Ampliando o acesso: o Acolhimento por Equipe como estratégia de gestão da demanda na Atenção Primária à Saúde (APS)

Amplifying access: Team Embracement as a demand management strategy in Primary Health Care (APS) (abstract: p. 17)

Ampliación del acceso: la Acogida por Equipo como estrategia de gestión de la demanda en la Atención Primaria de la Salud (APS) (resumen: p. 17)

Diângeli Soares Camargo Elen Rose Lodeiro Castanheira Sobre os autores

Resumos

Experiências de reorganização do acesso aos serviços de saúde, para promover sua utilização de forma racional e inclusiva, têm se multiplicado no âmbito da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Este trabalho estuda uma dessas experiências por meio da implantação do Acolhimento por Equipe (AE) em São Bernardo do Campo. Desenvolveu-se um estudo de caso, qualitativo, com base na experiência de 12 profissionais da ESF. Concluiu-se que o AE foi produto do protagonismo dos trabalhadores que ousaram assumir a gestão da demanda para produzir mudanças. Alguns dos principais resultados foi a redução significativa do tempo de espera para consultas e a maior satisfação dos envolvidos, indicando que o AE foi uma experiência positiva de ampliação do acesso e de enfrentamento de uma das maiores problemáticas do Sistema Único de Saúde (SUS).

Acesso aos serviços de saúde; Atenção Primária à Saúde; Saúde da Família


Experiences of access reorganization to promote the utilization of health services in a rational and inclusive way have been frequent in the sphere of the Family Health Strategy. This study focuses on one of these experiences through the implementation of “Team Embracement” in the city of São Bernardo do Campo, State of São Paulo, Brazil. A qualitative case study investigated the experience of 12 Family Health Strategy professionals. It was concluded that Team Embracement was a product of the workers’ protagonism, as they dared to assume demand management to produce changes. The main results include a significant reduction in the waiting time for medical appointments and the greater satisfaction of the individuals involved, indicating that Team Embracement is a positive experience that has amplified the access to health services and has tackled one of the greatest problems of the Brazilian National Health System.

Access to health services; Primary Care; Family Health


Las experiencias de reorganización del acceso para promover la utilización de los servicios de salud de forma racional e incluyente se han multiplicado en el ámbito de la estrategia de Salud de la Familia (ESF). Este trabajo estudia una de estas experiencias por medio de la implantación de la “Acogida por Equipo” (AE) en São Bernardo do Campo, São Paulo, Brasil. Se desarrolló un estudio de caso cualitativo con base en la experiencia de 12 profesionales de la ESF. Se concluyó que el AE fue producto del protagonismo de los trabajadores que osaron asumir la gestión de la demanda para producir cambios. Uno de los principales resultados fue la reducción significativa del tiempo de espera para consultas y la mayor satisfacción de los envueltos, indicando que el AE fue una experiencia positiva de ampliación del acceso y de enfrentamiento de una de las mayores problemáticas del Sistema Brasileño de Salud.

Acceso a los servicios de salud; Atención Primaria de la Salud; Salud de la Familia


Introdução

A gestão da demanda, com o objetivo de disciplinar a utilização dos serviços de saúde de forma racional e inclusiva, é um dos grandes desafios do SUS. O tema assume particularidades quando analisado sob a ótica da Atenção Primária à Saúde (APS), por se tratar de uma das principais estratégias de consolidação da saúde como direito. Starfield 11. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco; 2002. trata do assunto ao diferenciar acesso e acessibilidade, delimitando o primeiro enquanto experimentação do segundo. A acessibilidade versa sobre aspectos estruturais que influenciam na capacidade de se chegar aos serviços, enquanto o acesso se debruça sobre a liberdade de sua utilização. Essa liberdade se processa por meio das diferentes possibilidades de mediação que se estabelecem entre os serviços e a comunidade 22. Assis MMA, Jesus WLA. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Cienc Saude Colet. 2012; 17(11):2865-75.,33. Pires Filho LAS, Azevedo-Marques JM, Duarte NSM, Moscovici L. Acesso avançado em uma unidade de saúde da família do interior do estado de São Paulo: um relato de experiência. Saude Debate. 2019; 43(121):605-13. .

Para compreender a situação do acesso na APS brasileira, podemos nos valer de dados do Conselho Federal de Medicina (CFM), que identificaram que o acesso às Unidades Básicas de Saúde (UBS) era referido como “muito difícil” ou “mais difícil” por 37% dos entrevistados. A maioria (53%) classificou da mesma forma o acesso às consultas médicas em Postos de Saúde 44. Brasil. Conselho Federal de Medicina. Opinião dos brasileiros sobre o atendimento público na área de saúde [Internet]. Brasília: CFM; 2018 [citado 28 Ago 2019]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/datafolha_sus_cfm2018.pdf
https://portal.cfm.org.br/images/PDF/dat...
. Esses achados encontram paralelo em outras pesquisas que corroboram que grande parte da população brasileira tem uma percepção negativa em relação ao acesso aos serviços públicos de saúde 55. Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Sistema de indicadores de percepção social – saúde [Internet]. Brasília: Ipea; 2019 [citado 23 Ago 2019]. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=24420&catid=120&Itemid=2
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?...
,66. Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. A saúde na opinião dos brasileiros [Internet]. Brasília: CONASS; 2019 [citado 23 Ago 2019]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/opiniao_brasileiros1.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
.

De forma semelhante, Protasio et al . 77. Protasio APL, Gomes LB, Machado LDS, Valença AMG. Factors associated with user satisfaction regarding treatment offered in Brazilian primary health care. Cad Saude Publica. 2017; 33(2):1-15. investigaram fatores associados à satisfação dos usuários utilizando dados do Programa de Melhoria do Acesso e Qualidade na Atenção Básica (PMAQ-AB). Os autores identificaram que horários de agendamento incompatíveis com os do usuário, não passar a maior parte das vezes com o mesmo médico e comparecer a um serviço sem ser agendado ou atendido no mesmo dia são importantes causas de insatisfação. Esse e outros achados reforçam a relação entre acesso e satisfação dos usuários e apontam a importância em se promover mudanças.

A literatura evidencia que sistemas de saúde baseados em uma APS forte produzem melhores resultados de saúde 88. Giovanella L, Almeida PF. Atenção primária integral e sistemas segmentados de saúde na América do Sul. Cad Saude Publica. 2017; 33(2):1-21. . Starfield 11. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco; 2002. identifica quatro atributos essenciais de uma APS de alta performance , incluindo o acesso de primeiro contato. Nesse sentido, a garantia de acesso oportuno é não apenas um aspecto desejável pela população, mas também característica de uma APS de boa qualidade.

No caso específico do Brasil, a ESF é uma das principais formas de oferecer APS no país, tendo promovido uma maior aproximação entre os serviços e a população ao vincular indivíduos e comunidades de um determinado território a uma equipe de referência.

Nesse contexto, a implementação do acesso enquanto direito universal pode ser analisada a partir de diferentes dimensões – política, econômico-social, organizacional, técnica ou mesmo simbólica 22. Assis MMA, Jesus WLA. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Cienc Saude Colet. 2012; 17(11):2865-75. . Para o cotidiano dos serviços de APS, ganha importância a proposição de medidas que reorganizem as ações e viabilizem o acesso, ampliando a capacidade de resposta às necessidades de saúde. Desse modo, em que pese a complexidade das diferentes dimensões envolvidas, pode-se afirmar que o acesso tem na dimensão técnica e organizacional um nó crítico importante para o fortalecimento da APS.

A Política Nacional de Humanização (PNH), lançada em 2003, tentou equacionar essa problemática ao propor a diretriz do acolhimento como forma de ampliar o acesso a partir da qualificação da escuta e da reorganização do processo de trabalho. Embora tenha sido implementada em vários serviços, essa proposição encontrou diversos obstáculos para efetivar-se de forma extensiva 99. Coutinho LRP, Barbieri AR, Santos MLM. Acolhimento na atenção primária à saúde: revisão integrativa. Saude Debate. 2015; 39(105):514-24..

Ganha importância no processo de fortalecimento do acesso por meio da ampliação e qualificação da ESF o crescimento da Medicina de Família e Comunidade (MFC) enquanto especialidade médica estratégica para a APS. A MFC é amplamente difundida no mundo, sendo o médico de Família e Comunidade o principal ator médico da APS em diversos países, especialmente aqueles que trabalham com “[...] mecanismos de coordenação hierárquica, do tipo gatekeeper [...]” 1010. Giovanella L. A atenção primária à saúde nos países da União Européia: configurações e reformas organizacionais na década de 1990. Cad Saude Publica. 2006; 22(5):951-63. (p. 954).

No que se refere ao acesso, os médicos de Família e Comunidade atuam como primeiro contato médico às demandas de todas as ordens da população em geral, em atuação integrada com a dos profissionais de Enfermagem e dos agentes comunitários de saúde (ACS), com papel já bastante consolidado nesse sentido 99. Coutinho LRP, Barbieri AR, Santos MLM. Acolhimento na atenção primária à saúde: revisão integrativa. Saude Debate. 2015; 39(105):514-24. . Assim, nas últimas décadas, diversos serviços de APS ao redor do mundo – entre eles, diversas clínicas de MFC – desenvolveram experiências pioneiras no campo do acesso. Uma das experiências mais significativas foi a do acesso avançado (AA) 1111. Murray M, Tantau C. Same-day appointments: exploding the access paradigm. Fam Pract Manag. 2000; 7(8):45-50. .

No Brasil, os médicos de Família e Comunidade vêm protagonizando um novo movimento de reorganização do acesso por meio da redefinição do fluxo de acolhimento e de agendamento de consultas. Essas experiências, com inequívoca inspiração no AA, multiplicaram-se de maneira acelerada por todo o Brasil, com iniciativas variadas em diversas localidades, notadamente em Florianópolis, Curitiba e Rio de Janeiro 1212. Prefeitura Municipal de Curitiba. Novas possibilidades de organizar o acesso e a agenda na atenção primária à saúde [Internet]. Curitiba: Secretaria Municipal da Saúde; 2019 [citado 23 Ago 2019]. Disponível em: http://www.saude.curitiba.pr.gov.br/images/cartilha%20acesso%20avan%C3%A7ado%2005_06_14.pdf
http://www.saude.curitiba.pr.gov.br/imag...
.

O presente trabalho analisa uma experiência de mudanças no acesso por meio do estudo da implantação do AE, dispositivo de acesso focado na gestão da demanda por meio da reorganização das agendas das equipes de Saúde da Família (SF) na cidade de São Bernardo do Campo.

O AE foi concebido e implementado por duas equipes de SF do município em resposta a uma demanda do Programa de Residência Médica em Medicina de Família e Comunidade (PRMMFC), criado em 2014. A chegada da residência aos serviços provocou uma série de mudanças direcionadas à inclusão do ensino à missão assistencial. A revisão do acesso, incluindo os novos sujeitos e sua rotina de trabalho, foi uma delas. A análise desse processo pode trazer questões que permitam seu aprimoramento e sirvam de base para novas experiências de ampliação do acesso ao cuidado na APS.

Metodologia

Trata-se de pesquisa qualitativa na forma de estudo de caso, com base na experiência de dois serviços de APS que implantaram o AE.

Os serviços foram identificados como UBS A e UBS B, estão situados no município de São Bernardo do Campo e compõem o campo de estágio do Programa de Residência Médica em Medicina de Família e Comunidade da Secretaria de Saúde desse município (PRMMFC). Os sujeitos que integram o estudo foram categorizados em dois grupos: o núcleo fundador e o núcleo contemporâneo.

Compõem os núcleos as duas equipes de SF responsáveis pela concepção e implantação do AE. Assim, foram incluídos sujeitos que atuaram nos serviços e nestas equipes em 2014 e em 2018. Eles são identificados a partir de seu papel, núcleo e serviço de atuação (exemplo: “médico do núcleo fundador da UBS A – MFA”).

Foram critérios de inclusão ser médico ou enfermeiro da equipe de SF, estudante de pós-graduação na modalidade de residência médica ou multiprofissional vinculado à equipe de SF e gestor local do serviço. Além disso, os sujeitos identificados na fase exploratória da pesquisa foram considerados os principais atores envolvidos no processo de implantação do AE.

A coleta de dados se deu por meio de 12 entrevistas semiestruturadas realizadas em fevereiro de 2018. Seis trabalhadores entrevistados preenchiam os requisitos de cada núcleo. As enfermeiras das equipes permaneciam as mesmas, sendo alocadas no núcleo fundador.

Os sujeitos da pesquisa foram identificados como se segue:

  1. Médicos do núcleo fundador e contemporâneo da UBS A e B: M.F.A, M.F.B, M.C.A, M.C.B.

  2. Enfermeiros do núcleo fundador e contemporâneo da UBS A e B: E.F.A, E.F.B.

  3. Gestores do núcleo fundador e contemporâneo da UBS A e B: G.F.A, G.C.A, G.C.B.

  4. Médicos e enfermeiros residentes do núcleo fundador e contemporâneo da UBS A e B: M.R.F.B, M.R.C.A, E.R.C.A

Os dados foram tratados segundo o referencial da análise de conteúdos de Laurence Bardin e do método hermenêutico-dialético de Minayo, passando pelas seguintes etapas: a) leitura flutuante do material; b) seleção das unidade de registro e contexto; c) elaboração de categorias; e d) análise final, com articulação entre os dados obtidos e os referenciais teóricos da pesquisa. As categorias eleitas procuram refletir os principais núcleos problematizados na implantação do AE.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, disponível pela Plataforma Brasil por meio do Parecer Consubstanciado número 2.498.967 em 19 de fevereiro de 2018.

Resultados e discussão

Da análise dos dados emergiram três categorias: “O trabalhador como sujeito”, “A APS em disputa” e “O acesso na efetivação do direito à saúde”, conforme descrito a seguir.

O trabalhador como sujeito

Até 2014, todas as UBSs organizavam seu acesso seguindo as diretrizes do Documento Norteador da Atenção Básica 1313. Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo. Documento norteador da atenção básica – 2014 [Internet]. São Bernardo do Campo; 2014 [citado 23 Ago 2019]. Disponível em: https://www.saobernardo.sp.gov.br/web/sbc/protocolos-documentos-e-diretrizes
https://www.saobernardo.sp.gov.br/web/sb...
. Para compreender a jornada do usuário dentro do serviço antes do AE, pode-se recorrer ao fluxograma descrito a seguir ( figura 1 ).

Figura 1
Fluxograma de acolhimento antes do AE 2014 1313. Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo. Documento norteador da atenção básica – 2014 [Internet]. São Bernardo do Campo; 2014 [citado 23 Ago 2019]. Disponível em: https://www.saobernardo.sp.gov.br/web/sbc/protocolos-documentos-e-diretrizes
https://www.saobernardo.sp.gov.br/web/sb...

O fluxograma demonstra que todo usuário sem agendamento prévio deveria ser direcionado ao acolhimento, para escuta qualificada e distinção da demanda em queixa aguda ou não. Se a queixa fosse considerada aguda, o usuário seria direcionado para atendimento no dia. Estava prevista uma vaga por hora para esse tipo de demanda na agenda dos médicos e enfermeiros. Observa-se, portanto, uma reserva de 25 a 30% das vagas para atendimento no mesmo dia, o que caracteriza um tipo de acesso referido na literatura como carve-out1111. Murray M, Tantau C. Same-day appointments: exploding the access paradigm. Fam Pract Manag. 2000; 7(8):45-50. . Em caso de queixa crônica ou não aguda, o usuário deveria ser referenciado após a escuta qualificada para agendamento na recepção.

O documento não orientava o manejo dos usuários que excedessem o limite de uma vaga por hora, limitando-se a instruir que “os casos de urgência e emergência devem ter o atendimento garantido”. Outro limite observado era a possibilidade de deturpação da reserva de vagas para as consultas do dia. Na UBS A, por exemplo, essa vaga era chamada de “não obrigatório” e frequentemente era utilizada para cobrir a necessidade de vagas para agendamento.

[...] por exemplo, eu cheguei em janeiro e já tava marcado o “não obrigatório” de março. (M.F.A.)

A espera por consultas era, também, bastante longa:

É, quando eu entrei [em 2013] já tinha aberta essa agenda, então, que eu lembro, tinha aberto acho que em julho, aí já tinha acabado, até dezembro [...]. (E.F.A.)

É neste cenário que surge o AE, com incentivo do PRMMFC, conforme conta a entrevistada a seguir:

[...] quando eu fui para SBC [São Bernardo do Campo], me veio uma encomenda mais ou menos assim: [...] “você está sendo chamada para ser médica de família” [...] numa área extremamente vulnerável [...] vai ter essa residência porque a linha agora é tentar qualificar essas pessoas que estão na rede, [...] e a gente acha que a residência é esse processo [...] fui recebida pelo [G.F.A] [...] ele chegou e falou assim: “Olha, você tem uma agenda aqui, [...] da antiga médica, até o dia 16 de março e aí dia 17 é vida nova”. [...] já tava mais ou menos costurado que a gente ia tentar fazer um negócio diferenciado, entendeu? Eu acho que deve ter sido a coordenadora do PRMMFC mesmo, que fez essa encomenda. (M.F.A.)

Em 2014, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) publicou o seu Currículo Baseado em Competências” 1414. Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Currículo baseado em competências [Internet]. Rio de Janeiro: SBMFC; 2019 [citado 24 Ago 2019]. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/noticias/sbmfc-divulga-curriculo-baseado-em-competencias/
https://www.sbmfc.org.br/noticias/sbmfc-...
, no qual discute a postura do MFC diante das diferentes demandas de saúde em suas competências essenciais:

Atua como primeiro contato do paciente com o sistema de saúde, prestando um acesso aberto e ilimitado e lidando com todos os problemas de saúde independentemente da idade, sexo ou qualquer outra característica da pessoa” 1414. Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Currículo baseado em competências [Internet]. Rio de Janeiro: SBMFC; 2019 [citado 24 Ago 2019]. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/noticias/sbmfc-divulga-curriculo-baseado-em-competencias/
https://www.sbmfc.org.br/noticias/sbmfc-...
. (p. 14)

É também princípio geral da especialidade ser “[...] recurso de uma população definida.” 1515. Lopes JMC, Chaves DL. Princípios da medicina de família e comunidade. In: Gusso G, Lopes JMC, Chaves DL, editores. Tratado de medicina de família e comunidade. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2018. p. 1-10. (Princípios, Formação e Prática, vol. 1). (p. 5), o que demanda, para seu adequado exercício, estar acessível a essa população. Assim, é possível compreender por que o acesso veio a ser objeto de discussão no contexto de nascimento do PRMMFC.

As figuras 2 e 3 exemplificam a jornada do usuário na vigência do AE. À disposição do usuário, existiam três profissionais, responsáveis pelas funções receptiva, de primeira escuta e de atendimento. Cada uma dessas funções era geralmente desempenhada pelos ACS, enfermeiros e médicos das equipes de SF, respectivamente. Assim, após ser identificado pelo ACS, o usuário tinha sua demanda escutada pelo enfermeiro, que tinha como opções direcionar o usuário para atendimento médico do dia, agendá-lo em grupos ou vagas protegidas da equipe ou ainda realizar consulta de Enfermagem no ato do atendimento.

Figura 2
Fluxograma de acolhimento após o AE. Autoria própria.

Figura 3
Etapas de atendimento do usuário no AE. Autoria própria.

As primeiras conversas para a definição do novo desenho teriam se desenrolado entre as médicas e enfermeiras das equipes, sendo posteriormente levadas para os demais membros da equipe:

[...] tinha esse receio por parte da enfermeira: [...] “de que adianta botar a gente lá pra escutar se a gente não vai conseguir ter as vagas?! A gente não vai conseguir gerir essa agenda” [...]. Então eu falei: “Não! Vai dar certo porque [...] a gente vai imprimir uma agenda, ela vai ficar na nossa mão e se alguém precisar vai falar com a gente [com a médica e a enfermeira da equipe], a gente tá aqui todos os dias, o dia inteiro, e a gente vai fazer o processo de tentar gerir isso aí. (M.F.A.)

[...], sentamos com a gerência, [...] pra ver se era possível que a gente tivesse o controle da agenda, com uma marcação que acontecesse com a gente no acolhimento. Aí o [gestor] topou [...], depois a gente teve que fazer uma reunião [...] com o resto da equipe, [...] que foi basicamente só sobre acolhimento, que aí a gente explicou qual era nossa ideia [...] e aí deixou o pessoal aberto pra falar o que achava assim. E aí isso foi bem recebido. (M.F.B)

Apesar da boa receptividade nas equipes, também houve resistências:

O pessoal da recepção, no início eles [...] não entendiam. Eles falavam “Como assim? Médico vai marcar consulta, enfermeiro vai marcar consulta?” [...] Os auxiliares de enfermagem no início também não gostaram. Até hoje, alguns deles não aceitam muito, os que não participam, [...] eles acham que é imediatismo [...]. (E.F.B)

Superadas as resistências iniciais, era a hora de colocar a proposta em prática:

[...] a gente fez um panfletinho pras ACS entregarem e isso ficou só na nossa equipe no primeiro momento, foi meio que um teste. E aí a gente foi explicando nos grupos também como ia funcionar o acolhimento por equipe, que a marcação ia ser lá e que não era só marcação, mas que as pessoas podiam levar qualquer tipo de demanda naquele momento [...]. (M.F.B)

Os primeiros dias do AE são descritos como de intensa procura:

Os primeiros dias são todos muito ruins assim, porque você fica sem almoçar [...] era 60 senhas [...]. (M.F.A)

[...] a gente tinha um livro de controle [...] a gente atendeu 98 senhas no primeiro dia [...]. (M.R.F.B)

Apesar do início difícil, passadas algumas semanas, os trabalhadores começaram a observar os primeiros resultados positivos:

[...] a população gostou bastante no início, tá? [...] Com o passar do tempo, eles foram entendendo como funcionava realmente, aí eles gostaram bastante. Já chegava, tanto com demanda de rotina quanto com demanda de queixa aguda, já era resolvida na hora ou a consulta era agendada para muito próximo, 15 dias, 20 dias [ou] consulta com enfermeiro. Valoriza muito o trabalho do enfermeiro, aquele tipo de acolhimento, foi bem produtivo, a população gostou assim bastante. (E.F.B)

A consolidação da experiência veio com o passar dos anos. Inicialmente realizado apenas pelas equipes fundadoras, já em 2015 o AE passou a ser realizado por outras equipes até que todas o adotassem. Esse processo passou a ser referência dentro do município:

E foi engraçado que, quando o acolhimento por equipe no território 7 começou, ele acabou se consolidando, isso foi um espelho pra cidade toda na época. [...] eu tava [em outro serviço] na época, [...] e fui até lá [...] e quem nos recebeu [...] foi a [M.F.A] Ela conversou com a gente por uns 40 minutos. Depois eu fui pra [UBS B], onde a gente vivenciou o acolhimento por equipe na prática [...]. E, com isso, a gente fez a implantação disso lá na [UBS de outro território]. (G.C.A)

Segundo Rodrigues 1616. Rodrigues JB. O acolhimento na atenção básica: desafios e avanços no município de São Bernardo do Campo [mestrado]. São Paulo: Instituto de Saúde; 2018. , o AE acabou sendo adotado por ao menos 12 serviços do município, por iniciativa destes, a partir dessas visitações realizadas nas UBSs A e B.

É interessante observar o engajamento dos trabalhadores em desenvolver um novo dispositivo de acesso e o fato de isso ter sido bem-sucedido nesse cenário. Alguns trabalhadores destacam a dificuldade de efetuar mudanças semelhantes em outros municípios:

[...] no [outro município] que eu trabalhei [...] eu tinha um absenteísmo de mais de 50% [...] e eu era cobrada no final do mês pelos números [...], mas gente, as pessoas não vêm, entendeu? Porque o fluxo era: o paciente chegava na recepção [...] que ficava falando que não tem vaga, “não tem vaga”, ou [...] abria a agenda e de repente você tinha um vaga para daqui três, quatro meses, e aí em três, quatro meses, o problema que a pessoa tinha hoje ou já passou, ou ela procurou outro lugar, ou já deu errado [...], ou esqueceu [...]. Eu cheguei até a fazer uma proposta. Falei: “Ó, eu quero aumentar minha produção, então vamos fazer o seguinte: todo mundo [da área] da minha equipe, que chegar na unidade, eu atendo, pode ser?”. Aí [...] a gerente disse assim: “Escreve, escreve isso aí que eu tenho que mandar para supervisão da OS [Organização Social]”. Aí eu escrevi, até coloquei algumas referências bibliográficas [...], aí uma hora eu perguntei: “E aquela proposta?”. Né? “Como foi recebida?” Aí ela falou: “Ah! Então, preciso te falar. A supervisora, ela leu, achou legal você ter feito uma proposta e tal, mas eles acham que é muito poder o médico ter a gestão sob a sua própria agenda”. [risos] Aí eu falei “Ah! Tá bom”. (M.F.A)

Em São Bernardo do Campo, nos anos pré-AE, esse comportamento também podia ser observado:

[...] aí rolava uma briga com a gerência, porque eu queria ter mais controle da minha agenda e era um pouco difícil, [...] eu só queria ter uns horários pra atender os pacientes que as meninas me trouxessem, as ACSs. E com o tempo fui conseguindo [...], mas demorou. (M.F.B)

Essa postura evidencia um alijamento dos trabalhadores de saúde da gestão da organização do trabalho. A gestão participativa, prevista nas políticas de saúde do SUS, busca incentivar e acolher a participação de usuários e trabalhadores nos espaços de formulação e monitoramento das políticas públicas de saúde.

A separação histórica entre planejamento e execução do trabalho originalmente ocorrida na produção fabril e que, por analogia, tende a se repetir nos serviços, leva a um processo de alienação do trabalhador e a seu alijamento do processo global de produção, desumanizando o processo de trabalho 1717. Malta DC, Merhy EE. A micropolítica do processo de trabalho em saúde - revendo alguns conceitos. REME Rev Min Enferm. 2003; 7(1):61-6. .

Em contraposição ao trabalho alienado e coadunado com a utopia democrática do SUS, Campos 1818. Campos GWS, Sousa Campos GW. O anti-Taylor: sobre a invenção de um método para co-governar instituições de saúde produzindo liberdade e compromisso. Cad Saude Publica. 1998; 14(4):863-70. propõe um modelo de cogestão de organizações de saúde, composto por “unidades de produção” no interior das organizações de saúde. Essas unidades de produção se colocariam em alternativa aos departamentos e seções recortadas para envolver todos os sujeitos implicados no processo de trabalho. Assim, equipes multiprofissionais comporiam coletivos comprometidos e responsabilizados, incumbidos da tarefa de propor diretrizes para a realização de um determinado trabalho.

Assim, pode-se compreender que as equipes de SF de ambos os serviços operaram como unidades de produção “comprometidas e responsabilizadas”, atuando sob a supervisão matricial dos gestores locais que abriram espaço para as mudanças que se sucederam.

A APS em disputa

Para além da gestão das agendas, outro ponto de tensão era o atendimento da demanda do dia no mesmo dia, o que era tido por alguns como uma deturpação dos propósitos da APS. Muitos entendiam que esse processo equiparava os serviços aos prontos atendimentos:

Eu já ouvi sobre isso [...]. [O seu serviço] é a UPA [Unidade de Pronto Atendimento] do [bairro da UBS A]. (E.R.C.A)

Esse pensamento reflete uma lógica que polariza ações de prevenção e o atendimento a problemas crônicos, com o cuidado das queixas agudas. Essa polarização foi importante nos debates ocorridos na implantação do SUS nos anos 1990 e ainda se mantém no ideário e nas práticas de muitos serviços, apesar das diretrizes de superação presentes nas próprias políticas de Atenção Básica e na implementação da ESF no sentido de ampliar o acesso e a capacidade resolutiva da APS. Os trabalhadores que defendem o AE criticam essa leitura:

[...] eu acho que a pessoa ser atendida no mesmo dia não tem nada a ver com pronto-socorro. Depende, na verdade, do nível de complexidade da questão aguda, pra gente [...] dizer se isso é um pronto-socorro ou não [...] e, se for na Atenção Primária que a gente for fazer isso, e a gente conseguir limitar essas várias idas, muitas vezes pontuais no pronto-socorro, vai possibilitar um cuidado das pessoas, na verdade [...]. (M.C.B)

Murray e Tantau 1111. Murray M, Tantau C. Same-day appointments: exploding the access paradigm. Fam Pract Manag. 2000; 7(8):45-50. descrevem um paradigma muito popular entre os trabalhadores de saúde, que postula: “se você estiver realmente doente, nós devemos vê-lo hoje; se você não estiver realmente doente, você pode esperar” (p. 48). Essa crença se coaduna com o expresso na fala imediatamente anterior, com um adendo: se o usuário não pode esperar, não deveria estar em um serviço de APS. Isso, contudo, contradiz o atributo do primeiro contato 11. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco; 2002. e as diretrizes do SUS para a APS.

Um conceito importante para compreender a pertinência do acesso oportuno é o de experiência da doença, ou illness , e de doença, ou disease . De acordo com Sir William Osler, “Uma determinada doença ( disease ) é o que todos com essa patologia têm em comum, mas a experiência sobre a doença ( illness ) de cada pessoa é única” 1919. Lopes JMC, Chaves DL. Consulta e abordagem centrada na pessoa. In: Gusso G, Lopes JMC, Chaves DL, editores. Tratado de medicina de família e comunidade. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2018. p. 132-45. (Princípios, Formação e Prática, vol. 1). (p. 136). Assim, o sofrimento relativo a um problema de saúde não é meramente proporcional às suas repercussões orgânicas, mas sim ao significado que lhe é atribuído pelo indivíduo. Dessa forma, nem sempre o que é considerado não urgente pelo profissional de saúde é não urgente para usuário, podendo gerar enfrentamentos, perda de vínculo e descrença no sistema de saúde.

Esses conceitos também ajudam a explicar por qual razão pessoas com problemas crônicos têm dificuldade em aderir às condutas propostas. Pela natureza assintomática desses problemas, muitos não se sentem doentes e, portanto, relativizam a necessidade de se tratar 1919. Lopes JMC, Chaves DL. Consulta e abordagem centrada na pessoa. In: Gusso G, Lopes JMC, Chaves DL, editores. Tratado de medicina de família e comunidade. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2018. p. 132-45. (Princípios, Formação e Prática, vol. 1). . Assim, a busca destes usuários por atendimento, por qualquer razão, deve ser encarada como uma janela de oportunidade para a promoção do cuidado.

Outro ponto de tensão era o cuidado aos grupos tidos como prioritários, notadamente os hipertensos, diabéticos, gestantes e crianças. Nas palavras de uma das entrevistadas:

Tem uma resistência [...] que era assim: os pacientes, todos os hipertensos e diabéticos [...], eles não podem ir [...] na recepção marcar, porque a agenda [com a implantação do AE], ela tá prioritariamente com a equipe. [...]. Então, como é que essa pessoa vai sair e não vai ter aquela consulta pra dali seis meses? [...]. (M.F.A)

O AE, ao aumentar de forma importante a oferta de consultas no mesmo dia, reduziu a possibilidade de agendamento a longo prazo. Isso afetou a forma como as equipes estavam acostumadas a trabalhar com esses grupos.

A eleição de grupos prioritários, em uma perspectiva de integração médico-sanitária que procurava superar a dicotomia entre assistência médica e saúde pública, encontra diversas proposições na história da APS no Brasil, como a programação em saúde das décadas 1960 e 1970; e a ação programática em saúde e a vigilância em saúde, ambas do fim da década de 1980. Essas iniciativas representaram tentativas de promover uma APS mais integral, ainda que, em virtude de suas contradições, próprias ou contextuais, tenham avançado de forma limitada nesse sentido, dentro das restrições de cada momento histórico 2020. Mota A, Schraiber LB. Atenção primária no sistema de saúde: debates paulistas numa perspectiva histórica. Saude Soc. 2011; 20(4):837-52. .

No que se refere especificamente aos grupos prioritários, merecem destaque as seguintes políticas: o Programa de Saúde Maternoinfantil (PSMI), na década de 1970; o Programa de Assistência Integral à Saúde da Criança, na década de 1980; o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, também na década de 1980; e o Plano Nacional de Reorganização da Atenção à Hipertensão e Diabetes Mellitus, nos anos 2000 2121. Cassiano ACM, Souza Carlucci EM, Gomes CF, Bennemann RM. Saúde materno infantil no Brasil: evolução e programas desenvolvidos pelo Ministério da Saúde. Rev Serv Publico. 2014; 65 (2):227-44.,2222. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Plano de reorganização da atenção à hipertensão arterial e ao Diabetes mellitus. Brasília: Ministério da Saúde; 2002. .

Se, por um lado, essas políticas guardam dentro de si um movimento em direção à integralidade, é certo que carregam simultaneamente a limitação de serem focados na doença ou no risco de adoecer e de propor um conjunto de ações com foco na vigilância, o que acarreta muitas vezes um empobrecimento da clínica e do atendimento às necessidades individuais de cada sujeito. A memória coletiva desse arcabouço de programas orientando o trabalho na APS irá influenciar a concepção dos trabalhadores acerca do seu papel. A Saúde da Família, em sua concepção inicial enquanto programa, fez parte desse contexto, como pode-se perceber no excerto a seguir, de Franco e Merhy 2323. Merhy EE, Magalhães Júnior HM, Rimoli J, Franco TB, Bueno WS. O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2003.:

O PSF tem sua matriz teórica circunscrita prioritariamente ao campo da vigilância à saúde. [...]. Não dá muito valor ao conjunto da prática clínica, [...]. Desta forma o PSF desarticula sua potência transformadora, aprisionando o trabalho vivo [...] em normas e regulamentos definidos conforme o ideal da vigilância à saúde [...]. 2323. Merhy EE, Magalhães Júnior HM, Rimoli J, Franco TB, Bueno WS. O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2003. (p. 1-10)

A necessidade de equacionar essas questões contribuiu para a redefinição do Programa Saúde da Família (PSF) em “estratégia” em meados dos anos 2000.

A expectativa dos trabalhadores em relação aos grupos prioritários baseia-se também na experiência de uma APS seletiva, descrita por Giovanella e Mendonça 2424. Giovanella L, Mendonça MHM. Atenção primária à saúde. In: Carvalho LG, Vasconcelos Costa ESLL, Noronha JC, Ivo A, editores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 575-625. , como um modelo de atenção baseado em programas de objetivos restritos, voltados para populações pobres e que se valem de recursos de baixa densidade tecnológica. Segundo as autoras, na APS do Brasil prevaleceu um modelo que preconizava os cuidados preventivos, relegando o manejo dos agravos aos ambulatórios médicos e hospitais. Observa-se, portanto, ecos da APS seletiva nas resistências dos profissionais a mudanças mais inclusivas.

A promoção de um cuidado mais abrangente é um importante argumento de defesa do AE. Com ele, os serviços parecem ter se aberto a novas demandas e, ao contrário do que poderia se esperar, o cuidado a esses grupos não foi secundarizado:

Eu acho que [o AE] ajuda. [...] Porque aquele paciente [...], se ele sente que “Olha, minha diabetes não tá controlada, não estou me sentindo muito bem”, ele vem pro acolhimento por equipe. [...] Ele acaba vindo mais vezes, porque ele sabe que vai ser atendido, que vai ser escutado, ele sabe que ele vai resolver a demanda dele [...]. (E.R.C.A)

O acesso na efetivação do direito à saúde

Segundo os entrevistados, o principal mérito do AE na ampliação do acesso é a redução expressiva do tempo de espera para consultas e a possibilidade de atendimento das necessidades expressas pelos usuários. Essa redução advém da gestão das agendas por parte das equipes de SF e da reserva prioritária de vagas para consultas no mesmo dia.

[...] ele [o AE] permite a racionalização da agenda, que basicamente significa você conseguir atender as pessoas [...] no tempo que elas precisam, de acordo com suas necessidades e as potencialidades da equipe. E [possibilita] você [...] reduzir a zero o tempo de espera pra consulta médica, que também é um grande entrave no SUS [...]. (M.C.A)

Convém assinalar, entretanto, que, apesar de o AE pressupor a maior parte dos atendimentos no mesmo dia, uma parte considerável ainda era postergada para além de 48 horas. Isso demonstra que, apesar de se distanciar do modelo anteriormente praticado, o AE ainda operava nos limites do modelo carve-out1515. Lopes JMC, Chaves DL. Princípios da medicina de família e comunidade. In: Gusso G, Lopes JMC, Chaves DL, editores. Tratado de medicina de família e comunidade. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2018. p. 1-10. (Princípios, Formação e Prática, vol. 1). . Se considerarmos os modelos de acesso em um contínuo, poderíamos representar o AE e seu antecessor como na figura 4 .

Figura 4
Comparativo entre os tipos de acesso. Autoria própria.

Ainda assim, a avaliação é a de que o tempo de espera reduziu significativamente:

Então, hoje, as unidades com quem eu converso que trabalham com acolhimento por equipe, a agenda não é mais um problema. (G.C.B)

O AE parece também ter aberto as portas para novos sujeitos:

[...] começou a vir muita gente que antes não tinha acesso a UBS ou que vinha, mas não conseguia consulta e era mandado de volta pra casa, a gente conseguia manejar muito melhor nosso horário de agenda, então, a agenda ficava pra 15 dias em geral. (E.F.A)

É perceptível, contudo, que, em seu quarto ano de implantação, o projeto já começava a demandar alguns ajustes:

O futuro, acho que vai ser um refinamento do que é o acolhimento, né, a gente ainda tem muitas coisas que precisam melhorar. [...] passar no mesmo dia é bom, mas esperar algumas horas lá é muito ruim, né? Às vezes, pode ficar lá quatro horas e aí [...] não faz sentido [...]. (M.F.A)

O ciclo de tempo 2525. Backer LA. Strategies for better patient flow and cycle time. Fam Pract Manag. 2002; 9(6):45-50. do usuário no serviço parece ser um dos principais problemas do AE, sendo referido por todos os entrevistados. As limitações da rede em garantir o cuidado daqueles que passam a ter acesso também é problematizada:

[...] eu atendi um homem de 50 e poucos anos, que tava com [...] um emagrecimento, uma dor epigástrica e não tava melhorando. [...] Aí ele veio no acolhimento com uma endoscopia que ele fez, tinha foto, era um brocotoma horroroso. Horroroso! Aí fizeram o anatomopatológico e veio gastrite leve. E aí eu ia encaminhar como esse homem? Porque pra encaminhar pra oncologia precisa de anato [exame anatomopatológico] [...]. Tentei encaminhar pra UPA e eles devolveram. Eu achava que ele precisava ficar internado, porque ele não tava comendo nada. [...] então, não tinha pra onde mandar. Eu ia mandar pro gastro e ia demorar uns 50 mil anos. Pedi uma endoscopia, liguei na regulação, mesmo assim ia demorar. [...] você fica muito frustrada, porque você finalmente está tendo acesso a toda essa demanda, mas você não tem muito o que fazer com isso. (M.F.B)

Quando questionados a respeito do futuro, entretanto, os trabalhadores parecem compreender que o AE iniciou um processo desejável e sem volta:

Eu acho que pro futuro não tem mais volta, porque acho que é [...] uma ferramenta de trabalho muito importante [...]. (G.C.B)

[...] pelos benefícios e pelos resultados positivos que a gente alcançou até agora, retroceder não dá, isso é incompatível com a dinâmica da [UBS A] [...]. (M.F.A)

Conclusão

No fim desta investigação, conclui-se que o AE foi produto da ação protagonista dos trabalhadores de saúde que, inseridos em um contexto propício, ousaram desalienar-se para produzir a mudança 1818. Campos GWS, Sousa Campos GW. O anti-Taylor: sobre a invenção de um método para co-governar instituições de saúde produzindo liberdade e compromisso. Cad Saude Publica. 1998; 14(4):863-70. . Faz parte desse contexto fértil o nascente PRMMFC do município, evidenciando o papel que a MFC vem desempenhando na transformação do acesso nos últimos anos.

Convém destacar que as equipes de SF podem ser entendidas como microssistemas clínicos, em que uma pequena população usuária, profissionais de saúde e processos de trabalho se concatenam em um propósito comum 2626. Likosky DS. Clinical microsystems: a critical framework for crossing the quality chasm. J Extra Corpor Technol. 2014; 46(1):33-7. . Se por um lado parece ter sido desafiador processar essa mudança a partir do contexto micropolítico das equipes, pode-se pressupor igualmente ou até mesmo mais desafiador fazê-la a partir da macropolítica das gestões centrais. Nesse cenário, o recrutamento dos microssistemas locais onde o cuidado de fato se processa pode ser problemático, justamente por não se dar a partir do engajamento e da problematização destes sobre sua própria realidade.

Os resultados apontam que o AE foi competente em endereçar uma das maiores problemáticas do SUS: o tempo de espera para consultas. Isso demonstra a potência das iniciativas locais e a necessidade de as gestões se manterem permeáveis a elas.

Do ponto de vista conceitual, o AE representa um modelo de transição entre modelo carve-out e o AA. Esse deslocamento em direção ao AA também é representativo do movimento experimentado em outras localidades cujas mudanças no acesso contaram com a expressiva participação dos médicos de Família e Comunidade. Após o período de coleta de dados desta pesquisa, algumas equipes das UBSs A e B implementaram modificações no AE para adequá-lo ao preconizado pelo AA. Em 2019, a Secretaria de Saúde do município publicou uma atualização do documento norteador da Atenção Básica, propondo o AA como modelo para todas as suas UBSs 2727. Prefeitura de São Bernardo do Campo. Documento norteador e diretrizes para organização do trabalho na atenção básica no município de São Bernardo do Campo. São Bernardo do Campo; 2019. .

É discutível se, de fato, o modelo proposto pelo AA se traduz em melhores resultados de saúde e a literatura ainda não tem resposta para isso, evidenciando uma lacuna a ser preenchida. Porém, a maioria das vozes ouvidas neste estudo entende que caminhar nesta direção é positivo e aposta em um aprofundamento do processo no futuro, mantendo o desafio de criar alternativas de ampliação do acesso a uma atenção integral à saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2019
  • Aceito
    28 Jun 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br