Produção de discursos sobre a prevenção do HIV/Aids e da sífilis para gestantes em materiais educativos elaborados por instituições brasileiras (1995 - 2017)** O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Brasil. Código de Financiamento 001.

Producción de discursos sobre prevención de VIH/Sida y sífilis para gestantes en materiales educativos elaborados por instituciones brasileñas (1995 - 2017)

Bianca Silva de Pontes Adriana Kelly Santos Simone Monteiro Sobre os autores

Resumos

Historicamente, as campanhas na mídia e materiais educativos para grupos diversos integram as ações de prevenção à Aids e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST). Informado pelas críticas ao uso do Modelo Informacional de Comunicação presente nessas iniciativas, o artigo analisa 14 materiais sobre prevenção das IST/Aids voltados para gestantes, produzidos entre 1995-2017, no Brasil. Foram identificados elementos do contexto de produção (restrito e amplo) e foi examinado o dispositivo de enunciação dessas peças comunicacionais. Segundo os achados, os materiais reiteram a testagem no pré-natal como responsabilidade da mulher. São escassas as informações sobre uso do preservativo na gestação, o papel do parceiro na prevenção e a perspectiva da integralidade no cuidado à saúde. Conclui-se que, na comunicação para mulheres, é necessário contemplar os fatores socioculturais (classe social, cor/raça e normas de gênero) que condicionam a vulnerabilidade ao HIV/Aids e sífilis.

Gênero e saúde; Aids; Sífilis congênita; Gestantes; Materiais educativos e de divulgação


Históricamente, las campañas en los medios y los materiales educativos para grupos diversos integran las acciones de prevención al Sida y otras enfermedades de transmisión sexual (ETS). Informado por las críticas al uso del Modelo de Información de Comunicación presente en esas iniciativas, el artículo analiza 14 materiales sobre prevención de las ETS/Sida enfocados en gestantes, producidos entre 1995/2017 en Brasil. Se identificaron elementos del contexto de producción (restringido y amplio) y se examinó el dispositivo de enunciación de esas piezas de comunicación. De acuerdo con los hallazgos, los materiales reiteran la realización de test en el prenatal como responsabilidad de la mujer. Son escasas las informaciones sobre uso del preservativo en la gestación, el papel del compañero en la prevención y la perspectiva de la integralidad en el cuidado de la salud. Se concluye que en la comunicación para las mujeres es necesario incluir los factores socioculturales (clase social, color/raza, normas de género) que condicionan la vulnerabilidad al VIH/Sida y sífilis.

Género y salud; Sida; Sífilis congénita; Gestantes; Materiales educativos y de divulgación


Introdução

Na década de 1980, no início da epidemia de Aids, foram notificados 22,1 casos entre homens para cada um caso entre mulheres. Ao longo dos anos, essa diferença decresceu significativamente; a razão de sexos chegou a 2,2 casos em 2016 e a taxa de detecção (por 100.000 habitantes) de casos de Aids entre mulheres subiu para 11,611. Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico Aids e IST. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.. Considerando que o vírus da imunodeficiência humana (HIV) pode ser transmitido da mãe infectada para o bebê durante a gestação, parto ou puerpério, o aumento de casos entre as mulheres impactou no crescimento da transmissão vertical do HIV.

Todavia, estudos constataram que o uso do tratamento antirretroviral pela mulher durante a gestação poderia reduzir para 1% a 2% as chances de transmissão vertical do HIV22. Gouvea NA. Ações recomendadas para prevenção da transmissão vertical do HIV. Rev HUPE. 2015; 14(2):78-86.

3. Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo para a prevenção de transmissão vertical de HIV e sífilis. Brasília: Ministério da Saúde; 2003.
-44. Fiscus SA, Adimora AA, Schoenbach VJ, Lim W, McKinney R, Rupar D, et. al. Perinatal HIV infection and the effectofzidovudine therapy in transmission in rural andurbancounties. JAMA. 1996; 275(19):1483-8.. Tais evidências motivaram a implementação da política nacional centrada na testagem durante o pré-natal e parto, seguida do encaminhamento para tratamento dos casos positivos. Implementada desde 1997, essa política vem sendo atualizada frente aos avanços no tratamento antirretroviral e tem obtido resultados relevantes na redução da transmissão vertical: de 16% em 1997 para 2,4% em 201611. Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico Aids e IST. Brasília: Ministério da Saúde; 2017..

O crescimento de casos de HIV na população feminina igualmente motivou o desenvolvimento de campanhas e materiais educativos para mulheres sobre a prevenção da Aids e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST). Essas iniciativas, pautadas no discurso biomédico, contribuem para informar a população sobre as situações de exposição às IST e estimular a adoção dos métodos de prevenção. Estudos indicam que tais ações têm como base o Modelo Informacional de Comunicação (MIC), que foca os meios de comunicação de massa, priorizando o gênero publicitário e a verticalidade das relações entre emissor e receptor55. Araújo I, Cardoso J. Comunicação e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.,66. Contrera W. Histórico das Campanhas de AIDS no Brasil. In: Nilo A, Veloso JC, Lindner L, Duda R, organizadores. COMUNICAIDS: políticas públicas e estratégias de controle social. São Paulo: Ágil; 2005. p. 41-50..

Contrapondo a essa perspectiva, neste estudo consideramos a comunicação como uma ação humana que integra o tecido social, sendo constituída por elementos subjetivos, políticos, culturais e institucionais que engendram a vida cotidiana. Como parte do processo interacional, vincula sujeitos, discursos e práticas a seu tempo e espaço77. Barbero JM. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ; 2003..

No que diz respeito ao contexto da produção e avaliação de materiais sobre HIV/Aids, a complexidade dos contextos envolvidos na epidemia de Aids requer dos formuladores de políticas de prevenção a elaboração de estratégias comunicacionais que ultrapassem as fronteiras dos discursos biomédicos que, em geral, privilegiam mensagens pautadas no conhecimento epidemiológico e clínico da doença88. Pitta AMR. Estratégias de comunicação para a prevenção da Aids estudo de caso em Salvador, Bahia (Brasil). Interface (Botucatu). 1998; 2(2):23-46.,99. Paz J. Aids anunciada: a publicidade e o sexo seguro. Brasília: Universidade de Brasília; 2007.. Demais trabalhos sinalizam1010. Monteiro S, Vargas E. Educação, comunicação e tecnologia educacional: interfaces com o campo da saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.,1111. Schall V, Monteiro S, Rebello S, Torres M. Evaluation of the Zig-Zaids game: an entertaining educational tool for HIV/AIDS prevention. Cad Saude Publica. 1999; 15(2):107-19. que, no desenvolvimento de materiais educativos, é desejável contemplar as experiências e conhecimento de grupos específicos como uma maneira de adequar a linguagem e os conteúdos à realidade dos indivíduos.

No intuito de oferecer subsídios para a produção de materiais sobre prevenção das IST/Aids, no presente artigo é apresentada a análise de 14 materiais educativos sobre prevenção da sífilis e do HIV/Aids destinados às gestantes examinando os elementos restritos/amplos do contexto de produção (aspectos históricos, políticos e ideológicos), bem como a análise do dispositivo de enunciação1212. Pinto MJ. Comunicação e discurso: introdução à análise de discursos. São Paulo: Hacker Editores; 1999. dessas peças. O dispositivo de enunciação é composto pelas seguintes entidades discursivas: o enunciador (produtor), indicado pelo seu lugar de fala e pela imagem que atribui a si; o destinatário (sujeito-receptor), cuja imagem é construída segundo a concepção idealizada para o público do referido dispositivo; e, por último, pelo modo como a relação entre o enunciador e este destinatário é proposta no e pelo discurso delineado neste dispositivo. Cabe ao analista demonstrar a densidade das relações de poder entre enunciador-destinatário na construção da cena enunciativa e caracterizar os universos discursivos que vinculam o suporte de leitura ao leitor1313. Véron E. Fragmentos de um tejido. Barcelona: Gedisa; 2004..

A partir dos aportes teóricos citados, este artigo detalha o tipo de relação construída entre produtor e destinatário na comunicação sobre prevenção da transmissão vertical de sífilis e HIV. Ademais, explicita o modo como os discursos sobre a prevenção desses agravos são veiculados nos materiais e discute em que medida as normas de gênero abordadas nas mensagens propostas demarcam o lugar social da mulher na prevenção da transmissão vertical da sífilis e do HIV.

Metodologia

A partir de um estudo, de caráter descritivo e exploratório, analisamos os elementos do contexto de produção e o dispositivo de enunciação de 14 materiais educativos sobre prevenção da sífilis e HIV/Aids destinados às gestantes. O artigo é parte de uma pesquisa, realizada entre 2017 e 2018, sobre a recepção dos sentidos da prevenção da sífilis e do HIV por gestantes atendidas em um serviço da Atenção Básica, na zona norte do Rio de Janeiro1414. Pontes BS. Comunicação, AIDS e gênero: recepção de materiais educativos por usuárias gestantes de uma unidade da atenção básica no Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2019., aprovado pelo CEP/ENSP nº 2.719.767/88874618.9.0000.5240.

A pesquisa documental teve como fonte de consulta o Acervo de Materiais Educativos sobre IST/Aids1515. Kelly-Santos A. Acervo de materiais educativos sobre DST/Aids: um dispositivo da memória e das práticas de comunicação deste campo. [relatório de pesquisa – Fapemig]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2013., constituído de quinhentos materiais (panfletos, folhetos, cartazes, cartilhas, ventarolas, adesivos, cartões e marcadores de página) produzidos entre 1996 e 2017ddNo macroprojeto destinado à elaboração do acervo, o critério de inclusão dos materiais foi o ano de 1996, quando foi implementada a terapia antirretroviral no Sistema Único de Saúde (SUS). O ano de 2017 refere-se à última coleta., por entidades governamentais, organizações da sociedade civil e instituições privadas. Desse conjunto, 101 materiais são destinados às mulheres, classificados nas seguintes categorias: mulheres em geral (28); gestantes (27); profissionais do sexo (29); travestis, transexuais e transgêneros (10); lésbicas, mulheres que fazem sexo com mulheres e bissexuais (5); e adolescentes (2).

Entre os 27 materiais destinados às gestantes, foram selecionadas 11 peças. Um dos critérios de seleção usado foi o método de saturação de conteúdo, que derivou da escolha de quatro materiais sobre a realização do pré-natal como uma responsabilidade da mulher e três relativos à testagem para sífilis e HIV como um direito da mãe e do bebê. Outros critérios de seleção foram a raridade (temas pouco abordados), que resultou na seleção de um folheto com caricaturas e desenhos de gestantes, e a amamentação, que resultou em um panfleto com foto de uma gestante negra com seu bebê. Um terceiro critério foi a seleção de pelo menos um material produzido pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, visando contemplar a produção local. Além desses 11 materiais, foram incluídos dois folhetos sobre HIV e um sobre sífilis coletados no site do então Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais, totalizando 14 materiais selecionados, listados no Quadro 1.

Quadro 1
Lista dos materiais e do contexto de produção

Aplicamos os princípios da Análise de Discursos, que examina as condições de produção dos discursos, situando os aspectos históricos, sociais, políticos, ideológicos que subsidiam a emergência de determinados discursos e como eles ganham força no imaginário social1616. Orlandi E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 6a ed. Campinas: Pontes; 2005.. Cada etapa foi realizada pela primeira autora e revisada pelas outras duas autoras.

No primeiro nível, foram descritos os elementos empíricos que compõem as mensagens dos materiais, caracterizados por frases, enunciados e expressões do conhecimento científico e popular. Primeiro, buscamos correlacionar o contexto de produção restrito a partir do mapeamento dos seguintes elementos: instituições produtoras, formatos e data de elaboração. Em seguida, para verificar os elementos do contexto de produção amplo, foram selecionados e lidos documentos relativos às políticas de prevenção de Aids e à literatura revisada. Nesse processo, foi localizada a gestão político-partidária em que as peças sobre IST/Aids circularam e foram precisados como as normativas e diretrizes foram retratadas nas mensagens dos materiais.

Na sequência, após a releitura de cada um dos 14 materiais, aplicamos a análise do dispositivo de enunciação. Tal análise demonstrou a imagem que o enunciador (produtor-emissor) atribui a si na enunciação, a maneira como representa o destinatário (receptor) e o modo como a cena enunciativa (o referente) é construída na relação entre enunciador e destinatário1212. Pinto MJ. Comunicação e discurso: introdução à análise de discursos. São Paulo: Hacker Editores; 1999.,1616. Orlandi E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 6a ed. Campinas: Pontes; 2005.. Nesse procedimento, descrevemos o modo como a interação entre enunciador e destinatário é construída, sendo demarcado o lugar de fala dos sujeitos na comunicação. Elencamos também os discursos sobre a transmissão vertical da sífilis e do HIV e suas relações com as normas de gênero propostas nas mensagens dos materiais. Os materiais são citados no estudo pelas siglas de seus formatos: CTL (cartilha), CTZ (cartaz), FOL (folheto) e PAN (panfleto), seguida da numeração, conforme registro do acervo supracitado.

Elementos do contexto de produção

Diante da recorrente ausência da data de produção dos materiais educativos, foram realizados contatos via telefone e e-mail com as secretarias estaduais e municipais indicadas nos materiais. Todavia, apenas o município de Santo Antônio de Jesus (BA) respondeu, indicando que o material foi produzido entre 2006 e 2007. Ressaltamos que era comum os materiais terem o logo municipal ou estadual e o logo do Governo Federal, sugerindo alguma parceria ou apoio.

Nos demais materiais, frente à falta da data, o período de produção foi definido por aproximação, usando o seguinte procedimento: identificar a gestão governamental (federal, estadual, municipal) por meio do logo institucional e correlacionar com as diretrizes de prevenção das IST/Aids no período. Tal relação foi possível no nível nacional por meio da presença do logo do Governo Federal nos materiais e, por vezes, foi expressa pela parceria com municípios e/ou estados. Temos ciência de que essa estratégia não é passível de generalizações, sendo esse um limite deste estudo. Nesse sentido, demais pesquisas discutem que a ausência da data nos materiais é um elemento que dificulta a correlação entre os discursos valorizados nas mensagens e os aspectos histórico-sociais do contexto de sua produção1010. Monteiro S, Vargas E. Educação, comunicação e tecnologia educacional: interfaces com o campo da saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006..

A partir da presença de logos institucionais e do nome da entidade citada, foram descritas as instituições produtoras dos 14 materiais da amostra. Desse conjunto, sete foram elaborados pelo Ministério da Saúde (MS); dois pelas Secretarias Municipais de Saúde (Santo Antônio de Jesus e Rio de Janeiro); cinco resultam da parceria interinstitucional entre o Ministério da Saúde (MS); a Gerência de DST/Aids do Distrito Federal, as Secretarias Estaduais de Saúde de Goiás, Bahia e Sergipe; e a Secretaria Municipal de Saúde de Vitória da Conquista.

Em relação aos formatos, foram encontrados dois cartazes, sete folhetos, uma cartilha e quatro panfletos. A data de produção é referida apenas na cartilha “Aids e Sífilis na gravidez” (CTL49).

Os discursos sobre prevenção do HIV/Aids e sífilis presentes nos 14 materiais destinados a gestantes têm como base as medidas de controle da epidemia preconizadas pelo Ministério da Saúde. Entre os anos de 1995 a 2003, durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso (FHC), do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), foram produzidos o folheto “Proteger o seu bebê contra a AIDS ‘é mais do que um dever’. É um direito” (grifo nosso, FOL43), o cartaz " ’Mãe, proteja’ seu bebê da Aids” (grifo nosso, CTZ19) e a cartilha “Aids e Sífilis na gravidez” (CTL49). A testagem para o HIV no pré-natal é a principal mensagem, sendo estimulada a adesão da gestante no controle da doença: “Se o resultado for positivo, o tratamento pode reduzir muito o risco do seu bebê nascer infectado pelo vírus da aids” (CTZ19).

Ao retomar a história da epidemia, é possível relacionar tais enunciados ao período de crescimento de casos de HIV/Aids entre a população feminina, bem como ao processo de interiorização e pauperização da epidemia. Foi nesse período que o governo FHC introduziu no Sistema Único de Saúde (SUS) o zidovudina no tratamento de gestantes infectadas e a terapia antirretroviral para os demais usuários, impactando na redução dos índices de mortalidade e no aumento das taxas de sobrevida de pessoas em tratamento de Aids1717. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Dst/Aids princípios, diretrizes e estratégias. Brasília: Ministério da Saúde; 1999.,1818. Brito AM, Castilho EA, Szwarcwald CL. AIDS e infecção pelo HIV no Brasil: uma epidemia multifacetada. Rev Soc Bras Med Trop. 2000; 34(2):207-17..

Com a mudança de governo em 2003, Luís Inácio Lula da Silva (Lula), do Partido dos Trabalhadores (PT), assume a presidência e implementa políticas de redução das desigualdades sociais e de redistribuição de renda. Nos dois mandatos de Lula (de 2003 a 2011), ganham força e visibilidade as políticas de direitos sexuais e reprodutivos, ações afirmativas contra a discriminação étnico-racial e diversidade sexual, fato que contribui para fortalecer as ações de enfrentamento da Aids junto às populações vulneráveis1919. Brasil. Ministério da Saúde. Plano estratégico programa nacional de DST e Aids 2005. Brasília: Ministério da Saúde; 2005.,2020. Brasil. Ministério da Saúde. Plano integrado de enfrentamento da feminização da epidemia de Aids e outras DST. Brasília: Ministério da Saúde; 2007.. As campanhas de Aids seguem essas diretrizes, sendo encontrados o panfleto “Exija o teste para aids e sífilis no pré-natal. É um direito seu e do seu bebê” (PAN11); bem como os folhetos “Veja como garantir um futuro com saúde para você e seu filho” (FOL36), “Amor materno” (FOL157), “Amamentação” (FOL128) e “Sífilis Congênita” (FOL87). Nota-se que os marcadores de raça/gênero são elementos incorporados à comunicação sobre a prevenção das IST/Aids. O panfleto PAN11 traz como personagem central uma mulher negra segurando seu bebê, utilizando a diversidade racial como base da interação com a gestante. Observa-se que entre os 14 materiais analisados, este é o único que destaca a população de mulheres negras.

Entre 2011 e 2016, Dilma Rousseff, do PT, assume a presidência do país e dá continuidade às ações de inclusão social iniciadas no governo do presidente Lula. Na sua gestão, os investimentos na prevenção do HIV/Aids são mantidos. As campanhas para mulheres e gestantes seguem focadas no tema da testagem no pré-natal para o HIV, incluindo o exame do parceiro, sendo localizado o folheto “Você sabe o que é sífilis?” (FOL202). O teste da sífilis para gestantes e seus parceiros ganha ênfase, o que, a nosso ver, está relacionado ao aumento do número de casos novos nessa população, especialmente no Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul11. Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico Aids e IST. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.. Nesse cenário, a intervenção do governo nos materiais analisados não apenas preconiza que as gestantes façam o teste para a sífilis, mas também inclui o parceiro na estratégia de prevenção.

Em agosto de 2016, após o impeachment da presidenta Dilma, o então vice-presidente Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), toma posse como presidente. Sua gestão é marcada pela defesa de políticas em prol de um Estado mínimo e liberal, averiguadas na Proposta de Emenda à Constituição PEC 241 ou PEC 55. Com a PEC do Teto de Gastos, entrou em vigor o congelamento dos recursos orçamentários das instituições públicas, incluindo o financiamento para o SUS. Tais medidas engessaram as políticas de desigualdades sociais desenvolvidas no contexto do SUS, entre elas, as ações preventivas de IST/Aids2121. Souza JA. Radiografia do golpe. Rio de Janeiro: Leya; 2016..

Entre os anos de 2016 e 2017, foi promovida uma campanha contra a Aids focada no esclarecimento sobre a estratégia da Prevenção Combinada, vigente nos serviços de saúde desde a gestão da presidenta Dilma. As mensagens dos materiais explicam sobre o método de prevenção, que inclui o uso do preservativo e do tratamento como prevenção (TcP); este último, contendo as profilaxias pós-exposição (PEP) e pré-exposição (PrEP) ao HIV. Predomina na comunicação proposta a ideia da testagem do HIV para gestantes e seus parceiros: “Vamos combinar? Prevenir é viver. Faça os exames pré-natal regularmente junto com seu parceiro e, seja masculina ou feminina, use sempre camisinha” (PAN62). Nesse período, foram produzidos os folhetos “Aids. Escolha sua forma de prevenção.” (PAN60), “Júlia fez o teste de sífilis logo no início do pré-natal. Fábio também.” (PAN61) e “Vamos Combinar?” (PAN62).

Embora o enfoque governamental da prevenção combinada reflita as diretrizes internacionais atuais de enfrentamento da epidemia e amplie as alternativas de prevenção, essa perspectiva não tem contemplado fatores relacionados à vulnerabilidade ao HIV e ao estigma da Aids2222. Monteiro S, Brigeiro M, Villela W, Mora C, Parker R. Desafios do tratamento como prevenção do HIV no Brasil: uma análise a partir da literatura sobre testagem. Cienc Saude Colet. 2019; 24(5):1793-807.,2323. Kippax S. Effective HIV prevention: the indispensable role of social science. J Int Aids Soc. 2012; 15(2):17357.. Vale registrar que nesse período foram suspensas campanhas de Aids destinadas às prostitutas e à população LGBT, o que denuncia o atraso no campo das políticas afirmativas de desigualdade de gênero e diversidade sexual2424. Corrêa S. A resposta brasileira ao HIV e à Aids em tempos tormentosos e incertos. In: Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS. Mito vs Realidade: sobre a resposta brasileira à epidemia de HIV e Aids em 2016. Rio de Janeiro: ABIA; 2016. p. 7-15..

Lugares de fala e discursos sobre a prevenção da sífilis e do HIV/Aids

Do ponto de vista enunciativo, a representação do enunciador sobre si mesmo é construída de maneira articulada à imagem do destinatário. Nos materiais analisados, observou-se que a lógica informacional orienta o tipo de interação construída, sendo clara a assimetria entre os sujeitos1212. Pinto MJ. Comunicação e discurso: introdução à análise de discursos. São Paulo: Hacker Editores; 1999.. O enunciador é representado como aquele que detém o poder sobre a informação, assumindo a responsabilidade de levar “todo” o conhecimento sobre a temática anunciada55. Araújo I, Cardoso J. Comunicação e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.,2525. Assis M. Educação em saúde e qualidade de vida: para além dos modelos, a busca da comunicação. Rio de Janeiro: UERJ, IMS; 1998. (Série estudos em saúde coletiva; n. 169)..

Diferentes recursos são utilizados para criar essa hierarquia, como o emprego da antítese ignorância e ciência55. Araújo I, Cardoso J. Comunicação e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007. no diálogo com a gestante, conforme descrito nas frases “Tudo o que você precisa saber para proteger o seu filho” e “Agora você já sabe que a Aids não precisa passar de mãe para filho” (CTL49). Se, por um lado, o uso do pronome “você” remete a um tom coloquial e à ideia de simetria no diálogo com a gestante, insinuando seu papel ativo na interação, por outro, a expressão “você precisa saber” revela a responsabilidade das mulheres para obter “mais informações” e “conhecer” o teste para IST/Aids durante o pré-natal ou o atendimento do HIV/Aids no SUS. Para mobilizar essa atitude, o enunciador disponibiliza telefones, endereços de centros de saúde (FOL43; PAN11; FOL36; CTZ21; FOL157; FOL128; FOL87; FOL99; FOL202) e de redes sociais (Instagram, Twitter, Facebook e Youtube) do Ministério da Saúde (PAN60; PAN61; PAN62) como espaços de interlocução direta ou mediatizada.

Nos materiais, o emissor pressupõe o letramento por parte das destinatárias, buscando a interlocução com mulheres adultas que desejam ser mãe ou que estão cientes de sua gravidez. O protagonismo da mulher é um objetivo a ser alcançado. Para tal, o emissor usa o recurso gráfico de balões contendo mensagens e mostra o destinatário pensando sobre elas, demandando da gestante uma posição ativa na enunciação: “O que acontece se eu não tratar a sífilis durante a gravidez? Mas, se eu não tiver feito o pré-natal no início da gravidez, não posso mais fazer o acompanhamento?”; “Meu bebê pode nascer saudável se eu tiver aids?” (FOL43 e PAN11). Embora a autonomia da gestante seja estimulada, a centralidade do enunciador prepondera na interação.

O seu lugar de fala também é estabelecido por meio de recursos textuais, próprios do gênero publicitário, como o emprego de perguntas e respostas do modo verbal imperativo, de frases curtas e da hierarquia de assuntos por títulos e subtítulos (fontes em tamanhos e cores diferentes). Estudos sobre a comunicação em programas de saúde88. Pitta AMR. Estratégias de comunicação para a prevenção da Aids estudo de caso em Salvador, Bahia (Brasil). Interface (Botucatu). 1998; 2(2):23-46.,99. Paz J. Aids anunciada: a publicidade e o sexo seguro. Brasília: Universidade de Brasília; 2007.,2626. Kelly-Santos A, Monteiro S, Ribeiro APG. Acervo de materiais educativos sobre hanseníase: um dispositivo da memória e das práticas comunicativas. Interface (Botucatu). 2010; 14(32):37-51. evidenciam que esses aportes linguísticos são acionados para conferir credibilidade e legitimidade à voz das autoridades sanitárias.

Enunciados estáveis: gestante-mãe-protetora

A imagem da gestante é construída em torno do ideal mulher-mãe-protetora. Para isso, o enunciador reporta a fotografias de gestantes (corpo inteiro ou foto da barriga), acariciando o ventre ou segurando o bebê recém-nascido, além de frases que evocam o papel da gestante na proteção/cuidado com o bebê, desde a gestação até o seu nascimento. A associação dos discursos mãe protetora e da criança pura e inocente atualiza o preceito moral da sacralidade maternal; por isso, a mãe boa é aquela que não transmite sífilis ou HIV para o bebê.

A gravidez é um momento de preparação. São nove meses de muitos cuidados para garantir a sua saúde e a do bebê que vai nascer. [...] Por isso, exija o teste de aids quando fizer o pré-natal. Você vai estar defendendo o direito de o seu bebê nascer com saúde. E isso, a gente sabe, é o que toda futura mamãe quer para o seu filho. (FOL43)

Os significantes “dever” e “direito” reificam a semiose do “amor universal da mulher-mãe no cuidado” com a saúde do bebê. A partir da antítese autonomia-responsabilização da mulher frente à testagem no pré-natal, essa representação é sedimentada nos discursos sociais. Tradicionalmente, em nossa cultura, a mulher é vista como aquela que se dedica à esfera privada – representada pelo lar, o marido e os filhos2727. Schiebinger L. O feminismo mudou a ciência? Bauru: EDUSC; 2001.. O cuidado com a saúde da criança é inerente ao seu papel na esfera social: “Proteger o seu bebê contra a aids é mais do que um dever. É um direito.” (CTL49).

Na maternidade, esse lugar é avivado e sua individualidade é acionada pelos discursos preventivos, de modo a convocar sua responsabilidade. Nesse movimento, a gestante é subjugada às normativas sanitárias, ela deve “fazer o pré-natal”, “pedir os exames de Aids e sífilis”, “pegar os resultados”, “conversar com o médico” e, por fim, “fazer o tratamento” (FOL36). O discurso da culpabilização2828. Badinter E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1985. é sutilmente sinalizado no enunciado “Você tem que passar amor e carinho para ele. Não o vírus da Aids” (CTZ21). Detidamente, a frase “A decisão de fazer o teste de Aids é sua, mas dessa decisão pode depender a vida do seu filho” (FOL43) elucida, ao mesmo tempo, a autonomia da mulher em relação a sua saúde e, implicitamente, a responsabiliza pela “vida do seu filho”, restando apenas a adesão à testagem para o HIV. Tais dados sugerem que um material pode contemplar visões diversas e até contraditórias. O cuidado com o corpo possui significados culturais, cuja centralidade do saber biomédico nas práticas de saúde é determinante no modo como o sujeito vai significar a relação com seu corpo e sua saúde2929. Valle CG. Corpo, doença e biomedicina: uma análise antropológica de práticas corporais e de tratamento entre pessoas com HIV e AIDS. Vivencia. 2010; 35:33-51..

Ressaltamos que, dos 14 materiais analisados, cinco mencionam o direito de acesso aos serviços públicos de saúde, especificamente do teste do HIV e sífilis, sendo enfatizada a postura ativa da gestante, como cidadã, para exigir o direito ao teste (FOL43; FOL157; PAN11; CTZ19, CTL49). Todavia, o diálogo sobre saúde da mulher quando focado apenas na maternidade pode dificultar a efetiva prevenção das IST/Aids entre a população feminina. Nesse aspecto, a inclusão do homem como destinatário das mensagens aparece como um avanço no enfrentamento das desigualdades de gênero na comunicação sobre prevenção da transmissão vertical da sífilis e do HIV. Em nove dos 14 materiais analisados, a figura do homem-pai está presente na construção da imagem do destinatário, mesmo que de forma implícita, sendo o foco principal a boa saúde do bebê. Como parte deste cuidado, ele é convocado a fazer o teste para sífilis e HIV.

Embora seja possível reconhecer que o emissor busque incluir o homem na comunicação proposta (por meio das imagens), ao ler o material, foi observada uma quebra no contrato de leitura, ficando evidente a centralidade da figura da mulher-gestante como a principal destinatária:

No pré-natal, pergunte ao profissional de saúde o resultado do exame de sangue para sífilis. Se for positivo, é muito importante que o seu parceiro também faça o exame de sangue para saber se ele também tem a doença e precisa de tratamento. (FOL99)

É importante ressaltar a incorporação da figura do pai nos materiais mais recentes, não apenas como apoio, mas também como um ator na prevenção da transmissão vertical. Tal mudança pode ser atribuída aos avanços no enfrentamento das desigualdades de gênero nas últimas décadas. No panfleto PAN61 sobre a prevenção da sífilis congênita, produzido pelo Ministério da Saúde em 2016, o enunciador procura estabelecer uma horizontalidade nos papéis propostos para o homem e para a mulher, sendo ambos tratados como sujeitos ativos na busca pelo exame da sífilis durante o pré-natal. Essa imagem está vinculada à ideia de cumplicidade do casal na prevenção da doença.

Enunciados raros: diversidade étnico-racial e integralidade do cuidado

Na campanha de prevenção da transmissão vertical da sífilis e do HIV, veiculada no ano de 2004, o governo recorre a “[...] modelos mulheres e bebês de diferentes etnias para contemplar a variedade racial do país e facilitar a capacidade de identificação do público-alvo com a mensagem” (PAN11). Conforme assinalado anteriormente, essa temática ganhou visibilidade na gestão do PT (2003-2016), cuja agenda política criou condições para a criação do campo referente à saúde da população negra e incentivou estudos acerca das relações entre raça e saúde, observadas as condições sociais, econômicas e culturais da população. Além disso, definiu como diretrizes das campanhas de saúde a produção de materiais educativos que contemplassem a questão racial3030. Maio MC, Monteiro S. Tempos de racialização: o caso da ‘saúde da população negra’ no Brasil. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2005; 12(2):419-46..

Na aposta da integralidade do cuidado à saúde da mulher, aparecem os discursos ligados a questões raciais, contracepção e amamentação. O folheto “Amor materno” (FOL157) é o único a citar o Programa de Planejamento Familiar e sinaliza a importância do uso do preservativo para prevenção das IST enquanto método contraceptivo: “Fique atenta para fazer o acompanhamento de saúde após o parto e o Planejamento Familiar para programar o número de filhos que deseja ter”. Outros materiais citam que a gestante deve “[...] usar camisinha, mesmo durante a gravidez” (FOL43). Contudo, somente o folheto “Você sabe o que é sífilis?” (FOL202) traz imagens ilustrando como usar a camisinha masculina e a feminina. Temas relacionados à dificuldade na negociação do uso do preservativo com o parceiro não foram tratados nos materiais.

Corroboram esses achados demais estudos sobre ações desenvolvidas pela Estratégia de Saúde da Família. Tais análises apontam que ações relacionadas ao cuidado à saúde da mulher têm se mostrado ainda ancoradas na regulação de sua sexualidade e fecundidade3131. Nascimento P, Melo AC. “Esse povo não tá nem aí” as mulheres, os pobres e os sentidos da reprodução em serviços de atenção básica à saúde em Maceió, Alagoas. In: Fleischer S, Ferreira J, organizadores. Etnografias em serviços de saúde. Rio de Janeiro: Garamond; 2014. p. 267-96.

32. Schraiber LB. Equidade de gênero e saúde: o cotidiano das práticas do programa saúde da família do Recife. In: Villela W, Monteiro S, organizadores. Gênero e saúde: programa de saúde da família em questão. Rio de Janeiro, Brasília: ABRASCO, UNFPA; 2005. p. 30-61.
-3333. Scott P. Gênero, família e comunidades: observações e aportes teóricos sobre o programa saúde da família. In: Villela W, Monteiro S, organizadores. Gênero e saúde: programa de saúde da família em questão. Rio de Janeiro, Brasília: ABRASCO, UNFPA; 2005. p. 73-98.. Com isso, a contracepção deixa de ser abordada como um direito para se constituir como uma vigilância dos corpos femininos, pautada na ideia de controle da natalidade.

A cartilha “Aids e Sífilis na gravidez” (CTL 49) contempla ao mesmo tempo o tema da Aids (testagem e tratamento) e os cuidados com o corpo durante a gestação (com o uso de óleos e posições para dormir, por exemplo), diferenciando-se dos demais. Nestes, há o predomínio do enfoque biomédico na abordagem sobre o pré-natal e a prevenção de doenças, sendo pouco comum a menção aos direitos trabalhistas e saúde mental, por exemplo. No estudo mais amplo1414. Pontes BS. Comunicação, AIDS e gênero: recepção de materiais educativos por usuárias gestantes de uma unidade da atenção básica no Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2019., já referido, que analisou a recepção desses materiais junto com um grupo de gestantes, elas afirmaram que os diálogos sobre a saúde da mulher – em diferentes espaços como casa, ambiente de trabalho e serviços de saúde – priorizam a saúde dos filhos.

O tema da amamentação também aparece com menor ocorrência. Apenas o folheto “Amamentação” ressalta que a prática “[...] transmite amor e carinho, fortalecendo a relação entre mãe e filho” (FOL128). Após apresentar todos os benefícios do aleitamento para a saúde da criança, é posta a questão: “A mãe HIV positiva poderá amamentar seu bebê?”. A resposta é enfática, dizendo que a mãe HIV positiva não poderá amamentar seu filho, com destaque para a frase “Cuidando de sua saúde, você garante vida saudável ao seu bebê”, que finaliza o texto. Socialmente, a amamentação/aleitamento é defendida como uma prática saudável para a mulher e a criança. Porém, para a mulher que vive com HIV, o aleitamento torna-se contraindicado, invertendo expectativas sociais que giram em torno do papel de “boa mãe”, tida na figura daquela que amamenta seu filho.

Um estudo acerca dos sentidos sobre o aleitamento materno em materiais educativos do Ministério da Saúde3434. Kalil I. De silêncio e som: a produção de sentidos nos discursos pró-aleitamento materno contemporâneos. Rio de Janeiro: Luminária Academia; 2016. corrobora com essa afirmativa. A autora constatou a ênfase biológica vinculada à amamentação, tendo em vista que os discursos sobre o aleitamento reproduzem essa prática como algo “natural” para a mulher na maternidade e reforçam a ideia do leite materno como o melhor alimento para a criança. Os significados psíquicos e sociais desse ato eram abordados de modo secundário. Essa concepção foi verificada no material sobre amamentação supracitado. A análise aqui empreendida permite afirmar que a correlação entre os temas da transmissão do HIV e amamentação/aleitamento deve ser objeto das campanhas de Aids e de aleitamento, dada sua centralidade na prevenção da transmissão vertical.

Com base nos achados, depreendemos que a vulnerabilidade das mulheres ao HIV/Aids impõe, como estratégia semântica e pragmática, a necessidade de contemplar na comunicação para e entre as mulheres fatores socioeconômicos, tais como desigualdades sociais, étnico-raciais e de gênero; baixa escolaridade; precária inserção no mercado de trabalho; e violência. Tais fatores integram o perfil de mulheres vivendo com HIV/Aids3535. Villela W, Barbosa RM. Trajetórias de mulheres vivendo com HIV/aids no Brasil. Avanços e permanências da resposta à epidemia. Cienc Saude Colet. 2017; 22(1):87-96.,3636. Monteiro S, Villela W, Soares P, Pinho A, Fraga L. Protective silence surrounding AIDS: reasons and implications of non- disclosure among pregnant women living with HIV in Rio de Janeiro (Brazil). Glob Public Health. 2018; 13(1):51-64..

Considerações finais

A análise do contexto de produção dos materiais revelou que as mensagens convergem com políticas de enfrentamento ao HIV/Aids vigentes durante o período de elaboração das peças comunicacionais analisadas, tais como o crescimento de casos de Aids entre mulheres na década de 1990; os avanços no acesso ao tratamento antirretroviral a partir de 1996; e o aumento dos casos de sífilis em gestantes e a inclusão dos marcadores sociais, como raça/cor e gênero, sob a perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos durante os anos de 2003 a 2016. Em anos recentes, ganhou destaque a abordagem da política de prevenção combinada para as IST/Aids por meio da propagação da testagem e do tratamento como prevenção.

Do ponto de vista da análise do dispositivo de enunciação, ficou evidente o predomínio do tema da prevenção da transmissão vertical do HIV. Nessa abordagem, prevalece o discurso biomédico que, frequentemente, reitera a responsabilidade pelo cuidado com a saúde da criança à gestante, ratificando a necessidade da testagem no pré-natal. Nesse sentido, estabelece regras e comportamentos individuais e coletivos referentes à sexualidade, ao sexo seguro e à adesão à testagem para a sífilis e HIV, o que é exposto pela recorrência do verbo no modo imperativo na veiculação das mensagens “Proteja-se”, “Previna-se” e “Cuide-se”.

Como assinalado em estudos sobre a prevenção do HIV entre a população feminina3535. Villela W, Barbosa RM. Trajetórias de mulheres vivendo com HIV/aids no Brasil. Avanços e permanências da resposta à epidemia. Cienc Saude Colet. 2017; 22(1):87-96.,3737. Villela W, Barbosa RM. Prevenção da transmissão heterossexual do HIV entre mulheres: é possível pensar estratégias sem considerar suas demandas reprodutivas? Rev Bras Epidemiol. 2015; 18(1):131-42., um dos limites dessa abordagem está no fato de serem centradas em uma perspectiva individual do cuidado. É necessária a articulação de ações no nível coletivo que não responsabilizem os indivíduos, mas sim que trabalhem em conjunto para a redução de fatores sociais, com a baixa escolarização, pobreza, desigualdades de gênero, entre outros, que moldam a epidemia de HIV/Aids.

A despeito da visibilidade da luta contra as hierarquias de gênero nas sociedades contemporâneas e de algumas conquistas nesse campo, a análise dos materiais indicou que a prevenção da transmissão vertical é imposta à gestante a partir das normas de gênero tradicionais, prevalecendo a idealização da mulher-mãe-protetora. Informações sobre uso do preservativo durante a gestação raramente aparecem entre as mensagens. Cabe salientar a pouca ênfase no papel do parceiro na prevenção e a escassez da perspectiva da integralidade no cuidado à saúde da mulher e da criança.

O uso do preservativo entre casais é um dos desafios na comunicação sobre prevenção das IST/Aids, haja vista que 96,9% dos casos de HIV entre mulheres são atribuídos à transmissão heterossexual11. Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico Aids e IST. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.. Estudos mostram que a percepção de risco ao HIV em relação ao sexo desprotegido por parte das mulheres varia de acordo com diferentes aspectos, como condições socioeconômicas e tipo de relacionamento3636. Monteiro S, Villela W, Soares P, Pinho A, Fraga L. Protective silence surrounding AIDS: reasons and implications of non- disclosure among pregnant women living with HIV in Rio de Janeiro (Brazil). Glob Public Health. 2018; 13(1):51-64.,3838. Ferreira MP. Grupo de estudos em população, sexualidade e AIDS. Nível de conhecimento e percepção de risco da população brasileira sobre o HIV/AIDS, 1998 e 2005. Rev Saude Publica. 2008; 42(1):65-71.. Em suma, é preciso considerar as desigualdades sociais e de gênero na comunicação sobre prevenção das IST/Aids, tendo em vista que elas impactam diretamente na forma como as mulheres se posicionam frente à epidemia de HIV/Aids.

Como limite do estudo, destaca-se a impossibilidade de generalização dos achados, tendo em vista que se referem a um conjunto específico de materiais sobre IST/Aids para gestantes. Entretanto, os resultados contribuem para ampliar a discussão sobre as inter-relações entre o cuidado à saúde, as normas de gênero e as ações de prevenção às IST/Aids.

Cabe por fim salientar que os achados acerca dos materiais educativos, somados ao estudo1414. Pontes BS. Comunicação, AIDS e gênero: recepção de materiais educativos por usuárias gestantes de uma unidade da atenção básica no Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2019. sobre a visão do receptor (no caso, a gestante) acerca das mensagens desses materiais, fundamentam a importância de as ações desenvolvidas no campo da comunicação e saúde contemplarem a perspectiva do destinatário, de acordo com seus diferentes contextos de vida e saúde. Portanto, sugerimos a elaboração de materiais educativos em parceria com os usuários, contemplando a diversidade de visões e histórias de vida em torno do cuidado à saúde da mulher e à gestação em especial. Ademais, ressalta-se que o respeito aos projetos de vida e desejos das mulheres sejam levados em conta na interação entre profissionais de saúde e gestantes.

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  • d
    No macroprojeto destinado à elaboração do acervo, o critério de inclusão dos materiais foi o ano de 1996, quando foi implementada a terapia antirretroviral no Sistema Único de Saúde (SUS). O ano de 2017 refere-se à última coleta.

  • *
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Brasil. Código de Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2019
  • Aceito
    16 Mar 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br