Mapeamento e experiências de indígenas nas escolas médicas federais brasileiras: acesso e políticas de permanência

Mapeo y experiencias de indígenas en las escuelas médicas federales brasileñas: acceso y políticas de permanencia

Willian Fernandes Luna Karla Caroline Teixeira Giovana Kharfan de Lima Sobre os autores

Resumos

A trajetória do ensino superior no Brasil é marcada pela restrição ao grupo privilegiado da população, com exclusão de pessoas indígenas. Nas últimas duas décadas, ações afirmativas foram desenvolvidas e possibilitaram o acesso de alguns indígenas às graduações de Medicina. Objetivando-se mapear e conhecer as experiências desses estudantes nas universidades federais brasileiras, desenvolveu-se uma pesquisa exploratória, quanti-qualitativa. Foram identificados 192 estudantes indígenas em 43 escolas médicas no ano de 2019. Dessas, 14 foram visitadas, realizando-se entrevistas narrativas com 24 indígenas estudantes de Medicina. Na análise temática de conteúdo emergiram experiências narradas pelos estudantes com foco em duas categorias: acesso à escola médica e políticas de permanência nas instituições. Ao conhecer as experiências desses estudantes no meio universitário, torna-se possível contribuir para sua permanência nos cursos, superando a invisibilidade e oportunizando trajetórias que correspondam às expectativas dos povos indígenas na formação médica.

Palavras-chave
Ações afirmativas; População indígena; Educação de graduação em Medicina; Instituições de ensino superior; Política de educação superior


La trayectoria de la enseñanza superior en Brasil está marcada por su restricción al grupo privilegiado de la población, con exclusión de personas indígenas. En las últimas dos décadas se desarrollaron acciones afirmativas que posibilitaron el acceso de algunos indígenas a los cursos de graduación de medicina. Con el objetivo de mapear y conocer las experiencias de esos estudiantes en las universidades federales brasileñas, se desarrolló una investigación exploratoria cuanti-cualitativa. Se identificaron 192 estudiantes indígenas en 43 escuelas médicas, en el año 2019. Entre ellas, se visitaron 14, realizándose entrevistas narrativas con 24 indígenas estudiantes de Medicina. En el análisis temático de contenido surgieron experiencias narradas por los estudiantes, enfocadas en dos categorías: Acceso a la escuela médica; Políticas de permanencia en las instituciones. Al conocer las experiencias de estos estudiantes en el medio universitario resulta posible contribuir a su permanencia en los cursos, superando la invisibilidad y dando oportunidad a trayectorias que correspondan a las expectativas de los pueblos indígenas en la formación médica.

Palabras clave
Acciones afirmativas; Población indígena; Educación de graduación en medicina; Instituciones de enseñanza superior; Política de educación superior


Introdução

Historicamente, há pouco acesso dos indígenas ao ensino superior como universitários no Brasil, quase impossibilitando a formação de profissionais de saúde que sejam dessas comunidades. Com a Constituição de 1988, houve um rompimento oficial com as políticas de tutela e integração, com garantia de uma educação escolar bilíngue e diferenciada, com conquistas em termos de escolas de ensino fundamental e médio nas comunidades indígenas11 Mello RR, Souza MM, Palomino TJ. Indigenous school education in Brazil. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Education; 2018.,22 Baniwa G. Educação escolar indígena no século XXI: encantos e desencantos. Rio de Janeiro: Mórula; 2019..

No entanto foi ao longo das duas primeiras décadas do século 21 que algumas políticas favoreceram a presença de indígenas no ensino superior, provocadas principalmente por reivindicações do movimento indígena, apesar das contradições no processo histórico de escolarização dos povos indígenas, marcado pela dominação e pela colonização11 Mello RR, Souza MM, Palomino TJ. Indigenous school education in Brazil. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Education; 2018.

2 Baniwa G. Educação escolar indígena no século XXI: encantos e desencantos. Rio de Janeiro: Mórula; 2019.
-33 Luciano GJS. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Coleção Educação para Todos; 2006..

Desse modo, algumas estratégias, como programas de inclusão e de ações afirmativas em cursos regulares ou de formação intercultural44 Paladino M, Almeida NP. Entre a diversidade e a desigualdade: uma análise das políticas públicas para a educação escolar indígena no Brasil dos governos Lula. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, LACED/Museu Nacional/UFRJ; 2012.,55 Lima ACS. Ações afirmativas no ensino superior e povos indígenas no Brasil: uma trajetória de trabalho. Horiz Antropol. 2018; 24(50):377-448., foram sendo criadas local e nacionalmente para que o direito de acesso ao ensino superior fosse garantido aos indígenas. Assim, a concepção das ações afirmativas implica o trabalho pela desconstrução de assimetrias historicamente construídas, o que no âmbito das universidades públicas tem significado, principalmente, as estratégias para acesso66 Universidade Federal de São Carlos. Política de ações afirmativas, diversidade e equidade da Universidade Federal de São Carlos. São Carlos: Secretaria Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade; 2016.. Logo, trata-se de promover a inclusão de grupos socialmente vulneráveis a fim de promover a superação de desigualdades e injustiças sociais77 Feres Júnior J, Campos LA, Daflon VT, Venturini AC. Ação afirmativa: conceito, história e debates. São Paulo: Eduerj; 2018.,88 Fraser N. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cad Campo. 2006; 15(14-15):231-9..

Três argumentos fundamentais justificam as políticas de ações afirmativas (PAA): reparação, justiça distributiva e diversidade77 Feres Júnior J, Campos LA, Daflon VT, Venturini AC. Ação afirmativa: conceito, história e debates. São Paulo: Eduerj; 2018.. Portanto, as PAA relacionadas ao acesso às universidades buscaram torná-las mais plurais, na tentativa de corrigir desigualdades e superar critérios traçados à luz de uma meritocracia que privilegia a elite dominante99 Gonçalves e Silva PB, Morais DS. Ações afirmativas: um caminho para a equidade. In: Gonçalves e Silva PB, Morais DS, organizadores. Ações afirmativas: perspectivas de pesquisas de estudantes de reserva de vagas. São Carlos: Edufscar; 2015..

As primeiras experiências de ações afirmativas envolvendo estudantes indígenas no Brasil remontam ao início da década de 1990, por meio de convênios da Fundação Nacional do Índio (Funai) com algumas universidades públicas e privadas22 Baniwa G. Educação escolar indígena no século XXI: encantos e desencantos. Rio de Janeiro: Mórula; 2019.,33 Luciano GJS. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Coleção Educação para Todos; 2006.. Entretanto foi a partir do século 21 que foram propostas políticas de ingresso diferenciado de forma mais ampla, com experiências inicialmente em universidades estaduais, seguidas por instituições federais de ensino superior (Ifes), com formas de organização e critérios muito diferentes entre si55 Lima ACS. Ações afirmativas no ensino superior e povos indígenas no Brasil: uma trajetória de trabalho. Horiz Antropol. 2018; 24(50):377-448.,77 Feres Júnior J, Campos LA, Daflon VT, Venturini AC. Ação afirmativa: conceito, história e debates. São Paulo: Eduerj; 2018..

Posteriormente, foi sancionada a lei federal 12.711, intitulada Lei de Cotas, que garantiu a reserva de 50% das matrículas por curso nas Ifes a oriundos do ensino médio público, com cotas para o grupo de estudantes pretos, pardos e indígenas (PPI)1010 Brasil. Lei nº 12.711, de 29 de Agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. 30 Ago 2012.. Foi nesse contexto de PAA que houve uma quantidade maior de indígenas acessando o ensino superior.

Na experiência internacional, destaca-se o Canadá, com reserva de vagas para indígenas em todas as escolas médicas1111 Hanson MD, Moineau G, Kulasegaram KM, Hammond R. Is Canada ready for nationwide collaboration on medical school admissions practices and policies? Acad Med. 2016; 91(1):1501-8.. Nessa direção, a Universidade do Norte de Ontário assumiu, desde 2002, a responsabilidade social de formar médicos para as necessidades locais, construindo PAA para os estudantes da região e povos originários1212 Strasser RP, Lanphear JH, McCready WG, Topps MH, Hunt DD, Matte MC. Canada’s new medical school: The Northern Ontario School of Medicine: social accountability through distributed community engaged learning. Acad Med. 2009; 84(10):1459-64..

No Brasil, os cursos de Medicina são tradicionalmente elitizados desde sua criação, podendo ser considerados como destinados a um grupo privilegiado da população, com acesso pouco democrático1313 Vargas HM. Sem perder a majestade: “profissões imperiais” no Brasil. Estud Sociol. 2010; 15(28):107-31.. Tomando-se o censo demográfico de 2010, os brancos representavam 48% da população, sendo constatado, com base na análise dos dados do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) de 2019, que os concluintes dos cursos de Medicina eram 67% brancos1414 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010 [Internet]. Brasília: IBGE; 2010 [citado 16 Fev 2020]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/
https://censo2010.ibge.gov.br/...
,1515 Brasil. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Relatório de curso: Medicina. Universidade Federal do Mato Grosso [Internet]. Brasília: INEP; 2019 [citado 20 Dez 2020]. Disponível em: https://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/relatorio_sintese/2019/Enade_2019_Relatorios_Sintese_Area_Medicina.pdf
https://download.inep.gov.br/educacao_su...
. Já os indígenas, que somam cerca de 0,4% da população brasileira, eram 0,3% dos concluintes1414 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010 [Internet]. Brasília: IBGE; 2010 [citado 16 Fev 2020]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/
https://censo2010.ibge.gov.br/...
,1515 Brasil. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Relatório de curso: Medicina. Universidade Federal do Mato Grosso [Internet]. Brasília: INEP; 2019 [citado 20 Dez 2020]. Disponível em: https://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/relatorio_sintese/2019/Enade_2019_Relatorios_Sintese_Area_Medicina.pdf
https://download.inep.gov.br/educacao_su...
.

Além disso, a maior parte dos estudantes de Medicina possuíam renda familiar acima da média da população brasileira1515 Brasil. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Relatório de curso: Medicina. Universidade Federal do Mato Grosso [Internet]. Brasília: INEP; 2019 [citado 20 Dez 2020]. Disponível em: https://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/relatorio_sintese/2019/Enade_2019_Relatorios_Sintese_Area_Medicina.pdf
https://download.inep.gov.br/educacao_su...
,1616 Ristoff D. O novo perfil do campus brasileiro. Rev Aval Educ Super (Campinas). 2014; 19(3):723-47.. Soma-se à situação o fato de haver uma grande demanda de indígenas por cursos da área da Saúde, especialmente para Medicina, como evidenciado pelo número de candidatos no vestibular indígena da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) para ingresso em 2018, que foi de 235 para uma vaga de Medicina1717 Universidade Federal de São Carlos. Ingresso de estudantes Indígenas [Internet]. São Carlos: Ufscar; 2008 [citado 25 Maio 2019]. Disponível em: http://www.prograd.ufscar.br/cursos/ingresso-na-graduacao/indigenas-1/indigenas
http://www.prograd.ufscar.br/cursos/ingr...
. Cabe ressaltar que o cenário se apresenta com esses dados mesmo após uma série de políticas públicas que o transformaram parcialmente1616 Ristoff D. O novo perfil do campus brasileiro. Rev Aval Educ Super (Campinas). 2014; 19(3):723-47..

Dessa forma, diante da exclusão histórica dos indígenas nos cursos de Medicina e do desenvolvimento de ações no sentido de incluí-los nesses processos formativos, realizou-se esta pesquisa para conhecer esse cenário. O material deste manuscrito é um recorte de um projeto maior chamado “As experiências de estudantes indígenas nos cursos públicos de Medicina no Brasil”, desenvolvido entre os anos de 2018 a 2021, e compõe a tese de doutorado do primeiro autor(dFinanciamentoPesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo auxílio regular 2019/09426-7; iniciações científicas 2019/24876-9 e 2019/24863-4. E pela Organização Pan-Americana de Saúde em parceria com o Ministério da Saúde, por meio da Carta Acordo SCON 2017 – 02638.).

A pesquisa apresentada neste artigo teve os objetivos de: mapear os cursos de Medicina em universidades federais com presença de estudantes indígenas no ano de 2019; conhecer as experiências dos indígenas com relação ao acesso às escolas médicas e às políticas de permanência nas instituições.

Método

Para a compreensão do campo empírico, realizou-se um estudo exploratório quanti e qualitativo. O campo de pesquisa foi o conjunto de escolas médicas com presença de estudantes indígenas nas universidades federais brasileiras, opção essa definida devido às seguintes características: essas instituições estão sujeitas a uma base de normativas federais comuns; várias delas possuem PAA1818 Bergamaschi MA, Doebber MB, Brito PO. Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência. Rev Bras Estud Pedagog. 2018; 99(251):37-53.; e pelo fato de os investigadores atuarem em uma dessas instituições.

A construção dos dados aconteceu de julho de 2018 a março de 2020, utilizando-se duas estratégias: identificação das escolas médicas e perfil dos indígenas; encontros presenciais. Para favorecer a compreensão do leitor, as técnicas de construção dos dados estão apresentadas de forma sequencial, embora o desenvolvimento tenha sido dinâmico e com momentos inter-relacionados.

  1. Identificação das escolas médicas e perfil dos indígenas

    O levantamento de dados quantitativos buscou mapear a presença dos indígenas nas escolas médicas de universidades federais, descrevendo o grupo estudado e favorecendo o entendimento geral sobre o universo da pesquisa1919 Flick U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3a ed. Porto Alegre: Artmed; 2009.,2020 Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qual. 2017; 5(7):1-12.. Essa estratégia foi necessária porque a informação sobre quais cursos tinham estudantes indígenas, e quantos eles eram, não estava disponível nas bases de dados do Ministério da Educação (MEC).

    Para a identificação das escolas médicas, utilizou-se a técnica Bola de Neve em uma cadeia de referência, com início no contato com informantes-chave, principalmente os indígenas estudantes na Universidade Federal de São Carlos e professores de outras instituições. Nessa estratégia, cada informante-chave ou participante da pesquisa indicou outras pessoas com o perfil necessário, possibilitando que os pesquisadores as localizassem2121 Biernacki P, Waldorf D. Snowball sampling: problems and techniques of chain referral sampling. Sociol Methods Res. 1981; 10(2):141-63.. Concomitantemente a essa técnica, também foram realizadas buscas em documentos institucionais relacionados à presença e ao perfil de indígenas nessas escolas médicas.

    Dessa forma, levantou-se um total de 43 escolas médicas federais com a presença de 192 estudantes indígenas.

  2. Encontros presenciais

    A opção pela pesquisa qualitativa deu-se por ela adentrar uma realidade de relações sociais e do cotidiano na qual pesquisadores e sujeitos estavam inseridos, o que possibilitou avançar na apreensão de fenômenos e processos, com especificidade e diferenciação2222 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014.,2323 Deslandes S, Gomes R, Minayo MCS, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 31a ed. Petrópolis: Vozes; 2013..

    Os encontros presenciais com os estudantes indígenas aconteceram paralelamente ao levantamento das instituições. Os participantes foram selecionados de forma intencional, buscando-se proporcionar uma diversidade de gênero, idade, séries do curso, regiões geográficas do país, realidades das instituições e diferentes povos indígenas. O objetivo com esse grupo de participantes foi trazer homogeneidade e diferenciação, riqueza e volume de dados, com abrangência de múltiplas dimensões do fenômeno2020 Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qual. 2017; 5(7):1-12..

    Do total de 43 escolas médicas identificadas, foram visitadas 14. A cada visita realizada, até três indígenas eram convidados para uma entrevista individual. Os critérios de inclusão foram: ser indígena autodeclarado e estar cursando qualquer série da graduação em Medicina. Os critérios de exclusão foram: ter idade inferior a 18 anos e estar afastado do curso no momento da visita. Todos os participantes concordaram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

    Para o encontro com os participantes, houve a preocupação de planejar como seria a melhor maneira de chegar a esses interlocutores, merecendo cuidado especial os primeiros contatos realizados de forma remota, que ocorreram antes dos encontros presenciais2222 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014.. Nesse sentido, iniciou-se uma rede de relações com indígenas nas instituições, inclusive lideranças locais, técnicos e docentes que atuavam com proximidade aos estudantes indígenas. Esse movimento foi favorecido pelas características dos pesquisadores, autores deste artigo: um atua na saúde indígena, outra é universitária indígena e a última é participante do movimento nacional dos estudantes de Medicina.

    A maior parte dos convidados aceitou participar da pesquisa, e em apenas uma das escolas médicas visitadas não se realizou entrevista individual, já que eram poucos os estudantes e eles não tiveram disponibilidade. Assim, nos encontros presenciais, optou-se por valorizar a oralidade no reconhecimento de que as diferentes culturas indígenas estão baseadas principalmente na tradição oral, com modos de organização de vida, conhecimentos e valores transmitidos de pais para filhos33 Luciano GJS. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Coleção Educação para Todos; 2006..

    A escolha foi realizar entrevistas narrativas, caracterizadas como ferramenta não estruturada, visando a profundidade de aspectos específicos por meio dos quais emergem histórias de vida, tanto as do entrevistado como as entrecruzadas no contexto situacional2424 Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista narrativa. In: Bauer MW, Gaskell G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes; 2015. p. 90-113.. Esse tipo de entrevista visou encorajar e estimular os entrevistados a narrar, de forma livre, por um único disparador, solicitando ao participante que narrasse como estava sendo a experiência naquela escola médica. Cada participante foi entrevistado uma única vez, de forma individual e em local escolhido por ele.

    No contexto dessa pesquisa, a experiência foi compreendida como transformadora da pessoa que a vive, não apenas pelo que aconteceu, mas pelo que a tocou e a transformou2525 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; (19):20-8.. Já a narrativa foi concebida com base em uma relação entre experiência, tempo e memória, em um ato de narrar que não busca ser um romance nem um relatório, mas uma história tecida da própria reminiscência2626 Benjamin W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Benjamin W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8a ed. São Paulo: Brasiliense; 2012. p. 213-40..

    Foram realizadas 24 entrevistas, todas pelo pesquisador principal, com duração mínima de 16 min e máxima de 1h56min; porém, a maior parte teve de 35 min a 45 min. Foi realizada gravação em áudio e transcrição de orientação naturalista2727 Azevedo V, Carvalho M, Fernandes-Costa F, Mesquita S, Soares J, Teixeira F, et al. Transcrever entrevistas: questões conceptuais, orientações práticas e desafios. Rev Enferm Ref. 2017; 4(14):159-68.. Para garantir o sigilo das informações, os nomes dos entrevistados e de suas instituições não foram revelados, tendo sido substituídos por nomes escolhidos pelos participantes.

    Para análise e interpretação do material das entrevistas, utilizaram-se as orientações da análise temática de conteúdo2222 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014.,2323 Deslandes S, Gomes R, Minayo MCS, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 31a ed. Petrópolis: Vozes; 2013.. Assim, os materiais provenientes das entrevistas foram ordenados e organizados em um movimento de impregnar-se das narrativas2828 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):621-6.. Foram realizados os procedimentos de categorização, inferência, descrição e interpretação, que não aconteceram de forma sequencial, pois foram sendo realizados em movimentos artesanais e não lineares2020 Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qual. 2017; 5(7):1-12.,2323 Deslandes S, Gomes R, Minayo MCS, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 31a ed. Petrópolis: Vozes; 2013.. Ao longo de todo esse processo, conforme orientado por Minayo, não se buscou analisar a frequência das falas e das palavras como critérios de objetividade e cientificidade2222 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014.. A opção foi por buscar a compreensão dos significados no contexto das falas2020 Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qual. 2017; 5(7):1-12.,2828 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):621-6..

    Os dados construídos foram organizados e sistematizados nos programas Microsoft Word e Excel. Os resultados e discussões neste artigo compõem-se de análise descritiva dos dados quantitativos, utilizando-se medidas de frequência e proporção, além de categorias temáticas que emergiram das narrativas sobre as experiências dos participantes. Buscou-se aproximação com referenciais teóricos relativos à discussão dos temas, trazendo diálogos com pesquisas sobre indígenas no ensino superior.

    Essa pesquisa foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, sob CAAE 01510018.4.0000.5411.

Resultados e discussões

Mapeamento das escolas médicas e perfil dos estudantes

Existiam, em 2019, 69 universidades federais, localizadas em todos os estados brasileiros e no distrito federal, com 80 cursos de Medicina. Desses 80 cursos, 43 (53,75%) contavam com a presença de ao menos um indígena no ano de 2019. O Quadro 1 apresenta a relação desses cursos.

Quadro 1
Cursos de Medicina em universidades federais com presença de estudantes indígenas, Brasil, 2019.

Em todas as Ifes os processos de seleção para ingresso levam em consideração a lei de cotas, com vagas para o grupo PPI. Entretanto, não foi o cumprimento da lei que garantiu a presença de indígenas na maioria dos cursos de Medicina, já que pretos, pardos e indígenas concorrem entre si. Nesse sentido, percebeu-se que dos 43 cursos identificados com presença de indígenas, 36 (83,72%) possuíam PAA com vagas específicas para indígenas. Nos sete cursos de Medicina em que não havia reserva de vagas para indígenas, esses estudantes ingressaram por outras vias.

Quanto ao formato das PAA que possibilitaram vagas específicas para indígenas, duas foram as modalidades: percentual reservado nas vagas já existentes ou criação de vagas suplementares.

Adicionalmente, percebeu-se que a presença de indígenas foi identificada em universidades e cursos antigos e recentes. Na maioria das vezes, a opção pela reserva de vagas nas PAA foi das Ifes e não especificamente das escolas médicas. Destaca-se, ainda, que entre os cursos com presença de indígenas, 17 (39,53%) foram criados pela política de expansão dos cursos de Medicina em universidades federais, com o incentivo do Programa Mais Médicos a partir de 2013, implantados em regiões com ausência de escolas públicas de Medicina e baixa densidade de médicos2929 Cyrino EG, Sordi MRL, Mendes GSCV, Luna WF, Mendonça CS, Alexandre FLF, et al. Mapeamento das características da implantação de novos cursos de Medicina em universidades federais brasileiras. Rev Panam Salud Publica. 2020; 44:117., revelando que essas Ifes parecem ter tido interessante abertura para a construção de estratégias de inclusão e acesso.

Foi possível apreender uma estimativa do número de indígenas que estavam na graduação em Medicina em 2019. Para isso, utilizou-se o dado de distribuição de bolsas pagas pelo Programa Bolsa Permanência do MEC3030 Brasil. Ministério da Educação. Portaria nº 389, de 9 de Maio de 2013. Cria o Programa de Bolsa Permanência e dá outras providências. Diário Oficial da União. 13 Maio 2013; Sec. 1., somando 192 beneficiados nos cursos de Medicina, com distribuição conforme pode ser avaliada na Figura 1. Nesse contexto, ressalta-se que nem todos os indígenas que estudam Medicina são bolsistas do programa; todavia a imensa maioria está inscrita, o que permite depreender que esse era um dado próximo do total.

Figura 1
Quantitativo de estudantes indígenas em cursos de Medicina de universidades federais com bolsa permanência paga, Brasil, 2019.

Percebe-se que a região Sudeste teve apenas cinco bolsistas naquele ano, enquanto a região Sul apresentou o maior número no país, com 67. Dois estados apresentaram destaque quanto aos bolsistas: Pará e Rio Grande do Sul. Em cada um desses estados, foram mais de vinte indígenas, o que pode ser justificado pelas PAA implantadas nesses locais há cerca de dez anos. Merece destaque a pouca quantidade de bolsas pagas em vários estados das regiões Norte, Nordeste e Sudeste. Também chamam a atenção alguns estados que não possuíram nenhum bolsista, que foi o caso de Amazonas, Amapá, Ceará, Espírito Santo e Rio de Janeiro.

De toda forma, evidencia-se que existiam estados federativos com grandes populações indígenas em que, contraditoriamente, os cursos de Medicina de suas respectivas Ifes não possuíam indígenas. Acredita-se que esse resultado tenha como principal causa a falta de PAA para acesso de indígenas nessas instituições. Portanto, havia uma não correspondência entre a distribuição da população indígena pelo território nacional e as iniciativas de PAA para acesso ao ensino superior, de modo que é preciso avançar, nesse sentido, em muitas Ifes e estados federativos, como indicado em outros estudos3131 Centro Indígena de Estudos e Pesquisas. Esboço de um perfil do estudante indígena no ensino superior. In: Luciano GJS, Oliveira JC, Hoffmann MB. Olhares indígenas contemporâneos. Brasília: Centro Indígena de Estudos e Pesquisas; 2010.,3232 Paladino M. Algumas notas para a discussão sobre a situação de acesso e permanência dos povos indígenas na educação superior. Praxis Educ. 2012; 7(esp):175-95..

Quanto ao perfil dos indígenas bolsistas do curso de Medicina, foi possível observar que havia uma ligeira predominância do gênero masculino, com 53,64%, e a faixa etária de maior frequência ficou entre 20 e 25 anos, somando-se quase a metade dos bolsistas. A Tabela 1 traz esses dados.

Tabela 1
Perfil dos indígenas bolsistas do curso de Medicina do Programa Bolsa Permanência do Ministério da Educação. Brasil, 2019.

Experiências sobre acesso e políticas de permanência

As 14 escolas médicas visitadas estão nas cinco regiões geográficas brasileiras; localizam-se na sede e em outros campi das Ifes; têm fundação do curso de Medicina recente e antiga; ficam em capitais e em cidades do interior. Somavam-se 78 estudantes indígenas nessas escolas médicas.

Entre os 24 entrevistados, havia estudantes de todas as séries do curso de Medicina; foram 15 homens e nove mulheres; com idades entre 18 e 44 anos; oriundos das cinco regiões geográficas brasileiras; somando-se um total de 22 diferentes povos indígenas.

As experiências dos indígenas nos cursos de Medicina foram analisadas em duas categorias: acesso à escola médica e políticas de permanência na universidade.

Categoria 1. Acesso à escola médica

Os estudantes destacaram em suas narrativas justificativas para que os indígenas sejam universitários, ressaltando a possibilidade de apreensão de novos conhecimentos, que podem trazer impactos diretos para os indivíduos e para as comunidades11 Mello RR, Souza MM, Palomino TJ. Indigenous school education in Brazil. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Education; 2018.,22 Baniwa G. Educação escolar indígena no século XXI: encantos e desencantos. Rio de Janeiro: Mórula; 2019.,44 Paladino M, Almeida NP. Entre a diversidade e a desigualdade: uma análise das políticas públicas para a educação escolar indígena no Brasil dos governos Lula. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, LACED/Museu Nacional/UFRJ; 2012.:

[...] a importância que eu vejo é isso, é de ter pessoas com conhecimento que ajudem aquele que talvez não tenha, porque o conhecimento dele é para outra coisa. Não que ele não tenha conhecimento, ele tem para trabalhar na roça, para rezar, para os rituais, para outras coisas.

(ARAPUÁ)

E tem uma carga muito grande porque, na minha família indígena, eu sou o primeiro a entrar no ensino superior. Na verdade eu sou o único, até então. Então imagina a diferença que pode fazer para todos.

(RATRIKSIÊ)

Dos 24 entrevistados individualmente nesta pesquisa, nenhum havia ingressado por vagas de ampla concorrência, sendo que dois foram aprovados pela Lei de Cotas1010 Brasil. Lei nº 12.711, de 29 de Agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. 30 Ago 2012., e 22, em vagas específicas para indígenas. Nesse sentido, relataram que dificilmente um indígena ingressa no curso de Medicina pela via das cotas PPI, o que reforça a insuficiência da lei para o acesso desse grupo em cursos de alta concorrência22 Baniwa G. Educação escolar indígena no século XXI: encantos e desencantos. Rio de Janeiro: Mórula; 2019.:

Então, eu acho que, por enquanto, a gente precisa da reserva de vagas para poder entrar na Medicina. Não dá para gente estar na ampla concorrência com as outras pessoas, é desigual, é injusto. [...] Só que depois que a gente está aqui o que eu percebo é que a gente dá conta!

(ARAPUÁ)

Comparando com a situação no Canadá, naquele país se percebeu que eram necessárias PAA para que os indígenas ingressassem na graduação em Medicina, sendo implementadas em todas as escolas médicas1111 Hanson MD, Moineau G, Kulasegaram KM, Hammond R. Is Canada ready for nationwide collaboration on medical school admissions practices and policies? Acad Med. 2016; 91(1):1501-8..

No tocante aos processos específicos de ingresso para indígenas, ressaltaram que a divulgação nem sempre chegava aos possíveis candidatos que viviam em locais mais afastados dos centros urbanos. Além disso, reforçaram a necessidade de apoios relacionados a transporte, hospedagem e alimentação para que pudessem fazer as seleções, como em outras investigações3333 Silva LG. Povos Indígenas no contexto do ensino superior: os desafios do acesso e da permanência na UFPR. Campos Rev Antropol. 2018; 17(2):1-12. Doi: http://dx.doi.org/10.5380/cra.v17i2.54275.
https://doi.org/10.5380/cra.v17i2.54275...
,3434 Cohn C. Uma década de presença indígena na UFSCar. Campos Rev Antropol. 2018; 17(2):1-20. Doi: http://dx.doi.org/10.5380/cra.v17i2.57360.
https://doi.org/10.5380/cra.v17i2.57360...
:

Como eu ficava sempre na aldeia eu não sabia como funcionava essa questão de entrar na universidade. [...] Eu não sei se essa informação ainda é suficiente... não chega lá. No meu caso, eu até vendi algumas coisas da minha casa para poder fazer as provas, porque senão não tinha conseguido.

(KHANTE)

Bem, eu vim para cá prestar o vestibular e a minha dificuldade foi tipo alojamento porque eu não conhecia ninguém aqui, então é difícil para as pessoas se deslocarem da comunidade para poder vir fazer a prova.

(TYPA)

Semelhante ao analisado na experiência dos indígenas na UFSCar11 Mello RR, Souza MM, Palomino TJ. Indigenous school education in Brazil. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Education; 2018.,3434 Cohn C. Uma década de presença indígena na UFSCar. Campos Rev Antropol. 2018; 17(2):1-20. Doi: http://dx.doi.org/10.5380/cra.v17i2.57360.
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, alguns narradores na presente pesquisa destacaram que foi possível fazer a seleção para ingresso porque ela aconteceu relativamente próxima à sua comunidade, em processos descentralizados, o que oportunizou que outros indígenas das localidades distantes da universidade também participassem:

Eu fui fazer porque a prova foi feita lá no meu estado, é uma prova descentralizada. E aí eu juntei um dinheirinho e incentivei outros jovens também da aldeia.

(TAUÁ)

Ademais das políticas institucionais de acesso, ressaltaram que as características de suas vivências pessoais possibilitaram o ingresso, o que parece ser mais decisivo do que em outros cursos de graduação3333 Silva LG. Povos Indígenas no contexto do ensino superior: os desafios do acesso e da permanência na UFPR. Campos Rev Antropol. 2018; 17(2):1-12. Doi: http://dx.doi.org/10.5380/cra.v17i2.54275.
https://doi.org/10.5380/cra.v17i2.54275...
. Dentre as características, destacaram: presença de familiares que já tinham cursado o ensino superior; experiência na cidade; relação com outros universitários; realização de parte dos estudos em escolas particulares; ter frequentado cursos preparatórios para processos seletivos:

O que me ajudou foi eu já ter uma noção do que que era uma universidade. Eu já tinha esse acesso prévio, eu fui criado por uma família que já tinha essa cultura de universidade.

(XINÃ BENÁ)

Só ter a vaga não é suficiente, porque como eu disse, no caso da minha história, para mim o que pesou muito foi eu ter feito cursinho.

(WEI)

Uma vivência pregressa destacada pela maioria dos entrevistados foi o início, ou conclusão, de outro curso na área da Saúde, tanto no nível superior como no técnico. Algumas vezes, a intenção já era fazer a graduação em Medicina, mas precisavam de um preparo maior para ingressar; outras vezes, motivaram-se para estudar Medicina durante a realização do outro curso, decidindo tentar nova seleção:

Eu comecei a trabalhar e comecei a fazer um curso de Enfermagem, porque eu não sabia dos processos seletivos específicos, né? Eu não sabia, nem tinha ideia, e daí um amigo falou. [...] E eu fiquei três anos, até pela dificuldade que eu tinha, principalmente com o português, com outras disciplinas também, eu tinha muita dificuldade, então eu comecei a estudar mais.

(FATHOA)

Aí eu fui e comecei a cursar Odontologia. No começo eu gostava muito, eu nem me imaginava fazendo outro curso. [...] Daí eu comecei a me apegar mais à clínica, daí eu vi que aquilo não era mais o que eu queria fazer para o resto da vida.

(CUMARU)

Eu me formei lá na cidade perto da aldeia, fiz técnico de Enfermagem. Terminei e gostei. Eu sou um técnico, aí vi a experiência... a dificuldade do atendimento dos médicos do meu povo.

(KEKARYEHTOTHO KOMO)

Além dos cursos da Saúde, uma outra parte estudou ou trabalhou em outras áreas, o que também foi evidenciado com universitários indígenas dos cursos em geral3333 Silva LG. Povos Indígenas no contexto do ensino superior: os desafios do acesso e da permanência na UFPR. Campos Rev Antropol. 2018; 17(2):1-12. Doi: http://dx.doi.org/10.5380/cra.v17i2.54275.
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,3434 Cohn C. Uma década de presença indígena na UFSCar. Campos Rev Antropol. 2018; 17(2):1-20. Doi: http://dx.doi.org/10.5380/cra.v17i2.57360.
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. Os entrevistados atuaram principalmente na área de Educação e relacionaram essas experiências ao amadurecimento e novas compreensões sobre sua identidade e seu papel nas comunidades indígenas, pois eram áreas que dialogavam diretamente com as políticas indigenistas1818 Bergamaschi MA, Doebber MB, Brito PO. Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência. Rev Bras Estud Pedagog. 2018; 99(251):37-53.:

[...] fiz dois anos de pedagogia lá. E trabalhei até numa escola indígena como professora. Não era o que brilhava meus olhos, mas foi importante. E aí resolvi abrir de novo.

(MAYÁ)

E foi numa época que eu estava muito envolvida com o movimento indígena, envolvida com educação indígena, estava na época como professora bilíngue, ensinando não só português, mas ensinando língua indígena, língua do meu povo. Daí senti que deveria seguir para a Medicina.

(TOTEEM)

Assim, por meio de uma diversidade de experiências, trajetórias e processos de dedicação ao estudo, conseguiram acessar o curso de Medicina em uma universidade federal, que é de alta concorrência, ao superarem as barreiras institucionais que permaneciam mesmo com a realização dos processos diferenciados para ingresso dos indígenas.

Categoria 2. Políticas de permanência na instituição

A chegada na universidade após aprovação na seleção foi destacada como um momento marcante em suas experiências, caracterizadas por rupturas, por mudanças e pelos encontros e desencontros nesse novo local onde fariam o curso de Medicina, gerando preocupações sobre quem seriam nesse novo ambiente3434 Cohn C. Uma década de presença indígena na UFSCar. Campos Rev Antropol. 2018; 17(2):1-20. Doi: http://dx.doi.org/10.5380/cra.v17i2.57360.
https://doi.org/10.5380/cra.v17i2.57360...
. Destacaram que, apesar de existirem políticas de acesso, nem sempre havia políticas institucionais relacionadas à permanência dos indígenas, como já apontado em outros estudos1818 Bergamaschi MA, Doebber MB, Brito PO. Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência. Rev Bras Estud Pedagog. 2018; 99(251):37-53.,3131 Centro Indígena de Estudos e Pesquisas. Esboço de um perfil do estudante indígena no ensino superior. In: Luciano GJS, Oliveira JC, Hoffmann MB. Olhares indígenas contemporâneos. Brasília: Centro Indígena de Estudos e Pesquisas; 2010.:

De repente, a gente sai de uma aldeia em que só tem barulho de vento, criança correndo de um lado para o outro, [...] Como eu iria me inserir nesse meio?

(FOCAJ)

Eu não conhecia a cidade, eu não conhecia ninguém. Então acho que me marcou mesmo foi lá no corredor da universidade sem ter para onde ir, sabe? Eu falava: “e agora eu cheguei na faculdade, mas vou fazer o quê?” Com mala e tudo. [...] Não sabiam o que fazer comigo.

(KHANTE)

Discutiram os benefícios e as dificuldades de chegar ao curso sendo identificados como um indígena que realizou um processo diferenciado para ingresso. Alguns entenderam que o acolhimento nas instituições foi bom devido às PAA. Todavia outros, especialmente os pioneiros nas Ifes, relataram resistência em sua aceitação e ausência de políticas nessa chegada:

Acabei escolhendo ir pelo vestibular indígena porque você acaba sendo vista pela universidade de uma forma diferente. Você pertence àquele grupo e você já tem mais apoio da instituição. [...] Entrar pelo vestibular indígena ajudou a ter também esse acompanhamento depois que eu entrei.

(MAYÁ)

Quando eu cheguei aqui era um ambiente muito hostil para quem era das ações afirmativas [...] e foi um período bem complicado. [...] A universidade não sabia o que fazer com a gente.

(ARAGUACI)

As dificuldades iniciais mais retratadas foram financeiras e relacionadas à moradia, pois já havia os custos para o deslocamento e nem sempre as Ifes oportunizaram hospedagem na chegada dos estudantes. Algumas das universidades garantiram hospedagem e alimentação desde o início do ingresso dos indígenas; outras passaram a oferecer apenas depois de algum tempo1818 Bergamaschi MA, Doebber MB, Brito PO. Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência. Rev Bras Estud Pedagog. 2018; 99(251):37-53.,3333 Silva LG. Povos Indígenas no contexto do ensino superior: os desafios do acesso e da permanência na UFPR. Campos Rev Antropol. 2018; 17(2):1-12. Doi: http://dx.doi.org/10.5380/cra.v17i2.54275.
https://doi.org/10.5380/cra.v17i2.54275...
,3434 Cohn C. Uma década de presença indígena na UFSCar. Campos Rev Antropol. 2018; 17(2):1-20. Doi: http://dx.doi.org/10.5380/cra.v17i2.57360.
https://doi.org/10.5380/cra.v17i2.57360...
. Foi destacada, complementarmente, a impossibilidade de desempenharem atividade remunerada concomitantemente ao curso, devido à necessidade de dedicação integral à Medicina:

[...] a gente saiu para morar junto numa pensão por aí. Mas ainda assim, sem receber bolsa, tudo dependente da família e de amigos. E aí eu acho que a gente ficou um semestre todo correndo atrás de assistência assim [...] tinha mais essa carga grande, de pensar: “como eu vou pagar aluguel?”, “de onde eu vou tirar o dinheiro?”

(TAUÁ)

Se tu não tiver estrutura aqui dentro não tem a menor condição. E em um curso de Medicina que... são cursos integrais, tem que ter uma dedicação ao curso exclusiva, diária.

(NENXAH)

Alguns foram os apoios financeiros alcançados pelos indígenas até 2013, tendo sido um deles uma ajuda financeira da Funai para os estudantes indígenas; no entanto, segundo os entrevistados, era irregular e com um valor insuficiente. Outra estratégia que trouxe apoio a algumas instituições, a partir de 2010, foi o Programa de Educação Tutorial (PET) Conexão de Saberes específico para indígenas, com desenvolvimento de ações inovadoras para construção de saberes entre as comunidades populares e a universidade, atribuindo uma bolsa aos participantes3535 Freitas AEC. Intelectuais indígenas e a construção da universidade pluriétnica no Brasil–povos indígenas e os novos contornos do programa de educação tutorial/conexões de saberes. Rio de Janeiro: E-papers; 2015.:

Nessa época tinha auxílio da Funai que era pouco, mas tinha... era irregular... E aí eu consegui entrar no PET Indígena. O PET começou em 2010 e em 2011 eu consegui já entrar no PET, aí a questão financeira também me ajudou porque nesse momento era bem difícil.

(XINÃ BENÁ)

No sentido dos apoios financeiros, foi destacada a instituição do Programa Bolsa Permanência financiado pelo MEC, a partir de 20133030 Brasil. Ministério da Educação. Portaria nº 389, de 9 de Maio de 2013. Cria o Programa de Bolsa Permanência e dá outras providências. Diário Oficial da União. 13 Maio 2013; Sec. 1.. É uma política pública voltada à concessão de auxílio financeiro a estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica - sobretudo aos quilombolas e indígenas - matriculados em Ifes, contribuindo para a permanência e a diplomação dos beneficiados3030 Brasil. Ministério da Educação. Portaria nº 389, de 9 de Maio de 2013. Cria o Programa de Bolsa Permanência e dá outras providências. Diário Oficial da União. 13 Maio 2013; Sec. 1.,3333 Silva LG. Povos Indígenas no contexto do ensino superior: os desafios do acesso e da permanência na UFPR. Campos Rev Antropol. 2018; 17(2):1-12. Doi: http://dx.doi.org/10.5380/cra.v17i2.54275.
https://doi.org/10.5380/cra.v17i2.54275...
. Nas narrativas, reiteraram a importância dessa bolsa, bem como os atrasos para inscrição de universitários ingressantes a partir de 2018:

[...] e eu acho que a bolsa do MEC ajudou muito os indígenas a permanecerem nas universidades. E isso está sendo um problema bem sério no momento. Eu estou recebendo atualmente, mas os ingressantes deste ano não receberam ainda, e a gente já está em outubro.

(XINÃ BENÁ)

Equivalente ao estudo de Bergamaschi, Doebber e Brito com estudantes indígenas dos cursos regulares da Universidade Federal do Rio Grande do Sul1818 Bergamaschi MA, Doebber MB, Brito PO. Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência. Rev Bras Estud Pedagog. 2018; 99(251):37-53., os entrevistados na presente pesquisa destacaram assessorias e tutorias pedagógicas como potentes colaboradores nos processos de ensino-aprendizagem, tendo sido apresentadas com características diferentes em cada Ifes, com participação de técnicos, docentes e/ou outros estudantes:

Aqui a gente tem uma pedagoga de apoio pedagógico [...]. Ela puxa a orelha de quem tem que puxar, ela apoia quem tem que apoiar, você vai mal em alguma disciplina ela te chama, conversa... Então ter esse serviço de apoio pedagógico ajuda muito. É ter uma referência.

(ARAPUÁ)

Assim, reforçaram que os apoios institucionais foram fundamentais para a superação das dificuldades, no entanto a maioria reconhece que esses processos ainda precisam ser ampliados, semelhantes ao sugerido em outras experiências1818 Bergamaschi MA, Doebber MB, Brito PO. Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência. Rev Bras Estud Pedagog. 2018; 99(251):37-53.,3232 Paladino M. Algumas notas para a discussão sobre a situação de acesso e permanência dos povos indígenas na educação superior. Praxis Educ. 2012; 7(esp):175-95.:

Então a gente tem que melhor acolher os indígenas porque está “pegando” [...] Eu espero que melhore, que a instituição esteja mais preparada. [...] É importante que a gente consiga se formar, sair da faculdade. É importante que cada vez mais se formem indígenas.

(FOCAJ)

Nesse sentido, os entrevistados relataram que a sua presença na escola médica favorecia o estabelecimento de um ambiente multicultural e a construção de novos conhecimentos, tanto para indígenas como para a sociedade nacional11 Mello RR, Souza MM, Palomino TJ. Indigenous school education in Brazil. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Education; 2018.,22 Baniwa G. Educação escolar indígena no século XXI: encantos e desencantos. Rio de Janeiro: Mórula; 2019.,44 Paladino M, Almeida NP. Entre a diversidade e a desigualdade: uma análise das políticas públicas para a educação escolar indígena no Brasil dos governos Lula. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, LACED/Museu Nacional/UFRJ; 2012.:

Eu acho que é importante as ações afirmativas justamente nessa questão de tentar colocar que o espaço não é só daquelas pessoas que tem o privilégio de ter um ensino de qualidade. [...] Você agrega pessoas diferentes e esse encontro pode trazer outros aprendizados. (KARI’OCA)

Dessa forma, a presença dos indígenas nas escolas médicas pode ser, adicionalmente, uma oportunidade de ampliar discussões sobre as temáticas relacionadas à saúde indígena, tão invisibilizadas nos cursos de graduação em Medicina3636 Luna WF, Malvezzi C, Teixeira KC, Almeida DT, Bezerra VP. Identidade, cuidado e direitos: a experiência das rodas de conversa sobre a saúde dos Povos Indígenas. Rev Bras Educ Med. 2020; 44(2):e067. Doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.2-20190309.
https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.2-2...
.

Considerações finais

Com base na pesquisa foi possível mapear a presença dos indígenas nas escolas médicas nas universidades federais brasileiras e conhecer suas experiências com relação ao acesso e às políticas de permanência.

Percebe-se que as PAA possibilitaram uma inclusão inicial de indígenas em parte dessas escolas médicas, em uma tentativa de superação da exclusão dessas populações nos processos formativos. Todavia o acesso ao curso de Medicina depende de uma série de outras características pessoais e coletivas para que superem as barreiras institucionais, o que parece ser mais evidente quando comparado a outros cursos de graduação.

Há grande heterogeneidade entre essas escolas médicas no tocante à presença dos indígenas, havendo situações de evidente implicação institucional para as PAA; e outras em que não há estudantes desses grupos, inclusive em estados de grande população indígena. Assim, recomenda-se a manutenção e a ampliação das PAA, principalmente com vagas específicas para acesso de indígenas aos cursos de Medicina, já que as cotas PPI têm sido insuficientes para o acesso desses estudantes.

A presença dos indígenas pode trazer diversidade para o universo das escolas médicas, que são tradicionalmente compostas por estudantes de um grupo privilegiado da população, o que pode aproximar outras formas de pensar o processo saúde-doença, sendo interessante a realização de futuras investigações a esse respeito. As experiências relacionadas às dificuldades socioculturais e os sofrimentos provocados pela vivência na escola médica também podem ser foco de outros estudos.

As narrativas desvelam vivências dos indígenas relacionadas a sua presença nas escolas médicas, tornando-se possível contribuir para a sua permanência ao valorizar suas potencialidades, reconhecer suas fragilidades e possibilitar formas de superação de dificuldades. Nesse sentido, os apoios institucionais relacionados à permanência ainda necessitam ser aprimorados para que as trajetórias acadêmicas desses estudantes favoreçam a superação de sua invisibilidade na educação médica e correspondam às expectativas dos povos indígenas sobre a formação de indígenas na graduação em Medicina.

  • (d)
    Luna WF. Indígenas na Escola Médica no Brasil: trajetórias e experiências nas universidades federais [tese]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina de Botucatu; 2021.

Agradecimentos

À Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, pelo apoio estrutural para desenvolvimento da pesquisa. À profª Drª Eliana Goldfarb Cyrino que orientou com afetividade o desenvolvimento do Projeto do qual a pesquisa deste artigo faz parte. Aos estudantes indígenas dos diversos cursos de Medicina, que confiaram no compromisso desta pesquisa e narraram suas experiências de forma tão vívida e afetuosa. A todos os interlocutores nas universidades federais, pela disponibilidade e acolhimento nos encontros presenciais e a distância. Aos povos indígenas, pela resistência e pela diversidade que inspiram a construção de saberes interculturais.

  • Luna WF, Teixeira KC, Lima GK. Mapeamento e experiências de indígenas nas escolas médicas federais brasileiras: acesso e políticas de permanência. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200621 https://doi.org/10.1590/interface.200621
  • Financiamento

    Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo auxílio regular 2019/09426-7; iniciações científicas 2019/24876-9 e 2019/24863-4. E pela Organização Pan-Americana de Saúde em parceria com o Ministério da Saúde, por meio da Carta Acordo SCON 2017 – 02638.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2020
  • Aceito
    12 Abr 2021
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