Resumos
A equipe do Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo (Pacto-USP) desenvolve uma formação em Terapia Ocupacional (TO) que opera deslizamentos entre as artes e a clínica, para a instauração de processos formativos nos quais incidam, concomitantemente, as dimensões da experiência sensível e da produção de conhecimento. No âmbito das disciplinas de graduação e especialização na interface arte, saúde e cultura, um conjunto de dispositivos tem sido criado e efetuado de modo a instaurar aberturas por onde a elaboração das experiências pode se dar, compondo planos para uma produção de subjetividade. Este texto-colagem apresenta alguns desses dispositivos e suas ressonâncias conceituais.
Terapia ocupacional; Formação; Produção de subjetividade; Interface arte, saúde e cultura; Arte e clínica
Universidade de São Paulo’s Research on the Art and Body in Occupational Therapy (PACTO-USP) study lab team develops an occupational therapy education that links arts and clinic to introduce educational processes that take both the sensitive experience and the knowledge production dimensions into account. Within the undergraduate and specialization disciplines that combine art, health, and culture, a group of devices has been created and applied to enable experiences, making plans for the production of subjectivity. This text-collage presents some of these devices and their conceptual resonances.
Occupational therapy; Education; Production of subjectivity; Art, health, and culture interface; Art and clinic
El equipo del Laboratorio de Estudios e Investigación Arte, Cuerpo y Terapia Ocupacional de la Universidad de São Paulo (PACTO-USP) (Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo - PACTO-USP) desarrolla una formación en Terapia ocupacional que opera deslizamientos entre las artes y la clínica para la instauración de procesos formativos en los que incidan concomitantemente las dimensiones de la experiencia sensible y de la producción de conocimiento. En el ámbito de las asignaturas de graduación y especialización en la interfaz arte, salud y cultura, se ha creado y efectuado un conjunto de dispositivos para instaurar aperturas por donde pueda ocurrir la elaboración de las experiencias, componiendo planes para la producción de subjetividad. Este texto-collage presenta algunos de esos dispositivos y sus resonancias conceptuales.
Terapia ocupacional; Formación; Producción de subjetividad; Interface arte, salud y cultura; Arte y clínica
Engendrar uma formação na ambiência acadêmica, que opera deslizamentos entre as artes e a clínica para a instauração de processos formativos nos quais incidam, concomitantemente, as dimensões da experiência sensível e da produção de conhecimento, é o desafio cotidiano a que se propõe a equipe do Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo (Pacto-USP). Para fazer frente a esse desafio, um conjunto de dispositivos tem sido criado e efetuado no âmbito das disciplinas de graduação e especialização em Terapia Ocupacional (TO) na interface arte, saúde e cultura, a fim de instaurar aberturas por onde a elaboração das experiências pode se dar, compondo planos para uma produção de subjetividade11. Inforsato EA, Castro ED, Buelau RM, Valent IU, Silva CM, Lima EMFA. Arte, corpo, saúde e cultura num território de fazer junto. Fractal Rev Psicol. 2017; 29(2):110-7. Doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2160.
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Esses dispositivos são também contaminados pela frequentação em projetos coletivos vinculados à rede de parceiros, em um território de fazer junto, que busca inscrever e afirmar a clínica nos processos formativos.
Da trama desses encontros, aqui se apresentam alguns fios, rastros, em uma delicada aproximação de estados sensíveis mobilizados pelo contato com diferentes mundos. Suas denominações gravitam no entre de suas operações:
Cadernos de processo e projetos poéticos – realizados e orientados no âmbito de uma disciplina de atividades e recursos terapêuticos para o estudo dos Processos Criativos, essas estratégias corroboram para experimentações processuais por meio de técnicas do campo das artes e registros sensíveis desses andamentos tanto em sala de aula quanto em suas ressonâncias fora desse espaço.
Experimentos estético-clínicos – realizados e orientados no âmbito de uma disciplina de estágio, configuram exercícios artísticos com base nas vivências com projetos coletivos e população atendida em TO.
Diagramas conceituais e somagramas22. Keleman S. Corporificando a experiência: construindo uma história pessoal. Favre R, tradutor. São Paulo: Summus editorial; 1995. – propostos no âmbito de uma disciplina de Cinesiologia, para construir pontes iniciais entre o ensino biológico convencional e as abordagens da TO com os corpos.
Cartografias dos itinerários artístico-culturais – conjunto produzido no âmbito de uma disciplina de Atividades e Recursos Terapêuticos, para o estudo das linguagens mediante um mapeamento dos percursos históricos singulares com as artes e a cultura, apresentado em formato de mostra em sala de aula para compartilhamento e apreciação coletiva.
Dossiês corpo – conjunto produzido no âmbito de uma disciplina de práticas corporais por meio de um mapeamento dos percursos históricos singulares com as práticas corporais e vivências com o corpo, apresentado em formato de mostra em sala de aula para compartilhamento e apreciação coletiva.
Essas experimentações constelam uma aposta de formação que dispõe materiais e procedimentos do campo das artes para fomentar exercícios expressivos que ganham forma em palavras, imagens instalações, audiovisuais, músicas, gestos, composições, pausas e fluxos. Com essa operação é possível analisar a importância da ação, do gesto e do fazer como formas de expressão e de construção de repertório, de experimentação e de invenção para o exercício da TO, correlacionando as extensões da Arte na clínica. Esses procedimentos se engendram por meio de uma posição para a formação de terapeutas ocupacionais, que pressupõe que o fazer do estudante implica diretamente na possibilidade de acionar e acolher o fazer de quem ele deve cuidar a seguir, em seu exercício profissional.
Elementos conceituais gravitam, atravessam e colaboram para a efetuação desses procedimentos, a fim de instaurar um plano de consistência e enfrentar a força acachapante das formatações vigentes no âmbito da formação universitária. Essas noções são arrastadas em aliança com conjuntos de pesquisas, pensamentos e autores, para intensificar o desafio da experiência formativa.
Desvio – regras impertinentes para um curso de formação que não se destine somente ao ensino de técnicas, mas que tenha a preocupação de ensinar a pensar, considerando os desvios, a errância, a perda de tempo, a desorientação angustiante e a atenção às possibilidades de transformação da realidade.
Podemos exercer, treinar, mesmo numa sala de aula, sim, pequenas táticas de solapamento, exercícios de invenção séria e alegre, exercícios de paciência, de lentidão, de gratuidade, de atenção, de angústia assumida, de dúvida, enfim, exercícios de solidariedade e de resistência33. Gagnebin JM. O método desviante. Rev Trop [Internet]. 2006 [citado 25 Ago 2018). Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4455290/mod_resource/content/0/GAGNEBIN_O_metodo_desviante.pdf
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p... . (p. 2)
Zonas de indiscernibilidade – combinação de estratégias clínicas do campo da TO e operações estéticas do campo das artes e das práticas corporais para compor interferências entre esses territórios (das artes e da clínica) sem que se possa distingui-las, dispondo seus elementos em uma região fronteiriça em “que não são nem imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto mais singularizados numa população”44. Deleuze G. Crítica e clínica. Pelbart PP, tradutor. São Paulo: Editora 34; 1997. (p. 11).
Deformação – profanar os dispositivos e dessacralizar os usos de si, dos corpos, das coisas do mundo; criar frestas nas relações erigidas por meio de convenções difíceis de desmanchar: o lugar de emissão do professor, a expectativa da obrigação, o engessamento do contato com os materiais e com os corpos para uma finalidade prescrita. O combate em sala de aula orienta-se na tentativa de suspender e colocar sob erro a experiência, desmontar o arranjo que alinha trabalho (mesmo o formativo) e sacrifício.
[...] a estratégia que devemos adotar no nosso corpo a corpo com os dispositivos não pode ser simples, já que se trata de liberar o que foi capturado e separado por meio dos dispositivos e restituí-los a um possível uso comum [...] A profanação é o contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha separado e dividido55. Oury J. Itinerários de formação (mimeo). Goldberg J, tradutor. In: Oury J. Itinéraires de formation. Paris: Hermann Psychanalyse; 2008.. (p. 44-5)
Sensibilização – fazer do próprio processo um acontecimento que prepara para os processos com os outros, e tornar experiência a experiência da própria formação e os acontecimentos da vida de quem se quer cuidar como terapeuta. Os momentos de contato com modos de expressão e problemas a eles concernentes transformam-se em situações artesanais, orientadas por elementos técnicos e procedimentais, aliadas a outros históricos e críticos, convergindo para que o próprio estudante em formação encontre singularmente um caminho que se dá por invenção e acesso aos temas propostos.
[...] é necessário ser capaz de aceder a um certo lugar, uma certa “paisagem”, ser sensível ao pequeno detalhe, mesmo escondido, mesmo insólito, ser sensível à emergência, ser sensível “àquilo que tem pathos”. É justamente o que, quase sempre, está mascarado por completo pelos ensinos demasiadamente abstratos ou estereotipados: o que, afinal de contas, não “se ensina”, no sentido habitual do termo. Uma técnica de sensibilização é então importante, ela necessita de uma aprendizagem, mais no sentido nobre do termo, no sentido dos “artesãos”, dos operários que talham as pedras, por exemplo66. Agamben G. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Honesko VN, tradutor. Chapecó, SC: Argos; 2007.. (p. 4)
Tentativas – a operação cotidiana vai gradualmente distanciando-se da programação. Não por recusa, mas por deserção. O próprio processo formativo pauta necessidades, evidencia interesses, e compele a experiência em direção a exercícios vivos que se inscrevem no território da proposta inicial, e o refaz por alargamento, reposicionamento das ordenações vigentes, transmutação das normativas em parâmetros: bússolas para uma navegação errante.
[...] tentativa – não é um projeto, não é uma instituição, não é um programa, não é uma doutrina, não é uma utopia. [...] Uma tentativa esquiva as ideologias e os imperativos morais, as normas. Uma tentativa só sobrevive se não se fixar um objetivo, mesmo quando inevitavelmente é chamada a realizá-lo. [...] esquivar-se de tudo o que solicita, tudo o que inclui, que obriga, que amarra [...]77. Deligny F. Linhas erráticas. In: Pelbart PP. O avesso do Niilismo: Cartografias do Esgotamento. São Paulo: N-1 Edições; 2013.. (p. 265)
Corpos – a corporeidade acionada nesse processo migra da posição sentada, solitária e meritocrática, para uma conectividade eticamente comprometida. Trata-se de uma proximidade que preserva distâncias, solidão e vazio, e paradoxalmente ativa uma disposição política para a transgressão, para o comum.
Só se o pensamento for capaz de encontrar o elemento político que se escondeu na clandestinidade de cada existência, só se, para além da cisão entre público e privado, política e biografia, zoè e bios, fosse possível delinear os contornos de uma forma-de-vida e de um uso comum dos corpos88. Agamben G. O uso dos corpos. Assmann SJ, tradutor. São Paulo: Boitempo; 2017.. (p. 14)
Precisamos inventar uma forma de guerra tal que a derrota do Império não residirá mais no dever de nos matar, mas sim no de saber que estamos vivos, cada vez mais VIVOS99. Tiqqun. Isso não é um programa. Lühmann D, tradutor. São Paulo: N-1 Edições; 2019.. (p. 71)
Os exercícios realizados no acompanhamento dos estudantes, combinados com experimentações estéticas, dão lugar a afetos e marcas produzidos nos encontros e, ao mesmo tempo, oferecem ferramentas para a instauração de processos de criação que possibilitam a aprendizagem e a passagem desses afetos do plano das forças ao plano das formas.
Fotos penduradas em um cabide; origâmis com frases que narram trajetos do corpo da infância à juventude; um chá com biscoitos da personagem literária do livro “Alice no país das maravilhas” e um álbum de fotos e narrativas de eventos com o corpo; capas de disco de vinil, livros, uma maquete com roupas penduradas no varal e capas de livros impressas em formato 3 x 4 coladas na superfície; performances em vídeo com sombras e gatos; uma plataforma com corpos pintados com esmalte de cor forte tal qual o da moradora de um Serviço Residencial Terapêutico acompanhada pela estagiária. Tantas formas se inventam nesses processos. Algumas imagens fotográficas permitem ver essa multiplicidade. E em cada uma das proposições que as disparam se configuram possibilidades de apropriação de técnicas para o cuidado de si, e acesso a elementos já presentes na história das estudantes que podem ser acionados para o exercício profissional, constituindo-se em potente ferramental sensível e técnico para o cuidado do outro.
Com base nas experiências que se constituem no momento em que a atenção se volta para seus próprios gestos e modos de expressão, bem como as daqueles que estão nesse processo coletivamente, cada estudante pode afirmar-se numa operação que o prepara para trabalho na clínica da TO. Na singularidade de cada experiência que se efetua, podem-se entrever pequenos desvios e frestas que abrem passagens para a vida, transversalizam-se e inventam um território comum. Isso configura orientações para novos fazeres e experimentações que devem seguir compondo as tentativas para uma formação comprometida com a vida coletiva.
Agradecimentos
Agradecemos a todos os estudantes que participaram dos processos apresentados neste escrito e em suas imagens, com os quais vivenciamos cotidianamente experiências importantes para a produção do conhecimento em TO.
Referências
- 1Inforsato EA, Castro ED, Buelau RM, Valent IU, Silva CM, Lima EMFA. Arte, corpo, saúde e cultura num território de fazer junto. Fractal Rev Psicol. 2017; 29(2):110-7. Doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2160
» https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2160 - 2Keleman S. Corporificando a experiência: construindo uma história pessoal. Favre R, tradutor. São Paulo: Summus editorial; 1995.
- 3Gagnebin JM. O método desviante. Rev Trop [Internet]. 2006 [citado 25 Ago 2018). Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4455290/mod_resource/content/0/GAGNEBIN_O_metodo_desviante.pdf
» https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4455290/mod_resource/content/0/GAGNEBIN_O_metodo_desviante.pdf - 4Deleuze G. Crítica e clínica. Pelbart PP, tradutor. São Paulo: Editora 34; 1997.
- 5Oury J. Itinerários de formação (mimeo). Goldberg J, tradutor. In: Oury J. Itinéraires de formation. Paris: Hermann Psychanalyse; 2008.
- 6Agamben G. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Honesko VN, tradutor. Chapecó, SC: Argos; 2007.
- 7Deligny F. Linhas erráticas. In: Pelbart PP. O avesso do Niilismo: Cartografias do Esgotamento. São Paulo: N-1 Edições; 2013.
- 8Agamben G. O uso dos corpos. Assmann SJ, tradutor. São Paulo: Boitempo; 2017.
- 9Tiqqun. Isso não é um programa. Lühmann D, tradutor. São Paulo: N-1 Edições; 2019.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
04 Dez 2020 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
10 Out 2019 - Aceito
20 Ago 2020