Resumos
Este artigo analisa o Ensino de Ética e Bioética (EEB) nos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde (PRMS) vinculados à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil. A fim de compreender o EEB em sete programas pesquisados, avaliamos sua perspectiva teórica com base nos projetos pedagógicos (PP) comparando com um currículo de referência (“Core Curriculum”, Unesco). Para avaliar o aspecto prático, desenvolvemos 11 entrevistas semiestruturadas (critério de saturação) com preceptores (as) avaliadas por análise de conteúdo (abordagem framework). Os PP analisados tinham carga horária e módulos temáticos aquém daqueles propostos no currículo referência. Os (as) preceptores (as) desconhecem o EEB como parte do currículo dos PRMS. Apontamos a qualificação da comunicação universidade e serviços e o reconhecimento das contribuições dos (as) preceptores (as) na formação dos residentes como medidas importantes para qualificar o EEB.
Palavras-chave
Bioética; Temas bioéticos; Internato e residência; Capacitação de recursos humanos em saúde
This article analyzes the teaching of ethics and bioethics (TEB) in multiprofessional residency programs (MPRPs) linked to Rio Grande do Norte Federal University, Brazil. To understand TEB in the seven programs investigated by the study, we assessed theoretical perspectives in the pedagogical plans, comparing them to UNESCO’s Bioethics Core Curriculum. To evaluate practical aspects, we conducted 11 semi-structured interviews (employing the saturation criterion) with preceptors, which were assessed using content analysis (framework approach). The pedagogical plans’ course loads and thematic modules fell short of the Core Curriculum recommendations. The preceptors were unaware that TEB was part of the MPRPs. Improving the quality of university communication and services and recognizing preceptors’ contributions to resident education and training are key measures needed to improve TEB.
Keywords
Bioethics; Bioethics topics; Internship and residency; Health workforce training
Este artículo analiza la Enseñanza de Ética y Bioética (EEB) en los programas de Residencia Multiprofesional en Salud (PRMS) vinculados a la Universidad Federal de Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil. Con la finalidad de comprender el EEB en siete programas investigados, evaluamos su perspectiva teórica a partir de los proyectos pedagógicos (PP) comparando con un currículum de referencia (“Core Curriculum”, Unesco). Para evaluar el aspecto práctico, desarrollamos once entrevistas semiestructuradas (criterio saturación) con preceptores, evaluados por análisis de contenido (abordaje framework). Los PP analizados tenían carga horaria y módulos temáticos menores a los propuestos en el currículo de referencia. Los preceptores desconocen el EEB como parte del currículo de los PRMS. Señalamos la calificación de la comunicación universidad y servicios y el reconocimiento de las contribuciones de los preceptores en la formación de los residentes, como medidas importantes para calificar el EEB.
Palabras clave
Bioética; Temas bioéticos; Internado y residencia; Capacitación de recursos humanos en salud
Introdução
A natureza interdisciplinar da Bioética é anunciada na palavra em si, que carrega no “bio” uma dimensão conectada com as Ciências da Vida e da Saúde; e na “ética” sua interface com as humanidades11 Potter V. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice-Hall; 1971.. A ética da vida “não se reduz a um conjunto normativo e nem a uma mera ação comunicacional. Constitui, isso sim, um fundamento ontológico que impede qualquer ser humano de praticar intencionalmente o mal, que o força a exercitar o diálogo intercultural e fazer o bem”22 Carvalho EA. Saberes complexos e educação transdisciplinar. Educ Rev. 2008; (32):17-27.(p. 23-4). O Quadro 1 resume algumas visões e conceitos sobre Ética e Bioética.
A visão ampla de Bioética ao chegar nas ciências biomédicas foi substituída por uma perspectiva fragmentada, com foco no bio22 Carvalho EA. Saberes complexos e educação transdisciplinar. Educ Rev. 2008; (32):17-27.. Essas ciências desenharam um marco teórico que passou a identificar a Bioética primordialmente com a teoria principialista. Essa teoria, desenhada pelos estadunidenses Beauchamp e Childress88 Beauchamp T, Childress J. Principios de Ética Biomédica. São Paulo: Loyola; 2002., na década de 1970, é baseada nos princípios de não maleficência, beneficência, autonomia e justiça, com foco no indivíduo.
A década de 1990 marca o início da prática e da reflexão sobre Bioética no Brasil, com a fundação da “Sociedade Brasileira de Bioética” e a publicação da Resolução n. 196/96. Academicamente, destacam-se os trabalhos de Garrafa99 Garrafa W. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética. 2005; 13(1):125-34.,1313 Porto D, Garrafa V. A influência da reforma Sanitária na construção das bioéticas brasileiras. Cienc Saude Colet. 2011; 16 Suppl 1:719-29. e Schramm1414 Schramm FR, Palácios M, Rego S. O modelo bioético principialista para a análise da moralidade da pesquisa científica envolvendo seres humanos ainda é satisfatório? Cienc Saude Colet. 2008; 13(2):361-70., que, ainda sob efeito dos debates que culminaram com a Reforma Sanitária, construíram uma reflexão autóctone voltada para dimensão social e problemas de Saúde Pública do país. Esses autores foram centrais no delineamento do Ensino de Ética e Bioética (EEB) no país, incialmente definido por Dortier1515 Dortier J-F. Dicionário de ciências humanas. São Paulo: Editora WMF; 2010. como estudo sistemático das dimensões morais, incluindo a visão, a decisão, a conduta e as normas. Com esse entendimento, os autores retornam ao conceito de Potter e reposicionam o componente das humanidades na discussão da Bioética. Garrafa e Porto1313 Porto D, Garrafa V. A influência da reforma Sanitária na construção das bioéticas brasileiras. Cienc Saude Colet. 2011; 16 Suppl 1:719-29., por exemplo, delimitam o conceito de “Bioética da Intervenção”, resgatando ideias como a da Bioética global e a de responsabilidade coletiva. Rivas-Muñoz, Garrafa e outros autores1616 Rivas-Munoz F, Garrafa V, Ferreira Feitosa S, Flor de Nascimento W. Bioethics of intervention, inter-culturality and non-coloniality. Saude Soc. 2015; 24(1):1-8. compreendem a Bioética da Intervenção como uma proposta que dissolve a divisão estrutural centro-periférica do mundo e assume a superação da desigualdade. Todavia, apesar dos esforços empreendidos nos campos institucionais e acadêmicos, o EEB no Brasil segue com fortes bases principialistas e focado no campo biomédico.
O modelo de assistência em Saúde que é causa e consequência desse paradigma formativo, o biomédico, tem provado ao longo da história que está aquém das demandas atuais de Saúde Pública1717 Santana F. Integralidade do cuidado: concepções e práticas de docentes de Graduação em Enfermagem. Rev Eletronica Enferm. 2008; 10(1):249-50.. Um dos limites dessa abordagem, por exemplo, é a fragmentação do cuidado em Saúde. Edgard de Assis Carvalho1818 Carvalho E. Virado do avesso. São Paulo: Selecta editorial; 2005., em “Virado do Avesso”, desenvolve uma autoetnografia hospitalar que evidencia a fragmentação entre o corpo físico e o eu subjetivo, hegemônica no modelo biomédico, e seus efeitos sobre a pessoa humana em situação de vulnerabilidade. No hospital, desprovido de seu eu, de antropólogo, de professor universitário, ele era visto e se via apenas como um amontoado de órgãos defeituosos. O espaço hospitalar, pela sua dinamicidade, diversidade de categorias profissionais e saberes, poderia fornecer uma experiência única de cuidado integral. Todavia, a narrativa deixa evidente a fragilidade do modelo para responder ao princípio da integralidade da assistência. A transformação desse modelo passa pelo debate da Bioética na Educação em Saúde.
O EEB pode qualificar as práticas em Saúde de três maneiras principais1919 Maluf F, Garrafa V. O core curriculum da Unesco como base para formação em bioética. Rev Bras Educ Med. 2015; 39(3):456-62.: capacitando o educando a identificar questões éticas na Medicina, Saúde e Ciências da Vida; criando oportunidades para que os estudantes possam aprender a habilidade de elaborar justificativas racionais para as decisões éticas no âmbito da atuação em Saúde; por fim, reconhecer os instrumentos normativos que regem princípios éticos universais (e.g., Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos). Todavia, apesar do esforço de profissionais nos cenários de prática, há desafios para que esses resultados possam ser atingidos. Algumas das fragilidades do EEB na formação em Saúde são apontadas por Dantas e Sousa2020 Dantas F, Sousa EG. Ensino da deontologia, ética médica e bioética nas escolas médicas Brasileiras: uma revisão sistemática. Rev Bras Educ Med. 2008; 32(4):507-17. que, em estudo de revisão, apontam, como as principais lacunas, baixa carga horária, frágil debate interdisciplinar com as humanidades e baixa especificidade da formação docente. Destacamos, ainda, que em três décadas de estudos revisados os autores localizaram apenas três referências, o que demonstra que esse debate carece de análises acadêmicas adicionais.
Assim, além da abordagem reducionista sobre Bioética, uma das limitações é a insuficiência de carga horária das disciplinas específicas para EEB. Mijaljica2121 Mijaljica G. Medical ethics, bioethics and research ethics education perspectives in South East Europe in graduate medical education. Sci Eng Ethics. 2014; 20(1):237-47., por exemplo, ao abordar os currículos das escolas de medicina do sudeste da Europa, aponta que a média de horas, 27,1 horas, encontra-se abaixo das trinta horas recomendadas pela Unesco1212 United Nations Children’s Fund. Bioethics core curriculum. New York: Unicef; 2008.. Encontrou, ainda, diversas lacunas no que concerne aos módulos propostos para o ensino. Pela amplitude dos conteúdos, pelas visões teóricas propostas e pela objetividade de estruturação o “Core Curriculum” da Unesco vem sendo apontado como um importante instrumento facilitador para docentes que buscam organizar práticas no EEB visando resultados efetivos na formação de seus estudantes1919 Maluf F, Garrafa V. O core curriculum da Unesco como base para formação em bioética. Rev Bras Educ Med. 2015; 39(3):456-62..
A quem cabe a abordagem dessas lacunas no Brasil? A Constituição Federal, em seu artigo 200, atribui ao Sistema Único de Saúde (SUS) a ordenação da formação de recursos humanos na área da Saúde, o que envolve o EEB. Visando atender à demanda apresentada nesse dispositivo, a Lei Orgânica de Saúde2222 Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Lei orgânica da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 1990., Lei 8.080/90, estabeleceu a organização de um sistema de formação de recursos humanos em todos os níveis de ensino, inclusive de pós-graduação. Nesse contexto, foram criadas as Residências em Saúde no Brasil e a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde no ano de 20052323 Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.129, de 30 de junho de 2005. Brasília: Presidência da República; 2005.. O prefixo multi, de multiprofissional, nesse caso, refere-se à diversidade de profissões inseridas nos programas de residência. A abordagem de formação, todavia, pretende-se interdisciplinar visando à qualificação da assistência para o cuidado integral.
O EEB é parte da base curricular dos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde (PRMS) e busca orientar a formação de recursos humanos com competências para uma prática implicada com conhecimentos, habilidades e atitudes em Bioética. Na perspectiva dos PRMS, a formação em Bioética seria o alicerce para o entendimento das questões e dos determinantes que permeiam a vida e a saúde. Nossa pesquisa teve como objetivo principal caracterizar o EEB nos PRMS da Universidade Federal do Rio Grande do Norte(UFRN) e os objetivos específicos de (1) analisar se a carga horária e os conteúdos para o ensino de Bioética nos PP dos PRMS convergem com os padrões sugeridos pelo “Core Curriculum” e (2) caracterizar o conhecimento dos (as) preceptores (as) sobre Ética e Bioética e sua percepção sobre esse ensino no PRMS.
Metodologia
Essa pesquisa é qualitativa, descritiva, com objetivos de caracterização de variáveis (EEB nos PRMS, conhecimentos e percepção dos preceptores sobre o tema). Quanto à técnica, é um estudo de caso e busca descrever ou reconstruir um caso de forma detalhada em seu contexto, considerando os PRMS na unidade UFRN. O cenário do estudo foram os sete PRMS da UFRN (Figura 1). Esses sete programas abarcam, entre outras profissões, as de Fisioterapia, Fonoaudiologia, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Farmácia e Serviço Social.
Programas analisados. Os sete Programas de Residência Multiprofissional em Saúde (PRMS) estudados estãoem quatro diferentes hospitais e escolas médicas da UFRN, localizados em três diferentes cidades do estado do Rio Grandedo Norte, Brasil.
Para abordar a perspectiva prática, os preceptores foram os participantes da pesquisa, pois, segundo a Lei 11.129/20052323 Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.129, de 30 de junho de 2005. Brasília: Presidência da República; 2005. que institui a Residência em Área Profissional de Saúde e cria a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde (CNRMS), eles são os atores responsáveis por instituir a residência em área profissional da Saúde (Art. 16). A proximidade desses atores com o cenário de prática em que se insere o residente nos permitiu conhecer o aspecto prático da formação. Para analisar a proposta teórica avaliamos os PP.
A participação foi informada, consentida e voluntária. A pesquisa atende a todos os preceitos éticos delineados na Resolução 466/20122424 Brasil. Conselho Nacional da Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Brasília: CNS; 2012., sendo submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Hospital Universitário Onofre Lopes (Parecer 3.531.663).
Os dados relativos à percepção dos preceptores foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, com gravação de voz2525 Creswell JW. Qualitative inquiry and research design: choosing among five traditions. London: Sage Publications; 1998.,2626 Flick U. An introduction to qualitative. 4th ed. Thousand Oaks: SAGE Publications; 2009.. As entrevistas foram guiadas com base em roteiro dividido em quatro partes (1) Introdução, esclarecendo os objetivos da pesquisa e considerações éticas; (2) Dados pessoais (sexo e idade), sendo nesse espaço coletadas informações sócio-ocupacionais (tempo de preceptoria e área) e atuação na preceptoria (programa e local); (3) Questões centrais (apresentadas a seguir na Figura 2); e, por fim, (4) Fechamento, contemplando finalização e agradecimento.
Para análise das entrevistas utilizamos a técnica de análise de conteúdo – abordagem do framework2727 Ritchie J, Spencer L. Qualitative data analysis for applied policy research. In: Huberman M, Miles M, editores. The qualitative researcher’s companion. London: Sage Publications; 2002. p. 173-94., que consiste em uma série de três etapas interconectadas, as quais permitem estabelecer uma relação entre os dados coletados e perguntas de investigação (Figura 3). Por meio do agrupamento de dados, o número de categorias foi reduzido, colapsando aquelas que estiverem relacionadas a outras categorias mais amplas (temas principais). Durante o relato dos nossos resultados, os profissionais são identificados por letras EEB seguidas de números que indicam a ordem em que a entrevista foi realizada (Ensino de Ética e Bioética, ex., EEB1).
Exemplo da análise de framework empregada na análise dos dados. Fonte: Elaboração própria com base no formato de apresentação sugerido por Pajor et al.2828 Pajor EM, Oenema A, Eggers SM, Vries H. Exploring beliefs about dietary supplement use: focus group discussions with Dutch adults. Public Health Nutr. 2017; 20(15):2694-705.
Para analisar o componente específico de Ética e Bioética tomamos como modelo a proposta do “Core Curriculum”, buscando a carga horária dedicada ao EEB, como também os temas abordados no projeto pedagógico dos programas. Elegemos esse currículo como nosso tipo ideal devido à amplitude dos conteúdos, às visões teóricas propostas e à sua objetividade de estruturação1919 Maluf F, Garrafa V. O core curriculum da Unesco como base para formação em bioética. Rev Bras Educ Med. 2015; 39(3):456-62.. Os dados relativos à caracterização do programa foram apresentados de forma descritiva.
Resultados e discussão
Ética e Bioética nos projetos pedagógicos dos programas
Com a análise documental, verificamos que os programas relatam alinhamento com a formação de profissionais aptos para realizar as ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde, teoricamente dentro dos princípios da Ética e da Bioética. Todavia, verificamos que a carga horária dispensada para o ensino de Bioética (vinte horas, ver Figura 4) é aproximadamente 33% inferior àquela sugerida pelo currículo ideal, e seus temas dispostos na ementa da disciplina específica contemplam diretamente apenas três dos 17 módulos (~18%) propostos pelo mesmo documento. Acreditamos que a abordagem dos conteúdos de Ética e de Bioética, que acontece de forma transversal em outros componentes, ajuda a minimizar essa lacuna, aumentando esses módulos para 11 (~65%). Além disso, não verificamos nos PP um indicativo de pressupostos que guiam a abordagem teórica do EEB nos cursos. Dessa forma, é possível verificar, na Figura 4, como o EEB é caracterizado nos PRMS por meio de uma síntese que indica tanto o componente principal quanto as possíveis alternativas para esse ensino com base na oferta de disciplinas nos Eixos Transversais Comuns (ETC) e Específicos (EE) dos currículos.
A matriz curricular dos PRMS encontra-se dividida da seguinte forma: ETC, com carga horária total de 410 horas, das quais vinte horas se referem ao componente Ética e Bioética; Eixo Transversal da Área de Concentração, com carga horária total de 420 horas; e, por fim, o EE com 322 horas, totalizando 1.152 horas de carga horária teórica. A carga horária prática, que ocorre sob supervisão dos preceptores, corresponde a 4.608 horas. A carga horária total dos programas é de 5.760 horas, distribuídas em 24 meses, em tempo integral.
O componente específico Ética e Bioética é ofertado no ETC e corresponde a menos de 5% da carga horária desse eixo, menos de 2% da carga teórica total e menos de 0,5% da carga horária total dos programas. É importante destacar ainda que essa carga horária contempla conteúdos de Ética e Bioética e não apenas de Bioética. Na Figura 4 resumimos as principais características desse componente.
A carga horária de vinte horas encontra-se abaixo daquela sugerida pela Unesco. São raros os estudos que analisam as cargas horárias referentes ao Ensino de Ética e Bioética nos programas de graduação e pós-graduação em Saúde. O estudo de Mijaljica2121 Mijaljica G. Medical ethics, bioethics and research ethics education perspectives in South East Europe in graduate medical education. Sci Eng Ethics. 2014; 20(1):237-47., que analisou as horas dispensadas para o Ensino de Ética e Bioética na formação médica em países do sudeste da Europa, verificou uma média de 27,1 horas. Entre os países com carga horária superior estavam: Bulgária e Macedônia com trinta horas, Croácia com cinquenta horas e Bósnia com sessenta horas.
Segundo os PRMS, a disciplina de Bioética é ministrada no primeiro ano da residência com o objetivo de suscitar a reflexão quanto aos desafios da contemporaneidade e aos aspectos relacionados a saúde, e apresentar e discutir possibilidades para um tratamento digno. Os temas bioéticos expressos nos PP alcançariam sua globalidade se aplicados a conceitos que vão desde o reconhecimento da vida e do indivíduo em tratamento até o impacto dos determinantes sociais e ambientais na saúde. O conteúdo da ementa, todavia, limita-se à abordagem conceitual de Ética e Bioética com aplicações diversas e não especificadas ao campo da Saúde, deixando de fora da ementa temas como dignidade e direitos humanos; igualdade, justiça e equidade; respeito à diversidade cultural e ao pluralismo; solidariedade e cooperação; proteção de gerações futuras, do meio ambiente, da biosfera e da biodiversidade. Ainda assim, destacamos que é desafiador supor o que está sendo ensinado sob o texto descrito na ementa, visto que o PP não sinaliza referencial teórico. A abordagem desses temas ficaria, portanto, a cargo dos professores que, assumindo o componente, podem ou não oferecer uma visão ampliada da Bioética. Nesse sentido, a formação dos docentes envolvidos no componente (Psicologia, Odontologia, Direito e Biologia), considerando a sua oferta no ano de 2019 e de acordo com dados da “Plataforma Sigaa” da UFRN, pode limitar a abordagem dos problemas mais relacionados às Humanidades.
No ETC e no EE, conseguimos selecionar oito componentes que mencionam abordagem ética e bioética, bem como o conteúdo da ementa que se relaciona com essa abordagem (ver Figura 4). Conforme observamos, no ETC a abordagem amplia-se e passa a adotar o tema dos (1) conflitos de interesse ligados ao uso racional de medicamentos, que envolvem reflexão sobre Ética profissional, responsabilidade social e Saúde. Há ainda a abordagem da (2) Ética em pesquisa, que envolve principalmente os temas relacionados a benefício e dano, autonomia e responsabilidade individual, consentimento, pessoas sem capacidade para consentir, privacidade e confidencialidade. Por fim, a discussão sobre (3) Políticas de Saúde viabiliza o debate sobre direitos humanos, respeito à integridade, igualdade, justiça e equidade. No EE destacamos que a abordagem sobre Ética e Bioética se encontra limitada aos residentes com formação em Psicologia e Serviço Social, conforme indicado entre parênteses (Figura 4). Nesse caso, a abordagem tem o recorte profissional. No caso dos estudantes de Psicologia, sob o tema dos cuidados paliativos, há o reforço da abordagem da Ética médica na prática clínica dirigida ao indivíduo. Todas essas discussões bioéticas relacionadas à vida individual estão mais ligadas a uma Bioética principialista44 Mill J. Utilitarismo. São Paulo: Hunter Books; 2017.. No caso dos estudantes de Serviço Social, os temas dos determinantes sociais e da política retomam o debate sobre direitos humanos, respeito à integridade, igualdade, justiça e equidade.
Portanto, pelos conteúdos dispostos nas ementas, acreditamos que os módulos propostos pela Unesco, de (1) não discriminação e não estigmatização, (2) respeito à diversidade cultural e ao pluralismo, (3) solidariedade e cooperação, (4) partilha de benefícios, (5) proteção de gerações futuras e, por fim, (6) proteção do meio ambiente, da biosfera e da biodiversidade, não sejam abordados nos PRMS dos hospitais da UFRN. Os PP consideram temas mais biomédicos que sistêmicos, mais individuais que coletivos. Todavia, devido à falta de especificidade das ementas, não podemos afirmar que esse seja o cenário.
O que parece ficar evidente é a lacuna quanto aos temas da diversidade cultural e a outros que se relacionam com a sustentabilidade ambiental, tais como a proteção de gerações futuras, do meio ambiente, da biosfera e da biodiversidade. O que demonstra que há um longo caminho a ser trilhado e implica rever o compromisso com a realização histórica de valores e das condições determinadas pelas situações sociais e políticas1313 Porto D, Garrafa V. A influência da reforma Sanitária na construção das bioéticas brasileiras. Cienc Saude Colet. 2011; 16 Suppl 1:719-29.. A inclusão de módulos com essa temática significaria um salto qualitativo do EEB dentro de uma Ética global99 Garrafa W. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética. 2005; 13(1):125-34., uma Bioética ecológica para além da Bioética médica.
Os aspectos relacionados ao Ensino de Ética e Bioética no campo de prática, que corresponde a 4.608 das 5.670 horas, aproximadamente 81% da carga horária dos programas, serão analisados no próximo tópico com base na visão dos (as) preceptores (as) sobre o tema.
Ética e Bioética nos campos de prática
Para caracterizar o conhecimento dos preceptores sobre Ética e Bioética e sua percepção sobre o EEB no PRMS, realizamos 11 entrevistas, sendo: dez com preceptoras das áreas de Psicologia, Enfermagem, Serviço Social, Fisioterapia, Farmácia, Medicina e Nutrição, e uma com um preceptor de Farmácia; idades variando entre trinta e 69 anos; tempo de exercício em preceptoria entre um e dez anos. A Figura 5 resume nossos principais resultados.
Conhecimento dos (as) preceptores (as) sobre Ética e Bioética
O conhecimento dos participantes sobre Ética e Bioética oscila entre a perspectiva teórica da Ética principialista, com foco no paradigma biomédico e no indivíduo, e a perspectiva da Ética profissional, em que Ética é sinônimo de conduta esperada e de obediência a procedimentos, protocolos e regras. A seguir, apresentamos falas ilustrativas dessa análise:
[...] Entendo que é o estudo de valores e princípios voltados para a vida, a vida humana, que está relacionada também à questão dos princípios da beneficência e eficiência, da justiça social. (EEB4)
[...] É a ética profissional aplicada às pesquisas...é também aplicada aos atendimentos, ao convívio com seus pacientes. (EEB8)
[...] É um estudo que vai analisar os problemas morais, tem a ver com pesquisas científicas, com atuação dos profissionais nas suas áreas de intervenção junto aos seus usuários, pacientes. Estudo que visa as implicações morais e éticas que envolvem a vida do ser humano. (EEB5)
Percebemos que, no geral, há baixa compreensão da Ética como forma de intervenção no mundo (ex., ruptura). Há, todavia, participantes que conseguem ampliar seu olhar em direção a uma visão pautada na Ética da intervenção com foco no coletivo. Conforme exemplo a seguir:
[...] Bioética é uma área de estudo transdisciplinar (que reúne conhecimentos da Ciência, Biologia, Filosofia, Direito, Religião, Sociologia, entre outras áreas) e que estabelece princípios norteadores aos profissionais no julgamento e tomadas de decisões, principalmente nas situações vividas nos cenários de saúde que possam vir a convergir em conflitos éticos. Acredito que a Bioética seja a responsável por trazer princípios e valores que possam ser utilizados como parâmetros orientativos, principalmente de conduta, aos profissionais da área da Saúde. (EEB10)
Não nos surpreendeu o fato de que a visão dos preceptores não atingisse níveis mais ampliados na compreensão de Ética e Bioética. A educação em Bioética no Brasil frequentemente é reduzida à Ética profissional, pautada na compreensão de condutas com base em códigos deontológicos. Ribeiro e Julio2929 Ribeiro WC, Julio RS. Reflexões sobre erro e educação médica em Minas Gerais. Rev Bras Educ Med. 2011; 35(2):263-7. apontam que entre as 26 instituições de ensino médico analisadas em uma pesquisa, apenas nove ofereciam a disciplina de Ética, oito ofereciam a disciplina de Bioética, três ofereciam a disciplina de Deontologia e as demais escolas ofereciam a disciplina direcionada especificamente ao Código de Ética Médica. Além disso, o EEB, em sua análise, como na nossa, demonstrou não ter uma filiação teórica com abordagens que contemplem soluções para conflitos éticos que atingem a humanidade. Em uma comunidade humana global, a abordagem desses conflitos é fundamental, especialmente daqueles que afetam os grupos historicamente prejudicados pelos processos de colonização e globalização, envolvendo: violação de direitos humanos, desigualdades no acesso à Saúde, violência e guerra, mudanças climáticas, entre outros conflitos éticos eminentemente globais77 Potter VR. Bioética global: construindo a partir do legado de Leopold. São Paulo: Loyola; 2018..
Alguns desses conflitos são apontados por Hans Jonas66 Jonas H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto; 2006. que traz à tona a necessidade de responsabilidade coletiva diante do futuro da vida humana e planetária. Pautando-se nos problemas éticos gerados pelo avanço tecnológico da sua época, o autor argumenta que a humanidade pode entrar em um estado de autodestruição caso não se esforce para transformar suas relações e cuidar do planeta e do futuro. Assim como Hans Jonas, outros autores apontam a necessidade de um EEB que contemple uma visão que extrapole as dimensões da Ética profissional e da abordagem biomédica principialista. Essa necessidade foi reforçada pelos signatários da “Declaração de Rijeka sobre o Futuro da Bioética”, assinada em 12 de março de 2011, no mesmo dia em que ocorreu o desastre de Fukushima3030 Roa Castellanos RA, Bauer C, Chalem A, Rey C, Madrid AD. Declaración internacional de Rijeka (2011) sobre el Futuro de la Bioética. Bioethikos. 2011; 5(3):291-301.. Segundo Pessin3131 Pessini L. As origens da bioética: do credo bioético de Potter ao imperativo bioético de Fritz Jahr. Bioética. 2013; 21(1):9-19., os signatários destacaram a necessidade de corrigir o caráter reducionista da Bioética contemporânea, incapaz de oferecer escopo teórico para abordagem dos desafios atuais da humanidade.
[...] a Bioética contemporânea, por vezes, ficou reduzida ao âmbito das questões de Ética médica (consentimento informado, princípios, relação médico-paciente, direitos do paciente etc.) e que se faz preciso ampliar a Bioética com formulação da Bioética integrativa: É necessário que a Bioética seja substancialmente ampliada e transformada conceitual e metodologicamente, para que possa considerar as diferentes perspectivas culturais, científicas, filosóficas e éticas (abordagem pluralista), integrando essas perspectivas em termos de conhecimentos que orientem e de ações práticas (abordagem integrativa). (p. 15)
Edgar Morin3232 Morin E. O Método 6: ética. 3a ed. Porto Alegre: Sulina; 2007. igualmente defende a ideia de uma Ética que extrapola o indivíduo e que ele divide em três conceitos principais: a autoética, que envolve uma consciência individual, responsável e que se reconhece como parte de um todo solidário; a socioética, que produz nos indivíduos em uma sociedade o senso de comunidade e irmandade; e a antropoética, que reconhece nossa unidade ancestral como espécie humana. Essas três esferas éticas, para o autor, são os fundamentos da Ética e que são inseparáveis para a formação ampla no EEB.
Conforme mencionamos, o uso do currículo de referência na formação em Saúde poderia ser um valioso instrumento para ampliar a compreensão de Ética e Bioética de profissionais de Saúde. O exercício de religação de diversas visões teóricas sobre Ética e Bioética é evidente na proposta apresentada pela Unesco (Quadro 1). Alguns temas apresentados são familiares para profissionais da Saúde, outros nem tanto. Tomemos como exemplo o módulo 17, “Proteção do Meio Ambiente, da Biosfera e da Biodiversidade”, e como esse tema se relaciona com a saúde humana e por que ele deve constar em um programa de EEB? A pandemia da Covid-19 pode nos ajudar a responder à primeira parte dessa questão. Alterações antrópicas no ambiente, como o desmatamento, alteram o equilíbrio do ecossistema e aumentam a probabilidade de que os vírus encontrem hospedeiros intermediários3333 Jacob M, Feitosa I, Albuquerque U. Animal-based food systems are unsafe: SARS-CoV-2 fosters the debate on meat consumption. Public Health Nutr. 2020; 23(17):3250-5.. O desmatamento, sobretudo nas áreas dos biomas da Floresta Amazônica e do Cerrado, é promovido pela atividade pecuária, e os solos descampados e erodidos do pasto têm sido usados para a cultura de soja, que serve para alimentar o gado. Essa invasão humana em ecossistemas naturais resulta na expansão de ecótonos. Ecótonos são zonas de transição entre áreas ecológicas adjacentes onde as espécies se misturam artificialmente, aumentando a probabilidade de transmissão viral entre humanos e animais3333 Jacob M, Feitosa I, Albuquerque U. Animal-based food systems are unsafe: SARS-CoV-2 fosters the debate on meat consumption. Public Health Nutr. 2020; 23(17):3250-5.. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)3434 Brasil. Ministério da Ciência, Tecnologias e Inivações. Monitoramento do território: florestas. Brasília: INPE; 2020. mostram que foram desmatados mais de 700.000 km22 Carvalho EA. Saberes complexos e educação transdisciplinar. Educ Rev. 2008; (32):17-27. da Floresta Amazônica, o que nas comparações feitas em seu website equivaleria a: 23 Bélgicas, 17 Holandas ou ainda a 172.839.500 campos de futebol. O impacto dessa devastação sobre a saúde humana nos vem sendo ensinado cotidianamente pela “cruel pedagogia do vírus”3535 Santos B. A cruel pedagogia do vírus. São Paulo: Almedina; 2020..
Portanto, meio ambiente e saúde humana encontram-se intrinsecamente conectados, o que justificaria sua abordagem na formação em Saúde. Mas por que esse tema deve constar em um programa de EEB? O debate ético pautado na busca das motivações ligadas ao desmatamento abre o caminho para questionarmos a validade de um contrato social que negocia com a destruição de outras formas de vida, produção de surtos zoonóticos em massa, tomada de terra de comunidades e povos tradicionais, reforço de iniquidades sociais, aquecimento global3636 Hanspach J, Abson DJ, French Collier N, Dorresteijn I, Schultner J, Fischer J. From trade-offs to synergies in food security and biodiversity conservation. Front Ecol Environ. 2017; 15(9):489-94.. Tratar com naturalidade aquilo que não convém (ex., desmatamento, garimpagem, pandemias) é ação egoísta e que não se orienta pelo agir humano baseado em valores éticos. Os recursos naturais que hoje existem são fundamentais para sobrevivência de outras espécies vivas e para entrega de serviços ecossistêmicos de uso coletivo (ex., polinização, mitigação do clima, fertilização do solo), e não para que uma pequena parcela da sociedade atinja seus objetivos de acúmulo de capital econômico e político3737 Boff L. Sustentabilidade: o que é, o que não é. Petrópolis: Vozes; 2012.. Discutir a inversão de valores de uma política que tem a economia como finalidade e não se orienta pela reflexão ética é central para qualquer curso que pretende oferecer diretrizes básicas sobre Ética e Bioética.
Preceptores com uma visão ampliada sobre Ética e Bioética poderão visualizar com mais facilidade situações no campo de prática que podem ser convertidas em oportunidades para construir aprendizado significativo com os residentes.
Percepção sobre ensino teórico de Ética e Bioética nos PRMS
Ao avaliar a percepção de preceptores sobre o EEB nos PRMS notamos algo que nos chamou a atenção: essas pessoas desconheciam que o EEB fazia parte do currículo. Em suas falas, os participantes mencionaram que desconhecem o currículo da residência em sentido amplo (ver Figura 5). A falta de comunicação entre a coordenação dos programas e os campos de prática e a fragmentação entre teoria e prática foi marcante em suas falas. A seguir, apresentamos trechos ilustrativos dessa análise:
[...] Isso eu pessoalmente não conheço. Como foi formatado essa disciplina na residência. Eu sou preceptor de campo, então eu faço preceptoria direto no campo de atuação. Esse contato é feito na academia, eu realmente não conheço como ele é ministrado. (EEB2)
[...] A academia às vezes se distancia da prática que é o nosso papel como preceptor. (EEB2)
[...] Não conheço, sei nem se tem... porque não tenho conhecimento com relação às particularidades do ensino, mas acredito que algum assunto sobre Bioética seja abordado. (EEB9)
[...] Eu não conheço a grade atual dos residentes que me chegam e eu desconhecia que tinha essa disciplina. (EEB6)
[...] Não tenho conhecimento com relação às particularidades do ensino, mas acredito que algum assunto sobre Bioética seja abordado. (EEB10)
[...] atualmente não está tendo essa disciplina de Bioética pelo menos a residência médica não. (EEB8)
[...] Eu não tenho como avaliar de forma específica porque eu não conheço a ementa, a disciplina, o que é oferecido para eles. (EEB3)
[...] Eu não tenho um conhecimento da grade curricular. (EEB4)
Os preceptores, portanto, não conseguem emitir juízo sobre o EEB no campo teórico porque desconhecem o currículo dos PRMS e, logo, a oferta da disciplina específica e da abordagem de Ética e Bioética em outros componentes. Por meio das análises que realizamos em campo e de outras fontes da literatura, apontamos três causas prováveis para esse desconhecimento: os ruídos de comunicação, a falta de investimento na formação da preceptoria e a desvalorização do papel do preceptor.
Problemas de comunicação entre os campos de prática e coordenação de programas em Instituições de Ensino Superior (IES) (seja de residência multiprofissional, médica ou programas em geral) são uma constante. A literatura demonstra que o planejamento e a comunicação entre as IES e os serviços de saúde são empecilhos para os objetivos formativos de currículos que preveem atuação nos campos de prática3838 Costa JRB, Romano VF, Costa RR, Vitorino RR, Alves LA, Gomes AP, et al. Formação médica na estratégia de saúde da família: percepções discentes. Rev Bras Educ Med. 2012; 36(3):387-400..
Há uma relação entre a comunicação insuficiente, a falta de investimento na formação de preceptores e a desvalorização de formação dos profissionais de Saúde. A função da preceptoria na Saúde vem sendo palco de discussões que alcançam desde as atividades exercidas por preceptores até a falta de reconhecimento deles pelas autoridades executoras. A preceptoria, na visão de preceptores, não é devidamente reconhecida e valorizada, sobretudo no que diz respeito a sua contribuição para a formação dos profissionais de Saúde3939 Aguiar A. Preceptoria em programas de residência: ensino, pesquisa e gestão. Rio de Janeiro: CEPESC; 2017.. Alguns argumentam que aos preceptores não são oferecidas oportunidades para desenvolvimento das habilidades necessárias ao seu adequado exercício da função4040 Jesus JCM, Ribeiro VMB. Uma avaliação do processo de formação pedagógica de preceptores do internato médico. Rev Bras Educ Med. 2012; 36(2):153-61. Educ Med. 2012; 36(2):153-61..
Falta de oportunidades formativas pode ser tanto causa como consequência da desvalorização. Pode ser causa porque poucas oportunidades formativas desqualificam o potencial da contribuição, que passa a ser desvalorizada. Pode ser consequência porque a baixa valorização pode se refletir na baixa oferta de oportunidades formativas. Um dos caminhos para romper esse ciclo vicioso é a qualificação da comunicação entre IES e serviços, além do reconhecimento das contribuições de cada ente na formação dos residentes.
Além disso, há o fator tempo. Preceptores tendem a ter uma jornada de trabalho exaustiva. Aguiar et al.3939 Aguiar A. Preceptoria em programas de residência: ensino, pesquisa e gestão. Rio de Janeiro: CEPESC; 2017., por exemplo, ao tentarem entender como o preceptor maneja as múltiplas tarefas implicadas nas funções que desempenham, concluíram que “a carga horária não seria adequada para o exercício das atribuições da preceptoria multiprofissional” (p. 62-3). Esse fator traz um desafio adicional para que IES e serviços melhorem sua comunicação e encontrem tempo para oportunidades formativas visando a qualificação dos formadores.
Na nossa pesquisa, percebemos que os preceptores reconhecem os campos de prática como ambientes em que há a oportunidade de abordar questões que envolvem Ética e Bioética. Eles mencionam conflitos, valores pessoais, diferenças de opiniões, em que seria oportuno refletir com as ferramentas oferecidas pelos campos da Ética e da Bioética. Todavia, não se sentem qualificados para atuar como formadores nesse cenário. Considerando que a prática é um dos pontos centrais da proposta formativa dos PRMS, é crucial que haja investimento na formação da preceptoria para que essas oportunidades formativas sejam mais bem exploradas e se convertam em assistência de qualidade à população.
Considerações finais
Concluímos com este trabalho que o EEB nos PRMS da UFRN apresenta fragilidades tanto nos seus aspectos teóricos quanto práticos. Essas fragilidades estão principalmente relacionadas a uma visão epistemológica limitada sobre Ética e Bioética e a problemas de comunicação entre IES e serviços. Acreditamos que a abordagem dessas fraquezas sirva como ponto de partida para explorar o potencial formativo no EEB nos PRMS. Além disso, sugerimos que a interação com a comunidade local e com os territórios adjacentes aos serviços possa oferecer oportunidades para trabalhar as dimensões de Ética e Bioética que, atualmente, possuem visibilidade restrita na formação em Saúde. O pensar e o fazer a Saúde não podem mais ignorar a relação intrínseca entre a produção da saúde humana e ambiental no debate da Bioética.
De forma mais ampliada, acreditamos que um dos calcanhares de Aquiles para abordagem da Bioética em Saúde sejam as falhas de comunicação e epistemológicas, tanto aquelas que são criadas pela fragmentação do ensino colocando à parte natureza e cultura (bio e ética), como aquelas que dividem comunidade e serviços, universidade e serviços, ambiente humano e não humano etc. A abordagem da Bioética na educação e sua prática no cotidiano da atuação em Saúde depende da capacidade de religação desses nós comunicativos, valorizando abordagens interdisciplinares, interprofissionais, internacionais, interespécie etc. A abordagem da Bioética depende, em última instância, de encontrarmos essa conexão comum e de nos comunicarmos a partir dela. Esse repto é há muito apontado como uma das principais barreiras para a assistência integral em Saúde; e, ainda assim, é um dos grandes limites na nossa prática formativa e profissional. Acreditamos que o currículo proposto pela Unesco ofereça um bom marco para que comecemos a transpor esses desafios de comunicação na seara do EEB.
Agradecimentos
Aos preceptores e às preceptoras dos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte que gentilmente colaboraram com nossa pesquisa. A publicação do presente trabalho foi facilitada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001.
- Oliveira EL, Dantas AGA, Filho COB, Jacob MCM. Falhas de comunicação e epistemológicas limitam a abordagem da Bioética na formação e na prática em Saúde. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200679 https://doi.org/10.1590/interface.200679
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Dez 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
12 Out 2020 - Aceito
28 Ago 2021