Resumos
Com a intenção de colaborar para a reflexão sobre práticas possíveis de produção do cuidado em equipes multiprofissionais, este artigo analisa as contribuições que as narrativas podem trazer, a partir da criação de uma modelagem de estudos de literatura aplicada. A proposta de 15 minutos de encontro com base na experiência de leituras e escritos compartilhados no cotidiano do trabalho foi implementada em áreas de internação de um hospital público brasileiro. Para interpretação, foi utilizado o modelo hermenêutico literário de Paul Ricoeur. Os resultados apontam que a intervenção foi possível no tempo proposto, no qual os trabalhadores viveram a experiência de um encontro pelas narrativas, revelando a potência da literatura para aproximar a ficção da vida real e, com isso, abrir possibilidades de despertar para o sensível da vida.
Intervenção; Narrativas; Literatura aplicada; Produção do cuidado
Con la intención de colaborar para la reflexión sobre prácticas posibles de producción del cuidado en equipos multiprofesionales, este artículo analiza las contribuciones que las narrativas pueden brindar, a partir de la creación de un modelado de estudios de literatura aplicada. La propuesta de quince minutos de encuentro con base en la experiencia de lecturas y escritos compartidos en el cotidiano del trabajo se implementó en áreas de internación de un hospital público brasileño. Para la interpretación se utilizó el modelo hermenéutico literario de Paul Ricoeur. Los resultados señalan que la intervención fue posible en el tiempo propuesto, en el cual los trabajadores vivieron la experiencia de un encuentro por las narrativas, revelando la potencia de la literatura para aproximar la ficción y la vida real y, de esa forma, abrir posibilidades de despertar para lo sensible de la vida.
Intervención; Narrativas; Literatura aplicada; Producción del cuidado
Introdução
O presente artigo tem por objetivo refletir sobre a contribuição das narrativas para a produção do cuidado no cotidiano do trabalho em equipe multiprofissional. Partindo do pressuposto de que muitos dos sentidos atribuídos aos modos de cuidar e ser cuidado encontram aproximações entre vida real e ficção11. Orofino MMB. Para notar melhor a vida: os encontros da literatura e os processos de cuidado em saúde. In: Fajardo AP, Dallegrave D, organizadores. RIS/GHC: 10 anos fazendo & pensando em atenção integral à saúde. Porto Alegre: Editora Hospital Nossa Senhora da Conceição S.A.; 2014. p. 207-24.; e da ideia de que a literatura é uma das possibilidades para notar melhor a vida22. Wood J. Como funciona a ficção. Bottmann D, tradutor. São Paulo: Cosac Naify; 2012., entrelaçamos conceitos, obras e autores do campo da saúde e da literatura para desenvolver e implementar uma modelagem de intervenção, a partir de leituras e escritas compartilhadas com equipes de saúde.
Realizada em unidades de internação do Hospital Nossa Senhora da Conceição, da cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, a proposta que aqui nomeamos como “15 minutos de literatura” reúne quatro elementos: i) temporalidade (15 minutos), ii) lugar (os espaços cotidianos de trabalho), iii) sujeitos (equipes multiprofissionais de saúde) e iv) método (a experiência de leituras e escritos compartilhados).
Considerando que a produção do cuidado em equipe multiprofissional representa um dos pontos centrais na organização da atenção à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS)33. Assis MMA, Nascimento MAA, Franco TB, Jorge MSB. Produção do cuidado no Programa Saúde da Família: olhares analisadores em diferentes cenários. Salvador: EDUFBA; 2010., a intenção é contribuir com novas estratégias de atuação sobre o processo saúde-doença, indo além do modelo de atenção hegemônico centrado em procedimentos e especialidades, compreendendo o cuidado enquanto fazer ético, afetivo e estético de estar e de agir diante do outro. Nesse sentido, propor uma intervenção a partir de experiência estética literária com equipes é reconhecer nesse coletivo a potência para a articulação de ações e saberes singulares dos profissionais inseridos em um campo de relações no qual nem tudo é codificável e previsível44. Campos GWS. Subjetividade e administração de pessoal: considerações sobre modos de gerenciar trabalho em equipes de saúde. In: Merhy EE, Onocko R, editores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 1997. p. 229-66..
Reconhecendo que um dos desafios do cotidiano do trabalho em equipe está na manutenção de uma prática de relações de alteridade e diálogo entre os atores envolvidos, pensar em estratégias de cuidado que incluam desejos, leveza e potencial criativo contribui para conciliar a dimensão da necessidade do trabalho e a dimensão da liberdade e da autonomia de cada um dos sujeitos implicados.
Jacques Rancière55. Rancière J. A partilha do sensível: estética e política. Costa Netto M, tradutor. São Paulo: Editora 34; 2009., ao retomar as reflexões de Platão acerca das práticas comunitárias, identifica na arte uma possibilidade de viver, ao mesmo tempo, uma experiência individual no coletivo. Nessa “partilha do sensível”, como denomina o autor, reconfigura-se o comum de um grupo, o que acarreta novas possibilidades para observar, questionar, julgar e decidir acerca das coisas que surgem no tempo e espaço da atividade. Rancière sugere que, entre as atividades artísticas humanas existentes, a literatura ocupa um lugar especial, por se tratar de uma arte transversal que ultrapassa relações e delimitações estáveis entre nomes, ideias e coisas, bem como os saberes ou os modos do discurso66. Rancière J. Políticas da escrita. Ramalhete R, Vilanova LE, Vassallo L, Ribeiro EA, tradutores. 2a ed. São Paulo: Editora 34; 2017.. Enquanto narrativa de ficção e fabulação, manifestada universalmente e em todos os tempos, a literatura atua no caráter e na formação dos sujeitos, desempenhando função e papel humanizador, pois, conforme afirma Antônio Cândido, ela “confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.”66. Rancière J. Políticas da escrita. Ramalhete R, Vilanova LE, Vassallo L, Ribeiro EA, tradutores. 2a ed. São Paulo: Editora 34; 2017. (p. 113). Essa postulação ética e política da literatura pressupõe o texto literário como lugar privilegiado para o leitor entrar em contato com a diversidade das experiências humanas, oportunizando a percepção de novas relações sociais e culturais por meio de narrativas que apelam para o exercício criativo e imaginativo.
Nesse contexto, buscaremos compartilhar com o leitor o processo da implementação de uma modelagem de intervenção, a partir de leituras e escritos compartilhados.
Narrativas em saúde
Narrar, seja a partir de uma experiência real ou de uma história ficcional, bem como compartilhar narrativas, faz parte das atividades humanas, visto que o ato de contar e ouvir histórias promove ao homem novos entendimentos sobre sua própria existência e do mundo que o rodeia77. Orofino MMB, Oliveira JM. Permite que te conte! Uma narrativa sobre as narrativas. In: Tempski P, Mayer FB, organizadores. Narrando a vida, nossas memórias e aprendizados: humanização das práticas de ensino e de cuidado na saúde. Rio de Janeiro: Atheneu; 2015..
Paul Ricoeur88. Ricoeur P. Tempo e narrativa. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2010. aponta que o estudo da narrativa implica compreender a forma como os seres humanos vivenciam e representam o tempo, bem como o homem vivencia e significa o próprio mundo e a própria vida. Para o filósofo francês, a narrativa continua sendo uma forma privilegiada de representação do tempo, embora tal representação seja demasiadamente complexa para ser expressa em termos de uma ordenação de eventos com um caráter linear. Sua teoria é construída a partir de dois pilares teóricos: a discussão de Santo Agostinho, em “Confissões”, sobre a natureza do tempo; e a “Poética” de Aristóteles que está centrada no estudo em torno dos conceitos Mimese e Muthos (mito) e que argumenta que é na constituição da identidade narrativa, seja de um indivíduo, seja de uma comunidade, que a fusão entre o histórico e o ficcional acontece. Para Ricoeur, a compreensão das “histórias da vida” torna-se mais acessível quando elas são narradas99. Ricoeur P. A identidade narrativa e o problema da identidade pessoal. Correia CJ, tradutor. Arquipelago. 2000; (7):177-94.. Ao fazer uma análise detalhada da diferença fundamental entre os dois usos principais do conceito de identidade – a identidade como “mesmidade” (do latim “idem”) e a identidade como si próprio, ipseidade (do latim “ipse”) –, o autor diferencia uma identidade de indivíduo daquilo que é próprio da linguagem narrativa, que pertence especificamente à consciência de si e que permite que a pergunta “quem sou?” seja respondida.
Essa diferenciação nos ajuda a compreender que, ao considerarmos o ato de cuidar um permanente exercício de proximidade, relação e preocupação com o outro, viver a experiência de narrar pode contribuir para que os profissionais que tratam, acompanham ou assistem, ocupem-se também em olhar para esse “quem” que sofre e pede cuidado, esse sujeito/paciente que narra uma história biográfica para além da biológica.
Para Walter Benjamin1010. Benjamin W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Benjamin W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Rouanet SP, tradutor. 7a ed. São Paulo: Brasiliense; 1994. p. 197-221. (Obras escolhidas, Vol. I).,1111. Benjamin W. Experiência e pobreza. In: Benjamin W. Magia Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Rouanet SP, tradutor. 7a ed. São Paulo: Brasiliense; 1994. p. 123-8. (Obras escolhidas, Vol. I)., mesmo que no mundo moderno inexistam as prerrogativas necessárias para o desenvolvimento da narrativa tradicional que atravessa gerações (Erfahrung), ainda podemos viver essa experiência a partir da literatura. Segundo esse pensador, obras como as de Charles Baudelaire (que se empenha em expressar a vida do homem ordinário) e de Marcel Proust (que condensa as vicissitudes do tempo em metáforas em seu escrito de analogias e semelhanças entre passado e presente) nos ajudam a identificar a expressão do homem no mundo a partir da vivência (Erlebnis)1212. Benjamin W. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Benjamin W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Barbosa JM, Baptista HA, tradutores. São Paulo: Brasiliense; 1989. p. 104-49. (Obras escolhidas, Vol. III).. Em sua tese sobre o tema, Benjamin descreve três condições necessárias para que uma narrativa aconteça. Primeiramente, a possibilidade de transmissão de uma experiência comum ao narrador e ao ouvinte. Em segundo, a determinação de um tempo para narrar, produzindo um único ritmo entre os movimentos da atividade narradora e do trabalho artesanal, na qual voz, gesto e palavra se encontram e se transformam mutuamente. Por terceiro, a construção de um fluxo narrativo comum entre narrador e ouvinte, em que a história não se encerra, ficando sempre aberta a novas propostas e ao “fazer junto”1313. Gagnebin JM. Prefácio. In: Benjamin W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. Rouanet SP, tradutor. 8a ed. São Paulo: Brasiliense; 2012. (Obras Escolhidas, Vol. I).. Considerando essas prerrogativas, identificamos que a construção de narrativas, a partir do compartilhamento de experiências literárias, pode se constituir em uma potente estratégia para:
[...] tornar possível ao profissional, ao ouvir e fazer-se ouvir, compreender a si mesmo como sujeito em interação, não se conformando ao papel estrito e exclusivo de porta-voz da discursividade tecnocientífica1414. Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(3):16-29.. (p. 136)
A partir da concepção de que a competência narrativa promove melhores condições para os profissionais desempenharem suas tarefas, Rita Charon1515. Charon R. Narrative and medicine: honoring the stories of illness. Oxford: Oxford University Press; 2006. desenvolve uma prática de intersecção entre literatura e medicina denominada “Medicina Narrativa” (MN). A proposta da MN é desenvolver, ao longo da formação dos profissionais de saúde, exercícios de aprendizado e treinamento nos quais a capacidade de leitura aprofundada e a escrita reflexiva são despertadas e estimuladas por meio de um laboratório “que utiliza narrativas para desenvolver competências relacionais e hermenêuticas”1616. Charon R. Narrative and medicine. N Engl J Med. 2004; 350(6):862-4. (p. 123). Pelo treino em identificar metáforas, repetições de certas expressões, pontos de vista e silêncios, entre outras características discursivas, o profissional da saúde acaba por desenvolver uma escuta atenta, de auto e hetero-conhecimento1717. Fernandes I. Leituras holísticas: de Tchekhov à medicina narrativa. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):71-82. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.0628.
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.... , elementos importantes e necessários para o exercício da produção do cuidado.
Nellie Hermann1818. Hermann N. Creativity: what, why and where. In: Charon R, DasGupta S, Herman N, Irvine C, Marcus ER, Colón ER, et al. The principles and practice of narrative medicine. New York: Oxford University Press; 2017. p. 2011-2., a partir de experiências com workshops de escrita ficcional e não ficcional no curso de MN da Universidade de Columbia, observou que, para muitos profissionais da saúde, a criatividade é o oposto de seriedade e sinônimo de falta de técnica. Talvez pela própria natureza do trabalho, que exige seriedade e controle máximo. Segundo a autora, pessoas no mundo da saúde estão muito mais dispostas a adotar a expressão “escrita reflexiva” do que “escrita criativa”, por exemplo, como se a capacidade de pensar criativamente significasse uma ação antiética no trabalho.
Considerando os aspectos conceituais e metodológicos apresentados, construiu-se uma proposta de intervenção a partir de leituras e escritas criativas como estratégia para ampliar a reflexão e compreensão da produção do cuidado em sua dimensão dialógica, levando em conta o contexto do cotidiano de trabalho de equipes multiprofissionais de saúde. Como forma de compartilhar e discutir essa experiência, apresentaremos a seguir os elementos principais que sustentam e justificam essa abordagem.
Tempo possível
Identificar precedentes teóricos e práticos, bem como um contexto favorável para a experiência narrativa com profissionais da saúde, não diminui o desafio de desenvolver essa prática no cotidiano do trabalho de uma equipe multiprofissional de um hospital público, pois implica em equacionar uma fórmula que permita a abertura de um tempo (de disponibilidade e entrega para vivenciar uma nova lógica de ação coletiva) em meio às rotinas do processo de trabalho. Para tornar possível uma intervenção durante a jornada de trabalho, é imprescindível que o tempo seja breve. Quem já participou de alguma forma – seja como profissional, paciente, familiar ou acompanhante – de uma rotina do trabalho em unidades de saúde percebe que os trabalhadores se mostram apressados. Mesmo que não seja constante a necessidade de driblar a morte e salvar vidas, paira no ar o recado de que a efetividade do trabalho depende única e irrestritamente da atividade permanente de todos. Verdade ou representação, não é intenção julgar, nem propor mudanças no fluxo da organização interna da equipe; somente motivar a tomada de decisão de reservar um tempo para escutar, escrever e compartilhar narrativas literárias: 15 minutos – um tempo possível para que as atividades do cotidiano sejam substituídas pela experimentação estética por meio da literatura.
Leitura e escrita compartilhadas
Diferente da prática de leitura individual, no espaço privado, íntimo e singular, essa é uma proposta de leitura literária compartilhada em voz alta. Como afirma Michèle Petit1919. Petit M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. 2a ed. Souza CO, tradutor. São Paulo: Editora 34; 2009., a partir de estudos com grupos de leitores e mediadores de leitura, compartilhar leituras de obras ficcionais oferece aos sujeitos uma nova forma de encontro, eliminando a repressão da fala e produzindo experiências estéticas passíveis de novas subjetivações. Além disso, “a leitura é uma abertura para o outro, pode ser o suporte para os intercâmbios”2020. Petit M. A arte de ler ou como resistir à adversidade. Tradução: Bueno A, Boldrini C, tradutores. São Paulo: Editora 34; 2008. p. 67. (p. 67), e viver essa experiência estética no coletivo, em meio à agitação cotidiana, possibilita a criação de novas metáforas, pontes de ligação que traduzem os desafios do trabalho em equipe multiprofissional.
Enquanto Rita Charon propõe uma leitura com enfoque na linguagem, Petit advoga a leitura sem intenção de interpretar, deixando germinar no silêncio o singular e o coletivo que possam ser compartilhados. Existindo pela voz do leitor, o texto marca um momento único de vivência na especificidade do encontro, a partir de duas ações: leitura em voz alta e escuta coletiva. Dessa forma, aquele que lê, que empresta a voz ao narrador da obra, faz uma mediação para além do texto lido, pois permite a composição de novas percepções, sentimentos e sentidos sobre o mundo até então não expressas no grupo. Nesse lugar, a leitura ativa um sentimento no qual a oralidade e a escrita se reconciliam, oportunizando um espaço de criação, de viver novas experiências e de olhar o mundo por meio de outros lugares, tempos e personagens.
Para Michel de Certeau2121. Certeau M. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 1994., o ato de ler em voz alta, de forma compartilhada, também retoma uma experiência da arte sutil elaborada por poetas e romanceiros medievais, que se perdeu com a leitura individual, silenciosa, em espaço fechados e solitários. Tal observação facilmente nos leva a imaginar o espaço da biblioteca, lugar oficial do culto à leitura. Acompanhados pela sonoridade de uma articulação vocal, experimenta-se a leitura de um texto que se manifesta pela voz de quem lê, impondo ritmo ao assunto e novas experiências aos leitores/ouvintes, lembra o autor.
Ítalo Calvino2222. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. Barroso I, tradutor. São Paulo: Companhia das Letras; 1988., ao comentar a função da escrita nas suas propostas para este milênio, afirma que o ato de escrever cumpre uma função de resolver, organizar a imagem que surge primeiro, carregada de significados, podendo depois formar, tecer redes de conexões entre os fatos, as pessoas e o mundo. Além de tais capacidades, compartilhar uma experiência pela narrativa possibilita, segundo a tese benjaminiana1111. Benjamin W. Experiência e pobreza. In: Benjamin W. Magia Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Rouanet SP, tradutor. 7a ed. São Paulo: Brasiliense; 1994. p. 123-8. (Obras escolhidas, Vol. I)., a constituição de continuidade, imprimindo marcas subjetivas no enunciado do narrador, típicas de um trabalho artesanal.
Para Mikhail Bakhtin2323. Bakhtin MM. Estética da criação verbal. 6a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2011.,nenhuma palavra oral ou escrita pode ser tomada enquanto elemento isolado, pois ela é sempre produto, ao mesmo tempo que ponte, da/na relação dialógica entre sujeito falante e receptor, inseridos em um mesmo grupo linguístico. Enquanto síntese das práticas discursivas, a palavra agrega as múltiplas vozes dos sujeitos que a utilizam para se comunicar, tecendo-se em enunciado que traduz o contexto social, histórico, cultural e ideológico da comunicação. Em seus escritos sobre literatura, o filósofo enfatiza que a palavra escrita vai além do conceito de uma unidade da língua, pois a linguagem que constitui o sujeito é povoada por diversas vozes sociais, tanto conscientes quanto inconscientes. Material privilegiado da comunicação na vida cotidiana, toda palavra é sempre um diálogo, carregada de intencionalidade relacional, ao mesmo tempo em que está vinculada aos processos de produção e sistemas ideológicos, ocupando um lugar primeiro de expressão da consciência individual. Tais pressupostos ajudam a entender o quanto a prática de leitura em voz alta possibilita que as palavras artesanalmente escritas se transformem em enunciados subjetivados e compartilhados, tanto por aqueles que leem quanto pelos que escutam.
A escolha do texto literário
Quanto à escolha dos textos para leitura em cada grupo, foram priorizados contos, poemas ou excertos literários adequados para uma leitura em voz alta, que durasse em torno de cinco minutosccOs excertos utilizados nas leituras foram extraídos das obras: Peter Pan e Wendy, de J M Barrie (2006) ; As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino (1990); O fio das missangas, de Mia Couto (2003); O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, de M Cervantes (2016).. Também foram considerados como critérios de seleção os elementos narrativos que favorecessem um despojamento da linguagem, a possibilidade de abstração e a formação de figuras visuais leves, bem como o resgate de boas memórias escondidas, a diversão e não juízos de valor, tomando como referência maior a proposta de leveza apresentada por Ítalo Calvino2222. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. Barroso I, tradutor. São Paulo: Companhia das Letras; 1988.. Em se tratando de obra literária, se a leveza não aparece na relação entre as personagens, ela pode ser criada no próprio ato de narrar. Nesse sentido, para definir a leveza no texto narrativo, Calvino destaca três elementos importantes: um despojamento da linguagem que concede aos significados uma consistência pouco densa, a possibilidade de abstração e a formação de figuras visuais leves. Impossível antecipar qual obra vai produzir melhor ou mais apropriado efeito, mas o treino da leitura em voz alta e uma escolha atenta que considere o contexto de cada grupo possibilitam a redução de contratempos ou desconfortos no grupo.
Dessa forma, a modelagem da intervenção propõe três momentos distintos, mas interligados, a serem desenvolvidos ao longo de 15 minutos: primeiro, a leitura compartilhada, em voz alta, de um pequeno excerto de prosa, conto ou poema; em seguida, um pedido de escrita, utilizando o texto lido como disparador; por último, o compartilhamento, de quem assim desejar, de algumas narrativas escritas pelos participantes.
A intervenção
Para implementar essa proposta de abordagem, bem como compreender as contribuições que o uso de leituras e escritos compartilhados trazem para a produção do cuidado em equipe, foram realizados encontros com três equipes multiprofissionais de unidades em um hospital público – na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) infantil, nos Cuidados Paliativos e no Programa de Atenção Domiciliar –, participando em cada encontro uma média de seis a oito integrantes por equipe.
A proposta foi a mesma para todos: cinco encontros, de 15 minutos cada, com local e dia a serem combinados de acordo com a disponibilidade dos participantes. O espaço utilizado por cada equipe foi diferente, variando desde um canto no posto de enfermagem até uma sala reservada para reuniões. Importante foi sempre garantir um espaço de pouca circulação, no qual os trabalhadores pudessem ficar confortáveis para a atividade. Antes do início do projeto foram realizados encontros com gestores, coordenadores e equipes na intenção de apresentar, oficializar e inserir a atividade no cronograma de trabalho. Considerando que o grupo está sempre aberto para receber novos participantes, é importante retomar o pacto de trabalho com frequência – orientar sobre o tempo, a ética e a proposta lúdica.
Cada encontro foi organizado da seguinte forma: no primeiro momento, a obra e o autor são apresentados, passando-se em seguida à leitura em voz alta do trecho selecionado. É essencial que o mediador tenha em mente que a escolha do texto ou o pedido para escrita podem produzir efeito diferente do imaginado, pois, como aponta Ricoeur, a cada nova leitura, o discurso inscrito, materializado em forma de texto, é sempre atualizado2424. Ricoeur P. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70; 2011.. A leitura de um texto escolhido por seu tempero cômico, por exemplo, pode causar indignação pela não compreensão da alegoria proposta. Ou ainda, o trecho de um romance clássico, em vez de uma confortante familiaridade, pode causar, no momento da escrita, a angústia da página em branco. Também existem textos que comovem demais, irritam demais, inspiram de menos.
Após a leitura em voz alta, segue-se o pedido de escrita, quando uma breve orientação estimula a produção de pequenos textos. É necessário que um olhar atento ao movimento do grupo seja mantido, a fim de encontrar o equilíbrio entre o tempo marcado pelo relógio e o processo interno de cada um. Equalizar o tempo daquele que já encerrou a escrita com o que ainda está buscando enlaçar palavras ou com os imersos em sua produção textual é tarefa que demanda cuidado, atenção, flexibilidade e sensibilidade.
Considerando a rotina de grande maioria dos trabalhos em saúde – na qual precisão, pouca possibilidade de erro, protocolos e fluxos pautam as ações – é significativo destacar, no pedido de escrita, a orientação de “faça como desejar e conseguir”, relembrando que essa é uma proposta lúdica, sem regras e que, por terem um tempo aproximado de cinco minutos, estão isentos de escrever grandes e definitivas obras literárias. É oportuno também reafirmar o uso do papel, no qual se pode garantir as marcas que só a escrita à mão preserva, ocupando o espaço em branco com alinhavos entre o tempo e o espaço narrativos a partir de um processo criativo. Para incentivar que os escritos sejam compartilhados, segue uma boa dica do professor Paulo Coimbra Guedes2525. Guedes PC. Da redação à produção textual: o ensino da escrita. São Paulo: Parábola Editorial; 2009. ao grupo: escrever no texto somente o que pode ser publicado.
Como último movimento de cada um dos encontros, os participantes são convidados a compartilhar o texto escrito, relembrando sempre que a intenção é de viver a experiência da narrativa, sem colocar atenção em comparações ou expressões de aprovação. Vale destacar que é de escolha de cada um participar ou não dos encontros e uma eventual ausência não impede a presença em encontros posteriores.
O ciclo de encontros resultou na produção de 76 textos digitalizados, o que confirma o pressuposto da eficácia da metodologia de intervenção, tanto na sua intencionalidade – a partilha de leituras e escritos – quanto na organização e gestão das atividades e do tempo. A dimensão temporal de 15 minutos viabilizou a intervenção por corresponder às necessidades do trabalho – com autorização do gestor e aceitação interna do trabalhador para se permitir interromper a rotina – e às necessidades da proposta metodológica de leituras e escritos compartilhados. Essa proposta contou com um cronograma fechado de cinco encontros com cada equipe, mas os resultados indicam que esse pode ser um processo permanente, a ser pactuado de acordo com a disponibilidade de cada grupo.
Sensibilizados pelas leituras e pedidos de escrita, os trabalhadores produziram textos inéditos e ficcionais, muito diferentes daqueles escritos no cotidiano do trabalho, que em geral se limitam a frases curtas, palavras soltas ou siglas, seguindo modelos de fichas, relatórios e protocolos. Deslocando-se para uma experiência de sujeito que faz escolhas do ponto de vista e de elementos a serem narrados, o processo resultou em uma diversidade de modos e gêneros de textos narrativos, proporcionando a cada participante a experiência de partilhar, no presente, histórias tecidas entre passado e futuro.
Compreendendo as narrativas produzidas
Para o exercício de leitura e compreensão das narrativas escritas pelos participantes, tomou-se como referência o conceito filosófico da hermenêutica literária de Paul Ricoeur, apresentado em “Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação2424. Ricoeur P. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70; 2011., no qual o autor orienta para um movimento interpretativo que se constitui dialeticamente, abrangendo a oralidade e a escrita; o símbolo e a metáfora; a frase e a obra textual. Inserido em uma tradição que tem sua origem moderna em outros autores como Friedrich Schleiermacher, Wilheim Dilthey, Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, Ricouer produz em sua tese uma releitura da tradição hermenêutica, propondo uma compreensão do discurso literário, por meio de uma teoria da metáfora e do símbolo para demarcar a extensão de uma teoria da interpretação2626. Ricoeur P. A metáfora viva. Macedo DD, tradutor. São Paulo: Loyola; 2000..
Para Ricoeur, tecer uma interpretação a partir dos escritos justifica-se pelo fato de a escrita sempre significar “mais que o ato empírico de seu traçado”, metaforizando uma relação entre a ordem do discurso e a ordem dos corpos em comunidade.”2424. Ricoeur P. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70; 2011. (p. 46). Segundo o autor, a metáfora é construção resultante da trama entre uma ideia original – aquilo que está sendo dito ou pensado – e uma ideia emprestada para fim de comparação. É nessa interação que um novo sentido emerge. Dessa forma, metáforas são pistas muito valiosas para partilhar e compreender o que o outro expressa, ao mesmo tempo que possibilita a compreensão de novos sentidos e percepções sobre o mundo. Para esse estudo, tratou-se de compreender os escritos narrativos a partir de três movimentos propostos por Ricoeur: primeiramente, uma leitura inicial e “ingênua” das escritas narrativas produzidas pelos participantes. Em seguida, um segundo movimento de “leitura distanciada”, que suscita “expectativas de sentido não satisfeitas, que a leitura reinscreve na lógica da pergunta e da resposta”88. Ricoeur P. Tempo e narrativa. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2010. (p. 301). Mediados pelo texto, há então um terceiro movimento, de apropriação da leitura, que estabelece uma relação/interrogação dialética: “que me diz o texto e que digo eu ao texto?”2424. Ricoeur P. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70; 2011. (p. 302).
Tomando cada texto escrito pelos trabalhadores enquanto narrativas ficcionais, “obras de linguagem”2424. Ricoeur P. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70; 2011. (p. 51), colocamo-nos como leitores que buscam compreender o texto a partir dos conceitos que nos movem neste estudo: o que as metáforas enunciadas nas narrativas ensinam e contribuem para “abrir e descobrir outro campo de realidade além da linguagem ordinária”2424. Ricoeur P. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70; 2011. (p. 231) sobre a produção do cuidado em equipe multiprofissional. Nesse movimento de interpretação, por meio da dialética entre explicação e compreensão, Ricoeur sugere que o leitor do texto não apenas reproduza o evento do discurso em um evento semelhante, mas também opere um novo acontecimento, iniciado pelo texto original.
Os textos produzidos pelos participantes ao longo dos encontros apresentaram enunciados repletos de outros temas do cotidiano, como família, lembranças da infância, amores, entre outros. Ampliando a nossa própria compreensão como leitores para uma percepção do outro – equipes multiprofissionais de um hospital do SUS –, organizamos uma nova composição e um arranjo a partir das metáforas identificadas, na perspectiva de que tais enunciados desvelem novos elementos sobre o que nos é conhecido.
“Afinal qual a diferença entre passar o dia a lutar contra moinhos de vento ou a atender fregueses?” – pergunta a personagem em um dos textos escritos. É emblemático o bem conhecido episódio quixotesco da luta com os moinhos de vento, na qual objetos inanimados se transformam em ameaçadores gigantes diante de Dom Quixote, para depois novamente transformarem-se em moinhos de vento. Muito possível que essa façanha cause não estranhamento ao leitor já acostumado com as peripécias e invencionices do cavaleiro, mas sim entusiasmo por acompanhar essa corajosa ação. Ao encarar gigantes – e muitos –, o herói, mesmo sendo derrubado, não desanima. Sabe que deve e sente que pode enfrentar e até vencer a batalha. Levanta-se e explica ao companheiro Sancho: os episódios da guerra, mais do que outros, estão sujeitos à mudança contínua.
No campo da saúde, a imagem de lutar contra moinhos de vento pode tornar-se uma representação da própria luta da ficção contra a realidade, entre o real – a doença –, o desejo – a cura –, a vontade ou as expectativas tantas vezes necessárias. A metáfora da luta, da guerra, da batalha nos oferece pistas muito valiosas para partilhar e compreender o que o outro expressa e é interessante perceber que, no espaço hospitalar, não é só o paciente o personagem que luta contra algo. Compreender que o cotidiano do trabalho pode ser uma desventura contra “moinhos” ou “fregueses” nos coloca no desafio de pensar estratégias por meio das quais o trabalhador possa tornar-se um fiel escudeiro a acompanhar a jornada ao lado daquele que sofre, que pede cuidado.
“Faz muito tempo que entrei na cidade de Irene. O que parecia uma pequena cidade bem circunscrita na extremidade do planalto, pareceu de perto como um espaço infindável, com pontos inatingíveis” – escreve em seu texto um dos participantes para narrar uma experiência de viagem. Quem já circulou por algum grande hospital público talvez não estranhe essa semelhança. Por fora, um prédio bem circunscrito. Por dentro, um labirinto infindável. Ampliando a associação para além dos espaços físicos, as ações de produção do cuidado muitas vezes também colocam os protagonistas em situações intangíveis, pois trata-se de um campo que guarda especificidades que configuram uma complexa trama entre sujeitos, culturas, necessidades e demandas. Devido à sua natureza eminentemente relacional2727. Merhy E, Magalhães Júnior HM, Rimoli J, Franco TB, Bueno WS. O trabalho em saúde: olhando e experenciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec; 2003., o trabalho em saúde necessita de outras estratégias e tecnologias para além dos protocolos, diagnósticos e prescrições, proporcionando espaços de criação, de trocas, de uso de capacidades e saberes tácitos para novos aprendizados. Para que esse intangível não se transforme em invisível ou insignificante, cabe aos gestores enfrentar o desafio de garantir ações de produção do cuidado para além de metas e indicadores.
Em meio a um profundo diálogo entre dois personagens, expresso em outra narrativa dos participantes, um deles afirma: “A perfeição só existe como miragem de um oásis no deserto”. Assim como a luta contra moinhos gigantes, o deserto representa uma significativa metáfora para os processos e percursos do homem na vida. A miragem, enquanto fenômeno ótico, deforma a realidade e cria a ilusão de que o refresco e a sensação de bem-estar a ser proporcionado pela água estão a poucos passos de distância. Por mais que o profissional da saúde seja treinado para ser perfeito e preciso, é inegável que a realidade no dia a dia do trabalho conta histórias diferentes. Mas disso pouco ou nada se fala nos corredores e salas de hospitais. Profissional da saúde se prepara para salvar vidas e o que é esperado, no momento da dor e do sofrimento, é precisão e excelência, mas o que a narrativa produzida nos conta é que falar em produção do cuidado é falar também de imperfeições, nas quais o trabalho em saúde opera com altos graus de incerteza, na singularidade, na diversidade e na possibilidade de intervenções variadas. É uma produção de atos de cura, de “estar com”, de escuta e acompanhamento de múltiplas histórias biológicas e biográficas. Dessa forma, reconhecer a perfeição enquanto miragem – algo inalcançável, mas que nos faz caminhar e desejar – muito contribui para a qualificação do trabalho. Entregar-se ao não saber, ao aprender cotidiano, no encontro entre dois, entre muitos, seja na unidade de saúde de internação, no ambulatório ou território. Produção do cuidado é tarefa a ser compartilhada, na qual todos se sentem capazes de acolher, escutar, contribuir e acompanhar.
Tarefa multidisciplinar que, se for cooperativa, mais parecerá, como escreveu um dos participantes em uma narrativa, “uma jornada cercada de aventuras emocionantes”, na qual cada ator mobiliza e compartilha seus saberes específicos, ampliando o enlace do trabalho em parceria. Muito já tem se investigado e discutido a respeito do quanto o trabalho em saúde, se não for permanentemente avaliado e ressignificado, pode também contribuir para a alienação dos trabalhadores, amortecendo o potencial criativo e de autonomia. Espaços construídos somente por cobranças de produção favorecem a competitividade e desarmonia entre os trabalhadores de uma mesma equipe. A articulação existente nessa relação promove novos processos contrários às práticas reducionistas, com possibilidade de abertura para a comunicação problematizadora e dialógica. Encontros potentes de diálogos, tomadas de decisões e pactuações, sem necessitar de barulhentas disputas pelo poder. O exercício da conversa, da troca, de expressar e de escutar diferentes pontos de vista não é algo simples no agitado cotidiano do trabalho em saúde; requer disponibilidade, mediação e entrega; e, se conduzido com cuidado e ética, pode oferecer exitosas experiências de partilha.
Campos2828. Campos GW. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec; 2000. problematiza essa questão, considerando fundamental oferecer estratégias de atenção também ao profissional, a fim de potencializar a autonomia, a liberdade e o prazer no agir em saúde. Entre as estratégias, o processo de Educação Permanente em Saúde torna-se um espaço potente de reflexão participativa e ativa pelos trabalhadores que, a partir da realidade de suas práticas, das concepções e relações de trabalho, constroem os processos de novos aprendizados, “como uma raiz, que em cada um faz brotar diferentes ramos”. Trata-se de uma aprendizagem permanente, pois, como diz Paulo Freire, “todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre.”2929. Freire P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados, Cortez; 1989. (p. 31).
Considerações finais
Profissionais que desempenham funções em unidades de saúde – seja de internação, atenção primária ou secundária – convivem durante o cotidiano de trabalho em equipes com o constante desafio de equilibrar necessidades, demandas e recursos, muitas vezes ocupando os poucos espaços de encontro para trocas rápidas de informações. Dessa forma, são raras as oportunidades para compartilhar experiências, trocas de saberes e pontos de vista. Como resultado, entre outros pontos, fica um sentimento de falta de comunicação, de fragmentação e de disputas. Falta tempo para dizer, como também muitas vezes falta saber como ou o que dizer ao outro, e é nesse caso que a literatura pode nos ajudar, pois ela abre novas portas ou janelas para ver, inventar e aumentar o mundo, como sugere o poeta Manoel de Barros3030. Barros M. Memorias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta; 2003.. Se pudermos, no meio de tanta urgência, parar alguns minutos para um encontro narrativo, no qual a metáfora se esconde, revela e desloca, algo já deu certo3131. Gutfreind CA. Infância através do espelho: a criança no adulto, a literatura na psicanálise. Porto Alegre: Artmed; 2014..
Compreendemos que, ao compartilharem leitura e escritos, os trabalhadores viveram a experiência de um encontro pelas narrativas. Trata-se de uma prática que dialoga com o exercício cotidiano do trabalho coletivo em produção do cuidado, que tece singularidades e diversidades de “estar com”, de escutar e acompanhar múltiplas histórias biológicas e biográficas. Cultivar modos de relação a partir de experiências narradas contribui para produção de novos saberes e ações que valorizem relações de alteridade e diálogo aos atores envolvidos, tomando as necessidades de saúde das pessoas e dos coletivos como referência.
Mais do que compartilhar, esse alargamento proporcionado pelo tempo da narrativa despertou nos atores envolvidos a possibilidade da escrita. No silêncio do espaço hospitalar, ecoam múltiplas palavras marcadas no papel, permitindo novas formas de habitar o mundo para além dos corredores brancos e sem janelas. Para quem escreveu, foi uma oportunidade de pausa e respiro. Para nós, privilegiados leitores, ler a palavra que vira escrita, no contexto do encontro, desperta-nos da ideia amorfa – que resistimos, ao mesmo tempo em que repetimos em cair – de que “a equipe” pensa, age e sofre do mesmo modo. “Há escrita quando palavras e frases são postas em disponibilidade, à disposição, quando a referência do enunciado e a identidade do enunciador caem na indeterminação ao mesmo tempo”, lembra Jacques Rancière3232. Rancière J. Política da escrita. Ramalhete R, Vilanova LE, Vassalo L, Ribeiro EA, tradutores. 2a ed. São Paulo: Editora 34; 2017. (p. 9). Para o autor, a história social está cheia de narrativas que devem ser apreciadas não só como documentos de um certo regime de verdade, mas também pelo trabalho fabulador do “como se”, permitindo mudanças pela partilha do sensível. Processo de invenção, não de registro de informações e ideias, essa escrita possibilita alargar o mundo para além da repetição e da reprodução, ultrapassar fronteiras e percorrer lugares esquecidos, desejados ou até mesmo proibidos.
Graças a cada um dos textos lidos, ganhamos a possibilidade de uma nova apreensão sobre o que ainda pode caber ao longo de uma jornada de trabalho, para além dos fluxos, competências e critérios informados, uma vez que, como afirma Walter Benjamin, o compartilhar experiências oportuniza viver, sentir e imaginar coisas que talvez nunca degustassem, não fosse pela escuta da narrativa do outro, pois “sobre quantas vivências é aconselhável ler para tê-las, hein”?3333. Benjamin W. Rua de mão única. Torres Filho RR, Barbosa JCM, tradutores. 6a ed. São Paulo: Brasiliense; 2012. (Obras Escolhidas, Vol. II). (p. 283).
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- 29Freire P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados, Cortez; 1989.
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- 31Gutfreind CA. Infância através do espelho: a criança no adulto, a literatura na psicanálise. Porto Alegre: Artmed; 2014.
- 32Rancière J. Política da escrita. Ramalhete R, Vilanova LE, Vassalo L, Ribeiro EA, tradutores. 2a ed. São Paulo: Editora 34; 2017.
- 33Benjamin W. Rua de mão única. Torres Filho RR, Barbosa JCM, tradutores. 6a ed. São Paulo: Brasiliense; 2012. (Obras Escolhidas, Vol. II).
- *Este artigo tem como base a tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da linha de pesquisa Estudos da Literatura, na área de concentração Estudos Literários Aplicados: Literatura, Ensino e Escrita criativa, defendida em novembro de 2017. CEP-GHC n. 14-113.
- cOs excertos utilizados nas leituras foram extraídos das obras: Peter Pan e Wendy, de J M Barrie (2006) ; As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino (1990); O fio das missangas, de Mia Couto (2003); O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, de M Cervantes (2016).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
19 Jun 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
03 Nov 2019 - Aceito
01 Maio 2020