Yoga: um diálogo com a Saúde Coletiva

Yoga: un diálogo con la Salud Colectiva

Marina Lima Daleprane Bernardi Maria Helena Costa Amorim Luciane Bresciani Salaroli Eliana Zandonade Sobre os autores

Resumos

A tradição indiana milenar do yoga oportuniza o autoconhecimento dos indivíduos em suas possibilidades e limitações, tornando-os mais autônomos na busca de bem-estar, mais saudáveis e conscientes. O ensaio teórico, fundamentado na revisão da literatura, analisa a repercussão do yoga em algumas de suas implicações como prática de saúde na racionalidade ocidental. A apropriação do yoga pela cultura ocídua implica a compreensão do sistema capitalista sobre o modo de produzir saúde nas sociedades contemporâneas e no aprofundamento das discussões acerca de seus benefícios filosóficos e práticos na Saúde Coletiva. Esse aprendizado fundamenta o Sistema Único de Saúde (SUS) e vem consolidando o conceito ampliado de saúde por meio da criação de pontes culturais baseadas na tolerância e no respeito a sua tradição.

Yoga; Ocidente; Mediação; Atenção à saúde; Saúde Coletiva


La tradición hindú milenaria del yoga da oportunidad al autoconocimiento de los individuos en sus posibilidades y limitaciones, haciéndolos más autónomos en la búsqueda de bienestar, más saludables y conscientes. El ensayo teórico, fundamentado en la revisión de la literatura, analiza la repercusión del yoga en algunas de sus implicaciones como práctica de salud en la racionalidad occidental. La apropiación del yoga por la cultura occidua implica la comprensión del sistema capitalista sobre el modo de producir salud en las sociedades contemporáneas y la profundización de las discusiones sobre sus beneficios filosóficos y prácticos en la salud colectiva. Ese aprendizaje fundamenta el Sistema Brasileño de Salud (SUS) y consolida el concepto ampliado de salud, a partir de la creación de puentes culturales basados en la tolerancia y respeto a su tradición.

Yoga; Occidente; Mediación; Atención a la salud; Salud Colectiva


Introdução

O yoga apresenta uma proposta indiana de conhecimentos e práticas para exploração dos domínios da mente. A inserção dessa prática ao cotidiano permite aos indivíduos desenvolverem suas possibilidades naturais e relacionarem-se harmonicamente com o meio que os rodeia, na medida em que se libertam das inquietações que lhes tolhem a liberdade 11. Taimni IK . Preparação para a Yoga . 2a ed. Brasília : Teosófica ; 2005 . .

Patanjali, mítico responsável pela codificação do yoga , organizou esse sistema em oito partes: yamas, nyamas , asana, pranayama, pratyahara, dharana, dhyana e samadhi. Yamas representam os cinco valores morais e proibitivos a serem praticados: não violência, compromisso com a verdade, honestidade, continência nos prazeres sensuais, desapego. Nyamas referem-se às cinco práticas disciplinares e construtivas: purificação, contentamento, esforço sobre si mesmo, estudo, consagração a Deus. Juntos, yamas e nyamas representam um código de conduta ética destinado a eliminar perturbações mentais e emocionais dos praticantes e destiná-los a viver de forma virtuosa. Asana corresponde à postura física estável e confortável, na qual se trabalha gradualmente o relaxamento do esforço. Pranayama consiste no controle da respiração. Na sequência, os conceitos de pratyahara (emancipação da atividade sensorial), dharana (concentração) e dhyana (meditação), aprofundam o desenvolvimento da concentração e da percepção interna e se encerram em samadhi (integração), que representa uma imersão nas camadas mais profundas da consciência 22. Taimni IK . A ciência do Yoga . 4a ed. Brasília : Teosófica ; 2006 . .

A repercussão do yoga na racionalidade ocidental se deu em um contexto de crise em seu pensamento racional e ético, concomitante à busca por valores e às práticas de bem-estar. A apropriação dessa e de outras tradições orientais em outro contexto sociocultural implica a hibridização, o desenvolvimento de novos comportamentos e de uma nova consciência ética 33. Albuquerque LMB . Oriente: fonte de uma geografia imaginária . REVER . 2001 ; 1 ( 3 ): 114 - 25 . . Na atualidade, a prática de yoga é reconhecida no mundo como modalidade terapêutica tradicional em ascensão, coadjuvante à medicina convencional, destinada a promover saúde e longevidade aos indivíduos 44. World Health Organization . WHO traditional medicine strategy: 2014-2023 . Genebra : WHO ; 2013 . , 55. Oliveira MCS , Winiawer FB . Gestão de corpo e mente com Yoga: um enfoque para saúde, bem-estar e qualidade de vida . UNOPAR Cient Cienc Hum Educ . 2015 ; 16 ( 3 ): 201 - 7 . . A incorporação dessa tradição no território brasileiro tem contribuído no processo de ressignificação de “saúde” e corroborado com a integralidade no cuidado, orientada pela conduta ética e pelo emprego de técnicas autoadministráveis, tais como: posturas físicas, exercícios respiratórios, controle das percepções orgânicas e meditação 66. Barros NF , Siegel P , Moura SM , Cavalari TA , Silva LG , Furlanetti MR , et al . Yoga e promoção da saúde . Cienc Saude Colet . 2013 ; 19 ( 4 ): 1305 - 14 . .

Considerando esse legado em sua grandeza milenar e implicações para o campo da saúde no Brasil e no mundo, realizamos um ensaio teórico fundamentado na revisão da literatura. Nosso objetivo é discutir a repercussão do yoga como prática de saúde na racionalidade ocidental.

Inserção do yoga como prática de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS)

Atualmente qualquer discussão relativa à saúde como saber interdisciplinar, construído nas últimas décadas, não escapa à necessidade de compreensão da influência das dinâmicas do Capitalismo sobre os valores da sociedade. Desde então, essas dinâmicas influenciam o modo de compreender “saúde” e alocam a utilidade de suas práticas dentro das regras e da lógica de mercado. Arouca 77. Arouca S . O dilema preventivista: contribuição para compreensão e crítica da medicina preventiva . São Paulo : Unesp ; 2003 . , ao estabelecer relações entre as regras do discurso da medicina preventiva e o modo de produção capitalista, evidencia as contradições fundamentadas no modelo de saúde fragmentado, assistencialista e capitalizado, marcado pelo fortalecimento de ações médicas individuais mediante a quitação de um valor.

Diante das necessidades instauradas pelo Capitalismo na cultura da saúde – cuja lógica propõe a priorização da doença, a fim de que se tenha mais doentes, mais consultas e exames, e mais lucros –, faz-se inevitável a insuficiência do sistema de saúde em saná-las. Essa incapacidade consiste no comprometimento da assistência e, consequentemente, na resolubilidade e na humanização dos atendimentos, que passam a ser proporcionais ao tempo de consulta 88. Padua Filho WC , Padua ICC . Os impactos do capitalismo no modelo de gestão em saúde no Brasil . Rev UNINGÁ . 2014 ; 18 ( 3 ): 62 - 5 . .

Ao longo das décadas, novas concepções vêm trazendo progressos ao contrapor a obsessão pelo lucro a uma maior preocupação com bem-estar, qualidade de vida e melhorias sociais 88. Padua Filho WC , Padua ICC . Os impactos do capitalismo no modelo de gestão em saúde no Brasil . Rev UNINGÁ . 2014 ; 18 ( 3 ): 62 - 5 . . Assim, a inserção do yoga vai ao encontro dos ideais propostos por importantes teóricos na construção de uma visão ampliada em Saúde. Campos 99. Campos GWS . Saúde paideia . São Paulo : Hucitec ; 2003 . retrata essa situação ao reforçar a necessidade da compreensão ampliada do processo saúde-doença e da construção de abordagens compreensivas no redimensionamento da gestão em Saúde à luz do método Paideia. Essa proposta demanda o compartilhamento de conhecimentos e poderes com a finalidade de produzir saúde, e concretiza-se à medida que permite o empoderamento dos indivíduos a intervir no mundo, conscientes de seus próprios desejos e interesses, de sua relação com a cultura e as organizações dominantes; e aptos a incorporar intervenções sobre si mesmo ou sobre a coletividade.

O yoga integra o conjunto de sistemas terapêuticos que se fizeram oportunos a partir da década de 1960, em meio à crise médica e sanitária, e configuraram um cenário de rejeição ao modelo de saúde proposto. Apoiados no movimento de contracultura, esses sistemas fundamentados em concepções holístico-integrativas representaram uma alternativa para atenuar o individualismo atribuído ao padrão hegemônico. A busca por essas terapias tem influenciado o processo de ressignificação de saúde, doença, tratamento e cura 1010. Luz MT . Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX . Physis . 2005 ; 15 Suppl : 145 - 76 . , 1111. Souza EFAA , Luz MT . Bases socioculturais das práticas terapêuticas alternativas . Hist Cienc Saude Manguinhos . 2009 ; 16 ( 2 ): 393 - 405 . . Ao discorrer sobre essa mudança de paradigmas, Campbell 1212. Campbell C . Orientalização do Ocidente: reflexões sobre uma nova teodiceia para um novo milênio . Relig Soc . 1997 ; 18 ( 1 ): 5 - 22 . afirma a adesão a esses sistemas como um processo gradual, traduzido pela ampla aceitação das crenças há muito tempo estabelecidas e confinadas a uma minoria influente que compunha o movimento de contracultura.

No Brasil, esse movimento sucedeu em meio à fase mais crítica da ditadura militar, o que contribuiu com a fragmentação dessas ideologias em campos apartados pelo regime opressor. As terapias que o constituíram apresentavam caráter menos invasivo e menos iatrogênico que o modelo médico predominante, e foram frequentemente associadas, de forma desdenhosa, ao movimento hippie 1313. Nogueira MI , Camargo Júnior KR . A orientalização do ocidente como superfície de emergência de novos paradigmas em saúde . Hist Cienc Saude Manguinhos . 2007 ; 14 ( 3 ): 841 - 61 . . Apesar da tendência à marginalização desse movimento, houve ampla difusão dessas práticas e a consequente afirmação de um novo paradigma a contrapor o modelo médico hegemônico. A proposta desse padrão alternativo é fundamentada na valorização da saúde; no reposicionamento do indivíduo (paciente) como centro de investigação e da prática terapêutica; na relação médico-paciente como estratégia essencial da terapêutica; na busca de meios terapêuticos mais simples e menos onerosos, com igual ou maior eficácia em termos curativos nas situações de adoecimento; e na autonomia dos indivíduos 1010. Luz MT . Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX . Physis . 2005 ; 15 Suppl : 145 - 76 . .

A partir da década de 1980, com o restabelecimento da democracia e a conquista de direitos sociais, como a concretização do Sistema Único de Saúde (SUS), essas propostas terapêuticas alternativas passaram a ser cada vez mais difundidas, e em 2006 foram categorizadas como Práticas Integrativas e Complementares (PICs) do SUS 1414. Brasil . Ministério da Saúde . Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS . Brasília : Ministério da Saúde ; 2006 . ( Série B. Textos Básicos de Saúde ). . A devida regulamentação do yoga nessa categoria é muito recente, por meio da portaria 849, em 27 de março de 2017 1515. Brasil . Ministério da Saúde . Portaria nº 849, de 27 de Março de 2017. Inclui a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares . Diário Oficial da União . 28 Mar 2017 ; sec. 1 , p. 68 . .

Assim como em outras modalidades de PICs, a compreensão do yoga como prática de saúde na racionalidade ocidental não foge à necessidade de ponderar o conceito de saúde de forma holística, em todos os aspectos da vida humana. Com a pretensão de explorar as percepções de influentes líderes de yoga da cidade de São Paulo acerca das contribuições dessa filosofia prática para o sistema de saúde, Siegel e Barros 1616. Siegel P , Barros NF . Yoga in Brazil and the national health system . Complement Health Pract Rev . 2009 ; 14 ( 2 ): 93 - 107 . identificaram extensões em que foi percebida como relevante a efetivação de importantes contribuições sintetizadas nos seguintes aspectos: totalidade, consciência, virtudes e espiritualidade. A concepção de totalidade refere-se à integração de corpo-mente-alma-universo e corresponde à abrangência dos cuidados de saúde. O cultivo da consciência, seja corporal, emocional, mental, seja espiritual, não tem correspondência direta com os princípios do sistema nacional, mas as consequências de sua construção reforçam valores como: autonomia, liderança, corresponsabilidade, racionalização, controle e participação. A prática de virtudes – verdade, honestidade, cultura de paz, fraternidade, tolerância, abstenção do que não traz benefício, disciplina, universalidade de conceitos, integração de grupos étnicos, gêneros e culturas –, que tem como base os yamas e nyamas , foi almejada como valor na mudança de paradigmas em saúde por meio dos movimentos de contracultura, e serviu como orientação para a construção de símbolos e valores da política de saúde atual. Finalmente, a consciência espiritual – correspondente à harmonia, conexão e purificação –, apesar de não estar explicitamente representada como política de saúde, já é compreendida como importante por alguns profissionais de saúde empenhados na criação de estratégias para sua aplicabilidade. Desse modo, o yoga pode ser compreendido como um conjunto de práticas físicas, sociais e filosóficas úteis para o campo da Saúde.

Há um crescente empenho científico em publicar estudos que reconheçam benefícios físicos e psicológicos advindos da prática de yoga ou de suas técnicas isoladas em indivíduos com diferentes condições de saúde 1717. Cramer H , Lauche R , Dobos G . Characteristics of randomized controlled trials of yoga: a bibliometric analysis . BMC Complement Altern Med . 2014 ; 14 ( 1 ): 328 . , 1818. Field T . Yoga research review . Complement Ther Clin Pract . 2016 ; 24 : 145 - 61 . . Todavia, apesar das evidências de mudanças terapêuticas positivas, a assimilação de suas técnicas é diferente entre indivíduos, grupos e sociedades. As investigações devem levar em conta essas diferenças sem perder de vista a complexidade subjetiva e social das potencialidades humanas. Esse campo ainda é emergente, especialmente no Brasil, e necessita ser explorado de forma mais sistemática em diferentes grupos em associação com outras ciências 1919. Barros NF , Siegel P , Moura SM , Cavalari TA , Silva LG , Furlanetti MR , et al . Yoga e promoção da saúde . Cienc Saude Colet . 2013; 19 ( 4 ): 1305 - 14 . , 2020. Menezes CB , Bizarro L , Telles S . Yoga, psychophysiology, and Health: studies from the yoga department research, patanjali university, índia . Temas Psicol . 2013 ; 21 ( 2 ): 411 - 7 . .

A Índia Antiga no contexto globalizado

O diálogo intercultural que qualifica o mundo globalizado advém, entre outros fatores, do desenvolvimento econômico, político, científico, industrial e das comunicações no mundo. A liberdade de expressão e de opinião e o avanço dos meios de comunicação ofereceram às pessoas a oportunidade de reinventar seus modos de vida e produzir culturas heterogêneas, baseadas em um diálogo de troca com múltiplos referenciais culturais. Desse modo, indivíduos tornaram-se menos restritos às imposições de sua tradição e das organizações, e mais autônomos para criticar e recriar valores e costumes 2121. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura . Relatório Mundial da UNESCO. Investir na diversidade cultural e no diálogo intercultural . Paris : Unesco ; 2009 . , 2222. Calçada LAZ , Heringer Júnior B . Do multiculturalismo ao interculturalismo: fracasso ou aperfeiçoamento . Redes Rev Eletr Dir Soc . 2018 ; 6 ( 2 ): 159 - 70 . .

A Índia, como lar de trajetórias civilizacionais tão antigas, caracteriza-se na atualidade por ser um território de grandes contrastes e disparidades sociais, como um verdadeiro caleidoscópio. Ao longo de sua história assimilou as mais diversas culturas que culminaram em um cenário de heterogeneidade cultural, social e religiosa, e fortalecem o regime democrático liberal. Seus grandes avanços científicos possibilitaram um maior desenvolvimento tecnológico e a configuraram como uma potência econômica emergente no âmbito global. Esse grande território, por outro lado, está em constantes conflitos e disputas geopolíticas, o que somado ao sistema de castas impacta o desenvolvimento econômico e social 2323. Sahni V . Índia: apesar de suas limitações, uma potência emergente . Nueva Soc . 2013 ; ( 246 ): 125 - 38 .

24. Ost SCO , Filippi EE . O impacto do sistema de castas no desenvolvimento econômico e social da índia contemporânea . Relac Int Mundo Atual . 2017 ; 1 ( 17 ): 1 - 20 .
- 2525. Silva MFB . A Índia e seu papel no contexto global: dos desafios domésticos aos internacionais . NEARI Rev . 2017 ; 3 ( 3 ): 1 - 6 . .

Essa compreensão se contrasta com o produto vendido pelo turismo ao imaginário ocidental, em seus repertórios de espiritualidade, exotismo e bem-estar, que colocam a Índia em um plano atemporal e idílico de um Oriente criado para e pelo Ocidente, ou mesmo ao encontro da invenção do Oriente pelo próprio Oriente. Nesse território, a prática de yoga é vendida como bem-estar e ganha conotação singular ao ser veiculada com autenticidade indiana, irreprodutível em outro local 2626. Galindo D , Poletto C , Pereira L . Indianidades: repertórios mobilizados pela ioga transnacionalizada nos fluxos turísticos Brasil-Índia . Psicol Rev . 2014 ; 20 ( 2 ): 297 - 318 . .

Em sua análise sobre diferenças culturais, Zimmer 2727. Zimmer H . Filosofias da Índia . 4a ed. São Paulo : Palas Athena ; 2008 . esclarece que os indianos em sua percepção histórica e filosófica, assim como os indivíduos incursos na racionalidade ocidental, têm suas próprias disciplinas psicológicas, éticas, físicas e teoria metafísica; e que por isso a Índia também se utiliza

[...] da estrutura e das potências mensuráveis da psique, analisa as faculdades intelectuais do homem e as operações de sua mente, avalia as teorias do entendimento humano, estabelece os métodos e as leis da lógica, classifica os sentidos e estuda os processos pelos quais aprendemos, assimilamos, compreendemos e interpretamos as experiências 2727. Zimmer H . Filosofias da Índia . 4a ed. São Paulo : Palas Athena ; 2008 . . (p. 21)

Entretanto, enquanto a racionalidade ocidental, em seu pensamento crítico, aponta a informação como objeto de interesse para o progresso das ciências racionais, a Índia Antiga aponta a transformação como base para a mudança radical na natureza humana, na compreensão do mundo e da própria existência 2727. Zimmer H . Filosofias da Índia . 4a ed. São Paulo : Palas Athena ; 2008 . .

Eliade 2828. Eliade M . Yoga: imortalidade e liberdade . 4a ed. São Paulo : Palas Athena ; 2009 . , ao discorrer sobre a condição humana, pondera que a lógica do pensamento ocidental caracteriza o homem como ser condicionado, fruto de sua temporalidade e de historicidade. No pensamento indiano essa concepção corresponde à “existência em maya ”, ou seja, em um mundo de aparências, ilusório e transitório. O caminho de descoberta do que é legítimo se dá pelo autoconhecimento, por meio da exploração do inconsciente. Tal acesso permite aos praticantes conhecer o limite do condicionamento humano, bem como dominá-lo no campo de compreensão da vida humana. O yoga , por sua vez, dispõe da tecnologia destinada a essa finalidade.

Para compreender a assimilação do yoga no mundo contemporâneo, faz-se necessário compreender os povos como produto das transformações culturais influenciadas pelo Capitalismo, constituído por sujeitos passivos, cujos valores estão voltados para atividades de consumo, prazer imediato e domínio da natureza. Tais atividades, mesmo em seus tipos mais decadentes e destruidores, são facilmente confundidas com autonomia, liberdade e liberação de desejos, e essas sociedades pagam esse preço em desestruturação dos seres humanos e excesso de violência contra o meio ambiente e as pessoas 2929. Japiassu H . Nem tudo é relativo: a questão da verdade . São Paulo : Letras & Letras ; 2001 . , 3030. Fontes V . Capitalismo, crises e conjuntura . Serv Soc Soc . 2017 ; ( 130 ): 409 - 25 . . Indivíduos sob a influência desse sistema têm seu estilo de vida fundamentado em falsas premissas éticas e em um profundo vazio: negam, dissimulam e alienam a necessidade de ser e de elaborar sua própria singularidade 3131. Pinto JPMS , Jesus AN . A transformação da visão de corpo na sociedade ocidental . Motriz . 2000 ; 6 ( 2 ): 89 - 96 . .

Entre as várias descrições sobre as causas dessa decadência cultural, Santos 3232. Santos BS . A crítica a razão indolente: contra o desperdício da experiência . 5a ed. São Paulo : Cortez ; 2005 . descreve esse processo na modernidade ocidental ao caracterizar as formas de conhecimento como regulado, em que a ignorância é idealizada como caos e o saber, como ordem; ou como emancipado, em que a ignorância é idealizada como colonialismo e o saber, como solidariedade.

Nessa configuração, diante do cenário assentado na globalização e na hegemonia capitalista, o conhecimento regulado preponderou sobre o emancipado e converteu a compreensão de solidariedade como uma forma de caos, a ignorância e o colonialismo como forma de saber e, consequentemente, como ordem 3232. Santos BS . A crítica a razão indolente: contra o desperdício da experiência . 5a ed. São Paulo : Cortez ; 2005 . . Nessa perspectiva, a Ciência moderna ocidental positivista, de um lado, transformou-se ideologicamente em fonte poderosa de progresso tecnológico e desenvolvimento capitalista, porém, de outro, marginalizou outras ciências, tomadas seletivamente como “alternativas”, um processo designado como epistemicídio 3333. Santos BS , Menezes MP . Epistemologias do Sul . São Paulo : Cortez ; 2010 . .

Embora não se possa ignorar tais consequências negativas, essa crise favorece uma maior aceitação de costumes, experiências e saberes distintos a essa sociedade, permitindo crescente plasticidade das identidades culturais. Cria-se, então, uma compreensão de que todo fenômeno é complexo, todo conceito é polissêmico, e todo campo de saber é disciplinar 99. Campos GWS . Saúde paideia . São Paulo : Hucitec ; 2003 . . Sob essa ótica, essas sociedades corrompidas buscam uma mudança nos paradigmas que as caracterizam, algo que possibilite aos indivíduos buscar conciliar as suas dicotomias, se relacionar em harmonia consigo mesmos e com o que está ao redor 3131. Pinto JPMS , Jesus AN . A transformação da visão de corpo na sociedade ocidental . Motriz . 2000 ; 6 ( 2 ): 89 - 96 . .

No que se refere à mudança de paradigmas, Campbell 1212. Campbell C . Orientalização do Ocidente: reflexões sobre uma nova teodiceia para um novo milênio . Relig Soc . 1997 ; 18 ( 1 ): 5 - 22 . descreve o processo de “orientalização” que perpassa o Ocidente, auxiliado pela difusão de ideias, produtos, práticas ou sistemas religiosos das tradições orientais antigas, e reforça que a introdução desses elementos a essa cultura não modifica necessariamente sua natureza básica:

[...] o padrão mais comum consiste na transformação dos elementos importados, e não das sociedades que importam como consequência de seu transplante para um ambiente distinto daquele onde foram produzidos 1212. Campbell C . Orientalização do Ocidente: reflexões sobre uma nova teodiceia para um novo milênio . Relig Soc . 1997 ; 18 ( 1 ): 5 - 22 . . (p. 6)

Para fundamentar tal afirmação, o autor aponta alguns indicadores da mudança na teodiceia da cultura ocidental: o declínio da crença no Deus criador e pessoal – característico das concepções judaica e cristã; o crescimento da crença em algum tipo de espírito ou força vital e na reencarnação; e o decréscimo da crença no céu e no inferno. Há um despertar místico e imanente, no qual o divino está presente em tudo e é parte do mundo, em contraponto à visão materialista e transcendente, na qual o divino é superior e separado do mundo. Em vez da ideia cristã de salvação, nessa nova perspectiva os indivíduos almejam o autoaperfeiçoamento e respeitam todas as formas de crença que levam a ele 1212. Campbell C . Orientalização do Ocidente: reflexões sobre uma nova teodiceia para um novo milênio . Relig Soc . 1997 ; 18 ( 1 ): 5 - 22 . .

A saúde passa a ser compreendida então como objeto não linear de limites imprecisos e integrada a valores como: solidariedade, equidade e justiça. Tais paradigmas consolidam uma práxis que incorpore práticas interdisciplinares e tome como objeto as necessidades sociais de saúde das pessoas 3434. Paim JS . A crise de saúde pública e a utopia da saúde coletiva . Salvador : Casa da Qualidade ; 2000 . . Há um importante empenho em destacar a busca pela integralidade em saúde e a multiplicidade de ações implicadas nesse conceito. Tais ações almejam a construção permanente de indivíduos autônomos, produtores de novos sentidos para viver o individual e o coletivo em atitude solidária e igualitária, comprometidos efetivamente com a vida em suas muitas formas de expressão 3535. Merhy EE . Integralidade: implicações em cheque . In: Pinheiro R , Ferla AA , Mattos RA . Gestão em redes: tecendo os fios da integralidade em saúde . Rio de Janeiro : EdUCS, IMS, UERJ, CEPESQ ; 2006 . p. 97 - 109 . .

O yoga apresenta uma ampla proposta de autoconhecimento que abrange aspectos morais, físicos, espirituais, sociais, ou seja, compreende o ser em todas as suas potencialidades. Mais do que algo a ser eventualmente utilizado, essa prática se apresenta por meio da integração do ser com o universo, sendo um fator constitutivo da ação do homem no mundo. Seus princípios éticos – como a não violência, o não consumismo, a não possessividade – representam uma crítica ao estilo de vida consumista e competitivo contemporâneo, considerado como causador de angústias e aflições 3636. Pereira LF , Tesser CD . Do yoga para a atenção psicossocial na Atenção Primária à Saúde: um estudo hermenêutico sobre valores e princípios éticos do Yoga Sutra de Patañjali . Cienc Saude Colet [ Internet ]. 2019 [ citado 18 Jul 2020 ]. Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/do-yoga-para-a-atencao-psicossocial-na-atencao-primaria-a-saude-um-estudo-hermeneutico-sobre-valores-e-principios-eticos-do-yoga-sutra-de-patanjali/17250?id=17250&id=17250
http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/...
.

O Ocidente, por não conseguir absorver essa complexidade, tende a fragmentar essa concepção e enfatizar a especialização dos saberes. Arouca 77. Arouca S . O dilema preventivista: contribuição para compreensão e crítica da medicina preventiva . São Paulo : Unesp ; 2003 . critica essa incapacidade da Ciência ocidental em responder às necessidades de seus objetos, e menciona as disciplinas-tampões como alternativas para solucionar tais necessidades. Como o Ocidente dificilmente concede status científico ao yoga , que em sua essência resiste à fragmentação caracterizadamente ocidental, ele o enquadra em duas estruturas que representam a institucionalização de uma prática concreta das relações especificadas entre ciência e saber. De um lado, o yoga poderia representar mais uma disciplina-tampão da Medicina a fim de propor a cura de forma holística. Por outro lado, poderia ser compreendido como ciência de autoconhecimento e libertação que necessita de disciplinas-tampões, como a Medicina, a Fisiologia, a Psicologia, a Filosofia, entre outras. Em ambos os casos, o yoga não é compreendido por si mesmo.

Apropriação do yoga no mundo contemporâneo

A apropriação do yoga por outras culturas é resultado de sua popularização e faz parte um processo contínuo e gradual de interpretação relativa ao meio a que está inserido. Tal processo é baseado na lógica de uma tradição, mas está longe de ser algo rígido ou imutável. Ao contrário, gera ampla interpretação, ultrapassando os limites do concreto ao possibilitar que diferentes indivíduos de várias procedências alcancem uma maior compreensão da realidade que os cerca, e por isso os níveis de realidade alcançados são proporcionais ao entendimento e à entrega dos praticantes 3737. Rodrigues MR . Estudo sobre a Yoga . São Paulo : Phorte ; 2006 . .

Em sua proposta pedagógica, baseada no respeito à autonomia dos indivíduos, Freire 3838. Freire P . Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa . 54a ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra ; 2016 . alude a questão da inconclusão como parte da natureza humana, da necessidade do indivíduo em reconhecê-la em si próprio e adentrar-se em uma permanente busca: “[...] Inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas consciente do inacabamento sei que posso ir mais além dele” (p. 52-3). O autor condena a absolutização de um ponto de vista e afirma a obrigação de se ter ética, respeito e lealdade para criticar o ponto de vista alheio.

Com base na crise de valores em que se encontra nossa sociedade, faz-se urgente a instauração de um sentido ético que torne os indivíduos livres e soberanos, e contenha a reprodução espasmódica dos gestos impostos nos moldes de seu campo social e histórico: Ganhar dinheiro, consumir e quando possível gozar 2929. Japiassu H . Nem tudo é relativo: a questão da verdade . São Paulo : Letras & Letras ; 2001 . . Pinto Jesus 3131. Pinto JPMS , Jesus AN . A transformação da visão de corpo na sociedade ocidental . Motriz . 2000 ; 6 ( 2 ): 89 - 96 . retrata essa busca como uma necessidade de integração de dicotomias, de reencontro dos homens consigo mesmos e com seus semelhantes:

Trata-se mais de um paralelismo, no qual o Ocidente está acordando para pontos há milhares de anos levantados pelo Oriente, do que de uma influência direta. Não é questão de importar o zen do extremo oriente, mas perceber o que podemos aprender com ele. Nesse sentido, há uma íntima relação entre a visão zen e a atual evolução do pensamento homem ocidental em relação a seu corpo, desencadeada pela penetração desse novo paradigma em nossa sociedade 3131. Pinto JPMS , Jesus AN . A transformação da visão de corpo na sociedade ocidental . Motriz . 2000 ; 6 ( 2 ): 89 - 96 . . (p. 96)

A tal propósito, o yoga oferece às pessoas, em sua prática regular e persistente, ferramentas necessárias para atingir níveis mais profundos da consciência. O autoconhecimento adquirido nesse processo de busca pela sua essência permite a esses praticantes alcançar maior visão da realidade e o estado de autorrealização sem perder de vista o ideal maior 11. Taimni IK . Preparação para a Yoga . 2a ed. Brasília : Teosófica ; 2005 . .

Em meio a modismos e apelos comerciais, a popularização do yoga também favorece as distorções dos princípios dessa tradição. Em tal acepção, essa tradição milenar é frequentemente identificada na cultura Ocidental como prática de relaxamento do estresse ou esporte, o que dificulta a apreensão de sua natureza dicotômica, entre corpo e espírito. Essa sociedade, que idealiza o culto ao corpo como elemento central das relações sociais, apresenta dificuldades na compreensão do yoga como prática espiritual 3939. Gnerre MLA . Identidades e paradoxos do yoga no brasil: caminho espiritual, prática de relaxamento ou atividade física? Fronteiras . 2010 ; 12 ( 21 ): 247 - 70 . .

O relatório mundial da Unesco 2121. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura . Relatório Mundial da UNESCO. Investir na diversidade cultural e no diálogo intercultural . Paris : Unesco ; 2009 . , ao descrever a importância de se investir na diversidade cultural e no diálogo, aponta como um dos principais efeitos da globalização a fragilização do vínculo entre um fenômeno cultural e a sua circunstância geográfica. Desse modo, cautela e vigilância epistemológica são indispensáveis para não descaracterizar uma tradição milenar e desnaturar seus princípios 4040. Silva GD . Curso básico de Yoga: teórico-pratico . 2a ed. São Paulo : Phorte ; 2009 . .

O diálogo é o primeiro passo para superação das interpretações limitadas e inadequadas acerca dessa filosofia prática milenar oriental. Partindo dessa premissa, a educação auxilia os indivíduos a adquirir as competências interculturais, permite-lhes conviver com as diferenças culturais e não apesar delas, e contribui com o exercício da cidadania e da democracia 2121. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura . Relatório Mundial da UNESCO. Investir na diversidade cultural e no diálogo intercultural . Paris : Unesco ; 2009 . . Trata-se da busca pela verdade com base em diferentes apreensões da realidade. No entanto, essa construção apresenta princípios intangíveis e inacabados, com opiniões 3838. Freire P . Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa . 54a ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra ; 2016 . sobrepostas tornando o conteúdo mais rico e englobante, e, portanto, sem palavra final. Santos 4141. Santos BS . A gramática do tempo: para uma nova cultura política . 3a ed. São Paulo : Cortez ; 2010 . v. 4 . ( Coleção para um novo senso comum ). reforça essa ideia ao propor o conceito de ecologia de saberes, movimento que reconhece os saberes como heterogêneos, autônomos e articulados entre si, assentados em um sistema aberto em processo constante de criação e renovação.

Danucalov e Simões 4242. Danucalov MAD , Simões RS . Neurofisiologia da meditação . São Paulo : Phorte ; 2006 . apontam essa cooptação de conceitos no yoga e na meditação, advinda do diálogo com essa tradição, como importante no desenvolvimento da humanidade.

Yoga e a meditação parecem estar em constante transmutação. Analisando-se coerentemente suas histórias evolutivas, percebe-se que essas escolas vêm sofrendo constantes transformações e adaptações através dos tempos. Impedir reinterpretações saudáveis dos antigos textos, assim como futuras adaptações de âmbito sociocultural, é restringir o crescimento de sistemas que supostamente nasceram da mais sincera e íntima necessidade investigativa do ser humano. Restringir tais questionamentos é impedir o avanço da ciência e a continuidade do crescimento social, cultural e espiritual do homem 4242. Danucalov MAD , Simões RS . Neurofisiologia da meditação . São Paulo : Phorte ; 2006 . . (p. 424)

A transdisciplinaridade, por sua vez, representa uma tentativa de superação da disciplinaridade na configuração do saber. Ela oferece uma compreensão mais abrangente de um determinado problema a ser resolvido uma vez que permite trocas de saberes entre conhecimentos ditos científicos, que seguem regras teóricas metodológicas, como também inferência ao conhecimento holístico mais abrangente e avançado. Essa busca implica autoanálise e identificação do homem como ser integrante de um sistema maior 4343. Guedes JA . A crise da ciência moderna e a busca de uma superação . Rev Geotemas . 2012 ; 2 ( 2 ): 121 - 30 . . A mudança que opera permite a reorganização no saber, o restabelecimento de relações entre os diversos aspectos da realidade e o reposicionamento dos dados complexos e contraditórios no interior de um sistema global e hierarquizado, sem fronteiras estáveis entre as disciplinas e os sujeitos 4444. Paul P . Transdisciplinaridade e antropoformação: sua importância nas pesquisas em saúde . Saude Soc . 2005 ; 14 ( 3 ): 72 - 92 . .

Dos aspectos do yoga em seu ideal de transcendência, que se consolidam na ética transdisciplinar, destaca-se a impossibilidade de descrever ou definir formalmente o autoconhecimento alcançado pela prática, já que esse produto se refere a algo que é construído e vivenciado. Por outro lado, o yoga não representa o único meio de o homem transcender sua realidade, fato que vai ao encontro do ideal de reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade regidos por variadas lógicas.

Para contemporizar o conhecimento apreendido, as sociedades contemporâneas devem saber escutar. A desconsideração pela concepção integral do ser humano e sua redução a mecanismos que o minimizam fortalecem a forma hegemônica e autoritária de reproduzir conhecimento. Por meio dessa compreensão, Freire 3838. Freire P . Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa . 54a ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra ; 2016 . , ao discorrer sobre os saberes necessários à prática da autonomia, afirma que uma verdadeira relação de comunicação necessita da apropriação da inteligência do conteúdo. A legitimidade dessa relação demanda: o reconhecimento da historicidade do saber para resguardar a tradição do yoga incorporada a diferentes culturas; abertura à possibilidade de diferentes pontos de vista; humildade na compreensão de que não há relação de superioridade entre os saberes; e tolerância no reconhecimento das diferentes interpretações como benéficas aos indivíduos, mesmo aquém dos ideais maiores da tradição.

Ainda que a realidade seja universalmente única, ela é reproduzida segundo os meios que reflete. Por isso, torna-se incoerente fazer uso das soluções indianas de forma literal, ou seja, a simples imitação de um estilo de vida sem sua assimilação em suas emoções e no intelecto conduz as pessoas a uma vida inautêntica, submetida às aparências. O saber escutar nos ensina que é possível se utilizar dessa tradição contextualizada da atualidade, com recursos próprios. Logo, seguir o caminho das próprias experiências permite aos indivíduos encontrar suas próprias respostas, assimilar sofrimentos e realizações com as peculiaridades que pertencem a sua cultura 4545. Feuestein G . A tradição do Yoga: história, literatura, filosofia e prática . São Paulo : Pensamento ; 2006 . .

Finalmente, o yoga remete à conexão do homem com o universo pela consciência de ação transformadora. Esse sistema filosófico e prático apresenta amplas interpretações referentes aos meios e possibilidades de sua finalidade, e por isso deve ser “escutado” em sua tradição para ser reinterpretado corretamente em seu propósito. Dada sua expansão no mundo e no SUS, almeja-se que a popularização dessa prática desperte o interesse sobre suas bases conceituais, a fim de evitar que sua complexidade se restrinja a algum(ns) de seu(s) aspectos e se perca de seu ideal 3636. Pereira LF , Tesser CD . Do yoga para a atenção psicossocial na Atenção Primária à Saúde: um estudo hermenêutico sobre valores e princípios éticos do Yoga Sutra de Patañjali . Cienc Saude Colet [ Internet ]. 2019 [ citado 18 Jul 2020 ]. Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/do-yoga-para-a-atencao-psicossocial-na-atencao-primaria-a-saude-um-estudo-hermeneutico-sobre-valores-e-principios-eticos-do-yoga-sutra-de-patanjali/17250?id=17250&id=17250
http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/...
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Conclusão

Usufruir do legado indiano por meio do yoga conduz o desenvolvimento dos indivíduos em todos os sentidos da personalidade humana, permitindo-lhes o autoconhecimento e a aproximação do que lhes é essencial. Esse sistema filosófico e prático os torna mais críticos e autônomos na busca de seu bem-estar, na melhoria de suas vidas e na construção de uma sociedade mais saudável e consciente.

A interpretação do yoga é diferente entre os indivíduos, grupos, sociedades e na racionalidade ocidental, e vai ao encontro do conceito ampliado de saúde construído ao longo da história que envolve: valorização do componente subjetivo, integralidade do empoderamento dos indivíduos, novas perspectivas de reflexão e ações individuais e coletivas.

O conteúdo oferecido pela tradição do yoga vai de encontro à influência dos valores impostos pelo Capitalismo nas sociedades contemporâneas sob a lógica do consumo, da acumulação, da individualidade e da competitividade. Para maior usufruto desse legado é preciso contextualizar e flexibilizar o yoga estabelecendo pontes culturais com a contemporaneidade, sem descaracterizá-lo em seus princípios éticos, filosóficos e práticos.

Essa discussão contribui para o aprofundamento dos debates no campo da Saúde Coletiva e requer uma postura criativa e arrojada em ressignificar saúde e fortalecer a proposta de integralidade que fundamenta o SUS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2020
  • Aceito
    21 Set 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br