Yoga: um objeto de fronteira?

El yoga: ¿un objeto de frontera?

Pamela Siegel Carolina Leopardi Gonçalves Barretto Bastos Sobre os autores

Resumos

O yoga partiu do Oriente e foi apropriado pelo Ocidente, transita entre a tradição e a pesquisa, intersecta a Ciência e a Religião, oscilando entre o profano e o sagrado. Vem deixando para trás a invisibilidade social para se tornar uma prática comum. Pode ser compreendido como escola filosófica e, ao mesmo tempo, uma prática mente-corpo reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) delineando, assim, zonas de contato e fronteiras simbólicas com vários campos do saber. Na contemporaneidade vem sendo discutido nas áreas das Ciências Sociais e Humanas. Este artigo ensaístico traz reflexões sobre como o yoga vem sendo abordado pelos campos da Saúde, Religião, Filosofia, Arte, Educação, Antropologia e Sociologia, e discute o desenvolvimento do yoga como objeto de fronteiras.

Yoga; Sistema filosófico do yoga; Fronteiras simbólicas; Práticas integrativas e complementares


El yoga partió de Oriente y fue apropiado por Occidente, transita entre la tradición y la investigación, realiza una intersección entre la ciencia y la religión, oscilando entre lo profano y lo sagrado. Ha dejado para atrás la invisibilidad social para convertirse en una práctica común. Puede comprenderse como escuela filosófica y, al mismo tiempo, una práctica mente-cuerpo reconocida por la Organización Mundial de la Salud, delineando de esa forma zonas de contacto y fronteras simbólicas con varios campos del saber. En la contemporaneidad se ha discutido en las áreas de las ciencias sociales y humanas. Este artículo ensayístico brinda reflexiones sobre cómo el yoga ha sido abordado por los campos de la salud, religión, filosofía, arte, educación, antropología y sociología y discute el desarrollo del yoga como objeto de fronteras.

Yoga; Sistema filosófico del yoga; Fronteras simbólicas; Prácticas integradoras y complementarias


Introdução

Embora o yoga tenha surgido na Índia como uma tradição transmitida de mestre a discípulo, cujos segredos eram revelados mediante a iniciação, difundidos por meio de uma cadeia geracional de instrutores e alunos que mantinha a tradição viva, na contemporaneidade essa prática vem assumindo expressões diversas. A linhagem iniciática do yoga ainda sobrevive em alguns redutos na Índia e no seio dos Novos Movimentos Religiosos (NMR) no Ocidente e no Oriente, contudo a tendência é a profissionalização da prática com o objetivo de garantir um mercado para seus profissionais11. Siegel P, Barros NF. Yoga: tradição e prática integrativa de saúde. Fortaleza: EdUECE; 2016..

Em poucas décadas o yoga saiu da invisibilidade social e ganhou protagonismo global, formando zonas de fronteiras22. Santos BSS. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Rev Crit Cienc Sociais. 2002; 63:237-80. com múltiplas culturas. No início do século 20 surgiram as primeiras correntes unidirecionais que transportaram o conhecimento da Índia para o Ocidente. No entanto, atualmente, o yoga flui por redes multidirecionais e reversas, expondo novas formas de hipermobilidade, a ponto de yogis norte-americanos exportarem o yoga globalmente por meio de proselitismo, marketing e turismo de seva (serviço impessoal)33. Lucia A. Saving Yogis. Spiritual Nationalism and the Proselytizing Missions of Global Yoga. In: Brown BE, Yeoh BSA, editors. Asian migrants and religious experience: from missionary journeys to labor mobility. Amsterdam: Amsterdam University Press; 2018. p. 35-70..

Enquanto isso, do outro lado do oceano, assim como a medicina tradicional indiana tornou-se um poderoso símbolo da identidade nacionalista indiana e da resistência à ocidentalização44. Alter JS. Asian medicine and globalization. Philadelphia: University of Pennsylvania Press; 2005., o yoga vem assumindo, na Índia, o papel de projeção geopolítica protagonizada pelo primeiro-ministro. No seu discurso nas Nações Unidas em 2015, Narendra Modi declarou o dia 21 de junho como o Dia Internacional do Yoga55. Staff WSJ. Narendra Modi’s Speech at Unesco in Full. The Wall Street Journal [Internet]. 10 Abr 2015 [citado 3 Jun 2019]; India Real Time. Disponível em: https://blogs.wsj.com/indiarealtime/2015/04/10/narendra-modis-speech-at-unesco-in-full/
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. Durante a comemoração do Dia Internacional do Yoga de 201966. Portal G1. Dia Internacional do Yoga é celebrado pelo mundo. Portal Globo [Internet]. 21 Jun 2019 [citado 3 Jun 2019]; Mundo. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/06/21/dia-internacional-do-yoga-e-celebrado-pelo-mundo-veja-fotos.ghtml
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/...
, Modi enfatizou que a prática age como uma força unificadora em um mundo onde as ideologias do ódio dividem irmãos, e que essa união é, também, com toda a fauna e a flora do planeta.

Consideramos que o yoga, que até pouco tempo atrás estava mais presente nas áreas da Ciência da Religião e da Saúde, ganha uma nova abordagem com o levantamento que Lamont e Molnar77. Lamont M, Molnár V. The study of boundaries in the social sciences. Annu Rev Sociol. 2002; 28:167-95.fazem sobre fronteiras nas Ciências Sociais e, em especial, no tocante às fronteiras simbólicas, que emergem dos processos relacionais associados a quatro áreas: a) identidade social e coletiva; b) desigualdades entre classes sociais, etnias e gêneros; c) profissões, ciência e conhecimento e d) comunidades, identidades nacionais e fronteiras espaciais.

Nesse sentido, o objetivo deste artigo é discutir em ensaio argumentativo o yoga como objeto de fronteira entre as áreas do conhecimento, cotejando as perspectivas supracitadas77. Lamont M, Molnár V. The study of boundaries in the social sciences. Annu Rev Sociol. 2002; 28:167-95. e alguns dados atualizados sobre a produção do conhecimento em yoga. O artigo não se propõe a fazer um levantamento exaustivo sobre o tema no banco de teses da Capes, senão um recorte de algumas áreas do conhecimento. Ora, se os objetos de fronteira são interfaces que exercem um papel-chave no desenvolvimento e na manutenção da coerência, que perpassa os mundos sociais e as fronteiras simbólicas, por sua vez permitem diversas conformações (marca social, configurações de gênero, contestação do significado das barreiras sociais). O funcionamento do yoga na Saúde, na Religião, na Filosofia, nas próprias Ciências Sociais, Educacionais e nas Artes, bem como a relação entre tais áreas, conforme desenvolvemos neste artigo, mostra um horizonte fértil de produção de significados, distinções e modos específicos de compartilhamento, restrições e transformação.

O Yoga na Saúde

A área da Saúde encampou o yoga no Brasil com a inserção dessa prática na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares88. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Brasília: Ministério da Saúde; 2006., pelas portarias n. 719/201199. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 719, de 7 de Abril de 2011. Institui o Programa Academia da Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 8 Abr 2011., n. 145/20171010. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 145, de 11 de Janeiro de 2017. Altera procedimentos na tabela de procedimentos, medicamentos, órteses, próteses e materiais especiais do SUS para atendimento na atenção básica. Diário Oficial da União. 13 Jan 2017. e n. 849/20171111. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 849, de 27 de Março de 2017. Inclui a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União. 28 Mar 2017.. Uma das implicações da inclusão do yoga no SUS é a redução da desigualdade no acesso, já que antes essa prática estava restrita a determinadas classes sociais. Além da sua oferta no SUS, a disseminação do yoga vai se dando, também, em diferentes classes sociais e etnias, ultrapassando fronteiras sociais e simbólicas por meio de pequenas iniciativas da sociedade civil, como é o caso do Yoga Marginal. Em uma abordagem de psicossociologia de comunidades, Tainá Antonio Fernandes1212. Fernandes TA. Yoga marginal e os processos psicossociais nas periferias [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2019. está apresentando o yoga na Baixada Fluminense como um possível caminho para a transformação da fronteira que intersecta o social e a saúde. Essa prática faz os indivíduos praticantes se diferenciarem dos outros por meio de um sentido de pertença compartilhado no seu subgrupo, um dos elementos formadores da identidade social.

No cenário internacional, uma busca no Pubmed/Medline no dia 17 de março de 2020, sem filtros, evidenciou a existência de 5.376 artigos sobre yoga. Em comparação, uma busca usando o filtro de datas de publicação incluindo artigos desde 1 de janeiro de 1950 até 31 de dezembro de 1990 (50 anos) resultou em 389 artigos sobre o tema. Diante da constatação de que atualmente a base de dados oferece mais de cinco mil artigos, um aumento de 1.382%, podemos afirmar que o yoga entrou na sua fase 2.0, com estudos bem mais diversificados do que aqueles encontrados na base de dados há 20 anos. Salienta-se a influência que a tecnologia vem imprimindo na oferta da prática do yoga. Sites de rankings na área da Saúde, tendências e moda listam os aplicativos de yoga mais bem cotados do momentoccBest Yoga Apps of 2019. Disponível em: https://www.healthline.com/health/fitness-exercise/top-yoga-iphone-android-apps..

Não é de se estranhar que exista um aumento da busca pelo yoga na sociedade contemporânea, cunhada por Han1313. Han BC. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Editora Vozes; 2015. como a sociedade do cansaço, em que há a excessiva valorização de indivíduos hiperativos, que se arrastam no cotidiano produtivo realizando múltiplas tarefas, ficando sujeitos aos transtornos mentais e despojados da capacidade contemplativa. Contudo, há quem critique os excessos da aura mercadológica que envolve o yoga atualmente. É o caso de Alex Auder1414. Rosman K. Yoga’s instagram provocateur. The New York Times [Internet]. 31 Maio 2019 [citado 3 Jun 2019]; Style. Disponível em: https://www.nytimes.com/2019/05/31/style/yoga-instagram-alex-auder.html
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, provocadora norte-americana do Instagram, que satiriza a indústria do bem-estar, seu marketing implacável e a “commoditificação do yoga”. Em uma live, aparece enrolada em um tapete Ikea dizendo que “ser uma curadora patrocinada por quinhentas marcas representa muita pressão. Mercedes me leva rápida e eficientemente para as minhas cerimônias de ayahuasca, enquanto a Coca-Cola me deixa hidratada”. [Tradução livre].

A globalização do yoga vem ocorrendo de forma tão acelerada que suscitou a discussão sobre a padronização da prática terapêutica. O termo yogaterapia pode ser atribuído a Krishnamacharya, no final do século 19, sendo desenvolvido posteriormente pelo tradicional instituto de yoga Kaivalyadhama, na Índia. Nayyar1515. Nayyar S. Is Standardization in Yoga as Therapy required? eSamskriti [Internet]. 2019 [citado 3 Jun 2019]. Disponível em: https://www.esamskriti.com/e/Yoga/Therapy/Is-Standardization-in-Yoga-as-Therapy-required-1.aspx
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, que ocupa o eixo mais conservador do espectro dessa discussão, argumenta que o Ocidente utiliza o yoga como uma terapia para doenças físicas, mas que os indianos o encaram como uma das seis escolas filosóficas da Índia. Por que, indaga o autor, devem os indianos ajustar seu sistema – amplamente testado ao longo dos tempos – por causa de uma necessidade do Ocidente? No centro do debate está a disputa de poder em torno da criação de um corpo centralizador e certificador que ficaria localizado na Índia.

Na outra ponta do espectro da discussão em torno do yoga, o Ministério da Saúde da Índia (Ayush), preocupado com a padronização da prática e, sobretudo, com o seu ensino, formou um grupo de trabalho em convênio com a Organização Mundial da Saúde (OMS), WHO Benchmarks for Training in Yoga, realizado em Nova Delhi, em fevereiro de 2019ddWorking Group Meeting for Benchmarks in Training in Yoga. Disponível em: https://www.facebook.com/moayush/posts/who-working-group-meeting-for-benchmarks-in-training-in-Yogathe-world-health-org/2795531750672068/ , evento do qual uma das autoras deste artigo participou. Alguns pontos debatidos foram: a abordagem regulatória da prática nos países membros da OMS; as disciplinas que constarão na grade de ensino dos diferentes níveis de formação (básico, avançado e pós-graduação); e questões de segurança dos asanas e das práticas respiratórias. As diretrizes debatidas nesse grupo de trabalho por 16 especialistas em yoga de todo o mundo serão publicadas em documento futuro. Esse debate em torno da padronização do yoga aponta para narrativas de cientistas tentando atribuir uma qualidade seleta a outros cientistas e aos métodos científicos com o intuito de demarcar uma fronteira retórica entre a Ciência e um conhecimento não científico.

No cenário nacional, uma questão pertinente é a regulamentação da profissão. Lamont e Molnár ilustram a maneira em que o conceito de fronteiras vem sendo usado para compreender como as profissões se distinguiram umas das outras, e se elas deveriam ser definidas pelo seu conhecimento específico, pertencente a uma fase do desenvolvimento de uma ocupação, ou como uma organização institucional que controla o acesso, o treinamento, o credenciamento e a avaliação do desempenho na área. No caso do yoga, constatou-se, em levantamento realizado no dia 23 de outubro de 2019, que os Projetos de Lei em trâmite na Câmara dos Deputados, relacionados à regulamentação do yoga, são os seguintes: PL 1371/2007 (com oito Projetos de Lei apensados), PL 3204/2012, PL 939/2015, PL 4282/2016. Alguns dos Projetos de Lei apensados ao primeiro tratam de temas específicos aos educadores físicos. Dessa maneira, com idas e vindas legislativas, persiste a tentativa de o Conselho Federal de Educação Física se apropriar da prática do yoga, que ainda permanece em um limbo profissional, terra de ninguém22. Santos BSS. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Rev Crit Cienc Sociais. 2002; 63:237-80., passados vinte anos desde o advento do primeiro PL que tentou regulamentá-lo. Contudo, em relação a isso, não é nada desprezível o caráter autorregulador de cada grupo de praticantes, como também consideramos pertinente que a categoria profissional associada a direitos trabalhistas tenha professores com as mais variadas formações.

Yoga é religião?

É justamente por não se caracterizar exclusivamente como uma religião que o yoga aceita atribuições como tradição, cultura, filosofia e psicologia, sendo a mais recente a já mencionada definição de prática mente-corpo. O yoga toma a sua cosmologia principalmente do Samkhya, que é ateu. Seus elementos constitutivos são: purusha (consciência) – significando espírito, essência individual do ser, e substância primordial – e prakriti (matéria) – origem do universo fenomênico1616. Henriques AR. Yoga e consciência: a filosofia psicológica do Yoga-Sutra de Patanjali. 2a ed. Porto Alegre: Rigel; 2001.. No entanto, a linguagem mística do yoga, que outrora fluía nos retiros, topos de montanhas, cavernas sagradas, templos e florestas, por onde peregrinavam os yogis antigos, atualmente se vê confrontada com a lógica da racionalidade científica e as narrativas dos NMR do Ocidente1717. Simões RS. O papel dos klesas no contexto moderno do ioga no Brasil: uma investigação sobre os possíveis deslocamentos da causa do mal e da produção de novos bens de salvação por meio da fisiologia biomédica ocidental [tese]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2015.. Curiosamente, como constata Simões, a racionalidade científica, ao contrário do que se pensaria, vem legitimando o yoga, pelo menos no Brasil, como um novo sistema de crenças, que produz bens de salvação, e não tem conseguido provocar um processo de desencantamento religioso do yoga.

Essa prática, definida por Jung, é a psicologia dos hindus, de base empírica e existencial; um mecanismo em que o ego é transcendido e substituído por uma consciência universal1616. Henriques AR. Yoga e consciência: a filosofia psicológica do Yoga-Sutra de Patanjali. 2a ed. Porto Alegre: Rigel; 2001.. Em 4 de novembro de 1938, Jung profere a conferência II sobre yoga1818. Purrington. Carl Jung on “Yoga” [Internet]. 2019 [citado 3 Jun 2019]. Disponível em: https://carljungdepthpsychologysite.blog/2020/05/29/carl-jung-on-yoga-youtube/#.Xzwvp4tv_Dd
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, em que diz:

We are inclined in Europe to think of Yoga as a kind of acrobatics but it is really principally philosophy […]. Yoga is the oldest practical philosophy of India; it is the mother of psychology and philosophy which are one and the same thing in India. It is impossible for anyone to be a philosopher there, till he has undergone the spiritual development of Yoga1818. Purrington. Carl Jung on “Yoga” [Internet]. 2019 [citado 3 Jun 2019]. Disponível em: https://carljungdepthpsychologysite.blog/2020/05/29/carl-jung-on-yoga-youtube/#.Xzwvp4tv_Dd
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Como podemos constatar, o yoga desliza entre fronteiras tal qual um camaleão, carregando em seu bojo elementos que, para alguns, têm cunho mais religioso, filosófico ou psicológico. Todavia, suas origens míticas e sua relação com seres divinos não deixam de servir como fortes referenciais do sagrado e das práticas espirituais. A esse respeito, veja-se a descrição do primeiro quadro da seção Yoga e Arte.

Yoga e Filosofia

Em março de 2020, ao fazer o levantamento da produção acadêmica sobre yoga no Brasil, observamos que as 181 teses e dissertações do banco de dados da Capes não foram defendidas em programas de filosofia, mas alhures. A que se deve essa ausência? Em primeiro lugar, é ainda recente, no cenário nacional, a aproximação entre tradições filosóficas diferentes daquelas produzidas na Europa, com exceção de certas iniciativas tais quais: Jornadas de Filosofia Oriental e Intercultural (USP), dos Colóquios de Filosofia Oriental (Unicamp) e da Associação Latino-Americana de Filosofia Intercultural (Alafi). Uma segunda razão, ligada à primeira, é que tais esforços ainda não chegaram às grades curriculares, sendo que essa ausência epistemológica apresenta todas as propriedades de uma fronteira: visibilidade, durabilidade, saliência, mas também permeabilidade, da qual fazem parte os aspectos filosóficos do yoga.

Segundo Aristóteles (384-322 a.C.), os três grandes ramos da filosofia são Teoria, Práxis e Poética. Matemática, Lógica (analítica), Física e Metafísica (ontologia) encontram-se na Teoria, ao passo que Ética, Política e Retórica fazem parte da Práxis, enquanto no livro Poética manteve-se o estudo sobre a Tragédia. Já quando buscamos o lugar do yoga dentro das escolas filosóficas oficiais da Índia e tentamos conceituar “As seis Dárshanas”, apresentadas por célebres duplas, que tratam da natureza última da realidade (Nyaya e Vaisesika, Samkhya e yoga, Mimamsa e Vedanta), dizemos que Nyaya contém Lógica e Filosofia Analítica; Vaisesika trata a natureza última, atômica, da construção da consciência; Samkhya explica as relações originárias e desdobramentos entre consciência e matéria; yoga contém contemplação e meditação; Mimansa (Purva-Mimansa) contém a hermenêutica dos Vedas; enquanto Vedanta (Uttara-Mimansa) contém a essência dos Vedas. A diferença mais saliente entre o Samkhya e o yoga consiste em que o yoga é prático e depende mais da realização que do entendimento, ao passo que o Samkhya enumera e explica o comportamento do mundo desde a união dos princípios purusha e prakriti. Evidentemente, é preciso levar em conta que essa é uma distinção propedêutica. Cada escola tem uma temporalidade histórica de temas, obras e autores notadamente mais complexa que essas duas tábuas apresentadas em caráter comparativo1616. Henriques AR. Yoga e consciência: a filosofia psicológica do Yoga-Sutra de Patanjali. 2a ed. Porto Alegre: Rigel; 2001.. O Yoga Dárshana sintetizado por Patañjali1919. Patanjali. Os Yoga sutras de Patanjali. Barbosa CEG, tradutor. São Paulo: Mantra; 2015., ligado ao Samkhya da tradição de Vyasa, e o tardio Vedanta de Shankarasharya são, todavia, os ramos mais destacados da ortodoxia. Não obstante, no Tantra e no Budismo, há acepções próprias do yoga em textos das mais diversas linhagens. Fica evidente, conforme o exposto, que conteúdos filosóficos estejam presentes nas tradições de origem grega e indiana. Nesse sentido, até que ponto se pode considerar yoga uma filosofia e considerar filosofia um yoga?

Yoga será filosofia quando aprofunda a investigação sobre o Ser, suas bases e conexões além do senso comum e por meio de uma vontade radical que se sustenta com a prática. Não obstante, pode-se dizer que a filosofia vem a ser um yoga sempre que tomada em caráter existencial, pragmático e soteriológico. Assim, enfatizamos a forte conexão entre comunidades nacionais e fronteiras espaciais, em que os atores dialogam e produzem conhecimento que alimenta suas pesquisas.

Uma primeira conexão, bastante presente nos cursos de formação e especialização em yoga, consiste em apresentar a Ética do yoga, com base nos Yamas e Nyamas tal qual Patañjali os apresentou nos Yoga Sutras1919. Patanjali. Os Yoga sutras de Patanjali. Barbosa CEG, tradutor. São Paulo: Mantra; 2015.. Contudo, a abordagem não filosófica leva, muitas vezes, a noções equivocadas de heteronomia, além de omitir a complexa relação dos códigos de ética religiosos e não religiosos atuantes em sujeitos que experimentam a multiculturalidade.

A segunda conexão que apontamos agora se refere à pergunta: como e em que medida livres pensadores desenvolveram suas comunicações filosóficas sobre suas bases espirituais (e práticas espirituais) que os formam e os transcendem? O yoga na obra do filósofo Vilém Flusser é uma conexão especialmente importante nesse sentido. Com a difícil missão autoimposta de ajudar a salvar o pensamento ocidental da extinção, Flusser construiu uma obra-advertência intitulada “A dúvida”2020. Flusser V. A dúvida. 2a ed. Rio de Janeiro: Sinergia-Relume Dumará; 2009.. Partindo da reflexão sobre a dúvida como um problema filosófico histórico, desde Descartes com uma fé autêntica na dúvida, que desemboca no niilismo em que tudo é nada, o filósofo busca minimizar os estragos não apenas do niilismo, bem como daqueles que nomeia por conversa fiada e orgulho, os quais solapam a verdadeira discussão filosófica.

O método utilizado por Flusser é um procedimento não usual ao fazer filosófico, no sentido restrito do termo. A saber: o exercício de concentração segundo “Uma introdução aos segredos do yoga2020. Flusser V. A dúvida. 2a ed. Rio de Janeiro: Sinergia-Relume Dumará; 2009. (p. 31). Ora, em yoga, a concentração é um dos modos de meditação conhecido pelo termo sânscrito dharana. Nos Yoga Sutras, Patañjali a define como a fixação da mente em um território1919. Patanjali. Os Yoga sutras de Patanjali. Barbosa CEG, tradutor. São Paulo: Mantra; 2015.. O ponto de partida foi a exaustiva análise da dúvida. Agora, ao exercício preliminar da concentração, se seguiu um choque diante de uma revelação:

Do ponto de vista existencial, um único esforço de concentrar-se pelas regras do yoga vale mil tratados de Nietzsche ou Bergson. Ilumina, num raio de experiência imediata, aquilo que Nietzsche e Bergson, inter alia, pretendem, talvez sem sabê-lo2020. Flusser V. A dúvida. 2a ed. Rio de Janeiro: Sinergia-Relume Dumará; 2009.. (p. 33)

A revelação comparativa e elogiativa do yoga, em detrimento de obras de ilustres filósofos, segue-se da exposição de uma diferença considerável de entendimento entre o leitor praticante e o não praticante e o aprofundamento da narrativa descritiva da prática pessoal. Então, ele nos apresenta uma alegoria: a das contas de um colar, recorrendo ao imagético para tentar abarcar um pouco mais do que as palavras o fariam. Nela, a concentração yóguica não mostra apenas como um pensamento surge e é seguido de outros, mas favorece o aprofundamento da consciência na dinâmica observação/criação.

Mas essa não é, contudo, a única conclusão a que Flusser chega com a prática de concentração yóguica. Levado ao escopo que declara para sua obra, o yoga o ajuda a ter o insight para continuar a criar com o pensamento e assim realocar os rumos da Filosofia. Dito de outro modo, o filósofo Flusser mostra que há um lugar melhor para o pensamento que a conversa fiada e a prepotência.

Flusser traz, sem dúvida, uma importante reflexão sobre o yoga e a Filosofia. Sobretudo por tomá-la estritamente como prática, sem recorrer nem se fixar à aura religiosa. Ele não apenas inclui a meditação yóguica na obra em que discute os rumos da Filosofia Ocidental e a essência da linguagem, como mostra, de modo inédito, o lugar dessa experiência na construção de seu pensamento.

Voltando um pouco à dinâmica entre o pano de fundo espiritual do filósofo e a obra, é digno de nota que em “A dúvida” a apropriação que Flusser faz de dharana o leva a reafirmar suas mais antigas referências espirituais. É como se dissesse: tenho a minha própria herança cultural. Aceito a experiência da concentração yóguica e ela me traz discernimento, entusiasmo e mesmo utilidade, mas não é o caso de suplantar um modo de espiritualidade por outro. O filósofo não retoma o tema da concentração quando avança nos capítulos, mas sim conclama e evoca referências gregas e hebraicas2020. Flusser V. A dúvida. 2a ed. Rio de Janeiro: Sinergia-Relume Dumará; 2009..

Na dinâmica de fronteira simbólica com o yoga e a Filosofia, destacamos o jogo presença/ausência. Isto é: apesar dos conteúdos filosóficos do yoga, as pesquisas brasileiras nessa prática não são desenvolvidas em programas de Filosofia. O Sistema Filosófico e a Ética do yoga aparecem mais nos cursos de formação em yoga do que os profissionais de filosofia. O tema (yoga), o autor (Flusser) e a obra (A dúvida) ainda estão à margem nas disciplinas filosóficas oficiais. Contudo, como vimos, nem todo filósofo limita-se a apoiar uma tradição silenciando sobre a importância das demais.

Yoga e Arte

No Museu Nacional de Nova Delhi, Índia, local em que teoricamente deveria haver uma grande exposição de obras sobre o yoga, encontramos poucas com essa temática. Porém, entre elas, está a pintura intitulada: “Dakshina-Murti Shiva worshipped by devotees”, do final do século 18eeNational Museum, New Delhi. Dakshina-Murti Shiva worshipped by devotees. Tanjore, Mysore mixed style, South India, late 18th century. Paper passed on wood, 46x36cm. Acc.No. 81.369., que retrata o momento em que os quatro filhos de Brahma chegam ao monte Kailash e pedem que Shiva lhes ensine o caminho para a salvação. Nesse quadro, proveniente de Tanjore, estilo misto de Mysore, com papel sobre madeira, Shiva está ilustrado como instrutor de yoga, sabedoria, música e belas artes. Abaixo do trono onde ele está sentado aparecem figurilhas, todas masculinas, usando sungas e turbantes, explicitamente praticando asanas.

Dando um salto para o Ocidente, em busca de conexões entre yoga e arte, em pleno auge da contracultura, em 1967, os Beatles lançaram o disco “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts’ Club Band”, em cuja capa estão estampados os rostos de quatro importantes yogis: Sri Mahavatar Babaji, Sri Lahiri Mahasaya (1828-1895), Yukteswar Giri (1855-1936), Sri Paramahansa Yogananda (1893-1952)2121. Tonglet A, Rocha C, Falcão G, Quadros T. 50 anos de ‘Sgt. Peppers’: quem são os personagens da capa. Nexojornal.com. 1 Jun 2017.. Contudo, foi somente em 9 de junho de 2013 que surgiu a primeira grande exposição de obras de arte sobre yoga, intitulada: “Yoga: the art of transformation, na Sackler Gallery, localizada em Washington D.C.ffThe World’s First Exhibition on Yoga in Art. Disponível em: https://www.smithsonianmag.com/multimedia/the-worlds-first-exhibition-on-Yoga-in-art-photos-99277116/ , que depois foi exibida no Asian Art Museum of San Francisco e no Cleveland Museum of Art, em 2014, cujo conteúdo foi lançado posteriormente em livroggYoga: the art of transformation. Smithsonian Libraries. Disponível em: https://www.si.edu/object/siris_sil_1015031 . O acervo consistiu de dez fotografias da obra “Bahr al-Hayat”, livro persa publicado por volta de 1602, que ilustra posturas yóguicas para meditação e, também, esculturas, manuscritos ilustrados, pinturas da corte, fotografias, livros e filmes emprestados de 25 museus e coleções privadas da Índia, Europa e Estados Unidos.

Iniciativas da Sherman Contemporary Art Foundation (SCAF), em Sydney, AustráliahhYoga@The Gallery. Disponível em: http://sherman-scaf.org.au/idea/Yoga-scaf/ , têm proporcionado ao público exposições contemporâneas sobre yoga. Em 2016, essa instituição de arte exibiu as obras de Anna Philips, neozelandesa radicada na Austrália, formada tanto em Artes Visuais como yoga. Exemplo semelhante, visando fundir a experiência da prática do hatha-yoga com a contemplação de obras de arte, ocorre na Brant Foundation, localizada em Connecticut, Estados Unidos, que oferece experiências de imersão yoga&arte dentro de suas galeriasiiYoga at the Brant Foundation. Disponível em: https://brantfoundation.org/programs/Yoga-art/ .

Em bases de dados que disponibilizam algumas ilustrações gratuitas, como rbgstock, Pixabay, Flickr, entre outras, fotografias de figuras humanas praticando asanas vão dando lugar a ilustrações criadas por ferramentas digitais. As imagens mais estilizadas encontram-se à venda no Shutterstock e no Pinterest: são ilustrações de chacras, mandalas, asanas, mudras e cenários cósmicos. Destaca-se que, no Society6, essas ilustrações artísticas do yoga são classificadas como Yoga Art Prints, havendo, inclusive, algumas do artista Huebucket que retratam animais praticando yogajjCocker Spaniel Yoga. Disponível em: https://society6.com/s?q=Cocker%20Spaniel%20Yoga&context=Cocker%20Spaniel%20Yoga .

Outras manifestações importantes de serem mencionadas envolvem a publicação de livros e artigos sobre o tema. Em 2011 foi publicado o livro “Art & Yoga: Kundalini Awakening in everyday life”2222. Khalsa HKK. Art & Yoga: Kundalini Awakening in everyday life. Espanola: Kundalini Research Institute; 2011., com diretrizes sobre como produzir arte e praticar yoga conjugando ambas as práticas em complementares. Franklin2323. Franklin MA. The Yoga of art and the creative process: listening to the divine. In: Farrelly-Hanson M. Spirituality and art therapy: living the connection. London: Jessica Kingsley Publishers; 2001. p.97-114.,2424. Franklin MA. Contemplative approaches to art therapy: incorporating Hindu-Yoga-Tantra and Buddhist wisdom traditions in clinical and studio practice. In: Rubin JA. Approaches to art therapy. New York: Routledge; 2016. p. 308-29. publicou dois textos acadêmicos, o primeiro sobre o yoga da arte e o processo criativo, o segundo sobre abordagens contemplativas da arteterapia, incorporando as tradições do yoga hindu e tântrico, bem como o Budismo, à prática clínica e yóguica.

No Brasil, ainda não há manifestações explícitas que conjuguem yoga e arte em museus e galerias de arte, muito embora o yoga seja chamado metaforicamente de “a arte de viver” e “a arte milenar”. Em 2017, Nunes publicou o livro “Yoga, Arte e liberdade”2525. Nunes T. Yoga, arte e liberdade. Florianópolis: Vida de Yoga; 2017., e expressa o seguinte:

Nos dias de hoje vejo o yoga também como arte. Arte de fazer a pessoa reconhecer o belo em si mesma. E como resistência. Resistência a uma visão desencantada da vida. Nisso, arte e yoga caminham juntos, cumprindo funções pessoais, sociais e sagradas muito semelhantes2525. Nunes T. Yoga, arte e liberdade. Florianópolis: Vida de Yoga; 2017.. (p. 19)

Concordamos com Nunes e citamos a expressão do pensador, yogi e pintor francês, Serge Raynaud de la Ferrière, sobre a relação do yoga com a arte, quando diz:

Los yoghis son sacerdotes sin altar o, más bien, ellos sustentan el ‘Templo de Dios’ directamente; los artistas son igualmente sacerdotes que operan la unión mística, su misa es diferente, así como la liturgia cambia de una secta a otra: siguen el ritual musical, de la pintura o de la poesía, guiados por su inspiración2626. Raynaud de la Ferrière S. El arte en la nueva era. 6a ed. México: Editorial Diana; 1980.. (p.178)

Apesar de o yoga ainda não haver adentrado as galerias de arte nacionais, materiais acadêmicos interessantes vêm sendo produzidos sobre o tema. Uma busca no banco de dissertações e teses da Capes em abril de 2020 revelou a existência de 14 estudos envolvendo o yoga, oito doutorados e seis mestrados, realizados entre 2008 e 2019, na área de Artes Cênicas, Teatro e Artes.

O fato de os atores e dançarinos buscarem a prática do yoga sugere que os elementos de flexibilidade, concentração e meditação que a prática proporciona podem exercer um papel importante para o preparo cênico desses profissionais, além de agregar um elemento espiritual. É possível que um novo campo de estudos esteja emergindo, o do Yoga & Arte, em que as fronteiras ainda não estejam nitidamente demarcadas como nas ciências duras. Porém, os exemplos acima mencionados apontam para a presença de processos relacionais que operam por meio das instituições e dos contextos, alocando autoridade cognitiva e recursos materiais para a sua produção e o seu registro.

Yoga na Educação

Outra área em que o yoga vem sendo aplicado com resultados interessantes e promissores é a da Educação. Uma das vertentes dessa aplicação na área infantil é chamada Yoga Educativo e ocorre no Rio de Janeiro, envolvendo além da psicomotricidade, o yoga do riso, as meditações dinâmicas e técnicas de relaxamentokkPortal Yoga Educação. Disponível em: http://www.Yogaeduc.com.br/proposta . Enquanto isso, um projeto da Unesp ensina yoga para crianças de escolas municipais em BaurullProjeto da Unesp ensina yoga para crianças de escolas municipais em Bauru. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vAxQhcvEJZc , e há notícias de outras escolas que usam yoga e meditação para aumentar a concentração de seus alunos2727. Maria de Luca C. Meditação na educação (Escola Pública) [Internet]. 2009 [citado 2 Out 2017]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sgzt10dqopA
https://www.youtube.com/watch?v=sgzt10dq...
, como um recurso para tentar controlar artificialmente a agitação das crianças nas escolas, sem medicalização2828. Vida M. Por que Yoga nas escolas? [Internet]. 2016 [citado 17 Jan 2018]. Disponível em: http://www.culturadapaz.com.br/Yoga-nas-escolas/
http://www.culturadapaz.com.br/Yoga-nas-...
.

Ferreira-Vorkapic et al.2929. Ferreira-Vorkapi C, Feitoza JM, Marchioro M, Simões J, Kozasa E, Telles S. Are there benefits from teaching yoga at schools? A systematic review of randomized control trials of yoga-based interventions. Evid Based Complement Alternat Med. 2015; 2015:345835. analisaram as evidências das intervenções do yoga sobre os benefícios acadêmicos, cognitivos e psicossociais, como bem-estar psicológico, atenção e memória. Barranco-Ruiz et al.3030. Barranco-Ruiz Y, Etxabe BE, Ramírez-Vélez R, Villa-González E. Interventions based on mind-body therapies for the improvement of attention-deficit/hyperactivity disorder symptoms in youth: a systematic review. Medicina (Kaunas). 2019; 55(7):325. produziram uma revisão sistemática das intervenções baseadas em terapias mente-corpo para a melhoria do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), que é um dos transtornos psiquiátricos mais comuns em crianças e adolescentes. Os resultados de ambos os estudos sugerem, respectivamente, que há efeitos das intervenções yóguicas nas escolas tanto no status psicológico quanto na função cognitiva.

Segundo Khalsa e Butzer3131. Khalsa SB, Butzer B. Yoga in school settings: a research review. Ann N Y Acad Sci. 2016; 1373(1):45-55., a pesquisa sobre a eficácia da aplicação do yoga para melhorar as características mentais, emocionais, físicas e comportamentais em ambientes escolares é um campo de estudos recente, porém crescente. E Piagentini e Camargo3232. Piagentini S, Camargo EAO. Neurociências, Yoga e educação. Rev Pós-Grad Multidiscip. 2018; 1(3):237-50. constataram quanto o yoga melhorou o comportamento, a emoção, a concentração, a socialização e a capacidade de resolução de problemas de alunos pesquisados, bem como diminuiu ações e comportamentos violentos de todos eles. Destaca-se que, se a Sociologia está empenhada em analisar como o self é modelado pela diferença de classes e é produzido com base em fronteiras e diferenças, o yoga na perspectiva da educação pode exercer um papel na socialização de crianças e adolescentes de diferentes etnias, enfatizando a função da relacionabilidade na definição da identidade.

Para identificar outras pesquisas sobre yoga e Educação no cenário nacional, foi realizada uma busca no banco de dissertações e teses da Capes em abril de 2020, que revelou a existência de 18 trabalhos envolvendo o yoga, defendidos na área da Educação;13 são dissertações e cinco, teses, produzidas entre os anos 2000 e 2019. Entre eles, dois estudos dos autores Soares e Tura tratam de artes cênicas e visuais, respectivamente. O interesse pela aplicação do yoga na Educação abrange não só a busca pela harmonia dos movimentos e o controle corporal, mas também a busca do si, os princípios éticos e valores.

Yoga na Antropologia e Sociologia

A busca no banco de dissertações e teses da Capes (abril de 2020) nas áreas de Antropologia e Sociologia relacionadas ao yoga gerou o resultado de 14 trabalhos, quatro de doutorado e dez de mestrado, produzidos entre 1999 e 2018.

Como é impossível comentar todos os estudos neste restrito espaço, selecionamos dois trabalhos que dialogam com o escopo deste artigo. O primeiro é: “Yoga na laje: Ganga deságua na Rocinha”3333. Capelini TD. Yoga na laje: ganga deságua na Rocinha [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2017., que aplica um olhar crítico sobre as políticas públicas de segurança e cultura, bem como sobre as narrativas midiáticas, que de forma metafórica expõe os corpos dos moradores da comunidade. Esse trabalho acabou inspirando o Projeto Treino na Laje, na comunidade Sabim, no Capão Redondo, em São Paulo3434. Bisilliat S. Projeto treino na laje, com Sophia Bisilliat [Internet]. 2019 [citado 1 Jul 2019]. Disponível em: https://blog.bemglo.com/projeto-treino-na-laje-com-sophia-bisilliat/
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Segundo a perspectiva de Lamont & Molnár77. Lamont M, Molnár V. The study of boundaries in the social sciences. Annu Rev Sociol. 2002; 28:167-95., seria uma tentativa de dissolver diferenças sociais institucionalizadas, indo além das fronteiras simbólicas que criam distinções conceituais. Se as fronteiras simbólicas apartam as pessoas em grupos e geram sentimentos de similaridade e pertença, a prática do yoga pode estar servindo como ferramenta para atingir esse objetivo, com as sessões tanto na comunidade da Rocinha como na do Capão Redondo.

O segundo trabalho que chama a atenção é “Uma antropologia de incertezas entre a biomedicina e a eficácia das práticas de yoga e meditação no SUS”3535. Negreiros MV. Uma antropologia de incertezas entre a biomedicina e a eficácia das práticas de yoga e meditação no SUS [dissertação]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2018.porque dialoga justamente com a inserção do yoga no SUS, como anteriormente mencionado. O estudo revela um atravessamento de paradigmas, um confronto de saberes e de legitimidades entre os próprios profissionais de saúde que atuam nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), relegando a prática do yoga ao status de cuidado secundário. Assim, fica patente que o cuidado, além de ser marcado pela hegemonia médica, é atravessado por afirmações, tensões e ambiguidades. O conceito de fronteiras é novamente aplicável aqui, segundo Lamont & Molnár77. Lamont M, Molnár V. The study of boundaries in the social sciences. Annu Rev Sociol. 2002; 28:167-95., porque captura o processo de “relacionabilidade”, tanto no campo da identidade social e coletiva como no campo das profissões, da ciência e do conhecimento. As fronteiras que surgem devido à identidade social e coletiva, neste estudo, revelam pressões para avaliar seu próprio grupo positivamente (médicos), mantendo e adquirindo superioridade sobre outro grupo (outros profissionais de saúde). Com relação ao campo das profissões, o conceito de fronteiras é útil para compreender de que maneira as profissões se distinguiram umas das outras, nesse caso a hierarquia de funções dentro de uma UBS e o empoderamento do médico3636. Ribeiro ACL, Ferla AA. Como médicos se tornaram deuses: reflexões acerca do poder médico na atualidade. Psicol Rev. 2016; 22(2):294-314., e como as profissões competem umas com as outras por monopólios jurisdicionais pela legitimidade de seus conhecimentos especializados, constituindo, assim, um sistema de profissões em constante mudança.

Considerações finais

Neste artigo procuramos refletir como e em que sentido o yoga é um objeto de fronteira. Consideramos que grande parte dos elementos constitutivos dos processos relacionais das fronteiras simbólicas identificadas por Lamont & Molnar diz respeito ao yoga. Primeiramente, ao não estar vinculado a um só campo de conhecimento específico, o yoga forma zonas de contato multiculturais, suscitando troca de saberes e práticas, vinculando áreas do conhecimento e profissões, evidenciando inter/transdisciplinaridades. Em segundo lugar, o yoga oferecido no SUS rompe barreiras entre classes sociais e etnias.

O yoga promove a saúde do corpo-mente e o discernimento mediante a radical investigação acerca do ser e da natureza da realidade, dinamizando a identidade social e coletiva de seus praticantes. Isso posto, apresentar-se como um objeto de fronteiras se deve, em parte, à complexidade de sua definição e às múltiplas aplicações as quais serve.

Por fim, os atores do yoga (professores, alunos e instituições) multiplicam-se e negociam com exigências e necessidades específicas, tais como políticas públicas, currículos acadêmicos, padronização de serviços e ensino, apropriação do yoga por conselhos profissionais, ora disputando espaço, ora cooperando.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2020
  • Aceito
    10 Ago 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br