Resumos
Trata-se de um ensaio que analisa como a filosofia de Paulo Freire, apropriada pelos autores da Educação Popular em Saúde (EPS), possibilita uma ressignificação do cuidado. Em diálogo com a literatura sobre o tema, partimos de uma reflexão sobre noções que fundamentam a ontologia freiriana, como a valorização dos saberes e culturas populares, o diálogo, o respeito e a amorosidade, para, em seguida, buscar nas produções sobre EPS a compreensão de cuidado, seus pressupostos e caminhos para enfrentar a hegemonia da biomedicina, concepção que situa o cuidado como um conjunto de procedimentos técnicos centrado na doença. A análise aponta o cuidado como um ato político que, por diferentes vias, deve estar comprometido com a construção do mundo, o que implica a construção de uma vida autêntica capaz de superar a opressão.
Cuidado; Educação popular; Paulo Freire; Ontologia; Práticas em saúde
Se trata de un ensayo que analiza cómo la filosofía de Paulo Freire, apropiada por los autores de la Educación Popular en Salud (EPS), posibilita una resignificación del cuidado. En diálogo con la literatura sobre el tema, partimos de una reflexión sobre nociones que fundamentan la ontología freiriana, como la valoración de los saberes y culturas populares, el diálogo, el respeto y el amor para, enseguida, buscar en las producciones sobre EPS la comprensión de cuidado, sus presuposiciones y caminos para enfrentar la hegemonía de la biomedicina, concepción que sitúa el cuidado como un conjunto de procedimientos técnicos centrado en la enfermedad. El análisis señala el cuidado como un acto político que, por diferentes vías, debe estar comprometido con la construcción del mundo, lo que implica en la construcción de una vida auténtica capaz de superar la opresión. Para la pedagogía freiriana adjetivamos la palabra-acción cuidado.
Cuidado; Educación popular; Paulo Freire; Ontología; Prácticas en salud
Introdução
O cuidado é uma dimensão fundamental da vida humana que, segundo Ayres11. Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(3):16-29., deve estar comprometida com a construção de um projeto de felicidade e de humanização “que passa pela radicalidade democrática do Bem comum” (p. 28) e envolve os planos individual e o coletivo, a própria existência e a do mundo. A construção de um projeto de felicidade implica investimento ontológico, em conceber o ser por meio do exercício hermenêutico sobre a vida.
A concepção ontológica do cuidado demonstra um esforço de situá-lo para além de sua institucionalização no campo da Saúde e de repensá-lo para além de um modo de controle técnico-instrumental, centrado na objetividade de procedimentos terapêuticos que desconsideram a dimensão subjetiva do processo saúde-doença. Trata-se de uma perspectiva que carrega uma grande responsabilidade, principalmente nos dias de hoje em que o cuidado se apresenta raro, uma dimensão aprisionada nas amarras da hegemonia biomédica que normaliza o humano e o adéqua à ordem social vigente, regulando a vida de acordo com os interesses do capital, e não segundo um projeto de felicidade e de bem comum.
O cuidado, segundo a concepção de Ayres, tem enfrentado desafios no contexto dos avanços neoliberais que, com o domínio da biomedicina, está posto em uma realidade da mercantilização da saúde e da medicalização da vida. Como um procedimento que visa a prevenção, o diagnóstico, o tratamento de doenças e a reabilitação de pessoas, foi integrado ao processo de intervenção verticalizada e protocolada do médico especialista que, geralmente, acaba desprezando o elemento subjetivo do adoecimento “na busca do conhecimento técnico mais produtivo e eficiente para o controle das enfermidades”22. Contatore OA, Malfitano APS, Barros NF. Os cuidados em saúde: ontologia, hermenêutica e teleologia. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):553-63. (p. 554).
Esse modelo vigente também se sobrepõe a outros sistemas médicos, como a medicina chinesa ou os diversos saberes populares que organizam o cuidado, desconsiderando que “a arte de curar é um aspecto essencial de toda a medicina”33. Capra F. O ponto de mutação – a ciência, a sociedade e a cultura emergente. 27a ed. São Paulo: Cultrix; 2006. (p. 118). Ademais, os profissionais de saúde concentram-se em “técnicas medicamentosas, cirúrgicas, eletrônicas e de manipulação corporal que atuam no processo de adoecimento e de cura em nível biológico”44. Vasconcelos EM. Redefinindo as práticas de saúde a partir de experiências de Educação Popular nos serviços de saúde. In: Vasconcelos EM, Prado EV, organizadores. A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde. 2a ed São Paulo: Hucitec; 2017. p. 19-33. (p. 19), sem se preocuparem em estabelecer um diálogo e o reconhecimento dos saberes populares, fundamentais para o cuidado, especialmente em lugares com falta de recursos. Prevalece uma concepção tecnicista e individualista que busca a normalização da vida e desvincula o cuidado do agir político e da existência humana, esvaziando-o de sua dimensão ontológica. Isso acontece porque a medicina moderna ressignifica o cuidado como prática médica e o dispõe como uma estratégia biopolítica de governo da vida e regulação das populações55. Foucault M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2000..
Nesse processo de revisão crítica sobre as noções de cuidado, atores diversos da Saúde Coletiva têm tratado o tema em diálogo com diferentes abordagens teóricas. Contatore et al.22. Contatore OA, Malfitano APS, Barros NF. Os cuidados em saúde: ontologia, hermenêutica e teleologia. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):553-63. sistematizaram algumas dessas abordagens, em que, além da pragmática, que caracteriza essa medicina hegemônica, nos apresentam: a clínica ampliada e compartilhada, que amplia o objeto de saber e de intervenção clínica incluindo o sujeito e seu contexto; a gerencial, que se propõe à abertura para a participação de vários profissionais no compartilhamento de responsabilidades; a filosófica, que busca as bases teóricas e epistemológicas do cuidado; a emancipadora, relacionada à racionalidade de algumas práticas integrativas e complementares de saúde; a política, que promove a cultura do cuidar de si, presente na obtenção e na manutenção da saúde de um indivíduo consciente de suas necessidades; a sociológica, que enfatiza o papel do Estado na promoção do bem-estar; e a cultural, que reflete sobre as aproximações que possibilitam questionar a prática social do enfermeiro na gerência do cuidado.
Apesar de o estudo em cena apresentar um amplo e importante panorama das abordagens sobre o cuidado em saúde, passam despercebidas as possíveis colaborações da Educação Popular (EP) e da pedagogia freiriana no processo de construção de modos de cuidado. Sabemos que essa questão é central para a Educação Popular em Saúde (EPS) e tem sido trabalhada por diversos autores/atores na busca por outros caminhos e formas de produzir o cuidado nos territórios, nos serviços e no cotidiano do trabalho em saúde.
Ainda que a noção de cuidado não esteja diretamente explicitada nas obras de Freire, a sua compreensão ético-crítico-política da Educação é repleta de elementos que nos fazem remetê-la a uma concepção cuidadora. Inspirados na leitura que Walter Kohan66. Kohan W. Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte: Vestígio; 2019. faz de Paulo Freire, nos aventuramos neste ensaio a realizar um exercício crítico-analítico que busca refletir sobre como o pensamento freiriano possibilita afirmar outra concepção de cuidado e, mais do que isso, como possibilita afirmar o cuidado como dimensão de sua pedagogia.
Nos interessa aqui explorar, primeiramente, algumas noções freirianas dirigidas à Educação, visando ampliar a compreensão da dimensão ontológica e humanista que permite ressignificar o cuidado no campo da Saúde, como a vocação para o “ser mais”, a valorização dos saberes populares, o respeito, o diálogo e a amorosidade. Em seguida, sistematizar como a EPS compreende o cuidado e identificar os pressupostos freirianos que sustentam tal concepção e apontam caminhos para além da hegemonia biomédica. Por fim, adjetivamos o cuidado segundo a pedagogia freiriana e refletimos sobre sua relação com a construção de uma vida autêntica, dispondo um diálogo em torno das possibilidades de um projeto de felicidade e bem comum.
A dimensão cuidadora no legado freiriano
“Nada continua como está.
Tudo está sempre mudando
O mundo é uma bola de ideias
Se transformando, nos transformando.”
Júnio Santos77. UPAC. Cantigas e músicas populares. São Paulo: APSP; 2013.
Kohan66. Kohan W. Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte: Vestígio; 2019. apresenta Paulo Freire como um filósofo comprometido com a vida, que pensa a existência, não somente as ideias, estabelecendo uma relação entre Filosofia, Política, Educação e vida. Reconhecendo as diversas influências teóricas que atravessam e sustentam a sua obra, escolhe um caminho diferente daquele que costuma “conectá-lo com outros autores e tradições de pensamento da história das ideias” (p. 63), partindo de duas tradições para pensar a relação do educador com a filosofia.
A primeira tradição vem da corrente marxista, do “Marx tardio, com sua crítica à filosofia especulativa”66. Kohan W. Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte: Vestígio; 2019. (p. 63), de onde Freire extrai a noção de práxis por meio da Tese 11 sobre Feuerbach de Marx e Engels (2002) apud Kohan66. Kohan W. Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte: Vestígio; 2019. (p. 63): “até aqui, os filósofos têm interpretado o mundo. A questão é transformá-lo”. Freire se inscreve nessa tradição que entende a filosofia como práxis, como ação e reflexão, que pensa a Educação como ação política comprometida com a libertação dos oprimidos. A segunda tradição, “mais polêmica e menos explorada” (p. 66), como considera o autor, tem base nas ideias de Foucault e se relaciona à primeira na medida em que Foucault recria a crítica de Marx à filosofia ao propor uma “filosofia da história da filosofia” (p. ٦٦). Se Marx pretendia irromper uma certa tradição de se fazer filosofia, Foucault “ajuda a perceber o que já existia, mas não estava sendo percebido” (p. 67). Com base na segunda tradição, Kohan vê em Freire um filósofo que participa da construção de uma estética da existência, que toma a filosofia como sabedoria da vida.
Paulo Freire buscava manter a coerência entre o que se diz e o que se faz, diminuindo ao máximo a distância entre esses atos, uma vez que “não é o discurso que valida a prática, é a prática que dá vida ao discurso”88. Freire P. Pedagogia da tolerância. 3a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2014. (p. 41). Isso revela sua preocupação em estabelecer uma relação entre realidade e vida, e de educar com seu próprio exemplo. É nesse sentido que “Paulo Freire se inscreve nessa tradição de uma vida filosoficamente educadora, política, ética e heroica que Foucault começa com Sócrates e os cínicos e continua em nossa era com os ascetas cristãos”66. Kohan W. Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte: Vestígio; 2019. (p. 73).
Assumindo a vida como obra de arte, a filosofia de Freire aflora como uma pedagogia crítico-problematizadora que resulta de seus próprios esforços na compreensão da natureza humana e das relações que os seres humanos instauram entre si na/com a realidade mediatizadora, ou seja, no/com o mundo em que vivemos. Pensando a existência humana, ele afirma que o homem é um ser inconcluso, inacabado e incompleto99. Freire P. Pedagogia do oprimido. 62a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016.,1010. Freire P. Conscientização. São Paulo: Cortez; 2016., que se diferencia dos demais animais por conseguir se separar de suas atividades no mundo e até de si mesmo, objetivá-las e objetivar-se como objeto cognoscível e criar/transformar a realidade e a si. Portanto, é consciente de sua inconclusão, inacabamento e incompletude, que o leva ao movimento permanente de busca do “ser mais”:
Nós, na realidade, não somos: nós estamos nos tornando, vindo a ser. Para que nós, seres humanos, sejamos o que somos, nós necessitamos nos tornar, vir a ser aquilo que somos. Nós não precisamos ser – se nós simplesmente somos, nós paramos de ser. Nós somos precisamente porque nós estamos nos tornando. Este processo de ser e não ser, o processo de tornar-se, de vir a ser, explica a nossa presença na História e no mundo.1111. Freire P, Freire AMA, Oliveira WF. Pedagogia da solidariedade. 2a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016. (p. 25)
Como seres da práxis que permanentemente atuam engajados na criação e na recriação da própria natureza, os seres humanos criam a história e se fazem seres histórico-sociais. Nesse sentido, a existência é histórica99. Freire P. Pedagogia do oprimido. 62a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016. e pode instituir-se de duas formas, pela desumanização ou pela humanização. A primeira trata da expressão concreta da alienação e da dominação, resultado de uma ordem injusta que gera a violência e busca a manutenção do status quo, do destino como algo dado. Já a segunda é compreendida como um caminho para a transformação social, a libertação das opressões, que permitiria o exercício da vocação humana do “ser mais”.
A Educação, como um fenômeno exclusivamente humano, que tem suas raízes na consciência da incompletude e do devenir na realidade, pode nutrir qualquer um desses dois processos, a depender do modo como compreende os sujeitos do contexto educativo e a função social dessa prática. O horizonte da humanização requer um fazer pedagógico problematizador que dê ênfase à mudança, com a radical transformação do mundo opressor, se fazendo, portanto, revolucionário99. Freire P. Pedagogia do oprimido. 62a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016..
O ser humano, como sujeito histórico e cognoscente, encontra-se em um permanente movimento de busca, fazendo e refazendo o seu saber constantemente1212. Freire P. Extensão ou comunicação? 17a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2015.. Isso nega a possibilidade de absolutização da ignorância, bem como a do próprio saber, afinal “ninguém sabe tudo; ninguém ignora tudo. Todos sabemos algo; todos ignoramos algo”1313. Freire P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 26a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016. (p. 121). Há uma defesa da igualdade como princípio político, uma igualdade que não se opõe à diferença e sim à desigualdade – a diferença é, em Freire, condição política da igualdade, isto é, “se não fôssemos diferentes, não haveria necessidade da igualdade”66. Kohan W. Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte: Vestígio; 2019. (p. 86).
No entanto, diante da intrínseca relação entre saber-poder e do desigual exercício do poder na nossa sociedade, há uma valorização de determinados saberes – denominados usualmente de “conhecimentos” – e desvalorização/negação de diversos outros – normalmente denominados de “senso comum” ou folclore.
Freire1414. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 54a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016. critica a valoração da existência de saberes melhores ou piores. Em contraponto, compreende que os saberes são diferentes, com naturezas distintas. Dado que “o pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos, mediatizados ambos pela realidade”99. Freire P. Pedagogia do oprimido. 62a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016. (p. 89), a Educação ocorre com atores em intercomunicação e construção compartilhada de saberes, é uma ação dialógica e não impositiva. Superar uma prática bancária desumanizadora exige um movimento pela restauração da intersubjetividade, guiada pela instauração de uma relação horizontal entre tais atores, com base no respeito e na humildade.
Respeito, tolerância e humildade aparecem como valores no processo de consideração do outro como igual na dignidade, apesar das diferenças. Virtudes que nos ensinam a conviver com o diferente, de modo que se possa, inclusive, aprender com a diferença88. Freire P. Pedagogia da tolerância. 3a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2014..
Isso implica retomar a noção de sujeito na obra freiriana, que reconhece o caráter histórico e a historicidade do ser humano. Como não há possibilidade de ação-reflexão fora da relação homem-realidade, devem-se reconhecer os diversos contextos que perpassam cada indivíduo em suas experiências de vida1515. Freire P. Educação e mudança. 37a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016.. Nessa perspectiva, para além de trazer princípios sobre o respeito ao saber do outro, Freire99. Freire P. Pedagogia do oprimido. 62a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016. também reserva orientações metodológicas que subsidiam a instauração de práticas pedagógicas respeitosas/tolerantes. Assume propor as próprias situações dos sujeitos como problema e adotar as experiências e saberes dos educandos como base da prática educativa.
O respeito aos saberes dos sujeitos na acepção freiriana não significa que não serão aportados novos conhecimentos pelos sujeitos do processo educativo. Pelo contrário, assume-se uma perspectiva dialética entre respeitar tais conhecimentos e desafiá-los. Pois o processo pedagógico em uma perspectiva crítica exige construir novos conhecimentos que se chocam com a realidade opressora e desumanizante e com nosso modo de enxergar o mundo e as relações sociais. Por isso, buscar o conhecimento existente é uma das etapas do ciclo gnosiológico, afinal “não posso anunciar se não conheço”1010. Freire P. Conscientização. São Paulo: Cortez; 2016. (p. 58). Parte-se dos “saberes de experiência feitos” pelos sujeitos para que se possa problematizar o mundo, analisá-lo criticamente e superar, coletivamente, a realidade opressora. Esse processo só é possível por meio do diálogo entre iguais.
Descrevendo sua compreensão sobre o que é o diálogo, Freire aponta o amor como um de seus elementos constitutivos. Qualifica-o como o “amor ao mundo e aos homens”, o que aponta para uma noção de amor que inclui comprometimento dos sujeitos com os contextos em que vivem e com as interações sociais que são estabelecidas em prol das causas dos oprimidos para a sua libertação99. Freire P. Pedagogia do oprimido. 62a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016.. Enxerga, portanto, o amor como uma força vital, uma expressão da coragem e do compromisso com os outros66. Kohan W. Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte: Vestígio; 2019..
Nesse sentido, o amor pode ser compreendido como um ato de liberdade, que é gerador de outros atos de libertação99. Freire P. Pedagogia do oprimido. 62a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016., para o qual se faz necessária a união de sujeitos responsáveis com o compromisso da transformação social1010. Freire P. Conscientização. São Paulo: Cortez; 2016.. Um amor “de quem se afirma no direito ou no dever de ter o direito de lutar, de denunciar, de anunciar”1313. Freire P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 26a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016. (p. 124). Afinal, a construção de um mundo com mais justiça social deve passar pela defesa da “capacidade do ser humano de avaliar, de comparar, de escolher, de decidir e, finalmente, de intervir no mundo”1616. Freire P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. 3a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016. (p. 67). Tais pretensões afastam uma noção essencialmente subjetivista e sentimentalista para se constituir como um princípio revolucionário1717. Gadotti M. Prefácio - consciência e história. In: Freire P. Conscientização. São Paulo: Cortez; 2016. p. 13-30., ao ponto de assumi-lo como a própria noção de diálogo: o amor é, “ao mesmo tempo, o fundamento do diálogo e o próprio diálogo”1010. Freire P. Conscientização. São Paulo: Cortez; 2016. (p. 135).
Quem educa deve amar, ensinar e aprender, de modo que sua atuação possa favorecer a construção da democracia, em que os processos educativos acolham e multipliquem certos gostos democráticos como o de ouvir os outros e respeitá-los, o da tolerância à diferença, o de dar espaço à divergência, o do respeito à coisa pública e o da pergunta, da crítica e do debate1313. Freire P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 26a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016..
O amor diz respeito ao compromisso com o mundo e com os homens, o que abarca um horizonte ético-político que deve guiar as práticas humanas, exigindo rupturas com os processos que desencadeiam a desumanização. Nesse sentido, a Educação, como ação humana, é fundamental por participar da construção da própria existência, podendo potencializar o “ser mais” e superar situações-limite com diálogo, amorosidade e construção de saberes. A Educação desperta o processo de humanização do ser humano inacabado, sua busca pelo “ser mais”.
Freire constitui uma epistemologia e uma ontologia que se preocupam com a “forma de ser, conhecer e habitar o mundo com base na pergunta, na curiosidade, na incompletude”66. Kohan W. Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte: Vestígio; 2019. (p. 76). É isso que o move a fazer de sua vida uma obra de arte compromissada com o outro, o mundo e a vida – o que inevitavelmente passa pelo cuidado. Na analogia de Kohan, do mesmo modo que Sócrates convoca os cidadãos “a cuidarem dos que não cuidam”, Freire “busca cuidar dos oprimidos de que poucos parecem cuidar, com sua fé religiosa cristã e marxista na forma de pensar as relações sociais e políticas” (p. 76). Seu questionamento político vai num sentido mais radical do que o de Sócrates, ao apontar para as bases da ordem social “que sustentam a própria condição de opressão que enfrenta” (p. 76).
Não é à toa que Paulo Freire incomoda os governos autoritários e opressores que atuam a favor do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado. Seu pensamento abala a ordem hegemônica, alimentando inúmeras experiências de EP que se importam com a emancipação dos oprimidos. A força de sua filosofia, de seu amor ao saber, vai além da Educação e atravessa outros campos, ajudando a pensar diversas práticas no processo de construção do humano e do mundo. Por isso, não é difícil extrair de suas ideias uma noção de cuidado – indissociável do processo de humanização que precisa de diálogo, escuta, humildade, amorosidade e reconhecimento dos saberes e culturas populares – como a que se formou no campo da EPS.
A EPS e a ressignificação do cuidado
“Cuidar do outro é cuidar de mim,
Cuidar de mim é cuidar do mundo.”
Johnson Soares, Júnio Santos e Ray Lima77. UPAC. Cantigas e músicas populares. São Paulo: APSP; 2013.
A EP no campo da Saúde parte da apreensão e da recriação do ideário freiriano, levando a diversas experiências que problematizam a realidade, reconhecem e dialogam com os saberes populares e buscam reorientar o trabalho no que se refere, especialmente, às práticas de gestão, controle social, educação e cuidado1818. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do SUS - PNEPS-SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.. Busca articular os processos educativos que acontecem principalmente nos territórios, desde as primeiras experiências de serviços comunitários de saúde até a atualidade, que envolve a implementação da Estratégia Saúde da Família (ESF).
Sua importância está registrada em diversos estudos que sistematizam ricas e densas experiências, inspiradas nas ideias de Freire, que conduziram a luta pelo direito à saúde ao longo da construção do SUS. É reconhecido seu papel crucial na mobilização da luta social a favor do direito à saúde no contexto da reforma sanitária brasileira, fortalecendo-se nesse movimento, bem como caminhando na articulação dos movimentos sociais, na construção de políticas públicas para o enfrentamento das desigualdades e iniquidades sociais, na ampliação de processos e práticas educativas críticas e dialógicas, no fortalecimento de ações participativas e democráticas.
O campo, historicamente, se contrapõe ao modelo biomédico que impregna as práticas de saúde, não só no âmbito da clínica, mas da prevenção, da educação e da promoção da saúde. Em vez de ações individuais de adequação comportamental, a EPS prima pelo coletivo e pela valorização de lugares que possam contribuir “para o fortalecimento de uma cultura organizativa e cidadã na comunidade”44. Vasconcelos EM. Redefinindo as práticas de saúde a partir de experiências de Educação Popular nos serviços de saúde. In: Vasconcelos EM, Prado EV, organizadores. A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde. 2a ed São Paulo: Hucitec; 2017. p. 19-33. (p. 27), escapando do individualismo que gera um desânimo e dificulta a participação popular nas decisões sobre a organização da vida. Comprometida com as classes populares, busca superar a educação sanitária que opera nos moldes de uma educação bancária, autoritária e verticalizada1919. Stotz EN. Enfoques sobre educação popular e saúde. In: Brasil. Ministério da Saúde. Caderno de educação popular e saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. p. 46-57..
Nessa perspectiva, a ação educativa é um espaço riquíssimo para o cuidado, principalmente na Atenção Primária à Saúde (APS), “pela grande proximidade e integração com a dinâmica de vida e luta da população”44. Vasconcelos EM. Redefinindo as práticas de saúde a partir de experiências de Educação Popular nos serviços de saúde. In: Vasconcelos EM, Prado EV, organizadores. A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde. 2a ed São Paulo: Hucitec; 2017. p. 19-33. (p. 33). A EPS estende o cuidado aos espaços e momentos geradores de sofrimento nas pessoas que enfrentam a precarização da vida e os modos de opressão, e que demandam a reorganização do viver.
A EPS consolida, com base nas experiências dos sujeitos, uma concepção de cuidado referenciada em diferentes premissas da filosofia de Paulo Freire. A primeira que ressaltamos diz respeito à importância de o cuidado partir da realidade, do reconhecimento do outro e de seu contexto de vida. Encontramos em Vasconcelos2020. Vasconcelos EM. Educação popular e a atenção à saúde da família. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. a definição de que “cuidar significa ocupar-se, aqui e agora, dos problemas passíveis de ser enfrentados, pondo-se à disposição de acordo com as condições exigidas por eles e não nas condições oferecidas tradicionalmente pelo serviço” (p. 153). O cuidado ancora-se na importância de uma práxis pautada na problematização da realidade, onde o “ocupar-se” deve levar em conta as situações concretas de vida.
Prado, Falleiro e Mano2121. Prado EV, Falleiro LM, Mano MA. Cuidado, promoção de saúde e educação popular – porque um não pode viver sem os outros. Rev APS. 2011; 14(4):464-71., em sentido próximo, afirmam que “cuidar pressupõe entender as vivências e as verdades de cada indivíduo e compreender que estas dependem das visões de mundo, das histórias e da cultura” (p. 466). A valorização das culturas populares pode alterar a produção do cuidado, pois o modo de compreensão da vida e sobre como se vive pode potencializar ou dificultar propostas em andamento2020. Vasconcelos EM. Educação popular e a atenção à saúde da família. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008.. Busca-se, assim, resgatar o respeito às diversas culturas e tradições, uma vez que se sentir valorizado e respeitado é fundamental para o fortalecimento do agir político compromissado com a construção da existência.
A importância da cultura para o cuidado também se ampara nas premissas da filosofia freiriana. A cultura é valorizada de diferentes formas pela EPS: uma delas é pela potência da “arte como cuidado e princípio pedagógico”2222. Dantas VLA. Educação Popular e os diálogos possíveis com a formação no campo da saúde considerando a perspectiva popular. In: Cruz PJSC, organizador. Educação popular em saúde: desafios atuais. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 228-51. (p. 249). A arte faz parte do nosso modo de criar o/no mundo; desse modo, esse fazer educativo crítico se envolve em processos de “delicadeza sensível, favorecendo a troca e as emoções ‘boas’ – quer dizer, que fazem bem à saúde – como a alegria, a solidariedade, e o sentimento de pertencer a um todo maior”2323. Wong-Un JA. Aprendendo – e ajudando – a olhar o mar: das muitas saúdes, culturas e artes na educação popular. In: Brasil. Ministério da Saúde. II Caderno de Educação Popular em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2014. p. 179-90. (p. 186).
Outra forma de valorização da cultura passa pela religiosidade, por ser uma experiência central no modo como as classes populares organizam suas vidas, possibilitando a construção de concepções e práticas de cuidado2424. Valla VV. “Conversão à pobreza”, um conceito fundamental para compreender a formação de muitos educadores populares. In: Vasconcelos EM, Prado EV, organizadores. A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2017. p. 90-5.: “a religião é o campo de elaboração subjetiva em que a maioria da população latino-americana constrói de forma simbólica o sentido de sua vida e busca motivação para a superação da crise existencial colocada pela doença”2525. Vasconcelos EM. Apresentação. In: Vasconcelos EM, organizador. A espiritualidade no trabalho em saúde. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 9-12. (p. 9). Na religião, fundamentam-se valores e verdades que orientam a vida das classes populares e constituem modos de existências e subjetividades.
As tradições e os modos de cuidado em terreiros de candomblé, abordados por Vanda Machado2626. Machado V. Pele da cor da noite. 2a ed. Salvador: EDUFBA; 2017., por exemplo, revelam como vivemos em um mundo constituído por diferentes cosmovisões que operam de forma conjunta. Ao destacar a vivência no terreiro como uma experiência dotada de sentidos que vão além do individualismo, propondo a integração dos indivíduos com a comunidade e deles com seus ancestrais, a autora ressalta a necessidade de refutarmos a ideia de que o saber se dá por transferência de um polo dotado de conhecimentos para outro vazio de conhecimento. Compreender que todos ocupam as condições de aprendente e ensinante, inclusive nas relações de cuidado, nos remete a outra premissa de Freire: aquela que nos ensina que educar e aprender são ações em constante movimento.
A EPS valoriza outros sistemas de pensamento que não estão diretamente vinculados a uma perspectiva individualista, resgatando o verdadeiro e profundo significado que a comunidade opera para as classes populares. Nesse sentido, outras epistemologias são importantes e precisam ser reconhecidas, como as baseadas nas cosmovisões indígenas e afro-brasileiras, reelaborando modos de pensar e agir no mundo2626. Machado V. Pele da cor da noite. 2a ed. Salvador: EDUFBA; 2017.. Na relação com os saberes populares, reconhece e valoriza os saberes dos pajés, raizeiros, benzedeiras, parteiras, pais e mães de santo, camponeses, quilombolas etc. Busca, assim, descolonizar o cuidado da cultura biomédica – processo que passa também pela aproximação que estabelece com as práticas integrativas e complementares de saúde, práticas que apresentam diferentes racionalidades, cosmovisões e terapêuticas como possibilidades de cuidado.
Outro pressuposto da EPS, enraizado no pensamento freiriano, refere-se à democracia, abarcando a participação popular e a construção compartilhada de um projeto de mundo2020. Vasconcelos EM. Educação popular e a atenção à saúde da família. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008.. Isso imprime no cuidado uma concepção ampliada que envolve a construção de redes de apoio social que operam um processo recíproco, mútuo, gerando efeitos positivos tanto para quem recebe como também para quem oferta o apoio2727. Lacerda A, Valla VV, Guimarães MBL, Lima CM. As redes participativas da sociedade civil no enfrentamento dos problemas de saúde-doença. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Gestão em redes: práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: IMS-UERJ, CEPESC, ABRASCO; 2006. p. 445-57.. O caráter democrático do cuidado manifesta-se ainda no reforço aos princípios de universalidade e equidade que norteiam as ações dirigidas aos povos e grupos mais vulneráveis e oprimidos socialmente, recuperando a preocupação freiriana com a igualdade e o respeito às diferenças.
Com isso, a EP possibilita uma nova sensibilidade nas práticas de saúde, supera “a assepsia técnica” e propicia alternativas e soluções, individuais e coletivas, para os problemas de saúde e a vida cotidiana2828. Assis, M. Uma nova sensibilidade nas práticas de saúde. Interface (Botucatu) 2001; 5(8):139-40.. A doença não é o foco da atenção, mas as mazelas, o que aflige as pessoas, precariza suas condições de vida e desestabiliza o modo de organização social e comunitária. Nesse sentido, “não se pode cuidar da saúde das pessoas sem enfrentar, de forma altiva, criativa e crítica, os determinantes e condicionantes sociais da saúde”2929. Cruz PJSC. Apresentação. In: Cruz PJSC, organizador. Educação Popular em Saúde: desafios atuais. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 19-32. (p. 26).
O cuidado também envolve o amor e o diálogo, aproximando-se do ato educativo freiriano. Na experiência de trabalho com mulheres camponesas, Pulga3030. Pulga VL. A construção de sentidos à integralidade da saúde a partir da práxis de mulheres trabalhadoras rurais com enfoque popular e de gênero. In: Woortmann EF, Hereida B, Menashe R, organizadores. Margarida Alves – Coletânea sobre estudos rurais e gênero. Brasília: MDA, NEAD; 2006. p. 177-94. observa que “no cuidar cada pessoa como ser único há uma relação de amor e afeto muito forte” (p. 191). O amor compreende a dimensão ontológica do humano, envolve sua incompletude e implica o compromisso com o mundo e com o processo de humanização, com o “ser mais”. E, como um ato de amor, o cuidado deve se opor a todas as formas de desumanização, opressão e dominação que degradam a vida.
Nas entrelinhas que tecem o campo teórico da EPS, o cuidado é delineado em uma perspectiva ampla, crítica e amorosa, como uma práxis comprometida com um projeto de sociedade livre, democrática, justa e igualitária. Com base na dimensão ontológica e humanista, há um reforço da indissociabilidade entre o cuidar, o agir político e a existência humana. Um cuidado verdadeiro, autêntico, só existe com envolvimento, com sentimento. Forma-se, assim, uma compreensão do cuidado em uma perspectiva integral do ser humano1818. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do SUS - PNEPS-SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2013..
Essa compreensão se constitui por meio de diferentes matrizes e influências teóricas, seguindo a forma espiral do pensamento freiriano, mas tem uma teleologia que envolve a construção da existência humana e que não passa por atos prescritivos, mas dialógicos. O cuidado atua na mediação e na construção do mundo, por isso deve estar a serviço da busca do “ser mais”, o que pode acontecer por diferentes caminhos: pela valorização e integração das culturas, pelo reconhecimento da religiosidade e da espiritualidade como dimensões da vida comunitária, pela ampliação da participação política e democrática nos territórios e serviços de saúde, pela experimentação de práticas integrativas e complementares de cuidado, pela constituição de redes de apoio social e pelo desenvolvimento de ações educativas.
Em que pesem as diferenças entre os atos e as dimensões do cuidado, é possível afirmar que a EPS, como prática dialógica, coloca em curso um movimento que problematiza o domínio da biomedicina e da medicalização da vida, estendendo o cuidado à organização de uma vida livre da opressão e à humanização do ser humano. Em suas diversas faces, podemos inferir que o cuidado envolve a disposição para ocupar-se aqui e agora consigo, com o outro e com o mundo, em um devir para conduzir a humanidade à felicidade e ao bem comum.
Por isso, a EPS preocupa-se em criar inéditos viáveis na produção do cuidado que possam, por meio de atos-limite, transformar a realidade com vistas à construção coletiva de um mundo diferente que vá superando as situações-limite. Para tanto, exige-se do ato educativo-cuidador ensejar a percepção crítica da realidade com uma perspectiva dialético-práxica de reflexão-ação-reflexão e conjugar as dimensões ontológica e política que se relacionam com a capacidade de se conceber, coletivamente, esperanças, utopias e sonhos3131. Paro CA, Ventura M, Silva NEK. Paulo Freire e o inédito viável: esperança, utopia e transformação na saúde. Trab Educ Saude. 2020; 18(1):e0022757..
Considerações finais: a pedagogia do cuidado e a construção de uma vida autêntica
“Tu me ensinas que eu te ensino
O caminho no caminho
Com tuas pernas, minhas pernas andam mais.”
Johnson Soares77. UPAC. Cantigas e músicas populares. São Paulo: APSP; 2013.
Foram diversas as designações dadas à pedagogia freiriana, seja pelo próprio educador, seja pelos seus intérpretes e recriadores. Os títulos de diversos livros demonstram a riqueza de palavras-ação com que a EP tem sido pensada e praticada desde a contribuição de Freire: trata-se de uma pedagogia “como prática de liberdade”, “do oprimido”, “da pergunta”, “da esperança”, “da autonomia”, “da indignação”, “dos sonhos possíveis”, “do compromisso”, “da tolerância”, “da solidariedade”, “da conscientização”, “do inédito viável”, “da dialógica”, “da libertação”, entre outros.
A leitura feita por Kohan, que vê em Freire um pensador que toma sua vida como obra de arte, reforçou a possibilidade de refletir sobre o cuidado como uma dimensão subjacente a sua filosofia e que se apresenta no campo da EPS com um ato que leva em consideração a integralidade do ser e a totalidade da vida. Embora, como falamos na introdução, Paulo Freire não tenha abordado o cuidado, é possível afirmar, com base em seu pensamento e sua vida, que não há transformação do mundo que não passe pelo cuidado, isto é, por um ato comprometido com a produção da saúde e a defesa da vida. Em outras palavras, a filosofia freiriana remete também a uma pedagogia do cuidado.
Isso é possível porque a dimensão ontológica do pensamento freiriano sustenta a inseparabilidade entre as práticas sociais e o compromisso com a construção do mundo. Sua filosofia permite afirmar que o ato educativo é um ato de cuidado, ao passo que o ato de cuidado é educativo. Do mesmo modo que Freire afirma que “não há educação sem amor”1515. Freire P. Educação e mudança. 37a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016. (p. 36), é possível afirmar que “não há cuidado sem amor”, não é possível ensinar, nem cuidar, “sem a capacidade forjada, inventada, bem cuidada de amar”1313. Freire P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 26a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016. (p. 28). E, como a Educação, o cuidado deve ser uma prática democrática pautada na solidariedade e na responsabilidade dos sujeitos como “seres do compromisso” para o processo de humanização da sociedade1515. Freire P. Educação e mudança. 37a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016..
É por isso que as ideias de Freire continuam alimentando esperanças e a busca por formas de superação das situações-limite que, muitas vezes, imobilizam a luta política e a transformação do mundo, particularmente no atual contexto de retrocessos neoliberais, de crescimento do conservadorismo e do autoritarismo. Mais do que nunca, educar e cuidar são ações que devem estar comprometidas com a leitura crítica da realidade rumo à construção democrática de uma sociedade livre da opressão e da desigualdade social.
A atualidade de Paulo Freire remete à preocupação ética com a construção de um futuro com vistas à libertação e à aposta na capacidade de os seres humanos promoverem mudanças e construírem outros mundos; afinal “mudar é difícil, mas é possível”88. Freire P. Pedagogia da tolerância. 3a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2014. (p. 181). O futuro, em sua dinamicidade, é um desafio à criatividade humana, uma aventura criadora/transformadora do mundo3232. Freire P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 15a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.. O “ser mais” abarca a potência do ser humano de enfrentar a consciência ingênua que aceita o mundo como algo dado e inexorável, e de consolidar um futuro possível. Por sermos históricos, somos inacabados e podemos projetar o mundo.
Suas ideias defendem uma ética da existência humana que implica presença, em “ser no mundo” comprometido com a abertura para o futuro, o que deve envolver a construção de uma vida autêntica e, acreditamos, alinhada à felicidade e ao bem comum. Nessa perspectiva, é preciso enfrentar os processos de alienação e dominação do ser humano que o tornam estranho a si mesmo, impessoal e infeliz, e constituir modos de cuidado capazes de valorizar os saberes populares e fortalecer o vínculo entre os indivíduos e a comunidade, promovendo uma vida autêntica para lidar com o desamparo, as contradições e as dificuldades inerentes à existência humana.
Na contramão dessa ordem social produtora de sofrimentos, tristezas, doenças e mortes evitáveis, a EPS, por meio de Paulo Freire, ensina que o cuidado precisa problematizar a realidade que nos adoece e entristece, compondo formas coletivas e alegres de ação. Seja nas relações terapêuticas realizadas nos consultórios, seja nas ações educativas nos territórios, nos espaços comunitários, escolares e familiares, o ato de cuidar tem o compromisso com a construção de um mundo onde os seres humanos possam se reconstruir no diálogo, na problematização da vida e no processo de partilha dos saberes e respeito às experiências.
Nos tempos sombrios em que vivemos, faz parte desse processo a superação do individualismo que nos separa e a retomada de um trabalho, dialógico e amoroso, com as classes populares; além da coragem e do compromisso por parte de todos de reinventarem a si e ao mundo, e da compreensão de que não há neutralidade, de que educar e cuidar são atos políticos.
Referências
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- 26Machado V. Pele da cor da noite. 2a ed. Salvador: EDUFBA; 2017.
- 27Lacerda A, Valla VV, Guimarães MBL, Lima CM. As redes participativas da sociedade civil no enfrentamento dos problemas de saúde-doença. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Gestão em redes: práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: IMS-UERJ, CEPESC, ABRASCO; 2006. p. 445-57.
- 28Assis, M. Uma nova sensibilidade nas práticas de saúde. Interface (Botucatu) 2001; 5(8):139-40.
- 29Cruz PJSC. Apresentação. In: Cruz PJSC, organizador. Educação Popular em Saúde: desafios atuais. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 19-32.
- 30Pulga VL. A construção de sentidos à integralidade da saúde a partir da práxis de mulheres trabalhadoras rurais com enfoque popular e de gênero. In: Woortmann EF, Hereida B, Menashe R, organizadores. Margarida Alves – Coletânea sobre estudos rurais e gênero. Brasília: MDA, NEAD; 2006. p. 177-94.
- 31Paro CA, Ventura M, Silva NEK. Paulo Freire e o inédito viável: esperança, utopia e transformação na saúde. Trab Educ Saude. 2020; 18(1):e0022757.
- 32Freire P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 15a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.
- *César Augusto Paro e Luanda de Oliveira Lima são bolsistas de doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Cassiana Rodrigues Alves da Silva é bolsista de doutorado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
30 Nov 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
10 Abr 2020 - Aceito
20 Ago 2020