Violência institucional, direitos humanos e autoridade tecno-científica: a complexa situação de parto para as mulheres

Violencia institucional, derechos humanos y autoridad tecnocientífica: la compleja situación del parto para las mujeres

Janaína Marques de Aguiar Yuri Nishijima Azeredo Ana Flávia P L d’Oliveira Lilia Blima Schraiber Sobre os autores

A Política Nacional de Humanização (PNH) de 2003 surge como proposta de combate à violência institucional na saúde. Culmina um longo processo histórico pelo reconhecimento de direitos, iniciado por dois grandes movimentos sociais: das mulheres, quanto às escolhas e equidade nas condições de parto ou de gravidez/aborto; e dos portadores de doenças mentais, quanto às possibilidades e equidade de condições de tratamento para além das problemáticas internações manicomiais. A essas duas situações radicais de desrespeito aos direitos humanos, outras tantas se somaram, a ponto de a denominação “violência institucional”, de maior abrangência que “violência obstétrica”, parecer mais adequada, constituindo-se esta última, que as mulheres sofrem durante o parto, uma modalidade específica da primeira.Esse novo cenário ampliado para referir o tratamento desrespeitoso dos pacientes tornou bastante visível, para as diversas situações clínicas, a abordagem das pessoas como corpos sem sujeitos, em práticas desumanizadas.

“Humanização” foi a palavra escolhida para simbolizar o necessário reconhecimento de que os corpos abordados assistencialmente são sujeitos sociais, dotados de direitos; direitos de esclarecimentos quanto ao adoecer e de escolhas quanto a tratamentos correlatos. De forte impacto comunicacional, a noção de humanização foi rapidamente apropriada pelo discurso crítico para se referir àquelas situações de violência, sem que, contudo, seu significado estivesse claro em termos da sua distinção por referência às mesmas condições institucionais, de parto ou de hospitalização manicomial, que haviam sido também produto de escolhas humanas11. Gomes RM. Humanização e desumanização no trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017.,22. Gomes RM, Schraiber LB. A dialética humanização-alienação como recurso à compreensão crítica da desumanização das práticas de saúde: alguns elementos conceituais. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):339-50..

Então, como distinguir esses dois tipos de processos históricos: aquele em que tais assistências institucionalizadas surgem como produto de escolhas humanas de melhoria assistencial daqueles em que a melhoria é anulada? Anulada por não constituir mais uma escolha de comum acordo pelos pacientes e profissionais envolvidos, senão uma indicação praticamente compulsória daquelas assistências institucionalizadas. Não estaria aí a origem desse tipo de violência?

Direitos ou destinos?

Recentemente, o debate público sobre direitos na assistência à maternidade voltou a ficar acirrado com duas novas situações normativas: o Projeto de Lei n. 435, da Deputada Janaina Paschoal sobre a garantia de escolha da cesariana como via de parto, pela parturiente, a partir da 39ª semana de gestação; e a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) n. 2232 de 17 de julho de 2019, sobre normas éticas para a recusa terapêutica por incluir as gestantes entre os possíveis casos em que a recusa não deve ser aceita pelo médico por caracterizar “abuso de direito”.

No primeiro caso, o citado projeto foi aprovado, tornando-se a Lei estadual n. 17.137 de 23 de agosto de 2019. Em seu primeiro parágrafo, a lei ressalta a cesariana a pedido como um direito da paciente, devendo ser respeitada sua autonomia, e coloca como condição para o exercício desse direito que ela seja devidamente informada e conscientizada dos riscos de “sucessivas cesarianas” e dos “benefícios do parto normal”33. Brasil. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Lei nº 17.137, de 23 de Agosto de 2019. Garante à parturiente a possibilidade de optar pela cesariana, a partir de 39 (trinta e nove) semanas de gestação, bem como a analgesia, mesmo quando escolhido o parto normal. São Paulo: Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo; 2019.. Ressaltamos alguns pontos no que se refere à perspectiva dos direitos e as condições para seu exercício.

Primeiro, a lei apenas menciona a obrigatoriedade de informação sobre os riscos de sucessivas cesarianas, desconsiderando os riscos que guarda a cesariana em si, mesmo que seja um evento único na vida de uma mulher. Ademais, o modo como se apresenta a escolha para a mulher, ao mencionar riscos e benefícios, já indica que não se pode simplesmente colocar a escolha como se fosse a opção por um bem de consumo qualquer, tendo como plano de fundo imediato a questão das garantias da qualidade da informação prestada, tanto sobre a cesárea quanto sobre o parto normal, e, obviamente garantias de qualidade das próprias condições de trabalho dos profissionais como contexto efetivo em que tais escolhas ocorrem, uma vez que sabemos das preferências seja dos obstetras, seja das parturientes em função de condições extra técnico-científicas, como o acesso à anestesia ou à cesárea eletiva. Para tais situações, é de se indagar se nessa questão os direitos humanos e sociais podem reduzir-se a direitos de consumo ou de consumidor. Preferências dos profissionais, como a cesárea eletiva, não são atinentes a direitos na produção da assistência, mas sim a escolhas privilegiadas como mais oportunas por razões pessoais, o que difere totalmente da situação em que a escolha pelo parto cirúrgico é por decorrência da necessidade clínica .

Estudos mostram que o Brasil é um dos países no mundo com maior número de cesáreas eletivas, com uma prevalência de 45,5% em mulheres com risco obstétrico habitual44. Leal MC, Pereira APE, Domingues RMSM, Theme Filha MM, Marcos Dias MAB, Nakamura-Pereira M, et al. Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cad Saude Publica. 2014; 30 Supl:17-47., chegando a quase 90% no setor privado55. Torres JA, Domingues RMSM, Sandall J, Hartz Z, Gama SGN, Theme Filha MM, et al. Cesariana e resultados neonatais em hospitais privados no Brasil: estudo comparativo de dois diferentes modelos de atenção perinatal. Cad Saude Publica. 2014; 30 Supl:220-31.. Em que pese a recomendação da Organização Mundial de Saúde de 15% como percentual-limite de indicação apropriada para cesariana, as taxas desse tipo de parto no Brasil revelam que a decisão sobre a via de parto é fortemente influenciada por fatores não clínicos55. Torres JA, Domingues RMSM, Sandall J, Hartz Z, Gama SGN, Theme Filha MM, et al. Cesariana e resultados neonatais em hospitais privados no Brasil: estudo comparativo de dois diferentes modelos de atenção perinatal. Cad Saude Publica. 2014; 30 Supl:220-31.. Entre esses fatores, estão o entendimento, por parte das mulheres, de que a cesárea é um parto “sem dor” e menos violento66. Diniz CSG, Chacham A. O “corte por cima” e o “corte por baixo”: o abuso de cesáreas e episiotomias em São Paulo. Questoes Saude Reprod. 2006; 1(1):80-91., e, por parte dos profissionais, de que esta oferece maior segurança e controle dos riscos, maior otimização de seu trabalho em termos de tempo e produtividade e menor “dano” físico para a mulher77. Aguiar JM, D’Oliveira AFPL, Diniz CSG. El parto como “atropellamiento”: ideología médica, visión pesimista del parto normal y violencia obstétrica In: Arguedas G, Palomo LRB, Castro R, Frias SM, Presas ALG, González MF, et al. Violencia obstétrica en América Latina: conceptualización, experiencias, medición y estrategias. Buenos Aires: EDUNLa Cooperativa; 2020. p. 131-44..

Assim, a lei é desatenta quanto à principal questão clínica em jogo nessa escolha: a de que cabe ao profissional avaliar a necessidade clínica de tal indicação, mas em boas condições de trabalho. Além disso, deve o profissional compartilhar sua avaliação com a parturiente em diálogo que a esclareça e, sobretudo, a escute a fim de considerar em sua decisão anseios e medos das mulheres. A lei esvazia essa questão maior, desconsiderando aspectos que são substantivos e não triviais para o trabalho do profissional, bem como para a saúde das mulheres. Nesse sentido, a lei transforma um direito de escolha em praticamente uma imposição de destino. Quem escolherá um parto de menor qualidade assistencial?

Quanto à segunda situação, a resolução do CFM foi recebida por parte da comunidade científica, juristas e militantes da humanização do parto como uma ameaça à autonomia da mulher na escolha de procedimentos, sob o risco de coação para receber tratamentos não desejados e internação compulsória, uma vez que a resolução prevê que as autoridades competentes sejam acionadas a fim de que se tomem medidas que assegurem o tratamento proposto pelo médico. Nesse cenário, torna-se inevitável a comparação com o caso Adelir, gestante que, ao se recusar a fazer uma cesárea, foi conduzida de sua casa de volta ao hospital por policiais sob mandado judicial após o hospital acionar as autoridades competentes.

Em dezembro de 2019, os dispositivos da resolução que tratavam especificamente de gestantes foram suspensos pelo judiciário após o Ministério Público Federal (MPF) entrar com uma ação civil pública contra o CFM por entender que tais dispositivos ignoram a exigência legal de perigo de morte iminente para imposição de tratamentos à revelia do paciente, além de contrariarem as políticas de humanização do parto e nascimento preconizadas pelo Ministério da Saúde, o que poderia favorecer a adoção de procedimentos desnecessários.

Chama a atenção a necessidade de entrada do MPF na defesa dos direitos da mulher nesse campo da assistência obstétrica. Isso porque, de um lado, evidencia-se a dificuldade da gestante em colocar sua vontade perante o Estado, via sistema judiciário, requerendo sua representação pelo Ministério Público contra instituições bem amparadas social, econômica e judicialmente em termos do acesso a advogados que as representem, como foi o caso da corporação medica. De outro lado, podemos dizer que o CFM terminou por eliminar o caráter pelo qual a própria autoridade médica se legitima na sociedade. Essa legitimação é dada pela aceitação espontânea, livre de constrangimentos, de uma decisão assistencial do médico em seu julgamento clínico. Isso porque a proposta assistencial é ofertada ao paciente em sua assistência médica individual sempre com o caráter de aconselhamento, e não de imposição. É essa aceitação que progressivamente também vai tornando o paciente dependente da base científica subjacente ao julgamento clínico, em um processo social no qual se legitima tanto a ciência como conhecimento competente quanto o médico como agente competente no uso dessa base científica88. Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. São Paulo: Hucitec; 2008.

9. Schraiber LB. El médico y la medicina: autonomia e y vínculos de confianza en la práctica profesional del siglo XX. Buenos Aires: Editorial Lugar; 2018.
-1010. Azeredo YN, Schraiber LB. El poder médico y la crisis de los vínculos de confianza en la medicina contemporánea. Salud Colect. 2016; 12(1):9-21.. Por isso, impor a decisão é, de fato, minar a legítima autoridade.

Contudo, imaginemos outra situação assistencial, mais corriqueira que as duas situações de parto ora examinadas. Consideremos a situação de escolha entre parto normal ou cesárea, quando, diante de uma parturiente que pretendia um parto normal, o médico decide pela cesárea e a convence que deva fazê-la, valendo-se da justificativa de que a cesárea possui uma qualidade tecnologicamente superior em relação ao parto normal. Ele assim o faz não por interesses pessoais ou imediatos de ordem econômica ou política, mas porque crê que, tecnicamente, controlaria melhor o processo de parto, mesmo conhecendo os riscos envolvidos. Tal avaliação pode ser devida tanto à melhor capacidade da maternidade em que se encontra de praticar cesáreas do que partos normais quanto porque foi o procedimento que mais o médico praticou em sua formação universitária, ou até mesmo porque o médico crê que é sempre melhor a tecnologia científica do que uma assistência mais tradicional e de baixa incorporação tecnológica.

Essa situação mostra que o médico está mais preocupado com sua segurança do que com a segurança da paciente e não considera, assim como tampouco apresenta à paciente, as evidências também científicas de que nem sempre a maior incorporação tecnológica constitui a melhor qualidade assistencial, seja porque tais evidências são um movimento muito recente na história da medicina, seja porque esse movimento surge após um longo processo histórico que firmou a crença de que incorporar mais tecnologias sempre será a melhor forma de intervenção.

No caso em questão, o profissional, ao valer-se dessa crença, transforma um aconselhamento em uma imposição e o faz em nome de sua autoridade de médico. Será esse um exercício de autoridade?

Violência ou autoridade?

Como aponta Azeredo1111. Azeredo YN. Saúde coletiva e filosofia: contribuições de Hannah Arendt para o debate de humanização [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017., grande parte dos pesquisadores do campo da Saúde Coletiva, defensores dos direitos humanos e da humanização entende a causa da violência institucional ligada a um excesso de autoridade e poder dos médicos e que a proposta de seu enfrentamento passaria pela horizontalidade da relação médico-paciente.

Mas qual horizontalidade? A de poder? E como em uma horizontalidade de poder se situaria a própria autoridade? Esses não são problemas menores na prática assistencial, pois envolvem a credibilidade das ciências e de sua apropriação por seus agentes tecnológicos – os profissionais da saúde. Mas são indagações merecedoras de amplo e profundo debate, ainda que não tenham assim se apresentado acerca da humanização, a não ser muito recentemente em estudos que se valem do pensamento de Hannah Arendt1111. Azeredo YN. Saúde coletiva e filosofia: contribuições de Hannah Arendt para o debate de humanização [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017.

12. Aguiar J, d’ Oliveira AFPL, Schraiber LB. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cad Saude Publica. 2013; 29(11):2287-96.
-1313. Azeredo YN, Schraiber LB. Violência institucional e humanização em saúde: apontamentos para o debate. Cienc Saude Colet. 2017; 22(9):3013-22.. Distinções conceituais, em especial diferenciando autoridade, poder e violência, ainda restam pouco problematizadas e, por isso, em especial com base no estudo de Azeredo1111. Azeredo YN. Saúde coletiva e filosofia: contribuições de Hannah Arendt para o debate de humanização [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017., essas distinções devem ser aqui consideradas.

Para Arendt1414. Arendt H. A condição humana. 10a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2001.

15. Arendt H. Entre o passado e o futuro. 7a ed. São Paulo: Perspectiva; 2003.
-1616. Arendt H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2013., a autoridade é um tipo especial de relação pautada no reconhecimento mútuo da assimetria constituinte daquela relação. Significa, portanto, que a relação de autoridade não pode ser uma relação entre iguais, já que há um reconhecimento legitimado pelos participantes da relação da hierarquia representada pela autoridade. No caso da saúde, um usuário busca o serviço por legitimar e reconhecer conhecimentos e técnicas que o profissional possui e que podem ser úteis, por exemplo, na situação de parto, nessa busca constituindo uma relação hierárquica com o profissional. A hierarquia constituída não permite ao profissional impor determinada conduta ao paciente, pois, como coloca Arendt1515. Arendt H. Entre o passado e o futuro. 7a ed. São Paulo: Perspectiva; 2003., a autoridade produz um tipo de discurso que é “mais que um conselho e menos que uma ordem” (p. 165). Também é dessa forma, como autoridade técnica e moral consentida, que estudos já clássicos sobre a profissão em medicina tratam da relação social e historicamente construída entre médicos e pacientes1010. Azeredo YN, Schraiber LB. El poder médico y la crisis de los vínculos de confianza en la medicina contemporánea. Salud Colect. 2016; 12(1):9-21.. Assim, impor, em vez de aconselhar, uma conduta, mesmo que visto pelo profissional como uma necessidade técnico-científica, está fora de cogitação na assistência médica individual (o que, claro, adquire completamente outro sentido no caso da Saúde Pública e do poder e autoridade do Estado, nas situações de perigo social, tais como as epidêmicas). Nesses termos, quando o profissional obriga a/o paciente a obedecer a sua conduta, o que entra em jogo é o esvaziamento de sua autoridade, e não seu aumento.

Arendt diferencia poder e violência de tal forma que “do cano de uma arma emerge o comando mais efetivo, resultando na mais perfeita e instantânea obediência. O que nunca emergirá daí é o poder”1616. Arendt H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2013. (p. 77). Nessa acepção, poder e violência guardam uma relação de proporcionalidade: quanto mais poder, menos violência. Para a autora, o poder emerge da ação orquestrada de mulheres e homens; é a própria finalidade da política. Já a violência é compreendida sempre como um meio para se atingir determinado fim.

Na situação de parto considerada para ilustrar nossas reflexões, de qual fim a se atingir se trata? Será que obrigar a uma assistência, tal como impor o parto cesárea como única alternativa – seja por baixa qualidade da assistência ao parto na escassez de anestesistas; pela dinâmica da jornada de trabalho dos profissionais ou modo de ocupação dos leitos hospitalares; ou por qualquer outro motivo que não a precisa indicação de uma cesárea em função das necessidades urgentes de risco para o feto ou para a mãe –, ainda corresponde à cesárea como criação tecnológica de melhoria da atenção ao parto? O questionamento é levantado pelo fato de que foi dessa última forma que a cesárea surgiu como tecnologia para o bem da vida e assim ganhou seu reconhecimento e legitimidade como prática no parto.

Observemos, então, que é distinto o uso de uma tecnologia quando representa uma melhoria assistencial para determinado caso individual daquele uso universal da tecnologia como um bem em si mesmo, isto é, independente das condições singulares em que será usada para cada caso1717. Schraiber LB. A tecnologia no pensamento de Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves. In: Ayres JR, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e historia. Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves. São Paulo, Porto Alegre: Hucitec, Rede Unida; 2017. p. 251-6.. O que diferencia essas duas situações é a serviço de que o recurso tecnológico será usado.

A capacidade de discernir de qual é a serventia do recurso tecnológico em cada situação clínica, presente na medicina liberal à medida que foram sendo criadas progressivamente novas tecnologias de intervenção99. Schraiber LB. El médico y la medicina: autonomia e y vínculos de confianza en la práctica profesional del siglo XX. Buenos Aires: Editorial Lugar; 2018., foi, em termos históricos, sendo substituída pela crença da tecnologia como um bem em si88. Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. São Paulo: Hucitec; 2008., deslocando-a da condição de um componente da prática médica – e a serviço dela – para a posição de um ente autônomo e que a preside1717. Schraiber LB. A tecnologia no pensamento de Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves. In: Ayres JR, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e historia. Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves. São Paulo, Porto Alegre: Hucitec, Rede Unida; 2017. p. 251-6.. Esse que é o processo pelo qual se implantou e se desenvolveu a própria medicina tecnológica e que engendrou, nessa autonomização reificadora da tecnologia, a progressiva alienação dos médicos como sujeitos de suas práticas. Produziu-se, assim, dialeticamente, a transformação da invenção de tecnologias como produto humano para melhoria da prática de intervenção em dispositivo desumanizado, porque negador de seu caráter subordinado ao sujeito social, que é seu agente de prática. Consequentemente, a tecnologia preside esse agente em sua intervenção, desumanizando assim a própria condição do médico em sua prática. O médico passa a ser instrumento ou meio de realização da tecnologia11. Gomes RM. Humanização e desumanização no trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017.,22. Gomes RM, Schraiber LB. A dialética humanização-alienação como recurso à compreensão crítica da desumanização das práticas de saúde: alguns elementos conceituais. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):339-50..

Na atualidade da medicina altamente tecnológica, os médicos foram levados, por processos históricos dos quais também foram atores como sujeitos sociais, a essa posição de sempre valorizar a prática armada de tecnologias99. Schraiber LB. El médico y la medicina: autonomia e y vínculos de confianza en la práctica profesional del siglo XX. Buenos Aires: Editorial Lugar; 2018.. À medida que assim o fizeram, foram também diminuindo sua importância como agentes da prática em medicina: de sujeitos capazes de optar e discernir escolhas no uso desses recursos, por meio da faculdade do julgar, foram se conduzindo para um papel mais subsidiário de meio de acesso às tecnologias, cujo uso já não necessariamente passará por sua escolha. Como nos mostra Schraiber, a passagem da medicina liberal para a medicina tecnológica corresponde a uma crise das interações na relação médico-paciente, entre outras, gerando a “crise dos vínculos de confiança”, criados na medicina liberal e baseados na legitimação da autoridade do médico, tal qual já antes mencionado. Assim, a crise de confiança pode ser lida como um esvaziamento da própria autoridade médica. Em uma sociedade profundamente aderida e crente na ciência, mais por seus produtos tecnológicos do que pelo conhecimento produzido, a autoridade sobre o saber acerca dos adoecimentos e terapêuticas é desencarnada dos sujeitos que operam as tecnologias da saúde para se depositar sobre as próprias tecnologias. Assim, na medicina tecnológica, o usuário busca o serviço, e não o médico. De outro lado, o médico não tem mais o “seu” paciente, mas o paciente do serviço. O protagonismo das tecnologias em detrimento dos profissionais e dos próprios pacientes faz com que as próprias tecnologias passem a ser socialmente encaradas não só por meio da tomada de decisão clínica, mas também como direito e como produto, relativamente ao seu acesso e ao seu consumo, respectivamente.

É dentro dessa transformação histórica dos novos papéis assumidos pela tecnologia na saúde que surge o debate sobre a cesariana como direito das mulheres, como produto de consumo e como indicação clínica. E é nesse processo histórico que assistimos aos abalos da autoridade profissional produzidos por essa reificação das tecnologias em relação à prática em medicina.

Referências

  • 1
    Gomes RM. Humanização e desumanização no trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017.
  • 2
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  • 3
    Brasil. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Lei nº 17.137, de 23 de Agosto de 2019. Garante à parturiente a possibilidade de optar pela cesariana, a partir de 39 (trinta e nove) semanas de gestação, bem como a analgesia, mesmo quando escolhido o parto normal. São Paulo: Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo; 2019.
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  • 9
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2020
  • Aceito
    16 Jun 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br