Movimentos sociais, escravidão contemporânea e saúde: saberes, práticas e implicações para o Sistema Único de Saúde (SUS)** Artigo oriundo da dissertação intitulada “Vigilância da escravidão contemporânea: saberes e práticas de movimentos sociais em Mato Grosso”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso com o apoio de bolsa de Mestrado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Movimientos sociales, esclavitud contemporánea y salud: saberes, prácticas e implicaciones para el Sistema Brasileño de Salud (SUS)

Thomaz Ademar Nascimento Ribeiro Luís Henrique da Costa Leão Sobre os autores

Resumos

O presente artigo buscou compreender a visão dos movimentos sociais engajados na erradicação da escravidão contemporânea quanto aos impactos desta na saúde dos trabalhadores e suas implicações ao Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de uma pesquisa qualitativa que se baseou em entrevistas semiestruturadas realizadas com movimentos sociais de um estado brasileiro com alta prevalência de escravidão. Os resultados demonstram que esses movimentos compreendem a escravidão como a destruição física e mental do ser humano, dado o caráter violador da integridade dos trabalhadores. Além disso, destacaram a potencialidade do SUS, com relação à escravidão, em detectar casos, na recuperação das vítimas, na produção de conhecimento e na vigilância de condições laborais em articulação com os movimentos e outros órgãos. Conclui-se a premente necessidade da inserção da escravidão contemporânea na agenda da saúde pública brasileira como garantia do direito à saúde.

Trabalho escravo contemporâneo; Saúde do trabalhador; Movimentos sociais


El presente artículo buscó comprender la visión de los movimientos sociales comprometidos en la erradicación de la esclavitud contemporánea en lo que se refiere a los impactos que ella tiene sobre la salud de los trabajadores y sus implicaciones para el Sistema Brasileño de Salud (SUS). Se trata de una encuesta cualitativa con base en entrevistas semiestructuradas realizadas con movimientos sociales de un estado brasileño con alta prevalencia de esclavitud. Los resultados demuestran que esos movimientos entienden la esclavitud como la destrucción física y mental del ser humano, dado el carácter violador de la integridad de los trabajadores. Además, subrayaron la potencialidad del SUS en lo que se refiere a la esclavitud, en la detección de casos, en la recuperación de las víctimas, en la producción de conocimiento, en la vigilancia de condiciones laborales en articulación con los movimientos y otros órganos. Se concluyó sobre la urgente necesidad de la inserción de la esclavitud contemporánea en la agenda de la salud pública brasileña como garantía del derecho a la salud.

Trabajo esclavo contemporáneo; Salud del trabajador; Movimientos sociales


Introdução

As relações entre os movimentos sociais (MS), o campo da Saúde Coletiva (SC) e o SUS são importante área de pesquisa e ação. Os MS participam ativamente da construção dos saberes e práticas da SC e no desenvolvimento do SUS, tendo sua participação institucionalizada sob o princípio do controle social11. Brasil. Presidência da República. Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990.,22. Stotz EN. Movimentos sociais e saúde: notas para uma discussão. Cad Saude Publica. 1994; 10(2):264-8..

O movimento operário, os movimentos do campo, floresta e água; de trabalhadores rurais sem-terra; negro; feminista; LGBTI; dos atingidos por barragens; por justiça ambiental; e tantos outros apontam diversas frentes de resistência diante de processos sociais injustos e agressões aos direitos humanos e ao direito à saúde. Ao mesmo tempo, os MS são ativos na produção de conhecimentos contra-hegemônicos que visam garantir o bem-estar social e ecológico; a preservação da biodiversidade e dos modos de vida, culturas e territórios; e a criação de uma sociedade mais justa, equânime e solidária33. Porto MF, Finamore R. Riscos, saúde e justiça ambiental: o protagonismo das populações atingidas na produção de conhecimento. Cienc Saude Colet. 2012; 17(6):1493-501..

Na atuação dos movimentos, as lutas por saúde ocorrem de modo difuso ou concentrado. Difuso quando o foco está sobre os determinantes e condicionantes da saúde de populações específicas e até regiões inteiras. São exemplos a defesa dos territórios contra processos de desenvolvimento injustos; as lutas operárias pela redução da jornada de trabalho; as campanhas de combate aos agrotóxicos e pela vida; pela preservação de nascentes e sementes crioulas; e contra o racismo e discriminação de gênero, cor, classe, etnia e sexualidade. De modo concentrado, o foco principal é a melhoria dos serviços, instituições, políticas de saúde e o reconhecimento de processos de adoecimento específicos que demandam cuidados particulares.

Os MS contribuem para melhorar o acesso e a provisão dos serviços de saúde e dar visibilidade às doenças “contestadas” e de difícil diagnóstico; e são forças vitais no combate às iniquidades de gênero, raça, sexo, etnia e classe44. Brown P, Zavestoski S. Social movements in health: an introduction. Sociol Health Illness. 2004; 26(6):679-94.. Eles propõem estratégias para aumentar os recursos sociais e culturais desafiando o Estado, as instituições e as autoridades na cultura a promover participação na política social e ampliar a democracia44. Brown P, Zavestoski S. Social movements in health: an introduction. Sociol Health Illness. 2004; 26(6):679-94..

Eles emergem diante do domínio da ciência e tecnologia nas políticas sociais nas quais se configura a expertise acima do conhecimento popular, apresentam outras visões de saúde em contraste com a medicalização da sociedade que mantém desigualdades e, a partir de seu conhecimento e experiências, apontam os limites do poder médico frente aos problemas de saúde33. Porto MF, Finamore R. Riscos, saúde e justiça ambiental: o protagonismo das populações atingidas na produção de conhecimento. Cienc Saude Colet. 2012; 17(6):1493-501.,44. Brown P, Zavestoski S. Social movements in health: an introduction. Sociol Health Illness. 2004; 26(6):679-94..

Entre diferentes problemas sociais e de saúde pública brasileiros, o trabalho escravo contemporâneo (TEC) é um dos mais persistentes e injustos55. Leão LHC. Trabalho escravo contemporâneo como um problema de saúde pública. Cienc Saude Colet. 2016; 21(12):3927-36.. A escravidão contemporânea (EC) é definida como formas coercitivas de controle sobre uma ou mais pessoas para fins de exploração econômica e uso da violência66. Bales K. Disaposable people: new slavery in the global economy. Berkeley, Los Angeles: University of California Press; 1999., que envolvem submissão a trabalhos forçados, jornadas exaustivas, condições degradantes e restrição de locomoção devido às dívidas contraídas com o empregador ou encarregado55. Leão LHC. Trabalho escravo contemporâneo como um problema de saúde pública. Cienc Saude Colet. 2016; 21(12):3927-36.,77. Brasil. Presidência da República. Lei nº 10.803, de 11 de Dezembro de 2003. Altera o art. 149 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de Dezembro de 1940. Diário Oficial da União. 11 Dez 2003.. Estima-se que haja em torno de 40 milhões de pessoas vivendo em EC atualmente88. International Labour Organization and Walk Free Foundation. Global estimates of modern slavery: forced labour and forced marriage. Geneva: International Labour Office (ILO); 2017..

No Brasil, esse fenômeno tem particularidades e suas raízes remontam à história de colonização dos indígenas e tráfico de africanos, que deixou fortes marcas psicossociais e heranças socioculturais, dentre as quais destaca-se o racismo.

A EC representa uma grave violação de direitos humanos e é reflexo do processo de desenvolvimento excludente brasileiro pós-emancipação de 1888, que deixou contingentes negros e pobres à margem da sociedade, sem acesso à terra e ao trabalho99. Martins JS. A reprodução do capital na frente pioneira e o renascimento da escravidão no Brasil. Rev Sociol. 1994; 6(1-2):1-25.. Atualmente, ela está presente em todo território nacional e, nos últimos 15 anos, 45.028 trabalhadores foram resgatados das condições de EC em todo o país1010. Digital do Trabalho Escravo no Brasil. Smartlab de Trabalho Decente MPT – OIT [Internet]. 2020 [citado 6 Abr 2019]. Disponível em: http://observatorioescravo.mpt.mp.br
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. A população afetada é, em geral, composta por homens, jovens, solteiros, mestiços, com baixa escolaridade, atuando em setores da agricultura, construção civil, pecuária e indústria da moda, seja no campo ou nas grandes cidades1010. Digital do Trabalho Escravo no Brasil. Smartlab de Trabalho Decente MPT – OIT [Internet]. 2020 [citado 6 Abr 2019]. Disponível em: http://observatorioescravo.mpt.mp.br
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Apesar de sua extensão e potencial de danos à saúde, a EC vem sendo negligenciada pelas instituições de Saúde Pública, a ponto de não existirem políticas e/ou estratégias de atenção à saúde para pessoas submetidas à escravidão55. Leão LHC. Trabalho escravo contemporâneo como um problema de saúde pública. Cienc Saude Colet. 2016; 21(12):3927-36.. Isso porque existem escassas informações sobre os impactos da escravidão na saúde e poucas pautas específicas nas políticas que garantam estratégias para a saúde participar dos processos de libertação, emancipação e cura dessas pessoas.

Entra aí a relevância social e científica dos MS engajados nas lutas pela libertação de trabalhadores das condições de escravidão. Desde a década de 1960 e 1970, vários MS retratam esse grave problema e constroem meios de acolhimento de trabalhadores, atenção às suas necessidades, produção de informação sobre os casos, divulgação de estatísticas anuais sobre as ocorrências e fiscalização e prevenção1111. Ribeiro TAN. Vigilância da escravidão contemporânea: saberes e práticas de movimentos sociais em Mato Grosso [dissertação]. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso; 2019..

A emergência da luta social contra o TEC no Brasil se deu em função do reconhecimento das situações críticas experimentadas por trabalhadores mais pobres do campo – inicialmente no Pará (PA) e Mato Grosso (MT) na década de 1970 – e do sentimento de indignação pelo desrespeito com o qual eram tratados1212. Casaldáliga P. Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. São Felix do Araguaia: Carta Pastoral; 1971.,1313. Honneth A. The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts. Great Britain: Library of Congress; 1995.. O confronto com essas situações drásticas de risco de morte, violência, humilhações e exploração do trabalho, para além das capacidades de suporte, gerou indignação em agentes pastorais que acolhiam trabalhadores fugidos de fazendas e os despertou para essa luta1313. Honneth A. The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts. Great Britain: Library of Congress; 1995.,1414. Figueira RR. Por que trabalho escravo? Estud Av. 2000; 14(38):31-50..

Esses atores de MS, em particular, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), têm um papel privilegiado no contato e acesso aos trabalhadores submetidos ao TEC e, na história social do conceito de TEC no Brasil, eles foram os principais responsáveis pela emergência da categoria e pela contabilização e estimativas da ocorrência do problema ao redor do país1313. Honneth A. The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts. Great Britain: Library of Congress; 1995.,1515. Silva MP. O trabalho escravo contemporâneo e a atuação da CPT no campo (1970-1995) [tese]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2016.. Atualmente, existe uma verdadeira rede de trabalho espalhada pelo território nacional que faz denúncias, acolhe trabalhadores, produz informações e provê alternativas preventivas para os conflitos de terra e exploração ambiental e do ser humano. Esses MS fazem uma vigilância popular da EC ímpar1111. Ribeiro TAN. Vigilância da escravidão contemporânea: saberes e práticas de movimentos sociais em Mato Grosso [dissertação]. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso; 2019.,1515. Silva MP. O trabalho escravo contemporâneo e a atuação da CPT no campo (1970-1995) [tese]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2016.,1616. Bales K. Ending slavery: how we free today´s slaves. London: University of California Press; 2007..

O objetivo deste artigo foi compreender a visão dos MS engajados no processo de libertação de trabalhadores submetidos à escravidão contemporânea sobre os impactos dessa condição na saúde dos trabalhadores e suas implicações para o SUS.

Metodologia

Foi realizada uma pesquisa qualitativa e exploratória com foco no significado atribuído pelos sujeitos ativos nos MS pela erradicação do TEC para compreender seus saberes e práticas1717. Deslandes SF, Assis SG. Abordagens quantitativa e qualitativa em saúde: o diálogo das diferenças. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002. p. 195-223.,1818. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12a ed. São Paulo: Hucitec; 2010..

O estudo se deu em MT porque é um dos estados com maior ocorrência de TEC. Entre 2003 e 2018, em torno de 4.394 trabalhadores foram resgatados dessas condições, correspondendo a 9,76% do total de resgates do país. Foi também o oitavo lugar (n=1802) no que se refere a trabalhadores que declararam residir no estado no momento do resgate1010. Digital do Trabalho Escravo no Brasil. Smartlab de Trabalho Decente MPT – OIT [Internet]. 2020 [citado 6 Abr 2019]. Disponível em: http://observatorioescravo.mpt.mp.br
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Já foram realizadas 229 operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, com 19 resgates por operação nos 105 municípios do MT (74,4% do total de municípios), demonstrando o alcance do TEC nesse território. Esses resgates ocorreram em atividades vinculadas ao agronegócio, responsável pela maior parte do Produto Interno Bruto (PIB) de MT e do Brasil, na agropecuária e indústria madeireira.

O estudo ocorreu na capital Cuiabá, nas sedes dos MS ativos frente ao TEC: CPT, Centro Burnier Fé e Justiça, Centro de Pastoral do Migrante e Federação dos Trabalhadores na Agricultura.

Entre julho e dezembro de 2018, foram realizadas entrevistas semiestruturadas em profundidade com oito agentes de MS com experiência de prevenção, denúncias e assistência frente ao TEC e um pesquisador que atuou durante vinte anos no início da CPT.

As entrevistas tinham questões abertas sobre organização, atividades, processo de coleta de informações, conquistas e dificuldades dos MS; caracterização e consequências do TEC na saúde; e articulações com o SUS.

As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. A análise dos discursos buscou compreender a fala dos entrevistados não somente como ferramenta de comunicação/transmissão de informação, mas também como modo de agir socialmente. A fala representa um lugar que é de conflito e confronto ideológico no qual os significantes se apresentam em toda sua complexidade1919. Brandão HHN. Introdução à análise do discurso. Campinas: Unicamp; 2004.. Utilizou-se a análise do discurso (AD) na visão da escola francesa, que entende o discurso como uma gama de significados manifestos pelo verbal e não verbal, via fala, gestos e atitudes. O discurso é produzido a partir de uma interação entre os sujeitos, circunscritos pela ideologia, história e inconsciente em um dado contexto histórico, social, cultural e econômico. Essa interação produz efeitos de deriva e novos sentidos, superando assim uma noção que apregoa a linguagem como uma maneira neutra simplesmente de descrever e refletir o mundo2020. Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 8a ed. Campinas: Pontes; 2009..

A AD auxilia na compreensão de como as pessoas pensam e agem no mundo concreto, porque o “enunciador do discurso não é um sujeito da experiência e da existência individualizada no mundo, mas sim um sujeito discursivo, cuja história pessoal se insere na história social, ideologicamente marcada”2121. Gondim SMG, Fischer T. O discurso, a análise de discurso e a metodologia do discurso do sujeito coletivo na gestão intercultural. Cad Gestao Social. 2009; 2(1):9-26. (p. 12).

A tarefa da AD pressupõe compreender as regras delimitadoras dos enunciados e as condições de sua emergência2222. Foucault M. Arqueologia do saber (1969). Neves LFB, tradutor. 7a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2008.. A produção do discurso na sociedade não ocorre de forma livre. É controlada, organizada, selecionada e distribuída por regras, procedimentos de ordenamentos2323. Foucault M. A ordem do discurso (1971). Sampaio LFA, tradutor. 5a ed. São Paulo: Edições Loyola; 1999.. As análises das entrevistas aqui realizadas incluíram a busca de compreensão das produções discursivas e seus efeitos de sentido a partir do que foi dito e ocultado.

Na organização dos dados, leitura em profundidade das entrevistas e análise dos relatos orais, emergiram as seguintes categorias: escravidão como destruição dos potenciais físicos e mentais do ser humano e as reponsabilidades do setor saúde.

A pesquisa seguiu os princípios éticos conforme a Resolução 466/2012 e foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa em Saúde (3.293.655).

Resultados e discussão

Dois elementos principais emergiram nos discursos: impactos da escravidão na saúde dos trabalhadores e a questão da responsabilização do SUS.

Impactos da escravidão na saúde dos trabalhadores

Os ativistas apresentaram maneiras de retratar os impactos na saúde física e mental de trabalhadores rurais do interior mato-grossense como situações drásticas de doenças e exaustão vinculadas à extrapolação dos limites do corpo pelo trabalho exaustivo, condições degradantes, ameaças e punições corporais.

[...] essa pessoa que está na situação de trabalho escravo, chega fragilizado, doente, dor de dente, dor de ouvido [...]. Bastante fragilizados, que chegam, física e emocionalmente. Muitos trabalhadores acabam morrendo de exaustão, a maioria dos que chega aqui, chegam arrebentados... (Gabriela)

Os entrevistados expressaram que desde 1970, quando começaram a acolher trabalhadores, recebiam relatos de “doenças contraídas no trabalho, seus sintomas e a febre”, “diarreia”, “malária”, “acidentes de trabalho”, “problemas de respiração”, “problemas pulmonares”, “uso de álcool e outras drogas”, “alcoolismo”, “assassinato de trabalhador”, “assassinatos disfarçados de acidentes de trabalho”, “sinais de desgastes”, “trabalhador cego”, “debilitado”, “fragilizados”, “destruídos”. Essas situações são relatadas como recorrentes entre os trabalhadores, em um processo de adoecer e morrer no trabalho.

Dada à situação de impedimento de ir e vir dos trabalhadores, sob pretexto de dívidas contraídas com o empregador, pelo alojamento, transporte ou comida, ficavam impedidos de buscar assistência à saúde, o que agrava os quadros clínicos de doenças perigosas como a malária e outras. A situação de escravidão envolve a ausência de oferta de cuidados médico-hospitalares em casos de acidentes e doenças.

[...] são em locais longe, afastados de postos de saúde, de atendimento médico. (Gabriela)

Além disso, ela não consegue fazer exames, pois não tem plano de saúde, não tem dinheiro para comprar remédio ou realizar exames e, no posto de saúde, não providenciaram o raio X e outros exames. Como está sem dinheiro, não podem pagar exames. (José)

Outro ponto importante é o isolamento social em relação às redes e laços familiares, que deixa o trabalhador em posição de vulnerabilidade, bem como as próprias afecções e sofrimentos que a escravidão causa nas famílias dos trabalhadores.

Quando o trabalhador sai de casa e não retorna por alguma razão, a família pode adoecer. O sofrimento pela ausência é muito grande, esse é um aspecto, pessoas desaparecidas. Que nunca voltam. Os familiares não tinham notícias se estavam vivas, se tinham constituído novas famílias, se haviam sido assassinadas, não sabiam o que tinha acontecido. Isso criava um transtorno na vida emocional e física das pessoas, as mães ficavam desesperadas por causa dos filhos. (José)

[...] são pessoas sem conexão com família, o meio social, então o que se verifica é que às vezes se desenvolve, como que a gente poderia dizer, fantasias, falas desconectas [...] sem mais nenhum vínculo. (João)

Os impactos na saúde física são visíveis, decorrentes de situações de condições degradantes e de outros trabalhos exaustivos, mas a parte emocional deles fica muito abalada, eles ficam longe de tudo, de suas famílias, isso os deixa fragilizados. (Maria)

Chama atenção que estudos clássicos sobre a constituição da escravidão demonstram que a quebra dos vínculos familiares era largamente utilizada como estratégia de submissão e escravização de trabalhadores2424. Elkins SM. Slavery: a problem in American institutional and intellectual life. Chicago: University of Chicago Press; 1959.,2525. Mustakeen SM. Slavery at sea: terror, sex and sickness in the middle passage. Chicago: University of Illinois Press; 2016..

Fica claro nos discursos o quanto as condições da EC são degradantes. Os trabalhadores são expostos à restrição da liberdade de ir e vir e experienciam aprisionamento por dívida, más condições de nutrição, alojamento e execução de atividades, quase sempre em jornadas exaustivas.

[...] trabalham 10, 11, 12 horas por dia de segunda a segunda. O esforço desesperado para produzir provocou um problema gravíssimo no braço. A superexploração na escravidão provoca o excesso de demanda no trabalho, nos seus movimentos repetitivos e nas horas excessivas de atividades produtivas. Tudo isso impossibilita ao trabalhador de usufruir o lazer e ter acesso ao mínimo necessário como a saúde, a alimentação e a habitação adequadas e, assim, a dignidade protegida [...]. As condições de vida eram degradantes na habitação. Tudo favorecia ao enfraquecimento, ao adoecimento. (José)

A gente vê empregador que coloca o trabalhador para beber água de poço na mesma água que usa para tomar banho... de atraso dos salários. (Maria)

Os discursos também caracterizam a ausência de transporte adequado e vestimenta para a atividade a ser realizada, com relatos de trabalhadores sendo transportados até mesmo em gaiolas na carroceria de caminhonetes, dormindo em locais com insumos e agrotóxicos perigosos, sem instalações sanitárias, entre outros.

É importante demonstrar que muitos estudos sobre as doenças de escravos nas Américas no período colonial mostram exatamente que o quadro de morbidade e mortalidade deles estava relacionado com as jornadas de trabalho extenuantes, pobre dieta, vestimentas precárias, alojamentos em condições ruins e às punições2626. Sheridan R. Doctors and slaves: a medical and demografic history of slavery in the British West Indies 1680-1834. Cambridge: Cambridge University Press; 1985.

27. Fett S. Working cures: healing, health and power on southern slave plantations. Chapel Hill: University of North Carolina Press; 2002.
-2828. McCandless P. Slavery, disease and suffering in the Southern Lowcountry. Cambridge: Cambridge University Press; 2011..

Os relatos aqui analisados também apresentam muitas formas de violências psicológicas e físicas, que geram medo; problemas psiquiátricos; e traumas físicos e emocionais.

Vejo também toda uma questão psicológica de pressão dos pistoleiros. “Eu vou te bater”; “Vou te matar”, ou as próprias agressões, a ausência de dinheiro para cobrir os próprios gastos mínimos, alimentação e a higiene pessoal, a fome [...], fora as surras. (Luiz)

[...] é constantemente uma opressão de latifundiários, ameaças, recadinhos, polícia junto, pistoleiro, prefeito, o poder público [...] um senhor que estava trabalhando há mais de 10 anos em uma fazenda a troca de comida, sem salário, e quando ele ameaçava que iria sair da fazenda, o fazendeiro o ameaçava de morte, fazia toda uma opressão psicológica. (Sebastião)

Eles passaram dia nas estradas, dormindo, fugindo de onça e do capanga correndo atrás, aí eles apareceram lá pedindo ajuda [...] os caras totalmente cheios de sangue no corpo, tanto das surras que levaram por lá, como das noites dormidas no meio de árvores, escondendo de onça, de cobra. (Luiz)

Os relatos mencionaram danos permanentes em corpos de trabalhadores – como cegueira decorrente de envenenamentos –, ameaças de morte, assassinatos e execuções. Isso se configura como formas de gestão pelo terror, com “vigilância armada e disciplina forte”, que atravessam o cenário brasileiro desde o século XIX2929. Figueira RR. Pisando fora da própria sobra: trabalho escravo no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2004.,3030. Loner BA, Gill LA, Scheer MI. Enfermidade e morte: os escravos na cidade de Pelotas, 1870-1880. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 2012; 19 Supl1:133-52.. Como afirma Orlando Patterson3131. Paterson O. Slavery and social death: a comparative study. Cambrigde: Havard University Press; 1982., a violência ocupa um lugar central na criação e manutenção das relações de dominação na escravidão. Assim, observa-se no discurso dos movimentos a punição recorrente dos corpos dos trabalhadores.

Já vi trabalhador que levou surra de chicote, queimado com brasa, com ferro quente, já presenciei, doentes, fracos, debilitados, cegos, marcados no corpo, marca de chicote, de paulada, mutilado já vi alguns. (Luiz)

As falas dos entrevistados – “marcados no corpo”, “surra de chicote” e “queimados com brasa e ferro quente” – manifestam maneiras de tratamento com injustiça e indignidade. São formas de infundir terror para submeter o outro a condições de exploração extremas que atravessa a história do trabalho e o uso do corpo nesse propósito. Durante o tráfico de africanos para as Américas, por exemplo, alguns corpos de escravos eram despedaçados para o terror dos africanos em formas de “mutilação com fins de intimidação”2727. Fett S. Working cures: healing, health and power on southern slave plantations. Chapel Hill: University of North Carolina Press; 2002..

Não por acaso, a escravidão pode ser caracterizada como uma experiência de violência produtora de muitas situações de traumas emocionais e psíquicos.

Acompanho um caso de um jovem [...] que tentou se suicidar duas vezes, ficou internado em hospital psiquiátrico, dada a forma traumática com que foi sua experiência de escravidão temporária. (José)

Em geral, grande parte das vítimas se vê em situação de pavor e terror decorrente das ameaças, coerção e vigilância ostensiva – e, em muitos casos, armada –, que tendem a gerar impotência nessas pessoas.

A gente entende que passar por um processo de extrema violência, principalmente a violência no campo, que está bem presente na questão do trabalho escravo, acaba acarretando em um medo psicológico muito grande nessas pessoas de fato. [...] o trabalhador fica sem ter aonde ir, com medo, com todo receio de denunciar, isso influencia no psicológico da pessoa. (Sebastião)

A sensação de medo é um fator comum entre a maioria das pessoas que se encontram submetidas a formas cruéis de exploração. Em pesquisas sobre o tema, entrevistas realizadas com as vítimas destacam grande medo manifesto nos trabalhadores2929. Figueira RR. Pisando fora da própria sobra: trabalho escravo no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2004.,3232. Leao LHC. Trabalho escravo contemporâneo: a construção social de um problema público no norte fluminense. Psicol Soc. 2015; 27(1):120-30..

O trabalhador tende a se ver diminuído e oprimido em razão de sua solidão, abandono e miséria, com grandes dificuldades de quebrar barreiras e sair dessa condição. Segundo Figueira2929. Figueira RR. Pisando fora da própria sobra: trabalho escravo no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2004., não é incomum que agentes de MS se deparem com trabalhadores que encontram dificuldades de se expressar e denunciar, sob a possibilidade de serem perseguidos. Aqueles que fogem e relatam suas condições apontam uma incrível resistência e superação de limites, porque a saúde mental desses trabalhadores é fortemente abalada nesse processo e contexto de ameaças e violências.

Em perspectiva histórica, Amantino3333. Amantino M. As condições físicas e de saúde dos escravos fugitivos anunciados no Jornal do Commercio (RJ) em 1850. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 2007; 14(4):1377-99. analisa as condições de saúde de escravos fugidos durante o ano de 1850 e sugere que as principais causas das fugas “eram maus-tratos, castigos excessivos, má alimentação e desrespeito aos direitos adquiridos” (p. 1380). Ou seja, as principais causas das fugas de trabalhadores das fazendas na segunda metade do século XX diferem pouco daquelas realizadas na segunda metade do século XIX. “A análise do cotidiano de uma população escrava indica a submissão à permanente e exacerbada violência física ou psicológica – real ou imaginada –, que poderia provocar problemas de estresse”3333. Amantino M. As condições físicas e de saúde dos escravos fugitivos anunciados no Jornal do Commercio (RJ) em 1850. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 2007; 14(4):1377-99. (p. 1386).

Alguns estudos demonstram impactos da EC na saúde das vítimas. Uma pesquisa sobre experiências de mulheres sobreviventes do tráfico sexual na Inglaterra demonstrou a presença de doenças infecciosas e traumas psicológicos3434. Dando CJ, Brierley R, Saunders K, Mackenzie JM. Health inequalities and health equity challenges for victims of modern slavery. J Public Health (Oxf). 2019; 41(4):681-8.. Haase3535. Haase E. Human trafficking, public health and the law: a comprehensive analysis of intersections. J Public Health (Oxf). 2014; 22(2):121-9. e Oram et al.3636. Oram S, Abas M, Bick D, Boyle A, French R, Jakobowitz S, et al. Human trafficking and health: a survey of male and female survivors in England. J Public Health (Oxf). 2016; 106(6):1073-8. demonstraram que o bem-estar físico dos trabalhadores libertos é afetado pela violência, pelas lesões sofridas desde o transporte na execução das atividades e pelas condições degradantes. Os sinais e sintomas de adoecimentos frequentemente relatados são dor de cabeça, dor nas costas, perda de peso significativa, desnutrição, depressão, estresse pós-traumático, transtornos de ansiedade, ideação suicida e consumo abusivo de álcool e outras drogas.

Em síntese, na visão dos agentes de MS, os impactos da escravidão são extremamente fortes a ponto de comprometer as potencialidades corporais e mentais da pessoa submetida à tal condição.

Você já viu um trabalhador escravizado, o que que é um ser humano destruído, ele é destruído fisicamente, ele é destruído emocionalmente, até na fé dele. [...] dependendo o tempo que ele ficou e o tipo que era o trabalho escravo dele, você não vê humano mais, nada, nada. [...] Então o trabalho escravo, [...] é a forma da destruição total do ser humano. (Luiz)

A linha discursiva dos MS é que a escravidão leva à destruição do ser humano. Sob essa compreensão, a escravidão é processo de destruição de corpos e mentes, porque todas as dimensões humanas são afetadas nessa experiência.

Essa noção de destruição dos corpos foi destacada por Mustakeen2525. Mustakeen SM. Slavery at sea: terror, sex and sickness in the middle passage. Chicago: University of Illinois Press; 2016., que observa um processo de “desfazer corpos” por meio de condições físicas, psíquicas e emocionais dos escravos, em uma dinâmica de poder avassaladora. Esse processo de desfazer os corpos resulta em desorientação mental; separação familiar e comunal; má nutrição; falta de saneamento e higiene; isolamento severo; doenças desestabilizadoras; abusos sexuais; e sofrimento psicológico. O regime da escravidão é uma operação de desumanização que esgota os limites do humano, o expõe a riscos e perigos constantes e o reduz a condição de coisa3737. Esterci N. Escravos da desigualdade: um estudo sobre o uso repressivo da força de trabalho hoje. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2008..

A escravidão produz um corpo violado e fraturado, e tanto as formas contemporâneas de escravidão quanto as coloniais operam lógicas de um projeto de modernidade necropolítico de instrumentalização da existência humana e destruição material dos corpos e populações3838. Mbembe A. Necropolitics. Public Cul. 2003; 15(1):11-40.. Mais do que a perversidade de alguns sobre outros1616. Bales K. Ending slavery: how we free today´s slaves. London: University of California Press; 2007., a escravidão se apresenta como negação de direitos, ausência de reconhecimento do trabalhador pela violação do seu corpo e diminuição das expectativas de vida1313. Honneth A. The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts. Great Britain: Library of Congress; 1995.. A compreensão dos MS demonstra essas dimensões largas e profundas da escravidão que geram sofrimentos físicos e psíquicos porque são formas de desconsideração pela integridade dos seres humanos e podem ter o mesmo papel que as infecções orgânicas têm na reprodução dos corpos1313. Honneth A. The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts. Great Britain: Library of Congress; 1995..

O papel do SUS diante da escravidão

A produção discursiva dos MS demonstra ainda o reconhecimento do valor do setor saúde diante do TEC para ações de detecção de casos, recuperação da saúde das vítimas, vigilância e fiscalização das condições de trabalho em articulação com MS e outros órgãos e em pesquisa e produção de conhecimento.

No caso da detecção de novos casos, o setor é estratégico porque o SUS “é porta de entrada de praticamente tudo” (Joana).

Muitas pessoas em situação de escravidão passam pelas unidades de saúde, recebem atendimento, têm contato com profissionais e retornam para a mesma situação. Havendo a sensibilidade e mecanismos de identificação adequados no setor, poderia-se alcançar resultados inovadores, porque os serviços de saúde estão presentes em diversos territórios ao redor do país. Os agentes comunitários de saúde (ACS), por exemplo, são profissionais de grande potencial para isso, pois adentram as comunidades e conhecem bem suas realidades, têm conhecimento particular porque residem na mesma comunidade e estão imersos em sua dinâmica e cultura. Isso, por si só, denota a possibilidade singular de alcançar ações importantes frente ao TEC.

[...] eles têm o conhecimento ímpar, oportunidade de identificar situações ímpar [...]. Se eles forem devidamente preparados, exercitados a identificar esta questão, da migração, da ausência na família de um homem, de um filho que viajou e não voltou, essa é uma vigilância e um alerta. (João)

[...] eles sabem de tudo, eles chegam aqui e falam: “olha tem alguém ali, que não sai de casa, está trancada, que não sai”. Eles sabem [...]. (Joana)

Estudo realizado com 12 resgatados da EC em Los Angeles3939. Baldwin SB, Eisenman DP, Sayles JN, Ryan G, Chuang KS. Identification of human trafficking victims in health care settings. Health Hum Rights. 2011; 13(1):36-49. demonstra que todos passaram por serviços públicos de saúde e não tiveram a condição de escravo identificada por nenhum profissional. Mesmo quando não estavam acompanhados pelos supostos “patrões”, não relataram a situação de exploração que sofriam.

Para subsidiar avanços e evitar omissões do setor saúde frente à EC, iniciativas e recomendações vêm sendo realizadas em diferentes países, como Inglaterra4040. Such E, Jaipaul R, Salway S. Modern slavery in the UK: how should the health sector be responding? J Public Health (Oxf). 2020; 42(1):216-20.,4141. Such E, Walton E, Bonvoisin T, Stoklosa H. Modern slavery: a global public health concern. BMJ. 2019; 364:i838. e Nova Zelândia4242. King P, Blaiklock A, Stringer C, Amaranathan J, McLean M. Slavery in New Zealand: what is the role of the health sector? NZMJ. 2017; 130(1463):63-9..

Do ponto de vista da atenção à saúde, os discursos dos MS compreendem o quanto o SUS ainda não absorveu os processos de adoecimento decorrentes do TEC para prover acolhimento, assistência e reabilitação dos resgatados.

Na questão da repressão tem bastante atividades [sic], agora na questão do acolhimento, nenhuma. [...] várias demandas na área de saúde e coisas emergenciais que têm que ter resposta rápidas e alguns acompanhamentos, então tem, tem muita coisa sim para a saúde. (Gabriela)

A necessidade de recuperação da saúde física e mental dos regatados implica maior envolvimento do setor saúde na própria construção de saberes e práticas relativos aos impactos da escravidão e estratégias terapêuticas.

[...] a gente não tem uma certa qualificação para atender os requisitos em relação à saúde. Quais as consequências desse resgate, quais orientações através da saúde que a gente tem para esses trabalhadores. [...] a secretaria de saúde poderia contribuir, talvez nessa relação com as entidades de orientar [...] para estar atuando de forma mais qualificada em relação à saúde do trabalhador. (Sebastião)

[...] como nós não somos capacitados para isso, na saúde física, a gente lê, estuda, mas não somos profissionais. A saúde psicológica e mental da pessoa, o acompanhamento dessas pessoas liberadas já ajudaria muito. (Luiz)

Os discursos dos MS demarcam a necessidade de o SUS aprimorar o conhecimento sobre os impactos do TEC na saúde e os meios de suporte à vida pós-resgate, para melhor qualificar a ação das entidades que lutam contra o TE.

Apesar de a escravidão contemporânea ser um dos grandes exemplos de desigualdades e iniquidades em saúde global, os profissionais de saúde, em geral, veem-se diante das vítimas, mas encontram dificuldades de reconhecer e prestar cuidados específicos a essa condição particular4040. Such E, Jaipaul R, Salway S. Modern slavery in the UK: how should the health sector be responding? J Public Health (Oxf). 2020; 42(1):216-20.

41. Such E, Walton E, Bonvoisin T, Stoklosa H. Modern slavery: a global public health concern. BMJ. 2019; 364:i838.
-4242. King P, Blaiklock A, Stringer C, Amaranathan J, McLean M. Slavery in New Zealand: what is the role of the health sector? NZMJ. 2017; 130(1463):63-9..

Essas barreiras na atenção à saúde precisam ser enfrentadas e superadas porque “homens e mulheres que sobrevivem a formas extremas de exploração necessitam frequentemente de cuidados de saúde urgentes e contínuos, especialmente de apoio à saúde mental”4343. Stanley N, Oram S, Jakobowitz S, Westwood J, Borschmann R, Zimmerman C, et al. The health needs and healthcare experiences of young people trafficked into the UK. Child Abuse Negl. 2016; 59:100-10. (p. 110).

Apesar de poucos estudos verificarem as implicações do TEC na saúde e a participação da saúde pública na atenção às vítimas, esforços vêm sendo feitos para criar protocolos clínicos de atendimento às vítimas4040. Such E, Jaipaul R, Salway S. Modern slavery in the UK: how should the health sector be responding? J Public Health (Oxf). 2020; 42(1):216-20.

41. Such E, Walton E, Bonvoisin T, Stoklosa H. Modern slavery: a global public health concern. BMJ. 2019; 364:i838.
-4242. King P, Blaiklock A, Stringer C, Amaranathan J, McLean M. Slavery in New Zealand: what is the role of the health sector? NZMJ. 2017; 130(1463):63-9..

Do ponto de vista da vigilância em saúde, compreende-se que existe pouca articulação do SUS, especialmente dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), e descontinuidade nas ações conjuntas de fiscalização de ambientes de trabalho com MS. “[...] nós tínhamos na Coetrae com o Cerest que é a saúde do trabalhador, esse é um campo, eles ajudavam bastante” (Gabriela).

[...] com o Cerest nós fizemos uma aproximação, até umas visitas nas fazendas e tudo mais, mas não foi assim um trabalho contínuo. Chegamos a fazer visitas juntos, com vigilância também. Verificamos as condições de trabalho e levantamento do estado de saúde dos trabalhadores. (Antonio)

Essa desarticulação é um ponto crítico, porque a principal preocupação desses MS é adotar estratégias para mudar o cenário dos trabalhadores submetidos ao TEC. Isso requer a construção de redes e alianças robustas, porque a escravidão envolve elementos estruturais da formação sociopolítica brasileira. Para desmontar o processo escravagista se deve quebrar as rotas e cultura da escravidão enraizadas na sociedade. Além de reprimir as práticas, importa superar as vulnerabilidades das comunidades.

Para isso, os MS impulsionam redes para integrar o Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público e Secretaria de Direitos Humanos; e realizar fiscalizações conjuntas em ambientes de trabalho e participação em conselhos/comissões, como a Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae), o Conselho Estadual de Direitos Humanos de MT, entre outros.

Os MS reconhecem importantes experiências de redes específicas para prover formação, superar vulnerabilidades e romper os ciclos da escravidão, como o Movimento Ação Integrada (MAI) e Rede de Ação Integrada de Combate à Escravidão (Raice), que buscam diminuir a vulnerabilidade econômica de trabalhadores egressos e comunidades com histórico de TEC e gerar renda para fortalecer a economia e sustentabilidade, evitando que sejam fornecedoras de pessoas para o ciclo da escravidão e estabelecendo interações entre vários entes, MS e governo, incluindo as secretarias de saúde dos municípios. Entretanto, o setor saúde ainda não é um setor interligado a essas redes de denúncia, acolhimento, vigilância, atenção, educação e formulação de estratégias e políticas nos conselhos, de modo robusto e consolidado. Além das ações de prevenção e recuperação da saúde, o setor saúde também pode contribuir no empoderamento comunitário e educação em saúde nas escolas e nas campanhas de conscientização, como já ocorrem em relação ao tabagismo e câncer3535. Haase E. Human trafficking, public health and the law: a comprehensive analysis of intersections. J Public Health (Oxf). 2014; 22(2):121-9..

A visão dos movimentos, portanto, coincide com o que diversos autores vêm afirmando: a escravidão é um importante problema de saúde e deve estar na agenda da saúde pública; e na programação e formação de seus serviços e profissionais55. Leão LHC. Trabalho escravo contemporâneo como um problema de saúde pública. Cienc Saude Colet. 2016; 21(12):3927-36.,3434. Dando CJ, Brierley R, Saunders K, Mackenzie JM. Health inequalities and health equity challenges for victims of modern slavery. J Public Health (Oxf). 2019; 41(4):681-8.,3535. Haase E. Human trafficking, public health and the law: a comprehensive analysis of intersections. J Public Health (Oxf). 2014; 22(2):121-9.,4040. Such E, Jaipaul R, Salway S. Modern slavery in the UK: how should the health sector be responding? J Public Health (Oxf). 2020; 42(1):216-20.

41. Such E, Walton E, Bonvoisin T, Stoklosa H. Modern slavery: a global public health concern. BMJ. 2019; 364:i838.
-4242. King P, Blaiklock A, Stringer C, Amaranathan J, McLean M. Slavery in New Zealand: what is the role of the health sector? NZMJ. 2017; 130(1463):63-9..

Considerações finais

O artigo apresentou a compreensão de atores de MS engajados na erradicação da escravidão contemporânea a respeito das repercussões dessa situação na saúde física e mental dos trabalhadores, bem como as implicações para o sistema de saúde brasileiro.

Conhecer o ponto de vista daqueles que possuem constante contato com pessoas submetidas à escravidão, que os procuram para denúncia e auxílio, proporciona a produção de conhecimento original e muito relevante. Isso porque a experiência da acolhida do trabalhador em contexto de escravidão proporciona ao agente do MS a oportunidade de caracterização do fenômeno com uma preciosa fonte primária – a própria voz dos escravizados. Nessa relação de confiança mútua, os trabalhadores se expressam e narram suas histórias marcadas por abusos e violências. Não por acaso, os agentes de MS apresentam a escravidão como forma de destruição dos potenciais corporais e mentais humanos.

Com base nos discursos apresentados, destacam-se vários impactos na saúde mental e física das pessoas atingidas pela escravidão. Diversos adoecimentos e processos de morte ocorrem com essa prática que fere integralmente o ser humano. Da mesma forma, fica claro que o setor saúde tem um importante papel e lugar para prover atenção integral à saúde dessa categoria de trabalhadores.

A própria atuação dos MS contra a escravidão – pelo contato direto com trabalhadores – é, em si, uma ação de saúde essencial para garantia de uma vida com parâmetros de ética, atenção e cuidado, capazes de salvaguardar a integridade de trabalhadores e levá-los a experiências mais saudáveis de vida e trabalho no âmbito contínuo de emancipação e liberdade das relações de escravidão.

A visão dos MS nos leva a concluir que o TEC se configura como uma negação do direito à saúde, porque os elementos básicos para fortalecimento da saúde são muito precários nessa condição: alimentação, moradia, trabalho, transporte, lazer e acesso aos serviços de saúde. As articulações, intercâmbios, troca de experiências entre os MS e setor saúde, portanto, podem ser oportunas para um aprendizado mútuo, avanço e fortalecimento da garantia do direito à saúde diante da escravidão contemporânea.

Obviamente, existem muitas barreiras e desafios a serem enfrentados; entre eles, a ampliação do reconhecimento dos profissionais e serviços de saúde sobre a escravidão como objeto de sua responsabilidade; a melhoria das estruturas e condições de trabalho no setor saúde frente a suas demandas altas; incentivos a pesquisas para conhecer melhor os impactos da escravidão na saúde e estratégias de envolvimento do setor saúde nesse campo; e maior intercâmbio entre profissionais de saúde e agentes de MS. Esses elementos contribuem para superar as lacunas das experiências brasileiras de erradicação.

O país conta com instâncias organizativas, participativas e executivas de ações sistemáticas de combate à EC: as atividades das comissões nacional e estaduais de erradicação do trabalho escravo, para monitorar a execução dos planos nacionais e estaduais para a erradicação do TEC; o trabalho dos órgãos da justiça brasileira; as ações da Polícia Federal, dos auditores fiscais do trabalho da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia e do Movimento Ação Integrada; a Organização Internacional do Trabalho; as Organizações Não Governamentais, como a Repórter Brasil; entre outros, produzindo informação e denúncias no acompanhamento de casos e a publicação de estatísticas de ocorrências de escravidão; a criação de projetos de assistência social e jurídica às vítimas; a elaboração de estratégias de punição de empresas flagradas com TEC, entre tantas outras. Certamente, os saberes e práticas dos MS em articulação com o setor saúde podem contribuir para ampliar e fortalecer essas ações de enfrentamento da EC no cenário nacional.

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    Artigo oriundo da dissertação intitulada “Vigilância da escravidão contemporânea: saberes e práticas de movimentos sociais em Mato Grosso”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso com o apoio de bolsa de Mestrado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2020
  • Aceito
    05 Jun 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br