas tinha um foco em militância de favela e nem chegou até o fim do tempo estimado, censura. Já a Dall Farras kkPágina oficial da MC Dall Farras no Facebook: https://www.facebook.com/mcdallfarra/ foi uma pessoa que eu nem conhecia direito, mas da primeira vez que a vi já quis ser amigo, ela é uma mulher guerreira e eu amo as rimas dela, quando ela vai no Slam Laje e recita/apresenta é demais. Neste dia, aproveitei que estava perto do CCBB [Centro Cultural Banco do Brasil] e fui ver também a exposição do Basquiat. (Luiz)

O Slam Laje é uma batalha de poesias que acontece em diversos lugares no Complexo do Alemão e tem como objetivo “incentivar e a poesia e a literatura marginal, dentro do Complexo do Alemão, fortalecendo o movimento cultural ocupando vários espaços dentro da nossa favela com muito passinho, batalhas de rimas, de uma forma sagaz e resistente” llInformações da página oficial do Slam Laje no Facebook: https://www.facebook.com/batalhadepoesia/ . Luiz tem outras fotografias do Slam na exposição, realizadas dentro do Complexo:

Figura 5
Slam Laje, no Complexo do Alemão. Fotografia de Luiz Rafael Neto.

Percebemos que as imagens que compõem a exposição Cotidiano se referem a diferentes lugares da cidade, em diferentes contextos.

Figura 6
Mapa do Rio de Janeiro com marcações nos bairros onde Luiz Rafael já esteve. Em laranja, o Complexo do Alemão.

Reflexões partilhadas

Por meio da expressão de seu cotidiano em imagens fotográficas, observamos que Luiz exerce sua mobilidade urbana cotidiana de forma ampla, circulando por diferentes espaços, pertencendo a cada um deles e transitando pela cidade do Rio de Janeiro de forma intensa. Suas fotografias estão espalhadas pelo mapa da cidade. Notamos que parte da ampliação de sua mobilidade se deu a partir de sua inserção em projetos ligados à arte e à cultura, como os cursos de fotografia que realizou no Complexo do Alemão e que lhe renderam oportunidades de trabalho e de atividades de lazer em outros espaços. Soma-se ainda seu ingresso na universidade pública, no lugar de estudante do curso de História da Arte, que lhe possibilitou deslocamentos diversos e mais frequentes para atividades ligadas a espaços culturais, parte desses feitos em companhia de seus colegas de curso.

Para o nosso enfoque específico, contando com a colaboração de vários jovens, como Luiz, o trabalho com imagens e mapas permitiu que a pesquisa pudesse ilustrar diferentes tipos de mobilidades cotidianas do jovem carioca. Entendemos o uso da atividade como dispositivos para uma apreensão daquela realidade, possibilitada pelas experiências compartilhadas que os jovens nos propiciaram; um exercício reflexivo dos jovens a respeito da cidade em que vivem, da mobilidade pela cidade, das possibilidades concretas e das utopias no que se refere à sua participação urbana plena. Tais questões se constituíram como um exercício essencial para a pesquisa em curso, bem como para a intervenção prático-profissional que realizamos com aqueles jovens.

Com Luiz, pelo contexto da pesquisa e suas demandas, o acompanhamento 1212. Lopes RE, Borba PLO, Cappellaro M. Acompanhamento individual e articulação de recursos em terapia ocupacional social: compartilhando uma experiência. Mundo Saude. 2011 ; 35(2):233-8. resultou em uma exposição de suas fotografias, com o objetivo de divulgação de seu trabalho.

Também foi por meio da colaboração com a pesquisa e a consequente organização da sua exposição que Luiz refletiu sobre sua mobilidade e seu acesso a diferentes espaços da cidade. Em um de nossos primeiros encontros, Luiz disse que “não saía muito”, “gostava de ficar em casa” e que por isso não teria muito para nos contar sobre mobilidade urbana. Com a organização da exposição, tendo demarcado lugares no mapa do Rio de Janeiro, percebemos juntos o quanto Luiz circula pela cidade, apesar de não ter se conscientizado sobre isso anteriormente. Essa atividade levou o jovem a uma reflexão sobre suas vivências em territórios marcados por adversidades, contribuindo com a consciência de seu lugar social como jovem morador do Complexo do Alemão, que tem direito a circular e usufruir dos diferentes espaços da cidade. Conforme nos fala Galheigo 1313. Galheigo SM . Narrativas contemporâneas: significado, diversidade e contexto . Rev Ter Ocup USP. 2009 ; 20 ( 1 ):8-12:

A consciência crítica com que se pensa o sujeito contemporâneo parte da perspectiva de que suas condições são fruto de uma construção histórica e política. As narrativas contemporâneas, portanto, tendem a ser refletidas em referência ao contexto social e histórico. Consciente disso, o sujeito contemporâneo apodera-se de sua história e pode buscar a emancipação e a transformação social. (p. 10)

Para Paulo Freire 1414. Freire P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio De Janeiro: Paz e Terra; 1981 .

15. Freire P. Pedagogia do oprimido. 17a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987 .
- 1616. Freire P. Pedagogia dos sonhos possíveis. In: Freire AMA, organizador. São Paulo: Unesp; 2011 . , a conscientização é um processo que permite a crítica das relações do sujeito com o mundo, frente ao contexto histórico-social. Isso porque quando se tem mais consciência crítica das injustiças sociais existentes e de sua situação de opressão, há maior possibilidade de desenvolver ações que busquem transformações sociais reais e a construção de outros futuros. A conscientização implica em um compromisso com o mundo e com nós mesmos; com isso, os sujeitos assumem uma posição utópica frente ao mundo. É importante ressaltar que Paulo Freire trabalha com o entendimento da utopia como uma possibilidade de realização dos sonhos possíveis, no planejamento de um futuro a partir de sua consciência. A utopia se constrói a partir da consciência crítica da realidade e, portanto, leva a reflexão de quais são as possibilidades de mudanças que desencadeiam em uma práxis transformadora.

Na nossa experiência, a partir das atividades realizadas, percebemos que refletir sobre a mobilidade urbana ajudou os jovens a pensarem sobre seus direitos e seus desejos com relação à cidade.

Especificamente com Luiz, também foi possível trazer uma visibilidade de seu trabalho como “fotógrafo amador”, como se identifica. A escrita deste artigo sobre seu trabalho foi realizada em parceria com ele, com o intuito também de abordar seu outro papel social: estudante universitário. Buscamos, a partir da divulgação de sua exposição em diferentes meios, a visibilidade possível para seu trabalho, tanto no meio acadêmico quanto fora dele, sendo que tal ação se coaduna com os desejos de Luiz em seu novo lugar: de um morador da favela, agora estudante universitário, para produtor de conhecimento e de arte.

Percebemos, a partir da narrativa de Luiz, que a ampliação da mobilidade urbana infere sobre a possibilidade de ampliação de conscientização e participação social, além do aumento do capital cultural. Ampliar a mobilidade urbana propicia mudanças no cotidiano dos jovens moradores de favela.

A história de Luiz demonstra um percurso e uma mobilidade distinta da maior parte dos jovens moradores do Complexo do Alemão ou de outras favelas do Rio de Janeiro. Seu lugar de exceção demonstra o quão possível e viável é a discussão dos direitos sociais e a ampliação de acessos e mobilidade a partir deles, para todos os jovens.

Reafirmamos, por meio desta experiência, a necessidade de pesquisadores refletirem sobre as possibilidades de utilização de outras formas de produção de dados para pesquisa, para além das consideradas “mais tradicionais” no meio acadêmico. A utilização de atividades artísticas, estéticas e culturais, entre outros recursos, pode permitir uma aproximação com os sujeitos e tornar o processo da pesquisa mais significativo para os colaboradores. Trata-se da priorização de um compromisso ético e político para que as pesquisas sociais se dediquem também a busca de algum tipo de repercussão no cotidiano dos envolvidos, mesmo que em uma esfera microssocial e pontual.

Referências

  • 1
    Lopes RE, Malfitano APS. Terapia ocupacional social: desenhos teóricos e contornos práticos. São Carlos: EdUFSCar; 2016 .
  • 2
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    Barros DD, Lopes RE, Galheigo SM. Terapia ocupacional social: concepções e perspectivas. In: Cavalcanti A, Galvão C, organizadores. Terapia ocupacional: fundamentação e prática. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2007 . p. 347-53.
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  • *
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-Brasil (CAPES), código do financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2019
  • Aceito
    16 Abr 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br