Da gestação à laqueadura: cartografia de uma mãe órfã vivenciada em um Consultório na Rua

De la gestación a la ligadura de trompas: cartografía de una madre huérfana vivida en un consultorio en la calle

Luiz Gustavo Duarte Flávia Maria Araujo Maira Sayuri Sakay Bortoletto Regina Melchior Alberto Durán González Sobre os autores

Resumos

Este artigo buscou mapear os afetos em cenas que ocorreram em uma vivência em um Consultório na Rua (CnaR) por meio da realização de uma cartografia. Os territórios mapeados, junto com a intercessão da obra “Sandman” de Neil Gaiman, que foi utilizada como dispositivo cognitivo de discussão da fantasia-realidade, evidenciaram modos de viver que desafiam os métodos tradicionais de produzir cuidado, enquanto tornaram visíveis capturas micropolíticas que levaram à produção de controle e enquadramento. Diante disso, foi perceptível no CnaR uma potência de produção de outros modos de cuidado ao mesmo tempo que as capturas micropolíticas para controle do vivente da rua agem agressivamente maquinando a produção da necessidade de esterilizações e desmaternizações com o sequestro de bebês pelo Estado.

Palavras-chave
Pessoa em situação de rua; Cartografia; Maternagem


El objetivo de este artículo fue mapear los afectos en escenas ocurridas en una experiencia en un consultorio en la calle (en portugués, Consultório na Rua - CnaR) por medio de la realización de una cartografía. Los territorios mapeados, juntamente con la intercesión de la obra Sandman de Neil Gaiman utilizada como dispositivo cognitivo de discusión de la fantasía-realidad, pusieron en evidencia modos de vivir que desafían los métodos tradicionales de producir cuidado, puesto que dieron visibilidad a capturas micropolíticas que llevaron a la producción de control y encuadre. Ante esto, fue perceptible en el CnaR una potencia de producción de otros modos de cuidado, al mismo tiempo que las capturas micropolíticas para control de la persona que vive en la calle actúan agresivamente maquinando la producción de la necesidad de esterilizaciones y desmaternizaciones juntamente con el secuestro de bebés por parte del Estado.

Palabras-chave
Persona en situación de vivir en la calle; Cartografía; Maternaje


Incursões cartográficas iniciais

Este artigo buscou mapear os afetos por meio de uma vivência em um Consultório na Rua (CnaR) em um município de grande porte no sul do país. O município em questão possui uma rede de equipamentos em saúde desde a Atenção Básica (AB) até hospitais e ambulatórios de referência regional. A cidade tem uma rede socioassistencial que, além dos Centros de Referência em Assistência Social (Cras), também conta com serviços especializados, sendo um deles o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP).

O CnaR se encontra atualmente na AB, sendo criado no município em 2012 com uma proposta de atendimento à pessoa em situação de rua. Ao longo dos atendimentos, ele se articula tanto com os demais pontos da rede de Atenção à Saúde quanto com a rede socioassistencial, além da criação de outras redes formais com outras autarquias e movimentos sociais. Possui atualmente, como categorias profissionais, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, psicólogo, assistente social, educadora social e dentista, enquadrando-se na modalidade II da portaria do Ministério da Saúde, a qual estipula minimamente seis profissionais, sendo três de nível superior e três de nível médio, excetuando-se o médico11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS, nº 122, de 25 de Janeiro de 2011. Define as diretrizes de organização e funcionamento das equipes de Consultório na Rua. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2011..

Esse serviço se configurou como o lugar de início da vivência do estudo, no segundo semestre de 2019, após parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa (CAEE 97495718.6.0000.5231). A imersão no campo se deu pelo acompanhamento da equipe de Consultório na Rua (eCnaR), abrangendo desde discussões de casos, visitas, matriciamentos até outras atividades que ocorriam no CnaR. Foi nesse processo que se deu a aproximação e a criação de vínculo com a equipe e com a pessoa vivente da rua com a qual iríamos estar por aproximadamente um ano.

Para este estudo optou-se pela abordagem de pesquisador in-mundo, partindo do princípio de que não há uma neutralidade em relação ao objeto e que o pesquisador não observa a realidade de forma neutra, sem interferir ou ser afetado por aquilo que vivencia. Ele leva em consideração os afetos e motivações nos encontros que realiza, de modo que este conhecimento produzido possui um envolvimento direto na transformação da realidade na qual está implicado22 Abrahão AL, Merhy EE, Gomes MPC, Tallemberg C, Chagas MS, Rocha M, et al. O pesquisador in-mundo e o processo de produção de outras formas de investigação em saúde. Lugar Comum. 2013; 39:133-44..

Buscando dar visibilidade ao conhecimento apreendido por meio das afecções dos encontros, a abordagem metodológica escolhida foi a cartografia. O conceito da cartografia utilizado buscou inspiração em Gilles Deleuze e Félix Guattari33 Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Oliveira AL, Guerra Neto A, Costa CP, tradutores. 2a ed. São Paulo: Ed. 34; 2011. v. 1. em um paralelo com o termo oriundo dos estudos geográficos na confecção de mapas, ressignificando-o dentro da produção de conhecimento mediante uma composição de mapas por territórios de sensações, percepções e afecções. Esse mapeamento não se estabelece como uma busca pela essência das coisas ou pela finalidade delas, e sim como elas se apresentam no momento naqueles territórios existenciais e suas relações micropolíticas. Dada sua característica de se atentar às linguagens que encontra, acompanhar e se fazer ao mesmo tempo nesses territórios, o cartógrafo devora tudo isso e, como cita Rolnik44 Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, Editora da UFRGS; 2011., é um antropófago que busca diagramar as estratégias do desejo no campo social ligadas diretamente à existência, não seguindo nenhum protocolo normatizado, mas utilizando inúmeras fontes e entradas possíveis para mapear esses territórios.

Assim, o encontro constituiu parte do método possibilitando desterritorializações na medida em que afecções atingem seu corpo, ocorrendo antes, durante e depois da inserção do pesquisador no campo, para então se reterritorializar de modo que esse processo se torne a própria produção de mapas, e junto a ele o reconhecimento da invenção de novos mundos55 Costa LB. Cartografia: uma outra forma de pesquisar. Rev Digit LAV. 2014; 7(2):66-77.. Afecções aqui são entendidas pelo conceito spinoziano de affectio interpretado por Deleuze como o estado de um corpo enquanto sofre ação de outro corpo, diferenciando-se de affectus, modo de pensamento não representativo que pode ser traduzido como afeto, o qual é a variação contínua da força de existir. Apesar de diferentes, eles se inter-relacionam de modo que os encontros que os corpos sofrem vão implicar a própria formação de ideias e transição na força de existir66 Deleuze G. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978 – 1981). Fragoso EAR, Castro FEB, Cardoso Júnior HR, Aquino JA, tradutores. Fortaleza: EdUECE; 2009..

Nesse sistema teórico, a cartografia reconhece que a produção sempre está inserida no produto, tanto na produção da própria sociedade quanto na do indivíduo. É na diagramação dessa multiplicidade de produções que a cartografia aparece, não sendo um esforço mapear todos os processos possíveis decorrentes das sínteses ali presentes, mas sim de diagramar aquilo que a afetação no corpo do pesquisador permitiu.

Como ferramenta de campo de pesquisa utilizou-se um diário cartográfico, o qual como um diário de campo possui anotações pertinentes sobre acontecimentos, notas e informações, mas diferencia-se na priorização do registro das afecções vividas pelos encontros, abrindo possibilidades de múltiplas saídas, tanto de afetos quanto de sentidos. Utilizam-se múltiplos métodos de anotações, seja em cadernos seja em arquivos digitais ou desenhos, constituindo um material empírico que contempla multimeios, multilínguas, multivozes e multitempos77 Slomp JH, Merhy EE, Rodrigues MR, Seixas CT, Bortoletto MSS, Baduy RS, et al. Contribuições para uma política de escritura em saúde: o diário cartográfico como ferramenta de pesquisa. Athenea Digital. 2020; 20(3):e2617..

Essa proposta teórica caminhou não somente na elaboração deste estudo e na vivência do campo, mas também no processo analítico e de escrita científica. Diante disso, consideramos importante ressaltar que a produção cartográfica se dá nesta busca por mapeamentos de territórios nas máquinas sociais que produzem e reproduzem codificações e sobrecodificações por determinados fluxos da axiomática do Estado moderno capitalista.

Nesta abordagem foi possível produzir conhecimento entrelaçando referências acadêmicas com operadores de produção literária; nesse caso, optou-se pela obra “Sandman”. Na criação de Neil Gaiman, 1989, publicada pelo selo Vertigo Comics, entramos em contato com a história do Senhor dos Sonhos, o governante do sonhar, um ser chamado de perpétuo que existe antes mesmo dos próprios deuses e que existirá após. Além de Sonho há Destino, Destruição, Delirium, Desejo, Desespero e Morte, sendo todos irmãos. Em “Sandman”, como cita Teixeira88 Teixeira RC. Sandman – mitologia para as novas gerações. Rev Comum. 2005; 11(25):187-97., o autor consegue atualizar mitos antigos para a linguagem da contemporaneidade ao mesmo tempo que se utiliza de um meio de comunicação de massa para tal. Cada um dos perpétuos age nas nossas vidas, nos atravessa, nos atinge em algum ponto dos nossos territórios existenciais, com alguns tendo seus reinos acessados mais facilmente pelos humanos, como o sonhar ou o reino de Delirium. Partindo desses domínios e territórios esta narrativa foi costurada, relacionando as histórias e os personagens mitológicos das fabulações de “Sandman” com as vivências e afecções no CnaR.

Uma gestação no sonhar

Hippolyta Hall engravidou no sonhar de seu marido que pensava ser o Senhor dos Sonhos, contudo ele já estava morto, era uma trapaça de servos do próprio Morpheus. Após o verdadeiro senhor do sonhar descobrir, expulsa o impostor e avisa Hippolyta, doravante Lyta(f(f)Lyta e Daniel personagens de “Sandman” estão grafados em itálico para fins de diferenciação.), “(...) essa criança é minha. Cuide bem dela que um dia irei buscá-la”99 Gaiman N. Sandman: edição definitiva. Martins J, Denardin F, tradutores. 2a ed. Barueri: Panini Books; 2010. v. 1. (p. 330). Lyta não tem escolha a não ser se desprender dos territórios que antes caminhava e reorganizar sua vida para proteger seu filho que estava por vir, na busca de contrariar esse futuro já ditado. Depois do nascimento ela protege seu filho, Daniel, não se distanciando nunca. Porém, em um momento de cansaço, ele é raptado como ela temia desde sua gestação. Apesar do rapto, Lyta não desiste, segue atrás de seu filho pois considera que ninguém, nem mesmo um perpétuo, tem o direito de separá-los. Nessa busca, Lyta caminha por vários territórios, culminando na aceitação da vingança pelas Furiosas(g(g)As Furiosas são três: Tisífone, Alecto e Megera. Vivem no Érebo, segunda região do Tártaro. Elas são mais velhas que qualquer divindade e existem como personificações da vingança10. Quando era uma heroína antes de engravidar, Lyta também era conhecida como fúria.), que levará à morte o próprio Sandman99 Gaiman N. Sandman: edição definitiva. Martins J, Denardin F, tradutores. 2a ed. Barueri: Panini Books; 2010. v. 1..

A Lyta que o pesquisador conheceu se entrelaça com a Lyta de “Sandman”, em uma mescla que faz parte do mapa de territórios que foi construído e, com base nisso, conto a história da Lyta assistida pelo CnaR do município. Nas discussões do CnaR a história de Lyta sempre ressoava, retornava, ecoava, chegava às conversas sem pedir licença e atropelava o que estava em pauta. Lyta é uma mulher, negra, entre trinta e quarenta anos, em situação de rua, no momento em sua oitava gestação, acompanhada tanto pela rede socioassistencial quanto pelo Centro POP, como a rede da saúde em serviços tais quais o CnaR e o Centro de Atenção Psicossocial (Caps), visto que também possui transtorno mental.

Nasceu em uma família pobre, crescendo com seu pai, mãe, irmão e irmã gêmea. Segundo seus relatos, durante a infância lembra do uso de álcool pelo pai, bem como abusos, principalmente de seu irmão. Esses abusos resultaram em uma gestação aos 15 anos, do próprio irmão, mas a criança foi a óbito logo após o nascimento devido a alterações genéticas. Essa história com a família continuou permeada por brigas e discussões, culminando em sua ida para as ruas ainda na adolescência.

O movimento de ir e vir das ruas se tornou característico de seu modo de viver, desenrolando sua existência por vários territórios. Lyta já foi casada, morou com seu ex-companheiro, na casa de seu pai, em mocós, transitou entre ruas de cidades e fazendas em um verdadeiro viver nômade. É um modo de viver que expressa a não homogeneidade desses viventes da rua, não havendo um conceito que pareça abranger a singularidade de Lyta, exemplificando como as definições ficam escorregadias ao se deparar com a existência, não sendo possível se segurar a elas por muito tempo. Esse problema de definição já fora abordado em outros estudos em que termos como andarilhos e mendigos não conseguem abranger a variedade de situações e singularidades que envolvem a existência de quem vive da rua1111 Rosa AS, Cavicchioli MGS, Brêtas ACP. O processo saúde-doença-cuidado e a população em situação de rua. Rev Lat Am Enfermagem. 2005; 13(4):576-82..

O que se percebe é uma multidão como Negri1212 Negri A. Para uma definição ontológica da Multidão. Lugar Comum. 2005; (19-20):5-26. desenvolve conceitualmente, escapando das limitações das definições tradicionais. É uma imanência da multiplicidade incomensurável de corpos, contrastando perante conceitos homogeneizantes ou reducionistas como o de povo, ou seja, é oposta a um conceito transcendente. O conceito é uma interpretação subversiva de Espinosa, afirmando que quando prestamos atenção a esses corpos não estamos diante de uma multidão deles, mas que todo o corpo é uma multidão, mesclando-se e hibridizando-se.

Dessa multidão de Lytas, as quais nos foram desveladas, o desejo de ser mãe sempre esteve explícito. Lyta estava na sua oitava gestação no começo da vivência, não possuindo nenhum filho convivendo com ela, pois o desfecho de suas gestações anteriores ou foram abortos e natimortos, ou resultaram em guarda colocada ao Estado. De todos esses processos, dolorosos, cansativos e penosos, algo permaneceu deles: o desejo de ser mãe. A gestação atual não foi diferente, o desejo estava lá como força motriz de Lyta levando-a por inúmeros territórios que a possibilitassem concretizar o tão sonhado lugar de ser mãe.

Nesses territórios pelos quais ela se estabeleceu, acabou por produzir uma desterritorialização dos próprios profissionais dos serviços, na medida em que percebiam que Lyta seguia as recomendações, como a permanência no internamento em instituição psiquiátrica, presença nos atendimentos do pré-natal e controle no uso de drogas. Cada aceite por parte de Lyta era uma pequena surpresa que demonstrava um pouco daquilo que era esperado dela, quando a cada novo encontro ela vazava as expectativas e produzia outras relações e, simultaneamente, os trabalhadores dos diferentes serviços que a assistiam procuravam se reinventar para propor novas abordagens. Isso evidenciava que Lyta havia construído algo diferente nessa gestação, na busca de um resultado também diferente, o do filho em suas mãos.

O sequestro de Daniel

Na esperança de sair com o filho em seus braços do hospital, Lyta seguiu todas as orientações e intervenções das equipes até o momento da internação. Contudo, quando a gestação sai dos sonhos de Lyta e seu filho, Daniel, nasce, ela é confrontada com a realidade institucional. Lyta acaba recebendo alta e sai do hospital sozinha retornando para casa de seu pai, porém sem seu filho, que só ganhou alta dias depois, indo diretamente para um lar de acolhimento.

Sobre esse período supracitado, os discursos ouvidos pelo CnaR eram conflitantes, sempre impulsionados por falas de uma possível abstinência, aliados a algum transtorno psicótico que sujeitaria Lyta a algum comportamento mais agressivo. Essa imagem da pessoa com transtorno mental necessariamente agressiva e perigosa que precisa ser controlada e manejada devido a sua essência perigosa já foi trabalhada por Schiffler e Abrahão1313 Schiffler ACR, Abrahão AL. Interferindo nos microprocessos de cuidar em saúde mental. In: Gomes MPC, Merhy EE. Pesquisadores IN-MUNDO: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2014. p. 89-104., em que o cuidado na repetição sem construção de novos espaços e modos de cuidar não consegue estabelecer novos processos e, assim, episódios de fuga, agressividade e discussões se tornam recorrentes.

Lyta foi encontrada pela eCnaR morando com seu pai em uma casa. Em uma cena impactante, inesquecível, de longe já podia se ver a fumaça que saía de seu cigarro contrastando com as lágrimas de seu rosto. Lyta chorava. Lyta era desespero. O portão estava trancado com uma corrente, seu pai havia saído e ela não tinha chave. O pesquisador conversou com ela entre o portão. O discurso dela machucava quem estava junto, com uma capacidade de criar em todos ali uma ínfima parte dos machucados que ela tinha dentro de si. Ínfima parte que fora suficiente para tomar o pesquisador por completo.

Diante do desespero de Lyta a conversa foi difícil. Mesmo falando pouco, todas as falas e os discursos ouvidos sobre ela anteriormente se desfizeram no encontro. Naquele momento a caracterização da mulher com transtorno mental possivelmente agressiva, da usuária de drogas que saiu do internamento para uso, da usuária de difícil acesso, entre outras caracterizações que buscavam legitimar tais enquadramentos, não passavam disso, construções na busca de padronizar e racionalizar o diferente modo de viver de Lyta. Ali, no encontro, nenhuma das respostas prévias para suas ações justificava o sofrimento e o desespero que eram presenciados.

Parte dessas causalidades protocolares e padronizadoras também já caminhava pelo corpo de Lyta, evidenciada por sua fala:

[...] eu não vou fazer nada porque eu sei que vou chegar lá e o juiz vai bater o martelinho e vou perder a criança do mesmo jeito.

(Lyta)

Ela já estava agenciada naquele momento por essa subjetivação(h(h)Subjetivação aqui é entendida segundo o processo de subjetivação-dessubjetivação da esquizoanálise proposta por Deleuze e Guattari, em que, influenciada por linhas de segmentaridades duras ou maleáveis, a subjetividade é produzida nas relações e linhas de fuga14.), de que não havia outro caminho para pessoas em sua situação a não ser aceitar o fato de que sua gestação foi em prol de outro. A repetição já estava nos jardins de Destino99 Gaiman N. Sandman: edição definitiva. Martins J, Denardin F, tradutores. 2a ed. Barueri: Panini Books; 2010. v. 1..

Essa produção de controle aparece como o que Foucault1515 Foucault M. Nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes; 2008. chamou de biopolítica. Ela é uma força na concepção não jurídica de poder que atua para se apropriar dos processos biológicos, controlá-los e modificá-los, formando-se por meio do liberalismo em um princípio de racionalização do governo, efetuando-se na quantificação, como de mortes ou nascimentos, jogando com comparações a fim de prever o futuro, de modo que a vida entra no domínio dos cálculos explícitos sofrendo ação da atuação do poder-saber.

Essa atuação do poder-saber sobre a vida encontrou Lyta e sua situação. As instituições ali exerciam sua força na busca do controle de Lyta. Uma força homogeneizante que gera mecanismos de controle sem a permissão de outros modos de se viver. A saúde pública por meio dessa tecnologia de poder se legitima pelo seu discurso tecnocrático, de regulamentação, em que uma força para disciplinar e docilizar os corpos tem seu espaço também ocupado por um movimento que torna os processos biológicos parte de um conjunto que altera os modos de viver e morrer1616 Neves CAB, Massaro A. Biopolítica, produção de saúde e um outro humanismo. Interface (Botucatu). 2009; 13 Supl 1:503-14..

Como Foucault1717 Foucault M. Aula de 17 de março de 1976. In: Foucault M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2005. coloca, a biopolítica é uma “estatização do biológico” que se estabelece como uma tecnologia massificante utilizando técnicas demográficas e estatísticas para controle de morbidade e natalidade, criando um modo diferente de perceber o corpo, deixando de vê-lo como um corpo individual para vê-lo como corpo múltiplo, que é traduzível pelo que se denomina de população. Com o reconhecimento de Lyta como parte de uma população, ela se torna um corpo múltiplo, redutível às intervenções racionalistas. O seu desejo de ser mãe aliado a seu modo de viver, que não contempla as capturas biopolíticas, é visto como um problema pelos equipamentos institucionais.

Diante de todo esse desespero e do afastamento do filho, Lyta é uma mãe órfã, situação caracterizada por mulheres que não são consideradas competentes para serem mães, como viventes da rua ou com transtornos mentais. Utilizam-se contra elas pressupostos de uma suposta periculosidade ou uma antecipação do que poderia vir a ser um crime em algum momento, aplicando uma intervenção jurídica a fim de sequestrar os bebês dessas mães insuficientemente controladas. Essa elegibilidade se pauta em riscos descritos nos próprios instrumentos legais, buscando uma legitimação na retirada compulsória desses bebês1818 Souza CMB, Pontes MG, Jorge AO. Mães órfãs: o direito à maternidade e a judicialização das vidas em situação de vulnerabilidade. Saude Redes. 2018; 4 Supl 1:27-36..

Após o encontro, a procura para compreender esse momento vivido por Lyta se intensificou com a participação em uma discussão que aconteceu no lar onde Daniel se encontrava, no qual estavam presentes serviços como o CnaR, o lar de acolhimento, Unidade Básica de Saúde (UBS), Centro POP, Tribunal de Justiça e Hospital. No debate ocorrido, a multidão que é Lyta vem à tona com suposições, elaboração de teorias e encaminhamentos. Os presentes falam sobre sua saída do hospital para uso de drogas, especulações sobre o pai da criança, sobre sua saúde mental, entre vários outros assuntos pinçados. Nessa diversidade de pontos de vista, o reconhecimento do desejo de ser mãe era sempre constante, atravessando todos que estavam ali, mesmo sendo um ambiente institucional permeado por enquadramentos formais e legais.

Essa afetação é um eco da própria biopolítica refletida no que se chama de desmaternização, que pode ser definida pelo agenciamento da violação dos direitos tanto das mulheres quanto das crianças, em justificativas teleológicas estabelecidas em uma finalidade de suposto bem maior, como, por exemplo, o futuro bem-estar da criança. Essa violação se realiza em atravessamentos pelas equipes de saúde, serviço social ou judiciário em que os protocolos, como citam os autores, não estão falhando, mas sim sendo efetivados, pois foram construídos na perspectiva de fracassar1919 Belloc MM, Cabral KV, Oliveira CS. A desmaternização das gestantes usuárias de drogas: violação de direitos e lacunas do cuidado. Saude Redes. 2018; 4 Supl 1:37-49..

É desse lugar que provêm as desterritorializações dos profissionais em relação aos territórios que Lyta criou durante esse tempo, visto que, por mais que buscassem e produzissem outras formas de cuidar, a resposta dada institucionalmente se concentrava em desmaternização, quebra de vínculos, violações de direitos e produções de sofrimento, com o protocolo emergindo como solução em um agenciamento institucional que atuava na perspectiva do fracasso de Lyta.

Ao mesmo tempo que Desespero99 Gaiman N. Sandman: edição definitiva. Martins J, Denardin F, tradutores. 2a ed. Barueri: Panini Books; 2010. v. 1. continua assistindo por uma de suas janelas, Lyta começa a caminhar por um domínio a que os seres humanos têm um acesso facilitado, o domínio de Delirium99 Gaiman N. Sandman: edição definitiva. Martins J, Denardin F, tradutores. 2a ed. Barueri: Panini Books; 2010. v. 1.. O domínio desse perpétuo “está aberto a visitações, mas as mentes humanas não foram talhadas para compreender seu domínio”1010 Graves R. Os mitos gregos. Klabin F, tradutor. 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2018. v. 1, v. 2. (p. 245), onde o tempo não obedece às nossas convenções, o que é deixado claro na entrada com um entalhe escrito tempus frangit(i(i)Tempus frangit, palavra em latim, possui como tradução possível “o tempo quebra”, em um jogo de palavras na brincadeira com a expressão tempus fugit (o tempo voa).). Enquanto caminhava por esse domínio, falava muitas coisas que a princípio soavam desconexas, somando-se a seu sofrimento, seu medo da solidão e a insônia. Essas condições acabaram por aproximá-la de um encaminhamento ao Caps do município para uma avaliação. Após a consulta, solicitaram internamento hospitalar, o qual Lyta recusou por ser no mesmo município.

Na busca do esclarecimento dos porquês desse processo a eCnaR visitou tanto Lyta quanto o Caps. Nesse período, foi possível entrar em contato com o prontuário de Lyta no Caps, que permitiu uma nova visão, visto que havia um histórico de atendimentos desde sua adolescência com muitas tentativas de suicídio, violências sexuais e uso de substâncias psicoativas.

Lyta sempre permaneceu com um pé no domínio de Delirium, não conseguindo às vezes organizar muito bem o tempo; interpretava a nossa realidade de maneiras que não eram compreensíveis para o pesquisador em campo, mas em seus afetamentos o que estava perceptível era o sentimento de culpa. Uma culpa por ter sido vítima de violência ao longo da vida, por usar drogas, por engravidar, por não seguir o comportamento que esperavam dela, por não poder ficar com seu filho, enfim, a culpa sempre atingindo seu corpo, reduzindo sua potência.

E os encontros continuaram, com Lyta parando com o uso de medicação em alguns momentos, deixando de seguir recomendações dos serviços, ao mesmo tempo que sempre esteve aberta para eles. Em todo caso, tudo o que ela parecia fazer era guiado por seu desejo de se aproximar novamente de seu bebê, tanto que mesmo após seu momento de negação em relação ao processo judicial, ela acabou mudando de ideia e compareceu à audiência. Aos poucos Lyta encontrava seus caminhos nos meios institucionais, buscava dentro do que lhe era oferecido algum meio de ao menos ver seu filho, no esforço para aceitar as recomendações, internamentos, medicações e atendimentos na esperança de entrar em contato novamente com Daniel. Contudo após um mês ela já havia adaptado seu discurso, já não falava em ficar com seu bebê, mas sim em alguma chance de pelo menos vê-lo.

Diante de todo o caminho percorrido com ela durante os encontros proporcionados pelo CnaR, Lyta contou sua vida, seus sonhos, seus medos. Todas essas afecções que atingiram seu corpo ainda estavam sendo gestadas nas ideias para aos poucos serem verbalizadas. Ora ela era atingida pelo peso do enquadramento e controle judicial sobre Daniel, ora ela extravasava o seu desejo de estar próxima de Daniel e falava sobre a ausência de limitações nessa luta.

Lyta convive com casos que outras mulheres que estão em situação de rua também convivem, como agressões, abusos, ou situações geradas por instituições caracterizadas pela dificuldade de acesso, estigmas e preconceitos2020 Rosa AS, Brêtas ACP. A violência na vida de mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo, Brasil. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):275-85.. Na condição de anormal do desejo como é, Lyta sofre violências que percorrem os vários fluxos e influenciam as segmentaridades de sua vida e, nessa cartografia que ela constrói de territórios para sobreviver, busca modos de viver que permitam uma mínima maternagem, um mínimo contato com seu bebê que fora gestado no sonhar e ainda não teve a oportunidade de habitar o mesmo mundo que ela.

Os fluxos eugênicos

Durante a discussão de caso realizada após o nascimento de Daniel, um debate que sempre aparecia se pautava na necessidade da laqueadura em Lyta, apresentada como uma das possibilidades de cuidado que o serviço tinha para oferecer a ela. A laqueadura, procedimento de esterilização cirúrgica da mulher, aparecia como a solução entre alguns profissionais em um movimento de imaginar “como seria bom se ela aceitasse!”. Nem todos os profissionais presentes aprovaram ou reiteraram a proposta, contudo ela se manteve em evidência mesmo sendo contraditória ao desejo de Lyta.

Nos últimos dias do período de vivência do pesquisador, Lyta já havia iniciado o acompanhamento para aplicação de anticoncepcional. No momento da aplicação, a enfermeira questionou sobre o interesse em realizar a laqueadura, e para a surpresa tanto do pesquisador quanto da equipe, ela aceitou. Lyta, uma mãe órfã, que nunca teve a oportunidade de exercer a maternidade que sempre desejou, de repente, em um movimento inesperado concorda com a sua esterilização. A finalização desse processo de laqueadura não será pautada aqui, visto que a vivência não contemplou esse período. O que será tratado se pauta sobre os procedimentos institucionais, as normatizações e capturas que entraram em confronto com o desejo de Lyta.

No momento em que aceitou a laqueadura se visibilizou um jogo de forças em que o desejo havia sido capturado. Desespero nesse momento ainda a assistia, a acompanhava, mas de uma distância mais considerável, sua angústia já não percorria esse domínio como antes. Lyta ainda teve seus momentos de medo, angústia, contudo sua máquina desejante já foi domada, enquadrada, não havia espaço nem mesmo para o desespero.

Historicamente, na saúde, há capturas e enquadramentos. Se antigamente tínhamos uma diferenciação do normal ou louco pela presença ou ausência da razão, atualmente, com a produção de desejo no Estado moderno capitalista, as diferenciações começam a se guiar pelo desejo, e o que se opera é uma vida norteada por um modo estético(j(j)Modo estético de vida é compreendido pelas condições em que as subjetividades são produzidas por meio da máquina capitalista, modelando costumes, expressões, rotinas e modos de viver.), sem espaço para outros modos de viver. Essa produção de desejo opera por meio da captura de inúmeros segmentos da vida como igrejas, família, lazer, entre outros, buscando homogeneizar essas máquinas sociais organizando os fluxos sob uma axiomática rigorosa em proveito do sistema capitalista, de modo imanente produzindo seus próprios limites, constantemente se ampliando e tendo o Estado como regulador desses fluxos2121 Deleuze G, Guattari F. O Anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Orlandi LBL, tradutor. 2a ed. São Paulo: Editora 34; 2011.. Quando se age no desvio dessa força desejante capitalística, o campo da saúde está à espreita corroborando para que aqueles que se desviem não consigam possuir uma oferta de conexões existenciais, sendo levados pela sociedade para um lugar “não humano”2222 Merhy EE. Anormais do desejo: os novos não-humanos? Os sinais que vêm da vida cotidiano e da rua. In: Lancetti A, Chioro A, Vargas B, Zaparoli C, Petuco DRS, Castilho EWV, et al. Drogas e cidadania: em debate. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia; 2012. p. 9-18..

Lyta é uma anormal do desejo, que a partir do momento que precisou de uma oferta concreta dos serviços de saúde, as instituições agiram na busca de produzir o desejo padronizado como normal, agindo em uma captura para ela começar a operar por um outro modo estético, em um modo de vida no qual a esterilização se torna uma das únicas opções. No momento de renúncia de novas gestações ela se vê sem perspectivas de outro modo de existência. As opções para viver são poucas, considerando que Lyta ainda convivia com seu pai, local onde sofria inúmeras formas de violência, para ter um endereço fixo visando permanecer “bem-vista” pelos sistemas de controle, especialmente o Judiciário. Na tentativa de rever Daniel, ela permaneceu em um ambiente violento. Nessa situação, retornar às ruas não parecia estar dentro das opções, mesmo sendo violentada de inúmeras maneiras, pois sabia que caso saísse dali, as chances de ver seu filho seriam reduzidas.

Entre uso de psicotrópicos e ofertas de internamento, as perspectivas para ficar com Daniel iam se desintegrando, enquanto ela corria riscos de engravidar novamente decorrente das violências sofridas e, então, a possibilidade de laquear, que sempre esteve em pauta pelos serviços, é aceita por Lyta.

Em paralelo, trazemos aqui um caso que tomou conhecimento público no Brasil, referente a Janaína, vivente da rua compulsoriamente esterilizada, decorrente de uma ação civil pública por parte do Ministério Público, quando sob uma justificativa de vulnerabilidade teve o procedimento realizado durante seu parto sem o consentimento. Esse caso expressa uma frieza tecnicista do Judiciário, em uma naturalização da laqueadura compulsória em pessoas que não expressam modos de viver homogeneizados, que não estão no controle dessa biopolítica. Na busca de controlar, produzem violências em pessoas como mulheres pobres, indígenas ou com deficiência intelectual2323 Costa FV, Mares DAGV. Laqueadura compulsória: análise da transdisciplinaridade do “caso janaína” a partir do estudo etnográfico realizado por paula miráglia. Rev Jurid UNI7. 2019; 16(1):79-96..

A proposta de esterilização sempre esteve em pauta, porém, diferentemente do caso Janaína, Lyta não estava sob um processo judicial para tal, mas ainda assim compartilhava semelhanças com o caso supracitado. Essas similaridades aparecem em um movimento que ocorre antes mesmo da decisão judicial que tornou público o caso de Janaína. Elas estão nos fluxos que agenciaram os profissionais e nos caminhos que traçaram. Com as possibilidades limitadas, os modos de viver e resolver os problemas também são reduzidos, e com base na ausência de opções a laqueadura começou a se tornar um caminho natural na oferta do sistema de saúde, refletida moralmente no caso de Lyta.

Esse caminho, além de ter elementos do higienismo, que é caracterizado por uma medicalização do espaço da sociedade em um controle de normas de comportamento e organização de espaços da cidade, parece ter sua propensão genealógica mais forte na eugenia. A eugenia, de etimologia grega, foi cunhada por Francis Galton em 1883 originado de eu (boa) e genus (geração), pautando uma promessa de elevação da moral e felicidade por meio do controle da hereditariedade. Ao longo do tempo tornou-se um termo polissêmico entendido de inúmeras maneiras, contudo um tronco comum de definições pode ser identificado por uma explicação natural das desigualdades sociais, almejando-se, por meio de racionalidade, objetividade e neutralidade, uma mudança no futuro das nações2424 Boarini ML. Higiene e raça como projetos: higienismo e eugenismo no Brasil. Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá; 2003..

O termo eugenia foi suprimido em publicações e divulgações após a Segunda Guerra Mundial devido às práticas de eugenia negativa utilizadas pela Alemanha nazista, porém essa prática não foi uma exclusividade desse regime. Percorrendo várias partes do mundo e sendo adotada de vários métodos, apareceu pelas chamadas eugenia negativa, positiva ou preventiva. Apesar de possuírem métodos diferenciados, o fim desejado era o mesmo: uma sociedade evoluída sem indivíduos indesejados2525 Wergner R, Souza VS. Eugenia ‘negativa’, psiquiatria e catolicismo: embates em torno da esterilização eugênica no Brasil. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2013; 20(1):263-88..

Essa teoria era expressa como um símbolo de modernidade, evolução e progresso civilizatório por meio do controle da reprodução na busca de uma sociedade em que somente os considerados bons biológica e moralmente iriam povoá-la2626 Gualtieri REC. Educar para regenerar e selecionar. convergências entre os ideários eugênico e educacional no brasil. Estud Soc. 2008; 13(25):91-110.. No Brasil houve o movimento eugênico brasileiro no século 20 que esteve ligado por um período a médicos sanitaristas e psiquiatras, que, mesmo após discordâncias metodológicas internas, a divulgação da proposta eugênica teve continuidade, ganhando força durante a Segunda Guerra Mundial pela influência dos métodos e ideais alemães2525 Wergner R, Souza VS. Eugenia ‘negativa’, psiquiatria e catolicismo: embates em torno da esterilização eugênica no Brasil. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2013; 20(1):263-88..

Após o término da guerra o termo foi se tornando pouco familiar; contudo, as propostas eugênicas ainda ressoam na contemporaneidade, como nas escolas pela seleção e pela exclusão escolar, na morte de jovens pobres nas periferias2626 Gualtieri REC. Educar para regenerar e selecionar. convergências entre os ideários eugênico e educacional no brasil. Estud Soc. 2008; 13(25):91-110., ou no caso de Lyta, um controle de corpos agindo sobre a sua reprodução, sem recorrer ao uso de meios judiciais, realizado mediante enquadramentos e seleções.

No Estado moderno capitalista, há fluxos que buscam produzir determinadas subjetivações que agenciam modos de viver. No caso tratado aqui, esses fluxos agiram na tentativa de interromper futuras gestações em um controle de sua reprodução, agenciando seu desejo na busca de uma desmaternização, ao mesmo tempo que implicam um modelo de sociedade no qual pessoas como Lyta não merecem povoar, caracterizando um fluxo eugênico.

Diante do viver nômade de Lyta, inúmeros modos de produzir vida e resolver problemas eram possíveis, mas a partir do momento que um fluxo eugênico a atravessou, as soluções foram reduzidas e a possibilidade de controle da reprodução emergiu. Usuários de drogas, pessoas com transtornos mentais e viventes da rua têm suas opções reduzidas, com seus desejos agenciados por esses mecanismos. A máquina desejante de Lyta é contida a ponto de seu desejo de ser mãe ser metamorfoseado no desejo de não reprodução.

Uma decisão jurídica viabilizou a esterilização de Janaína, contudo o caso de Lyta expõe um funcionamento que não chegou a ser executado como decisão jurídica, mas sim agenciado com o mesmo propósito nas relações micropolíticas, nos fluxos de agenciamento do desejo, em que Lyta decidiu por sua esterilização. Quando o desejo de Lyta de ser mãe é suprimido e esmagado ao ponto de ela mesma recorrer a uma esterilização permanente, esse fluxo eugênico a atravessa e a captura, do mesmo modo quando as instituições enxergam na esterilização de mulheres uma das únicas saídas.

Até o momento da finalização da vivência de campo no CnaR, Lyta ainda aguardava o procedimento da laqueadura, ainda caminhava pelos domínios de Desespero e Delirium; já os seus sonhos ficavam cada vez mais distantes, sem uma resposta da juíza sobre visitas ou guarda do filho. O desejo de ser mãe já não tinha mais espaço em sua existência, agora ela vivia com seu filho longe, em um ambiente onde sofre abusos, mas que precisa permanecer nele para, em um exercício de agradar a moral vigente das instituições, demonstrar que possui um endereço físico em uma esperança de rever Daniel.

Pela busca de novos futuros

Tal qual Lyta de “Sandman”, a Lyta que foi conhecida nesta vivência também teve seu filho sequestrado e saiu em uma busca incansável por Daniel. Delírios, desesperos e raiva marcam esse mapeamento da fúria que é Lyta, sofrendo em seu corpo todos os afetamentos decorrentes dos enquadramentos e controles institucionais por ser uma anormal do desejo.

Quando se torna uma mãe órfã pelo sequestro de Daniel, tanto Lyta quanto os profissionais do CnaR se sentem traídos, ambos caem em uma impotência diante dos agenciamentos biopolíticos que envolveram sua situação. Como Morpheus selou o futuro sobre o sequestro de Daniel, Lyta como uma vivente da rua também parece ter seu destino selado quando engravidou, posto que, por mais que realizasse todas as recomendações, o final ainda vislumbrava ser o mesmo.

Além da dor do afastamento de Daniel, Lyta ainda lidava com violências em sua casa em um emaranhado de relações rizomáticas que fogem às definições usuais. Mesmo nessa fuga de definições, uma ação homogeneizante recai sobre ela com um fluxo eugênico nas relações micropolíticas restringindo suas opções, tornando a laqueadura uma das únicas saídas.

Todas essas cenas cartografadas mostram situações de captura e controle que ainda ocorrem cotidianamente, mesmo com os profissionais das equipes buscando produzir diferenças nas relações com os usuários. A equipe acompanhada teceu e reforçou redes em um esforço para que Daniel pudesse nascer, e que, nesse esforço, também se frustrou diante da impossibilidade de Lyta ficar com seu bebê. Disso, é visível que ainda estão presentes maquinarias que produzem homogeneizações e impedem diferentes modos de viver, como o de Lyta.

O contexto social investigado neste estudo demonstrou uma complexa rede de fluxos e conexões que apenas uma pesquisa não conseguiria desvelá-la em sua plenitude. Compreende-se ser importante a produção de conhecimento por meio de múltiplos referenciais teórico-metodológicos explicitando-se, com isso, novas perspectivas analíticas sobre os movimentos e acontecimentos que ocorrem tanto com os viventes da rua quanto com o próprio CnaR como política pública e agente de produção de diferença.

  • (f)
    Lyta e Daniel personagens de “Sandman” estão grafados em itálico para fins de diferenciação.
  • (g)
    As Furiosas são três: Tisífone, Alecto e Megera. Vivem no Érebo, segunda região do Tártaro. Elas são mais velhas que qualquer divindade e existem como personificações da vingança1010 Graves R. Os mitos gregos. Klabin F, tradutor. 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2018. v. 1, v. 2.. Quando era uma heroína antes de engravidar, Lyta também era conhecida como fúria.
  • (h)
    Subjetivação aqui é entendida segundo o processo de subjetivação-dessubjetivação da esquizoanálise proposta por Deleuze e Guattari, em que, influenciada por linhas de segmentaridades duras ou maleáveis, a subjetividade é produzida nas relações e linhas de fuga1414 Cassiano M, Furlan R. O processo de subjetivação segundo a esquizoanálise. Psicol Soc. 2013; 25(2):373-8..
  • (i)
    Tempus frangit, palavra em latim, possui como tradução possível “o tempo quebra”, em um jogo de palavras na brincadeira com a expressão tempus fugit (o tempo voa).
  • (j)
    Modo estético de vida é compreendido pelas condições em que as subjetividades são produzidas por meio da máquina capitalista, modelando costumes, expressões, rotinas e modos de viver.

  • Financiamento

    A presente pesquisa foi realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) por meio de bolsa estudantil.
  • Duarte LG, Araujo FM, Bortoletto MSS, Melchior R, González AD. Da gestação à laqueadura: cartografia de uma mãe órfã vivenciada em um Consultório na Rua. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200063 https://doi.org/10.1590/interface.200063

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2020
  • Aceito
    27 Out 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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