Resumos
Este estudo tem como objetivo analisar a perspectiva dos trabalhadores de Enfermaria de Saúde Mental em Hospital Geral (ESMHG) e dos CAPS acerca do cuidado compartilhado a usuários internados em ESMHG. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de quarta geração com abordagem hermenêutica cujos dados foram construídos a partir de grupos focais gravados em áudio e transformados em narrativas. São discutidos critérios de internação, função da regulação de vagas, funcionamento da rede e tempo da internação. Conclui-se que a heterogeneidade dos modos dos serviços acolherem pessoas em quadros agudos, por um lado, expressa a pluralidade potente das formas de produzir cuidado e, por outro, evidenciam contradições marcadas pelo distanciamento entre os serviços e pela ausência de critérios compartilhados. Assim, explicitam-se situações de fragmentação prática e a necessidade de fortalecimento dos espaços de interlocução em rede.
Saúde Mental; Saúde Coletiva; Hospital Geral
This study aims at analyzing the perspective of workers of Mental Health Nursing in General Hospital (ESMHG) and Psychosocial Care Center (CAPS) regarding shared care provided to users hospitalized in the ESMHG. It is a fourth-generation qualitative research with hermeneutic approach. The data were collected from focus groups, which were recorded and transformed into narratives. The following are discussed: hospitalization criteria, objective of vacancy regulation, networking, and hospitalization time. The heterogeneous services provided to people with acute status show, on the one hand, the powerful plurality of the ways of providing care. On the other hand, they show contradictions marked by the estrangement among services and by the lack of common criteria. Therefore, there are practical fragmentation situations and the need for strengthening network interlocution spaces.
Mental Health; Collective Health; General Hospital
El objetivo de este estudio es analizar la perspectiva de los trabajadores de Enfermería de Salud Mental en Hospital General (ESMHG) y de los CAPS sobre el cuidado compartido a usuarios internados en ESMHG. Se trata de una investigación cualitativa de cuarta generación con abordaje hermenéutico cuyos datos se construyeron a partir de grupos focales audiograbados y transformados en narrativas. Se discuten criterios de hospitalización, función de la regulación de plazas; funcionamiento de la red y tiempo de hospitalización. Se concluyó que la heterogeneidad de los modos en que los servicios acogen a las personas con cuadros agudos expresa, por un lado, la pluralidad potente de las formas de producir cuidado y, por el otro, ponen en evidencia contradicciones señaladas por el distanciamiento entre los servicios y por la ausencia de criterios compartidos. Siendo así, quedan explícitas situaciones de fragmentación práctica y la necesidad de fortalecimiento de los espacios de interlocución en red.
Salud Mental; Salud Colectiva; Hospital General
Introdução
Este estudo tem como objeto a articulação do cuidado de usuários da Saúde Mental na perspectiva de trabalhadores dos CAPS e das ESMHGs.
A escolha desse objeto se deu por compreendermos que a efetivação da Reforma Psiquiátrica depende, em grande medida, da efetividade dos processos de desinstitucionalização e que esses, por sua vez, estão diretamente atrelados a pelo menos dois movimentos: o da (1) produção de alternativas ao Hospital Psiquiátrico para o acompanhamento dos quadros agudos/crises em Saúde Mental e (2) consolidação de redes setoriais e intersetoriais para a atenção às pessoas em sofrimento psíquico e seus familiares11. Fundação Oswaldo Cruz. Fundação Gulbenkian Cloute. Inovações e desafios em desinstitucionalização e atenção comunitária no Brasil. Seminário Internacional de Saúde Mental. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. (Documento técnico)..
Até meados de 1990, a desinstitucionalização foi um dos principais investimentos da Reforma Psiquiátrica, com proposições de mudanças paradigmáticas na compreensão e nas ações em Saúde Mental, superando práticas centradas no manicômio e com apostas na expansão da rede de cuidados em Saúde Mental no Sistema Único de Saúde (SUS)22. Onocko-Campos RT, Furtado JP. A transposição das políticas de saúde mental no Brasil para a prática nos novos serviços. Rev Latinoam Psicopatol Fundam. 2005;8(5):109-22., atualmente denominada como Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
A RAPS caracteriza-se como uma rede articulada e integrada para o atendimento de pessoas com sofrimento psíquico que apresentem demandas relacionadas ao transtorno mental ou problemas decorrentes ou uso de substâncias psicoativas33. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de Dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial. Diário Oficial da União. 23 Dez 2011.. Seus componentes são organizados a partir de diferentes eixos e diferentes pontos de atenção, entre eles, os CAPS e as ESMHGs33. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de Dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial. Diário Oficial da União. 23 Dez 2011., campos diretamente investigados nesta pesquisa.
Esses serviços devem considerar as singularidades do sujeito na construção de projetos terapêuticos singulares (PTS), promovendo autonomia e reconhecendo o usuário como cidadão e agente ativo de seu tratamento44. Brasil. Ministério da Saúde. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde; 2004..
Quando a tecnologia de cuidado do CAPS não é suficiente para atender às necessidades do sujeito ou às possibilidades institucionais, é possível a parceria com os Hospitais Gerais (HG), equipamentos que viabilizam um cuidado intensivo aos quadros de Saúde Mental agudos nas enfermarias especializadas.
A atenção à Saúde Mental no HG inicia-se de forma mais significativa após a Segunda Guerra Mundial, na Europa, Estados Unidos e Canadá, no contexto de críticas ao modelo psiquiátrico hegemônico e no combate às práticas manicomiais produzidas nos grandes asilos e manicômios55. Bachrach L. General hospital psychiatry: overview from a sociological perspective. Am J Psychiatry. 1981; 138(7):879-87..
No Brasil, a implantação das primeiras Unidades Psiquiátricas em HG se dá em 1954 no Hospital das Clínicas da Universidade da Bahia e, no mesmo ano, no Hospital dos Comerciários, em São Paulo. Em 1957, é implantada Unidade Psiquiátrica no Hospital Pedro II, da Santa Casa de Misericórdia de Pernambuco. Esse processo contribuiu para que o Hospital Psiquiátrico reduzisse sua função de centro da atenção à Saúde Mental. Nota-se na década de 1990 uma crescente implantação dos Leitos de Saúde Mental em Hospital Geral (LSMHG) brasileiros, com aumento de 70% em HG em relação à diminuição de 30% dos leitos em Hospital Psiquiátrico66. Dalgalarrondo P, Botega N, Banzato C. Pacientes que se beneficiam de internação psiquiátrica em hospital geral. Rev Saude Publica. 2003; 37(5):629-34..
Com a implementação da Reforma Psiquiátrica brasileira, observou-se um aumento gradativo das ESMHGs como indicativos das políticas indutoras de que elas devem ser o ponto de atenção que assume a internação dos usuários que necessitam de internação hospitalar, na medida em que os leitos nos Hospitais Psiquiátricos seriam gradativamente desativados. Na prática, observamos alguns desafios no que se refere à maneira e velocidade da reorganização da rede de cuidados em direção à eficácia concreta desse processo, especialmente na relação entre as unidades hospitalares e outros serviços.
As ESMHGs são definidas como um ponto de atenção da RAPS, que contam com leitos para o suporte diário e noturno, com cuidados intensivos prestados por uma equipe multiprofissional voltados para o acolhimento dos usuários em crise – como parte de seu PTS – que pertencem a uma rede de cuidados e podem estar inseridos no HG77. Dias MK, Gonçalves R, Delgado P. Leitos de atenção integral à saúde mental em hospital geral: configuração atual e novos desafios na política de Saúde Mental. In: Vasconcelos E. Desafios política dareforma psiquiátrica Brasileira. São Paulo: Hucitec; 2010. p. 115-40..
Mesmo com os avanços legais, percebemos certa vagarosidade no que concerne à diminuição dos leitos em Hospitais Psiquiátricos e um aumento pouco expressivo das ESMHGs no contexto nacional.
A partir de 2002, observamos uma redução dos números de leitos de Hospitais Psiquiátricos de aproximadamente 50,5%, no entanto, ainda em 2014 temos 167 Hospitais Psiquiátricos em funcionamento e cerca de 25.988 leitos públicos em Hospital Psiquiátrico conforme publicado no Saúde Mental em Dados, edições 388. Brasil. Ministério da Saúde. Saúde Mental em Dados 3 - Ano I, nº 3. Brasília: Ministério da Saúde; 2006., 699. Brasil. Ministério da Saúde. Saúde Mental em Dados 6 - Ano IV, nº 6. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. e 121010. Brasil. Ministério da Saúde. Saúde Mental em Dados 12 - Ano 10, nº 12. Brasília: Ministério da Saúde; 2015: 48.. A tabela 1 mostra número de HGs com leitos de Saúde Mental.
Apesar dos dados disponíveis, nota-se ausência de dados atualizados sobre o número de internações em ESMHG, a porcentagem das internações em Saúde Mental encaminhadas ao HG ou ainda indicadores qualitativos sobre o processo do trabalho em rede, o que torna dificultosa uma análise mais acurada dos impactos quantitativos e qualitativos da implementação crescente das ESMHGs.
As cidades pequenas, com população inferior a cem mil habitantes, em sua maioria, não possuem porte populacional para implantação de serviços territoriais que contem com leitos de acolhimento integral, como os CAPS III. Nesses contextos, as ESMHGs caracterizam-se como um importante recurso ao suporte de usuários em crise.
Nesse sentido, do ponto de vista setorial, entendemos que os CAPS e as ESMHGs ocupam lugares estratégicos na atenção comunitária aos usuários com necessidades de atenção intensiva e, por isso, o objetivo deste estudo, que é analisar a articulação do cuidado realizado entre essas instituições, pode nos oferecer pistas importantes para a compreensão das potências e desafios inerentes a esse processo, bem como para a qualificação da atenção integral aos usuários da Saúde Mental.
Dias, Gonçalves e Delgado77. Dias MK, Gonçalves R, Delgado P. Leitos de atenção integral à saúde mental em hospital geral: configuração atual e novos desafios na política de Saúde Mental. In: Vasconcelos E. Desafios política dareforma psiquiátrica Brasileira. São Paulo: Hucitec; 2010. p. 115-40. destacam que os encaminhamentos à ESMHG devem ser regulados por uma rede de Saúde Mental consistente e seu uso deve ter como princípios orientadores o atendimento universal; a articulação da rede; a regulação do acesso; a atenção territorial e integral; equipe qualificada com trabalho interdisciplinar; e reinserção social. Compreendem que o acolhimento integral à crise deve ser feito preferencialmente no CAPS III e que os leitos em HG seriam indicados para sofrimentos psíquicos decorrentes de transtornos orgânicos ou com quadros clínicos associados, além de situações relacionadas a processos demenciais, estados confusionais agudos ou retaguarda para os CAPS II.
Ainda, apontam que a solicitação da internação deve ser vista como recurso de exceção, já que “nenhum sintoma isolado em saúde mental [...] justifica a internação [...]. O caso deve ser analisado e inserido num contexto global, avaliando vulnerabilidade e risco psíquico e social”77. Dias MK, Gonçalves R, Delgado P. Leitos de atenção integral à saúde mental em hospital geral: configuração atual e novos desafios na política de Saúde Mental. In: Vasconcelos E. Desafios política dareforma psiquiátrica Brasileira. São Paulo: Hucitec; 2010. p. 115-40. (p. 130). Ou seja, a internação, mesmo que na ESMHG, deve ser um recurso a ser lançado, quando de fato as tecnologias de cuidado no território se tornarem insuficientes.
Enquanto as produções teóricas avançam nas direções apontadas, em dezembro de 2017, é aprovada a portaria n. 3588 GM/MS que – na contramão das diretrizes da Reforma Psiquiátrica, das evidências científicas e do processo de ampliação das unidades comunitárias e em Hospitais Gerais – prevê o aumento do custeio aos Hospitais Psiquiátricos (ao passo que limita os recursos aos serviços territoriais de reabilitação psicossocial) e a suspenção do fechamento dos leitos nestes, incluindo-os novamente em RAPS (assim como as comunidades terapêuticas).
Muitas vezes também denominada de “enfermaria psiquiátrica”, “internação em enfermaria de psiquiatria no HG”, ou ainda “leito psiquiátrico em HG”, a análise da produção sobre esses equipamentos indica a escassez de trabalhos que abordem e discutam, de fato, a produção das Enfermarias de Saúde Mental em rede ou estratégias de compartilhamento do cuidado com serviços extra-hospitalares durante o período da internação, objeto central deste estudo.
Neste trabalho, fizemos a escolha do uso do conceito de ESMHG por considerarmos a existência de diferenças significativas entre os termos “enfermaria de psiquiatria” e “enfermaria de saúde mental”, não só em relação ao ponto de vista clínico-político, mas também em relação a parâmetros sanitários como comunicação em saúde, acesso, cobertura, modelo de gestão/atenção em rede e diretrizes de funcionamento no contexto da atenção hospitalar da RAPS.
Entre a produção levantada, encontramos estudos que abordam aspectos relacionados ao perfil socioeconômico e clínico dos usuários e sua associação com o sucesso ou fracasso de internação no HG66. Dalgalarrondo P, Botega N, Banzato C. Pacientes que se beneficiam de internação psiquiátrica em hospital geral. Rev Saude Publica. 2003; 37(5):629-34.; história do surgimento das enfermarias psiquiátricas e suas características terapêuticas1111. Larrobla A, Botega N. Hospitais gerais filantrópicos: novo espaço para a internação psiquiátrica. Rev Saude Publica. 2006; 40(6):1042-8.; e produções sobre práticas de núcleos profissionais específicos no HG, sendo essas majoritariamente centradas em abordagens médicas e farmacológicas66. Dalgalarrondo P, Botega N, Banzato C. Pacientes que se beneficiam de internação psiquiátrica em hospital geral. Rev Saude Publica. 2003; 37(5):629-34.,1111. Larrobla A, Botega N. Hospitais gerais filantrópicos: novo espaço para a internação psiquiátrica. Rev Saude Publica. 2006; 40(6):1042-8..
Em publicações mais recentes, localizamos o estudo de Dias, Gonçalves, Delgado77. Dias MK, Gonçalves R, Delgado P. Leitos de atenção integral à saúde mental em hospital geral: configuração atual e novos desafios na política de Saúde Mental. In: Vasconcelos E. Desafios política dareforma psiquiátrica Brasileira. São Paulo: Hucitec; 2010. p. 115-40., que inaugura no Brasil a discussão sobre a importância da composição de trabalho com a RAPS e desloca-se do conceito de enfermaria psiquiátrica para leitos de atenção integral em hospital geral (LAIHGs).
Metodologia
Para o desenvolvimento deste trabalho, realizamos uma pesquisa qualitativa de quarta geração e com caráter participativo apoiada em referenciais teóricos da atenção psicossocial em diálogo com referenciais epistemológicos da saúde coletiva brasileira.
O modelo da pesquisa adotado parte do pressuposto de que os grupos de interesse (steakeholders) servem para definir as informações que são importantes a partir de uma abordagem centrada nos atores envolvidos no processo da experiência em análise e na utilização dos resultados para uma potencial transformação da realidade, afirmando uma vertente política da produção de conhecimento1212. Guba E, Lincoln Y. Fourth generation evaluation. Newbury Park: Sage Publications; 1989..
Na pesquisa qualitativa, a produção de conhecimento tem relação estreita com a intersubjetividade entre pesquisadores e sujeitos da pesquisa. Compreende-se que as realidades sociais ocorrem a partir de contextos construídos socialmente por regras, costumes e culturas1313. Minayo MCS. A utilização do método qualitativo para a avaliação de programas de saúde. In: Onocko-Campos R, Furtado J, Passos E, Benevides R, organizadores. Pesquisa avaliativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 27-37.. Dentro dessa perspectiva, o campo selecionado para a pesquisa foi a cidade de Campinas, SP, por sua trajetória relevante, pioneira em relação às políticas de saúde mental do Brasil. Campinas conta com uma RAPS consistente da qual fazem parte os serviços diretamente envolvidos nesta pesquisa: seis CAPS III e um HG com ESMHG.
O convite a ambos os serviços foi feito aos trabalhadores da saúde, fossem eles de nível superior ou médio/técnico, entendendo que esses profissionais acabam em alguma medida desempenhando a função de referenciamento do cuidado, estabelecendo vínculos terapêuticos que contribuem para construções de caso em rede e PTS1414. Brasil. Ministério da Saúde. Clínica ampliada, equipe de referência e projeto terapêutico singular. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. (Série B. Textos Básicos de Saúde).. Foram incluídos os trabalhadores que demonstraram interesse em participar voluntariamente da pesquisa, desde que fossem trabalhadores do serviço há mais de seis meses. Entre as categorias profissionais participantes estavam enfermeiros, médicos, psicólogos, técnicos de enfermagem e terapeutas ocupacionais.
A coleta de dados contou com participação de representantes de todos dos seis CAPS III do município e da Enfermaria de Saúde Mental do Complexo Hospitalar Prefeito Edvaldo Orsi (CHPEO), a única enfermaria em HG que está inserida na regulação municipal de vagas, que conta com uma equipe multiprofissional e desenvolve ações partindo da lógica das equipes de referência.
A produção de dados se deu a partir da técnica de grupo focal (GF), um dispositivo de pesquisa que permite que pessoas que partilham traços comuns possam discutir questões propostas de forma aprofundada, considerando as experiências cotidianas em torno do objeto de pesquisa1515. Miranda L, Figeiredo M, Ferrer A, Onocko-Campos R. Dos grupos focais aos grupos focais narrativos: uma descoberta no caminho da pesquisa. In: Onocko-Campos R, Furtado J, Passos E, Benevides R. Pesquisa avaliativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 249-77..
Foi a partir do saber da experiência e da possibilidade de produção de conhecimento por meio do que se diz sobre o que se faz que buscamos ferramentas metodológicas que pudessem afirmar esse saber-fazer, propiciar sua reflexão e fortalecer o discurso dos sujeitos como ação política.
Na primeira etapa, foram realizados dois GFs, sendo um com trabalhadores da Enfermaria de Saúde Mental (ESM) (quatro pessoas) e outro com representantes de todos os CAPS III (dez pessoas), totalizando 14 participantes.
Os grupos foram gravados em áudio e transcritos, construindo-se uma narrativa grupal, validada por profissional ad doc nessa metodologia.
A narrativa ocorre pela via da análise, na qual se dissecam discursos, e da construção de um discurso grupal, no qual é possível legitimar outras formas de relação diferentes das historicamente vividas, de modo que possam ser revividas e ressignificadas1616. Barros N, Cecatti J, Turato E. Pesquisa qualitativa em saúde: múltiplos olhares. In: Onocko-Campos R. Metodologia de pesquisa em políticas de planejamento e gestão em Saúde Coletiva. Campinas: Unicamp; 2005. p. 261-71..
Na segunda etapa, as narrativas produzidas foram apresentadas aos sujeitos da pesquisa para sua validação. Esse processo é denominado “grupo hermenêutico”1717. Furtado J, Onocko-Campos R. Participação, produção de conhecimento e pesquisa avaliativa: a inserção de diferentes atores em uma investigação em saúde mental. Cad Saude Publica. 2008; 24(11):2671-80..
Para análise dos dados, foi utilizada a abordagem hermenêutica do material, que se define como uma postura filosófica de conhecimento que incorpora a historicidade no processo de pesquisa, visando à busca de respostas a perguntas não compreendidas no momento1818. Gadamer H. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petópolis: Vozes; 1997..
As questões norteadoras se referiam aos modos como tem sido efetuado o compartilhamento dos casos entre CAPS e enfermaria. Em uma leitura criteriosa das narrativas produzidas, foram selecionados núcleos argumentais temáticos que emergiram do material em consonância com os objetivos da pesquisa.
Todas as fases desta pesquisa seguiram as diretrizes adotadas pelo Comitê de Ética e Pesquisa com seres humanos, tendo sido aprovada por este comitê (n. CAAE: 39703514.0.0000.5404).
Resultados e discussão
Para a apresentação dos resultados, foram selecionados quatro núcleos temáticos: (1) Critérios de internação e perfil dos usuários internados; (2) Função da regulação de vagas; (3) Funcionamento da rede; e (4) Tempo de internação.
Critérios de internação e perfil dos usuários internados
A partir da fala dos trabalhadores de CAPS III, identificamos que existe um cuidado por parte da equipe de refletir com o coletivo de trabalhadores se o usuário de fato irá se beneficiar de uma internação externa. Isso denota mais do que uma validação do trabalho em equipe, pois indica também um cuidado ético e clínico de avaliar se essa conduta é a mais indicada e se de fato a tecnologia de cuidado oferecida pelo CAPS está insuficiente.
Com relação aos critérios de internações externas ao CAPS, observam-se pontos que aproximam a perspectiva dos trabalhadores dos CAPS e da Enfermaria de Saúde Mental, como: a promoção de abstinência de substâncias psicoativas (quando essa é indicada), a existência de risco de vida do usuário permanecer no território, fugas constantes do leito do CAPS, presença de comorbidades clínicas que demandem cuidados hospitalares e agitação psicomotora importante.
Alguns de nós pensamos ser importante considerar também a composição do leito-noite para o acolhimento do usuário – tomar cuidado com a predominância de gênero ou quadros psíquicos que podem dificultar a permanência no mesmo espaço (exemplo um paranoico e outro em uma crise maníaca com agressividade; ou uma mulher em meio a vários homens), a partir disto faz-se avaliação da necessidade de internação fora do CAPS. (GF trabalhadores CAPS III – GFCAPSIII)
No entanto, algumas características ilustram diferenças no manejo da crise de cada equipe e dissonâncias com os critérios da enfermaria.
A enfermaria recebe usuários com quadro de agitação mais grave, risco no território e fugas constantes do leito-noite, promoção de abstinência/síndrome de abstinência e comorbidades clínicas, em sua maioria. Temos a impressão de que os critérios para internação não são tão claros entre os serviços; muitas vezes realizamos internação não pela “crise” do usuário em si, mas por fragilidades dos CAPS ou das famílias [...] esta enfermaria é um local de acolhimento a crises que não puderam ser cuidadas no território e quando todos os outros recursos territoriais foram esgotados [...]. É consenso que estar em crise não deveria ser um critério em si, pois a crise também pode ser cuidada no CAPS e a internação deveria ser feita quando os recursos territoriais fossem esgotados, considerando-se cada sujeito. (GF trabalhadores Enfermaria Saúde Mental – GFESM)
Essa variação de perspectivas, por um lado, é expressão de uma natural coexistência de diferentes abordagens técnicas, teóricas e práticas entre diferentes equipes. Por outro lado, evidencia um dos aspectos que dificultam o trabalho em rede, especialmente quando essas variações se transmutam em critérios para a internação ou não de um usuário em vagas compartilhadas pela rede municipal. Essa variação de perspectivas, que emergem dos processos de atenção à crise e na definição de critérios de cuidado podem ser compreendidas como “dicotomias sociotécnicas”. Essas dicotomias que são concomitantemente técnicas e socioculturais se expressam nos diferentes usos de terminologias, na prática clínica, na conformação dos modelos de atenção e em suas estratégias de regulação de vagas1919. Dias MFSFA. Atenção à crise em saúde mental: centralização e descentralização das práticas. Cienc Saude Colet. 2020; 25(2):595-602..
O papel da regulação de vagas
Observamos que, tanto no discurso dos trabalhadores da ESMHG, quanto no dos CAPS, existe um consenso em relação à importância do papel do regulador para qualificar a avaliação dos casos e o acesso aos leitos.
Concordamos que o regulador tem um papel importante e avaliamos ser um facilitador deste processo de trabalho o fato dele já ter experiência como trabalhador da rede de Saúde Mental e estar interessado em discutir os casos. Isto também contribui para identificar qual o tipo de internação trará mais benefício para aquele usuário, dentre as opções ESMHG e internação psiquiátrica. Este é o regulador bacana, que trabalha junto. Mas não é sempre que temos este tipo de regulador. (GFCAPS III)
Quando o regulador se preocupa em conhecer o funcionamento dos serviços, em ter maiores informações sobre o caso, compreender quais recursos já foram previamente utilizados e qual a demanda para internação, este contribui para qualificar o acesso e intervir em pedidos de internação desnecessários.
A função do regulador é delicada, pois eles não estão vendo o usuário e contam com a avaliação dos serviços [...]. É importante fazer uma discussão com o serviço, ter o maior número de informações possíveis sobre os casos e conseguir fazer uma seleção a mais criteriosa. Muitas vezes estes trabalham como um mero operador de fotocópia, repassando as vagas sem avaliação ou ainda querem que nós façamos a função da regulação. (GFESMHG)
Dessa forma, na perspectiva dos trabalhadores, o papel do regulador é estratégico para a qualificação do acesso e da articulação do cuidado em rede, pois:
[...] estar institucionalmente nesse espaço de articulação, um espaço “entre” os serviços, possibilita ao regulador interferir nesses processos compartilhados e ser um agente ativo de reafirmação dos princípios da Reforma Psiquiátrica ou seu oposto.2020. Dias M, Ferigato S, Silva M. O papel da enfermaria de saúde mental. R.T. In: Emerich B, Onocko-Campos R. Saúde Loucura 10: Tessituras da clínica - itinerários da reforma psiquiátrica. São Paulo: Hucitec; 2019. p. 273-92. (p. 51)
O funcionamento da rede
Como esse eixo foi amplamente discutido pelos GFs, optamos por apresentar as discussões em quatro subeixos:
Compartilhamento do cuidado
De acordo com os participantes, é preciso estar atento ao modo como “construímos a internação” e compartilhamos o cuidado, desde a decisão por esse recurso até o processo de alta/transferência de cuidados para a rede setorial e intersetorial. Isso posto, observa-se a importância da construção de novas formas de compartilhar o cuidado e a fundamental importância da construção de PTS junto com os usuários durante a internação, inventando novas formas de cuidado orientadas pelas demandas do sujeito2121. Campos G. Subjetividade e administração de pessoal: considerações sobre modos de gerenciar trabalho em equipes de saúde. In: Merhy EE, Onocko-Campos R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 1997. e pelo trabalho em rede. O PTS é definido como um conjunto de propostas e condutas terapêuticas articuladas para um sujeito individual ou coletivo, resultado da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar e praticado de forma compartilhada entre profissionais, usuários e familiares1414. Brasil. Ministério da Saúde. Clínica ampliada, equipe de referência e projeto terapêutico singular. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. (Série B. Textos Básicos de Saúde)..
A noção de compartilhar distingue-se da de dividir. Compartilhar diz respeito à parceria de composição, de soma de olhares, avaliações e possibilidade de uso das tecnologias de cuidados de maneira corresponsável.
Os participantes destacam que o contato entre os serviços deveria ser feito o quanto antes para que seja feito o compartilhamento das informações sobre o caso; a história de vida; o tratamento, expectativas e objetivos da internação; estratégias que já foram utilizadas; dinâmica familiar/rede de suporte; e relação com território. Isso feito, é possível traçar norteadores do PTS desde o início da permanência na ESMHG e qualificar esse período de cuidados hospitalares, ativando a rede.
Percebemos que os CAPS são muito heterogêneos com relação ao compartilhamento do caso no período da internação. Nossa ideia para iniciar o compartilhamento do cuidado é fazer um contato com o CAPS de referência, caso o usuário já seja inserido em algum, logo no inicio da internação, para que consigamos ter mais informações sobre os objetivos da internação, processo de adoecimento, momento atual do adoecimento, rede de suporte, histórico de tratamento e outros para construção com o serviço de um projeto para o período da internação, assim como a tentativa de agendamento da primeira visita para discussão do caso. Tem CAPS que é presente, interna e vem junto, é próximo [...] com outros CAPS, não conseguimos sequer contato telefônico. (GFESMHG)
Alguns CAPS apontam a proximidade do território como facilitador do acompanhamento no período da internação, possibilitando avaliações conjuntas e periódicas dos casos e transferência de cuidados.
Os trabalhadores da ESMHG identificam que, para além da questão da proximidade territorial, existem “questões ideológicas” e de “modelo de cuidado” na forma de acompanhamento dos casos pelos CAPS e que o contato é facilitado quando o serviço tem uma postura de corresponsabilização pelo caso.
Contratualidade
Mesmo com marcadores teóricos e portarias descreverem a importância da participação dos familiares e usuários na decisão da internação, de acordo com trabalhadores da enfermaria, isso nem sempre acontece. Em alguns momentos, a notícia da internação é feita no momento desta, pela equipe da enfermaria.
Os trabalhadores dos CAPS acreditam que é importante que o usuário e sua rede tenham informações e participem da tomada de decisão sobre a internação, mas constatam que isso ainda é uma questão delicada em situações de crise, e como consequência, muitas vezes, o grau de protagonismo do usuário na decisão sobre a internação é menor.
Alguns esclarecimentos sobre a internação são importantes de serem feitos antes da chegada do usuário: falar como é a internação e as restrições institucionais (restrição de espaço, impossibilidade de fumar, etc.). [...] (GFESMHG)
Em alguns casos, os usuários não são avisados, para evitar evasão ou agressões. Normalmente conversamos sobre a internação com o usuário e achamos importante também envolver a família nesta discussão, para não ser uma decisão vertical e imposta. Em alguns momentos isto é tranquilo, mas nem sempre o usuário concorda e nestas situações contamos com parceria da família, vizinhos e situações de maior agitação e heteroagressividade, com a presença do Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] e da guarda. (GFCAPSIII)
Confirmando a fala Rossi e Cid2222. Rossi L, Cid M. Adolescências, saúde mental e crise: a história contada por familiares. Cad Bras Ter Ocup. 2019; 27(4):734-42. sobre o papel central do suporte da rede familiar para a superação das situações de crise, consideramos necessário sustentar a contratualidade do sujeito nas situações de crise e incluir sua rede socioafetiva nesse processo.
A Reforma Psiquiátrica trouxe, como princípios do cuidado, o resgate do poder de decisão dos sujeitos com transtorno mental e sua participação ativa na definição de seu tratamento [...]. As situações de crise, no entanto, persistem com grande potencial de gerarem uma certa autorização da suspensão desses direitos sob a justificativa da restrição de sua capacidade de julgamento. É fundamental, para o processo de construção das vidas e das subjetividades desses sujeitos nesses momentos de intensa fragilidade, que a aproximação entre profissionais e usuários seja precisamente no sentido de reconstruir suas possibilidades e autonomia2323. Zeferino MT, Rodrigues J, Assis JT. Crise e urgência em saúde mental: fundamentos da atenção à crise e urgência em saúde mental. 4a ed. Florianópolis: Universidade Federal de Santa; 2015. (Curso Crise e urgência em Saúde Mental. UNASUS).. (p. 51)
Nesse sentido, faz-se importante pensar que espaços e estratégias o CAPS e as ESMHGs dispõem para sustentar essa função no acolhimento às crises.
Uma possibilidade é a construção prévia com os usuários de como eles desejam ser cuidados em uma situação de crise para que estes consigam ter uma participação maior sobre o acolhimento à sua crise, como a estratégia de plano e cartão de crise2424. Freitas C. A participação e preparação prévia do usuário para situações de crise mental: a experiência holandesa do plano/cartão crise e desafios para a sua apropriação no contexto brasileiro. In: Vasconcelos E. Abordagens psicossociais: reforma psiquiátrica e saúde mental na ótica da cultura das lutas populares. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 142-70..
Transferência do cuidado e relação com a rede
Uma das potências da rede está na corresponsabilização e articulação do cuidado entre os serviços e as pessoas que os constroem. Nesse caso, a função de um serviço que compõe uma rede de cuidados não seria apenas encaminhar ou “dar alta”, mas compartilhar o cuidado de acordo com as necessidades do sujeito naquele momento e coconstruir, ao fim do período da internação, a retomada dos cuidados no CAPS e seus projetos de vida em seu território – validando o princípio da integralidade.
Quando o CAPS participa do processo da internação desde o início, participa das avaliações com a equipe da enfermaria, a articulação da transferência do cuidado é construída junto [...]. Quando os CAPS não participam do cuidado, a transferência do cuidado é quase um “braço de ferro”, não conseguimos contar com o serviço, é bem difícil fazer este contato, ainda mais para dizer que está saindo. [...]. (GFESMHG)
Faz-se necessário refletir sobre o processo de alta ou de transferência de cuidado, considerando as perspectivas dos trabalhadores dos CAPS e da ESMHG. A partir das narrativas de ambos os trabalhadores, identificamos um descompasso na relação entre alguns serviços e até na compreensão da função que a Enfermaria de Saúde Mental e que os CAPS exercem na rede.
Enunciou-se nas narrativas que, na perspectiva dos trabalhadores da enfermaria, em alguns casos, é possível que a transferência de cuidado seja realizada para uma modalidade de cuidados intensivos, como o leito-noite no CAPS. No entanto, esses trabalhadores encontram resistência por parte de algumas equipes de CAPS, que acreditam que o usuário deva ter alta hospitalar somente em condições de retornar para casa.
Acreditamos que em algumas situações, quando o usuário apresentou melhora, mas ainda precisa de continência, o leito-noite do CAPS seria um bom local para retorno ao território e continuidade do tratamento. Afinal, tem uma série de recursos e equipe multidisciplinar para este cuidado e aos poucos o usuário pode retomar sua vida e retornar para casa. Mas a transferência de cuidado para o leito-noite não é assim compreendida todos os CAPS. (GFESMHG)
De acordo com as diretrizes da Lei nº 1482525. Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 148, de 31 de Janeiro de 2012. Define as normas de funcionamento e habilitação do Serviço Hospitalar de Referência para atenção a saúde mental. Diário Oficial da União. 31 Jan 2012., o projeto técnico do Serviço Hospitalar de Referência para usuários da Saúde Mental prevê internações de curta duração, de acordo com as singularidades do caso, até atingir sua estabilização clínica. Além disso, a portaria também indica a uso de protocolos técnicos para o manejo terapêutico dos casos e construção de fluxos entre os pontos de atenção da RAPS, da Rede de Atenção às Urgências e o sistema de regulação.
Sobre estrutura institucional
A narrativa dos trabalhadores dos CAPS e da ESMHG apontam para um conjunto de fragilidades institucionais que produzem impactos no processo de trabalho; entre elas, a rotatividade e a redução do número de profissionais comparados com um aumento da demanda de cuidados em saúde mental. Essas situações se desdobram em um prejuízo na sustentação da função profissional de referência e diminuição das ofertas terapêuticas.
Além disso, também é consenso que ter trabalhadores que compreendem o funcionamento da rede e dos CAPS é uma potencialidade na construção de PTSs compartilhados e para o exercício da função de referência. Foi consenso também entre as equipes de CAPS e da ESMHG a importância da equipe interdisciplinar, superando o predomínio do saber-poder centrado no médico.
Os trabalhadores da enfermaria enfatizam que muitas das diretrizes institucionais do cuidado hospitalar são descoladas ou distantes dos princípios da Reforma Psiquiátrica, mantendo-se a verticalização e a hierarquização do processo de trabalho, bem como o modelo biomédico como hegemônico nos processos de cuidado.
Outra questão citada pelos trabalhadores como um componente que dificulta o fortalecimento da articulação com a rede de serviços são situações de fragilidade dos vínculos empregatícios por contratações via organizações sociais que, portanto, não têm estabilidade contratual, especialmente para os profissionais não médicos.
Sobre o tempo da internação
As longas internações em Hospitais Psiquiátricos, acompanhadas do distanciamento do sujeito de seu território e de suas redes relacionais, foram norteadoras da assistência manicomial e sua superação é um dos aspectos proposto pela RAPS. Parece-nos, a partir das narrativas, que essa construção de que as internações mais prologadas são mais efetivas ainda são presentes em alguns serviços.
Observamos que, entre os trabalhadores de CAPS, existem discordâncias com relação ao tempo adequado da internação, bem como parâmetros para sua adequação, ora com argumentações pautadas no tempo legalmente instituído, ora no tempo subjetivo de cada usuário. Os critérios de alta do leito também variam em diferentes CAPS. Esse fator da temporalidade interfere diretamente no processo de trabalho e nas condições de articulação em rede, pois nem sempre a noção e critérios da temporalidade da crise é convergente entre profissionais da rede hospitalar e da rede comunitária2626. Silva MC. A articulação do cuidado na perspectiva dos trabalhadores de CAPS e de enfermaria de saúde mental no hospital geral [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2016..
Poderíamos ainda incluir as diferentes percepções da experiência do tempo e da duração da internação na expectativa dos usuários, que muitas vezes consideram longa a duração da internação na enfermaria, enquanto os trabalhadores a consideram curta.
Os trabalhadores da enfermaria afirmam que o tempo da internação tende a ser mais curto e efetivo quando o caso é compartilhado com a rede extra-hospitalar:
A questão do tempo de internação tem muito a ver com o quanto nós conseguimos compartilhar o caso, para que a internação não seja desvinculada do tratamento no CAPS, tanto a internação como a alta. Quando conseguimos construir este dialogo é melhor. (GFCAPSIII)
O período da internação varia de acordo com o caso. Percebemos que o atraso no início do compartilhamento do caso prejudica a construção de um projeto para internação. (GFESMHG)
Ao analisar a narrativa dos trabalhadores, compreendemos que diferentes práticas e conceitos relacionados à crise, à alta e à noção de rede estão implícitos na expectativa não consensual da internação longa e/ou na de uma internação curta, mas que, do ponto de vista ideal, vislumbram-se formas de acolhimento integral que considerem o tempo singular necessário para cada sujeito.
Considerações finais
Concluímos que, se, por um lado, a heterogeneidade dos modos dos CAPS e ESMHG acolherem pessoas em quadros agudos ou em crise e compartilhar os casos ilustra uma riqueza nas possibilidades de produzir cuidado; por outro, evidenciam contradições que o distanciamento entre os serviços produz, explicitando situações de fragmentação prática com o modelo de cuidado proposto pela Reforma Psiquiátrica e a ausência de um fio condutor que alinhe o cuidado entre os serviços em rede.
Identificamos que há uma ausência de critérios compartilhados para o diagnóstico de uma situação de crise e para a efetivação de um pedido de internação. A ausência de critérios em si não é necessariamente avaliada como uma questão problemática, mas aponta para a importância da construção de consensos e estratégias comuns para a qualificação do fluxo da rede.
Em termos de gestão da clínica, essa imprecisão de critérios pode ser um analisador importante dos diferentes modelos de atenção presentes nas diferentes instituições, mas também um sinalizador da necessidade de se fortalecerem os espaços de construção conjunta e pactuações de consensos em rede entre os serviços envolvidos (como CAPS, ESMHG, Samu e Central de regulação) e de participação social, incluindo os usuários e familiares na construção desses critérios. Observando as legislações que embasam a implementação e habilitação dos leitos e instituem normas de funcionamento, não encontramos uma definição precisa sobre critérios específicos que justificariam uma internação de Saúde Mental no HG.
Outro dado relevante que aparece nas narrativas é a importância de a equipe ter clareza sobre os critérios que a levaram solicitar a internação, a fim de evitar que o pedido atenda a uma demanda da equipe, e não uma necessidade do usuário. Esse exercício de reflexão requer uma disponibilidade da equipe em estar em constante autoavaliação.
Para dar contorno a essa problemática, mais do que a criação de protocolos, consideramos ser imprescindível a criação de espaços permanentes de interlocução entre os gestores, trabalhadores, familiares e usuários para abertura de um tempo-espaço no qual seja possível realizar compartilhamento das potências e fragilidades do processo de trabalho e de cuidado; promover trocas de experiências e esclarecimento de questões/entraves, respeitando as singularidades de cada serviço; possibilitar a construção de alinhamentos no encaminhamento, articulação e compartilhamento dos PTS; investir na interlocução direta entre equipes; traçar fluxos que facilitem a compreensão dos pontos de atenção; e criar pactos de gestão de forma colaborativa.
Compreende-se nas narrativas que momentos como passagens de plantão qualificadas, reuniões de equipe, discussões de caso/PTS e a supervisão clínico-institucional são recursos importantes para auxiliar a equipe a refletir, avaliar e transformar o processo de trabalho/cuidado. Além disso, contribuem para a articulação do cuidado ações de valorização profissional e de formação que visem oferecer suporte às equipes para reinvenção da clínica e acolhimento à crise no território.
Nossa pesquisa aponta que um dos alinhamentos necessários ao compartilhamento corresponsável de casos é um encaminhamento cuidadoso à ESMHG. Nesse sentido, apontamos para a importância de investimentos em estratégias que aprimorem as condições e técnicas comunicacionais entre trabalhadores e usuários, bem como entre serviços.
As ESMHGs se confirmam como um dispositivo estratégico, especialmente nos municípios de pequeno porte que não contam com a presença de CAPS III no acolhimento à crise, realidade da maior parte dos municípios brasileiros, que podem produzir desassistência ou ainda dependem de vagas em Hospitais Psiquiátricos.
As potências e os limites encontrados no campo analisado nos deram subsídios para afirmar que a construção de um cuidado articulado e compartilhado efetivamente entre CAPS-HGs e rede inclui a um só tempo maiores investimentos na gestão, clínica, formação dos trabalhadores e participação social de usuários e familiares, promovendo a efetiva articulação de cuidado em Saúde Mental.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Out 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
20 Mar 2020 - Aceito
29 Jun 2020