Além do horizonte do licenciamento e da certificação

Eliana Amaral Sobre o autor

Inicialmente, cumprimento os autores que buscaram trazer, de forma clara e objetiva, várias facetas do debate sobre a adequação de se adotar o licenciamento para a prática profissional dos médicos. Este comentário pretende aprofundar alguns temas, reafirmando a necessidade do amplo debate para construção da uma estratégia qualificada que permita dar a melhor resposta possível sobre a qualidade do processo de formação do médico durante a graduação.

No entanto, algumas diferenças relevantes no processo formativo devem ser salientadas para permitir adequada compreensão da literatura internacional pertinente e a consequente reflexão crítica sobre sua aplicação no Brasil. A primeira delas tem foco na expectativa de desempenho ao se concluir a graduação em Medicina, visto que a formação médica na maioria dos países fora da América Latina não traz a expectativa da prática profissional independente após concluir os seis anos do currículo. O médico que formamos tem que estar pronto para o exercício profissional dentro de limites de uma atuação generalista, que atenda às principais demandas de saúde nos ambientes clínicos de unidades de básicas de saúde, ambulatórios de especialidades, urgência, emergência e internação hospitalar.

Na América do Norte, o curso de Medicina é precedido por uma fase de estudos iniciais, o college , que consiste em um ciclo curto de ensino superior, com disciplinas eletivas, voltado ao desenvolvimento/aprimoramento de competências gerais de leitura crítica; comunicação escrita e interpessoal; trabalho em grupo aprender a aprender, entre outras. O curso de Medicina tem, então, quatro anos, tradicionalmente com dois anos básicos e dois anos de rotations (estágios nas áreas clínicas). A experiência clínica durante a formação é concentrada em casos hospitalares, com alguma experiência ambulatorial, focada na saúde individual – e não coletiva ou nos sistemas de saúde –, e o internato ( internship ) vem depois, como pré-requisito ou parte da residência médicabbhttps://en.wikipedia.org/wiki/Medical_education_in_the_United_States [Citado 19 out 2019] .

O exercício profissional independente necessita da aprovação no exame de licenciamento – United States Medical Licensing Examination (USMLE) –, composto de três fases ou steps ( step 1, step 2 clinical knowledge , step 2 clinical skills e step 3). A última fase é realizada após o primeiro ano de residência, em dois dias de provas, com 233 e 180 questões tipo múltipla escolha, em sete e nove horas, respectivamentecchttps://en.wikipedia.org/wiki/United_States_Medical_Licensing_Examination#Step_3 [Citado 19 out 2019] .

Na Inglaterra, após seis anos de curso médico que não é precedido de formação em ensino superior, há dois anos de Foundation Years, que pressupõe prática supervisionada com progressão para prática independente, o que se assemelha com nosso internato. A licença para a prática (Medical Licensing Assessment) é estudada, com implantação prevista em 2023 para todos os graduados do Reino Unido e de outros países. Até lá, as escolas de Medicina avaliam seus alunos e recebem visitas de avaliadores externos e da inspeção do General Medical Council (GMC). Além disso, a licença profissional é outorgada sem exames específicosddhttps://en.wikipedia.org/wiki/Medical_education_in_the_United_Kingdom#Qualities_assure_of_the_undergraduate_medical_education [Citado 19 out 2019] .

Outro aspecto relevante neste debate diz respeito à definição do que se pretende, de fato, avaliar, dado que analisar a qualidade da formação baseada exclusivamente no profissional e na forma de licenciamento ignora a complexidade do programa educacional, seu contexto e sua interação com o “produto” do processo formativo11. Gandomkar R, Sandars J. The importance of context in medical education program evaluation. Med Teach. 2018; 40(1):106. . Também coloca sobre o graduando a responsabilidade sobre a qualidade do processo e alivia ou isenta a instituição formadora, recaindo as consequências da formação deficiente, se for o caso, sobre o estudante, que se tornaria um bacharel sem o direito de exercer a profissão.

Assim, como também salientam os autores do artigo comentado, a avaliação do processo formativo na instituição durante a graduação precisa ser garantida em uma avaliação de programa educacional bem estruturada. Esta se apoia nos marcos legais e na definição do profissional que se pretende formar, considerando o perfil definido pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos de Medicina de 2014, e deve enfocar o contexto, recursos, processo e produtos, além de seu impacto22. Frye AW, Hemmer PA. Program evaluation models and related theories: AMEE guide no. 67. Med Teach. 2012; 34(5):e288-99. . Avaliar apenas o graduado, na forma de licenciamento profissional, ignora todos esses aspectos e não permite identificar como se precisa intervir para melhoria dos resultados em termos de desempenho dos profissionais recém-formados em processos avaliativos.

Boulet e Van Zanten33. Boulet J, van Zanten M. Ensuring high-quality patient care: the role of accreditation, licensure, specialty certification and revalidation in medicine. Med Educ. 2014; 48(1):75-86. , em 2014, ao revisarem o impacto da acreditação, do licenciamento e da recertificação dos profissionais, consideram que há ausência de evidências sólidas para justificar processos externos de avaliação que não promovam a reflexão sobre a prática de formação e que não estimulem a sua mudança. Archer et al44. Archer J, Lynn N, Coombes L, Roberts M, Gale T, Price T, et al. The impact of large scale licensing examinations in highly developed countries: a systematic review. BMC Med Educ. 2016; 16(1):212. discutiram os efeitos deletérios de introduzir tais exames se seu conteúdo passa a determinar o que se deve aprender no curso médico, visto que as provas são sempre restritas e dirigidas para certos temas, especialmente na avaliação das habilidades clínicas. Além disso, salientam que esse tipo de exame poderia gerar engessamento e falta de criatividade nos currículos. Na sua revisão bibliográfica com 24 estudos, concluíram que as evidências de validade são frágeis para afirmar que o exame de licenciamento profissional adiciona ou reforça as competências do médico ou a segurança do paciente, além do fato de que as avaliações rotineiras já o fazem. Apesar da associação entre desempenho nessas provas de licenciamento e queixas depositadas pelos pacientes, o controle das variáveis que confundem e o desenho do estudo (associação) não permitem uma conclusão causal. Há evidência de que melhores médicos fazem melhores provas de licenciamento, mas não de que os médicos melhoram por causa dessas provas. Além disso, médicos com melhor desempenho tendem a trabalhar em serviços mais bem estruturados. Então, os piores resultados em saúde podem ter relação com o serviço também, e não apenas com o desempenho do médico no exame de licenciamento.

Um outro aspecto interessante, recentemente estudado por Jurich et al55. Jurich D, Santen SA, Paniagua M, Fleming A, Harnik V, Pock A, et al. Effects of moving the United States medical licensing examination step 1 after core clerkships on step 2 clinical knowledge performance. Acad Med. 2019. , diz respeito à tendência de mudança do período de aplicação do exame step 1 da Liaison Committee on Medical Education (LCME), um exame originalmente indicado para “garantir” que o estudante entrasse na área clínica com conhecimentos básicos. No entanto, os autores salientam que essa premissa não mais se aplica diante das mudanças curriculares que trouxeram experiência clínica e inserção no sistema de saúde desde os primeiros anos do curso. Isso põe em discussão a adequação do modelo da Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (Anasem), estabelecido pela Portaria do Ministério da Educação (MEC) nº 982, de 25 de agosto de 2016, com o objetivo de avaliar os estudantes de graduação em Medicina, do 2º, 4º e 6º anos em relação a conhecimentos, habilidades e atitudes previstas nas DCN. Essa proposta se baseia no conceito de avaliação em etapas de formação básica, clínica e terminal, que se adequa a modelos curriculares mais clássicos e que já vêm sendo substituídos por modelos menos segmentados e até invertidos, nos quais o básico retorna após a experiência clínica em saúde individual e saúde coletivaeehttps://meded.hms.harvard.edu/admissions-curriculum .

Entretanto, não se pode negar o interesse e mesmo o direito da sociedade de se sentir mais segura da formação de profissionais, especialmente na saúde. Com a crescente expansão das escolas médicas associada à percepção de uma deterioração da relação médico-paciente e da qualidade da atenção oferecida, o tema do exame de licenciamento para o profissional médico tem emergido, no Brasil e no exterior. Esse interesse se alinha com a compreensão da educação superior como um bem comum, presente no imaginário da coletividade, como define Margison66. Marginson S. Higher education and the common good. London: MUP Academic; 2016. , porque traz benefícios individuais, na forma do título e da possibilidade de atuação profissional, e para a sociedade na qual o profissional está inserido, contribuindo para melhorar as condições de vida dos demais. Assim, a discussão sobre a qualidade do processo torna-se objeto de interesse da coletividade.

A quem compete fazer essa avaliação e como ela deve ser realizada é objeto de grande variação e debates entre os especialistas. A complexidade do tema está sintetizada no artigo de Price et al.77. Price T, Lynn N, Coombes L, Roberts M, Gale T, de Bere SR, et al. The international landscape of medical licensing examinations: a typology derived from a systematic review. Int J Health Policy Manag. 2018; 7(9):782-90. , que definiu uma tipologia com quarto categorias em relação aos exames nacionais de licenciamento medico: países onde graduados nacionais se submetem a uma exame nacional para ter a licença para a prática, outros onde médicos graduados no país ou fora dele precisam fazer tal exame, outros onde apenas os médicos graduados no exterior devem fazer tal exame e, por fim, aqueles onde não há exames de licenciamento nacional, como o Brasil. Como afirmaram Sharma et al88. Sharma A, Schauer DP, Kelleher M, Kinnear B, Sall D, Warm E. USMLE Step 2 CK: best predictor of multimodal performance in an internal medicine residency. J Grad Med Educ. 2019; 11(4):412-9. , a regulação e licenciamento de médicos em um país é resultado de múltiplos fatores, incluindo econômicos, políticos, geográficos e demográficos, além da internacionalização da formação, mobilidade da força de trabalho e o planejamento da força de trabalho médica.

É inquestionável a necessidade de garantir um qualificado processo formativo, baseado em uma abrangente avaliação de programa e institucional, que deve conter os componentes de autoavaliação e reflexão para mudança, mas também envolver a avaliação externa. Esses procedimentos devem compor o credenciamento e o recredenciamento institucional como exigência regulatória para funcionamento da instituição e do curso, no qual cabe a autorização, mas também o fechamento. No Brasil, o sistema regulatório oficial de acreditação institucional é responsabilidade do Ministério da Educação, por meio do Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e dos Conselhos Estaduais de Educação pertinentes. A essas instâncias cabe a decisão de fechamento de cursos e instituições; e a esses sistemas se podem agregar modelos visando à identificação e ao reconhecimento público da excelência, como ocorre com o prêmio Aspire, outorgado pela Association for Medical Education in Europe (AMEE)ffhttps://amee.org/amee-initiatives/aspire . O Sistema de Acreditação das Escolas Médicas (SAEME), criado a partir de uma colaboração entre o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Escolas Médicas (ABEM), que se baseia em um processo de autoavaliação e avaliação externa, foi reconhecido internacionalmente como um sistema de acreditação nacional para escolas médicas, mas não tem autoridade regulatória constituídagghttp://saeme.org.br/index.php/apresentacao/parceria-abem-cfm . Como tal, não pode decidir sobre fechamento de cursos e instituições que não promovem condições adequadas de formação. A pertinência e verdadeiro impacto, se há, da existência de um processo de licenciamento devem se articular com a necessidade de avaliações institucionais qualificadas e consequentes, lembrando que, como já salientado anteriormente, as evidências de suas contribuições para melhorar a formação não são convincentes.

Referências

  • 1
    Gandomkar R, Sandars J. The importance of context in medical education program evaluation. Med Teach. 2018; 40(1):106.
  • 2
    Frye AW, Hemmer PA. Program evaluation models and related theories: AMEE guide no. 67. Med Teach. 2012; 34(5):e288-99.
  • 3
    Boulet J, van Zanten M. Ensuring high-quality patient care: the role of accreditation, licensure, specialty certification and revalidation in medicine. Med Educ. 2014; 48(1):75-86.
  • 4
    Archer J, Lynn N, Coombes L, Roberts M, Gale T, Price T, et al. The impact of large scale licensing examinations in highly developed countries: a systematic review. BMC Med Educ. 2016; 16(1):212.
  • 5
    Jurich D, Santen SA, Paniagua M, Fleming A, Harnik V, Pock A, et al. Effects of moving the United States medical licensing examination step 1 after core clerkships on step 2 clinical knowledge performance. Acad Med. 2019.
  • 6
    Marginson S. Higher education and the common good. London: MUP Academic; 2016.
  • 7
    Price T, Lynn N, Coombes L, Roberts M, Gale T, de Bere SR, et al. The international landscape of medical licensing examinations: a typology derived from a systematic review. Int J Health Policy Manag. 2018; 7(9):782-90.
  • 8
    Sharma A, Schauer DP, Kelleher M, Kinnear B, Sall D, Warm E. USMLE Step 2 CK: best predictor of multimodal performance in an internal medicine residency. J Grad Med Educ. 2019; 11(4):412-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2019
  • Aceito
    15 Out 2019
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