Resumos
Uma em cada quatro mulheres brasileiras sofre algum tipo de violência durante o trabalho de parto e o parto, visto que essa assistência é marcada por intervenções desnecessárias que levam à despersonificação e à inferiorização da mulher. Esta é uma pesquisa exploratória com abordagem qualitativa, por meio de entrevistas semiestruturadas, que analisou a violência obstétrica pelo viés de gênero com base na narrativa de profissionais de saúde que realizam assistência ao parto. Foi evidenciado que essa assistência é permeada por submissão, abusos físicos, verbais e psicológicos, mediante um modelo intervencionista de pessimização do parto. A mulher torna-se objeto de intervenção por ser considerada inferior, baseado em uma perspectiva pessimista sobre o corpo feminino, conforme conhecimento hegemônico pautado pela excessiva medicalização do parto.
Palavras-chave
Violência de gênero; Maternidade; Parto
One in every four Brazilian women suffer some form of violence during labor and childbirth, with labor and childbirth care being marked by unnecessary interventions that lead to the depersonalization and inferiorization of women. We conducted an exploratory study using semi-structured interviews to analyze obstetric violence in the form of gender bias in the narratives of childbirth care providers. The findings show that childbirth care is permeated by submission, physical, verbal and psychological abuse and based on an interventionist model that “pessimizes” childbirth. Underpinned by a pessimistic view of the female body and hegemonic knowledge predicated on the excessive medicalization of childbirth, the mother becomes an object of intervention because she is considered inferior.
Keywords
Gender violence; Maternity; Childbirth
Una de cada cuatro mujeres brasileñas sufre algún tipo de violencia durante el trabajo de parto y el parto, puesto que esa asistencia está marcada por intervenciones innecesarias que llevan a la despersonificación e inferiorización de la mujer. Esta es una investigación exploratoria con abordaje cualitativo, por medio de entrevistas semiestructuradas, que analizó la violencia obstétrica por el sesgo de género, a partir de la narrativa de profesionales de la salud que realizan asistencia al parto. Quedó en evidencia que la asistencia al parto está impregnada de sumisión, abusos físicos, verbales y psicológicos, a partir de un modelo intervencionista de pesimización del parto. La mujer se convierte en objeto de intervención, por ser considerada inferior, con base en una perspectiva pesimista sobre el cuerpo femenino, conforme conocimiento hegemónico regido por la excesiva medicalización del parto.
Palabras clave
Violencia de género; Maternidad; Parto
Introdução
A violência obstétrica, como violência de gênero, vem ganhando destaque em debates no Brasil nos últimos anos. Em 2010, a Fundação Perseu Abramo11 Fundação Perseu Abramo. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2010. realizou uma pesquisa em 25 estados do país e, nela, foi evidenciado que 25% das mulheres sofreram algum tipo de violência durante a assistência ao parto. Um estudo coordenado pela Fiocruz – Nascer no Brasil: inquérito nacional sobre o parto e nascimento – analisou partos realizados em mais de 191 municípios e constatou que no país o parto é sinônimo de intervenções desnecessárias e que, para 95% das mulheres, o fato de estar em uma instituição hospitalar significa ser objeto de procedimentos, em sua maioria sem base em evidências científicas22 Serruya SJ. The art of not doing wrong and doing the right thing! Cad Saude Publica. 2014; 30 Suppl 1:36-7.,33 Leal MDC, Gama SGN. Nascer no Brasil. Cad Saude Publica. 2014; 30 Supl:S5-7..
Este artigo discute(c(c)São apresentados alguns resultados de uma monografia de conclusão de residência em Enfermagem Obstétrica, defendida em 2018, trabalho para o qual foram entrevistados profissionais de saúde (médicos e enfermeiros obstetras, além de residentes de Medicina e Enfermagem em Obstetrícia) sobre violência obstétrica praticada contra mulheres no trabalho de parto e no parto.) como profissionais de saúde (médicos e enfermeiros obstetras, além de residentes de Medicina e Enfermagem em obstetrícia) percebem a violência obstétrica que as mulheres sofrem na atenção ao parto, com o objetivo de analisar a violência obstétrica descrita pelos entrevistados por meio da perspectiva de gênero.
Violência obstétrica atravessada por questões de gênero
Trabalhamos com o conceito de violência tal como formulado por Chauí44 Chauí M. Participando do debate sobre mulher e violência. In: Franchetto B, Cavalcanti MLVC, Heilborn ML, organizadores. Perspectivas Antropológicas da Mulher 4. São Paulo: Zahar Editores; 1985. p. 23-62., que o compreende em dois sentidos: (a) como a conversão de uma desigualdade em uma relação de hierarquia, objetivando a dominação, a exploração ou a opressão, levando a uma relação entre superior e inferior; (b) como aquele momento em que se deixa de tratar uma pessoa como indivíduo e ela passa a ser vista como objeto. A partir do momento que o sujeito é considerado como “coisa”, é convertido a ser inerte e passivo. Nesse sentido, dizemos que há violência quando anulamos as ações e/ou as falas de outra pessoa. É importante reforçar que a violência não visa a destruição daquele que é considerado hierarquicamente inferior, mas sim a sua submissão.
A violência de gênero é aqui entendida como aquela formulada pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher55 Brasil. Câmara dos Deputados. Decreto nº 1.973, de 1 de Agosto de 1996. Promulga a convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Diário Oficial da União. 2 Ago 1996., que a define como: “qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público quanto privado”. Tal conceito tem sido utilizado nas legislações que visam garantir direitos às mulheres contra a violência doméstica ou institucional, como é caso da Lei Maria da Penha (11.340/2006)66 Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Diário Oficial da União. 8 Ago 2006.. Vale destacar o que prevê essa lei em termos de violência psicológica e/ou sexual, muito comum na violência obstétrica, como será abordado mais adiante. Referindo-se às formas de violência contra a mulher, o artigo 7º, em seus parágrafos II e III, diz:
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos66 Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Diário Oficial da União. 8 Ago 2006..
No que se refere ao conceito de violência obstétrica, o entendimento sobre o seu significado tem sido definido com base nas legislações venezuelana77 Venezuela. Ley orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia. Caracas; 2007. p. 1-41., argentina88 Argentina. Ley de protección integral para prevenir, sancionar y erradicar la violencia contra las mujeres en los ámbitos en que desarrollen sus relaciones interpersonales. Argentina; 2009. p. 1-39. e mexicana99 México. Ley general de acceso de las mujeres a una vida libre de violencia. México; 2018. p. 1-52., que passaram a incluir o conceito nas leis que protegem as mulheres de todas as formas de violência, sendo, inclusive, em alguns casos, tipificado como crime. Na legislação desses países a violência obstétrica é assim definida:
Apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissionais de saúde, que se expressa em um trato desumanizador, no abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, trazendo consigo a perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres77 Venezuela. Ley orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia. Caracas; 2007. p. 1-41..
(tradução nossa).
Ao se analisarem os conceitos de violência de gênero e sua relação com a violência obstétrica, deve-se ter como questão o fato de que a assistência obstétrica no Brasil tem sido caracterizada pelo alto grau de medicalização e pelo abuso de práticas invasivas, obsoletas e rotineiras. Na visão de Diniz1010 Diniz CSG. O renascimento do parto, e o que o SUS tem a ver com isso. Interface (Botucatu). 2014; 18(48):217-20. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0910.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.09... , há uma ideia de produtividade que parte do pressuposto de que o parto é um evento desagradável, degradante, humilhante, repulsivo, sujo e que, portanto, deve ser encurtado ou mesmo suprimido. Essa visão está associada à lógica de pessimização do parto, que o considera uma coisa primitiva, que vai danificar a vulva e a vagina, comprometendo a sexualidade feminina. Trata-se de uma inversão de sentidos que tem o objetivo de convencer as mulheres de que sua sexualidade é repulsiva e o parto figuraria como o ápice de uma experiência que precisa de “correção” para “proteger” as mulheres1010 Diniz CSG. O renascimento do parto, e o que o SUS tem a ver com isso. Interface (Botucatu). 2014; 18(48):217-20. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0910.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.09... .
O entendimento do parto como evento fisiológico, antropológico, social, psicológico e não apenas como ato médico traz subjacente a ideia de que as mulheres devem ser o centro do processo, invertendo uma relação de poder historicamente sedimentada entre pacientes e profissionais de saúde. Romper com essa lógica implica a quebra de um modelo típico de assistência ao parto que, “além de inseguro e pouco apoiado em evidências científicas, é não raro marcado por uma relação profissional-usuária autoritária, que inclui formas de tratamento desumano ou degradante”1111 Diniz CSG. Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2009; 19(2):313-26. (p. 317).
Ao discutir o paradoxo perinatal, Diniz1111 Diniz CSG. Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2009; 19(2):313-26. afirma que nos últimos vinte anos melhoraram os indicadores de saúde materna, mas a alta mortalidade se mantém. Para a autora, essa situação é gerada por múltiplos fatores, destacando-se: superestimação dos benefícios da tecnologia, negação dos desconfortos das intervenções, imposição de sofrimentos e riscos desnecessários, “pessimização do parto” e apresentação da cesárea como rotina.
Na análise apresentada por Diniz1111 Diniz CSG. Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2009; 19(2):313-26., existe uma crença, sedimentada na violência de gênero, que considera o corpo feminino como “essencialmente defeituoso, imprevisível e potencialmente perigoso, portanto necessitando de correção e tutela, expressas nas intervenções”1111 Diniz CSG. Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2009; 19(2):313-26. (p. 318).
A apropriação do conhecimento obstétrico pelos médicos levou à institucionalização do parto e promoveu o chamado “pessimismo fisiológico”. Por meio dessa concepção, a mulher é vista como inferior ao homem intelectualmente, mais frágil, voltada para o papel social da reprodução. O parto passa a ser visto como uma prova da fragilidade e da dependência das mulheres, devendo ser amparadas nesse momento por médicos a fim de resguardar a mulher e o feto da instabilidade do corpo feminino, já que este estaria repleto de erros que precisariam ser corrigidos; sendo assim, o corpo da mulher precisava ser controlado mediante procedimentos médicos a fim de garantir a segurança no parto1212 Diniz CSG. Assistência ao parto e relações de gênero: elementos para uma releitura médico-social [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 1996.
13 Rohden F. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2001.-1414 Zorzam BAO. Informação e escolhas no parto: perspectivas das mulheres usuárias do SUS e da saúde suplementar [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2013..
Podemos dizer que a violência sofrida por mulheres em trabalho de parto e no parto é a sua inferiorização devido às suas diferenças (de etnia e gênero), bem como por questões relacionadas à desigualdade social (escolaridade e classe social), anulando a sua subjetividade com a apropriação indevida de seu corpo e tratamento como objeto de estudo e intervenção dos profissionais de saúde nas maternidades; sem receber qualquer informação ou solicitação de consentimento, as mulheres são submetidas a procedimentos desnecessários, ignorando sua autonomia e a capacidade de decidir sobre sua sexualidade ou seu próprio corpo, tratando como patológico o processo natural de parturição1515 Aguiar JM, D’Oliveira AFPL. Violência institucional em maternidades públicas sob a ótica das usuárias. Interface (Botucatu). 2011; 15(36):79-92. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832010005000035.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283201000... ,1616 Tesser CD, Knobel R, Andrezzo HFA, Diniz SG. Violência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2015; 10(35):1-12..
Métodos
Foi realizado um estudo exploratório com abordagem qualitativa, implementado com entrevistas de profissionais que realizam assistência a mulheres durante o trabalho de parto e o parto, em hospital público, conveniado ao ao Sistema Único de Saúde (SUS), localizado em Belém do Pará, no setor de Pré-parto, Parto e Puerpério (PPP). A unidade materno-infantil possui 406 leitos distribuídos nas alas de pediatria, neonatologia, UTI materna e pediátrica, maternidade, ala do programa mãe-canguru e acolhimento obstétrico. Os atendimentos são realizados por meio de referências dos municípios do estado do Pará e por demanda espontânea, com atendimento de urgência de maneira ininterrupta. A instituição atende aproximadamente novecentos partos por mês, realizando também o acompanhamento do pré-natal de alto risco de mulheres do estado. A instituição é caracterizada como uma maternidade que vem fortalecendo, ao longo de sua história, as ações de melhoria na assistência à saúde da mulher1717 Vianna RC. A violência institucional na assistência ao parto sob a perspectiva da mulher [dissertação]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014..
Foi utilizada uma amostra de conveniência com vinte entrevistas de um universo de 79 profissionais elegíveis para o estudo. Foram incluídos os profissionais das áreas de Medicina e Enfermagem que tivessem concluído o ensino superior, residentes de Medicina e Enfermagem Obstétrica que estivessem atuando na sala de parto e realizassem assistência direta às mulheres durante o trabalho de parto e o parto. Foram excluídos profissionais que atuavam como professores ou preceptores de instituições de ensino, uma vez que se tratava de um hospital-escola, ou seja, foram excluídos aqueles que não tinham vínculo profissional com a instituição e os que atuavam em período noturno, pois a coleta de dados ocorreu durante o período diurno.
Todas as entrevistas foram realizadas na sala de parto, durante os intervalos de atendimento, de maneira individual, com a prévia exposição dos objetivos da pesquisa, de seus riscos e benefícios. Vale ressaltar que as entrevistas foram gravadas, com autorização prévia dos participantes, e transcritas. Após a transcrição, as falas dos participantes foram codificadas e categorizadas. As categorias aqui analisadas se referem ao critério de violência de gênero apontado nas entrevistas. Sendo assim foram encontradas quatro subcategorias: abuso físico, abuso psicológico, abuso verbal e restrição de movimentação e posição no parto. Por fim, foram realizadas a análise de conteúdo dessas categorias e a interpretação dos dados com o enfoque de Bardin1818 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011..
O estudo foi avaliado e aprovado pelo comitê de ética e pesquisa da instituição de ensino superior ao qual está vinculado, com CAAE 69070117.4.0000.5172, e pelo comitê de ética da maternidade escolhida, com CAAE 69070117.4.3001.5171. Todos os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados e discussão: a percepção da violência pelos profissionais de saúde
Foi realizada a abordagem de 23 profissionais durante os intervalos de atendimento, porém três profissionais não participaram desse estudo, pois dois deles alegaram que, devido à rotina de atendimento, não possuíam tempo para realizar a entrevista, e outro alegou não concordar com a proposta do estudo, recusando-se a participar.
A maioria dos participantes da pesquisa era do sexo feminino, representada por 16 entrevistados (80%). A respeito da categoria profissional, 11 entrevistados eram médicos (55%), somando-se médicos em especialização e médicos já especialistas. A maioria dos participantes estava realizando especialização durante a coleta de dados, caracterizada como residentes, com 16 participantes (65%). A idade dos entrevistados variou entre 23 e 56 anos, com predominância da faixa etária de 20 a 29 anos, com 11 entrevistados (55%).
O perfil dos participantes está disposto na Tabela 1.
Distribuição dos participantes, por características demográficas e profissionais. Belém, 2018
Violência de gênero na assistência ao parto
A respeito da violência de gênero, analisa-se a seguinte colocação de um dos entrevistados:
Violência obstétrica é quando você não respeita a paciente enquanto protagonista da ação, do parto, quando você coloca ela em segundo plano, no caso na...na cena do parto.[...] a violência obstétrica, ela é basicamente uma violência de gênero, passa por uma questão de gênero, na formação, que antigamente os médicos obstetras eram homens, então isso contribui mesmo pela própria formação, pelo próprio momento histórico, da história da obstetrícia, de ela ser comandada por homens, de eles terem o controle do corpo feminino, de ele achar que ele pode mexer, pode fazer o que ele quiser, cortar, botar fórceps, colocar ocitocina, então perpassa também por essa questão de gênero, de educação, da própria sociedade em si. A mulher ela acha que ela tem que ser submissa ao homem e tudo mais, alguma né, ainda né.
(Enfermeiro Obstetra 3)
A fala do Enfermeiro Obstetra 3 mostra que a violência obstétrica está enraizada em questões de gênero que se estendem até a atenção ao parto, uma vez que as mulheres são violentadas de maneira rotineira devido ao papel social que ocupam. Esse tipo de violência vai ser exemplificado por diversas formas de abuso que serão evidenciadas nas subcategorias a seguir.
Abuso físico
Na categoria de abuso físico, essa prática foi identificada por 11 participantes (55%). Destaca-se a seguir as duas falas mais relevantes:
[...] uso de ocitocina, episiotomia sem o consentimento, eu já vi casos até de pessoas que não fazem anestésico pra fazer episio [...] Kristeller também tem, eu já vi kristeller(d(d)Manobra na qual é realizada uma pressão no fundo do útero com o pretenso objetivo de facilitar a saída do feto, reconhecida como uma prática obsoleta e contraindicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde, por não ter eficácia comprovada e muitas vezes provocar efeitos danosos relevantes, como ruptura de tecidos, fraturas na mulher e mesmo no bebê.)
(Enfermeiro Obstetra 1)
Por exemplo, na hora de fazer, de avaliar essa paciente, você não pede licença, não explica como que vai ser feito o procedimento, que pode dar um certo incômodo na paciente [...] Fazer toque vaginal sem explicar, a paciente fecha a perna aí... Abre essa perna pra avaliar! [...]
(Residente de Medicina 7)
As falas dos entrevistados permitem caracterizar práticas de abuso físico como as intervenções desnecessárias realizadas de acordo com a rotina de cada profissional e feitas sem o consentimento das mulheres. Os entrevistados ainda apontam que essa violência se manifesta no uso de episiotomia, manobra de kristeller e avaliação invasiva (toque vaginal) sem devido consentimento da paciente.
Em sua tese, Diniz1919 Diniz CSG. Entre a técnica e os direitos humanos: possibilidades e limites da humanização da assistência ao parto [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2001. já apontava que a episiotomia é o procedimento cirúrgico mais frequentemente utilizado no Ocidente, sendo uma das formas mais dramáticas de demonstração de apropriação do corpo feminino, já que é a única cirurgia realizada sobre o corpo de um indivíduo saudável sem o seu consentimento.
Na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento2020 Organização das Nações Unidas. Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento - Plataforma de Cairo. Genebra: ONU; 1994., já se reivindicavam os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, a extinção de toda forma de violência contra a mulher e a garantia de acesso à maternidade segura pelas mulheres.
Já na IV Conferência Mundial sobre a Mulher2121 Organização das Nações Unidas. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher [Internet]. Genebra: ONU; 1995 [citado 14 Set 2020]. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf
http://www.onumulheres.org.br/wp-content... abordou-se a necessidade da adoção de medidas para acabar com intervenções médicas desnecessárias e coercitivas, excesso de medicalização e tratamentos inadequados, recomendando-se que o serviço de saúde respeite os direitos humanos e as normas éticas, assegurando o consentimento voluntário e fundamentado da mulher durante a prestação de serviços, sendo necessário “proibir e eliminar todo aspecto nocivo de certas práticas tradicionais, costumeiras ou modernas, que violam os direitos das mulheres”2121 Organização das Nações Unidas. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher [Internet]. Genebra: ONU; 1995 [citado 14 Set 2020]. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf
http://www.onumulheres.org.br/wp-content... (p. 225).
Portanto, as mulheres possuem direitos reprodutivos e sexuais, além de direitos humanos relacionados a sua condição de pessoa e a sua integridade corporal. Nesse sentido, Chacham e Diniz2222 Chacham A, Diniz CSG. Dossiê humanização do parto. São Paulo: Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos; 2002. argumentam que as condutas realizadas desnecessariamente, como episiotomias de rotina, uso de ocitócitos para aceleração do trabalho de parto, entre outras, seriam vistas como violação do direito da mulher à sua integridade corporal.
Ao realizar qualquer intervenção no trabalho de parto e no parto sem obter o consentimento da parturiente, além de violar os direitos dessa mulher, o profissional a anula completamente no seu processo de parir, fazendo que ela se torne um meio de se chegar a um fim – o feto. Tal fato tem sua gravidade reforçada quando os profissionais ainda utilizam práticas sabidamente desnecessárias e sem evidência científica, ou com evidência de que causam malefícios para a mãe e o feto durante o processo de parturição, colaborando para um desfecho negativo dessa assistência.
Abuso psicológico
A categoria de abuso psicológico foi observada por oito profissionais (40%). Evidenciam-se as três falas mais pertinentes:
Eu vejo muita agressividade com a paciente, falta de paciência, é... assim, às vezes dizer que a paciente, se não colaborar, vai ter o filho sozinha, ou vai pra rua [...]
(Residente de Medicina 4)
O uso dessas agressões verbais com a paciente, falar que é pra ela parar de gritar, falar que ela tá gritando muito, que se ela continuar fazendo isso ele vai embora, vai deixar ela sozinha lá pra ter o bebê, não vai mais ajudar ela... ela tá atrapalhando o bebê a nascer porque ela tá se movimentando, não quer ficar na cama [...]
(Residente de Enfermagem 6)
[...] mas culpa da mãe, do parto não tá saindo daquele jeito que tem que sair, você não tá fazendo força, você tá deixando seu bebê aí, entendeu, e muitas vezes não é, é exaustão, é realmente não compreender como tem que fazer a força, ou seja, aí tu joga pra mãe a culpa de um trabalho de parto que muitas vezes tá até distociado, ou até uma desproporção, entendeu, então isso a gente ainda presencia sim.
(Ginecologista Obstetra 1)
O abuso psicológico foi observado nas entrevistas por meio da culpabilização da mulher e da ameaça de abandono. Alguns entrevistados citaram que quando as mulheres começam a “dar mais trabalho”, o profissional fica estressado e se utiliza da ameaça de abandono para fazer com que a mulher “colabore”.
No que tange ao artifício de culpar a parturiente, sua utilização foi citada nos momentos em que a mulher não cumpria as ordens do profissional conforme esperado por ele, ou quando o trabalho de parto se tornava prolongado, principalmente no período expulsivo. Nesse momento, o profissional culpa a parturiente pela “demora” do processo e pelo prognóstico do feto, realizando uma espécie de terror psicológico.
As falas do Residente de Medicina 4 e Residente de Enfermagem 6 evidenciam que os profissionais ameaçam desassistir a parturiente se ela não se comportar de acordo com o esperado por eles. Aguiar, D’Oliveira e Schraiber2323 Aguiar JM, d’Oliveira AFPL, Schraiber LB. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cad Saude Publica. 2013; 29(11):2287-96. Doi: https://doi.org/10.1590/0102-311x00074912.
https://doi.org/10.1590/0102-311x0007491... descrevem que a ameaça de abandono é uma forma de conseguir a colaboração da parturiente. Os entrevistados do estudo citado admitiram fazer uso desse “método” para dissuadir a gestante e chamar a sua atenção, coagindo-a a colaborar e obedecer ao que lhe era imposto. Isso, de acordo com as autoras, demonstra a banalização do sofrimento da mulher ao ser ameaçada.
Ademais, na visão de Aguiar2424 Aguiar JM. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010. existe uma relação de hierarquia entre médico e paciente, sustentada pelo saber científico, e que, por meio dessa, o profissional utiliza o instrumento da violência em suas diversas formas para a manutenção da dominação sobre as pacientes. A autora ainda complementa reforçando que o que se consegue com a coação não é a colaboração da mulher, e sim a sua submissão.
Portanto, ameaçar abandonar a gestante é uma forma cruel de fazer que a mulher se torne passiva e obedeça aos comandos da equipe de saúde, uma vez que nesse momento o profissional detém o poder, já que possui autoridade tecnocientífica. Aqui se considera essa prática como um abuso psicológico por todo o sofrimento psicológico imposto à gestante.
Vianna1717 Vianna RC. A violência institucional na assistência ao parto sob a perspectiva da mulher [dissertação]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014. evidencia que o ato de o profissional de saúde culpar a mulher por determinado desarranjo no parto é uma situação comum, observada nos discursos das puérperas de seu estudo, posto que caberia à parturiente somente a função de colaborar com o trabalho da equipe de saúde.
De maneira semelhante, neste estudo, conforme verificado na fala do Ginecologista Obstetra 1, reiterada pela fala do Residente de Enfermagem 6, quando a mulher não “colaborava” como o esperado pelo profissional, ele se utilizava de violência psicológica por meio de ameaças de abandono, culpabilizando e responsabilizando a gestante por qualquer prognóstico ruim como forma de punição.
Abuso verbal
O abuso verbal foi apontado por nove entrevistados (45%), a seguir apresentam-se duas colocações expressivas a esse respeito:
A paciente às vezes...ela tá gritando durante o trabalho de parto...e pedirem pra não gritar, que na hora que fez não chorou, não gritou, que ano que vem vai tá novamente aqui pra parir...é mais como forma de insulto realmente...hoje mesmo eu presenciei isso [...]
(Residente de Enfermagem 2)
Tem as violências verbais...de técnico falando frases desse cunho como eu já tinha dito antes né...ah não doeu pra fazer, mas tá doendo pra nascer né [...]
(Residente de Medicina 2)
O abuso verbal na instituição foi caracterizado como agressividade por meio de frases que buscam coagir, ridicularizar ou menosprezar as parturientes, como apontado pelo Residente de Enfermagem 2. Ademais, incluem-se nessa categoria a elevação do tom de voz e as ordens realizadas de maneira grosseira durante o atendimento. O abuso verbal também ocorre com comentários maldosos ou desrespeitosos sobre a parturiente e sua sexualidade, como observado na fala do Residente de Medicina 2, além do uso de gritos para se dirigir às gestantes, entre outros.
Na visão de Hotimsky2525 Hotimsky SN, Bógus CM. O parto como eu vejo... ou como eu o desejo? Expectativas de gestantes, usuárias do SUS, acerca do parto e da assistência obstétrica. Cad Saude Publica. 2002; 18(5):1303-11., a equipe de saúde em vez de acolher a parturiente durante o momento de dor e angústia, que é o momento do parto, acaba cometendo atos de desrespeito verbal. De acordo com a autora, os profissionais julgam as mulheres de uma maneira moralista por elas exercerem a sua sexualidade, frequentemente se utilizando de agressões verbais como as citadas pelos profissionais entrevistados neste estudo.
O abuso verbal é relatado frequentemente nos estudos acerca da violência obstétrica, como demonstrado na pesquisa de Sena2626 Sena LM. Ameaçada e sem voz, como num campo de concentração. A medicalização do parto como porta e palco para a violência obstétrica [tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2016., na qual as entrevistadas (puérperas) mencionaram essa forma de violência como uma prática recorrente durante o trabalho de parto, principalmente quando elas se recusavam ou agiam de maneira contrária ao que era imposto pelo profissional.
Restrição de movimentação e posição no parto
Dois profissionais (10%) identificaram a ocorrência dessa prática da seguinte maneira:
[...] ainda tem muitos médicos, muitos profissionais que querem que a paciente tenha bebê naquela posição... deitada ou semi-deitada né... e se tentar fazer é... algum tipo de... colocar a paciente em outra posição já ficam olhando com cara feia [...]
(Residente de Enfermagem 2)
Ah, existem várias violências que acontecem aqui, desde as mais clássicas, desde kristeller e episiotomia de rotina, a simples mesmo mandar a mulher calar a boca, “faz força!” e desrespeitar a posição que a mulher quer, acaba que o profissional sempre se coloca em primeiro lugar e a mulher vai parir em litotomia, na cama, vai sofrer puxos dirigidos, enfim.
(Enfermeiro Obstetra 1)
Nas falas dos entrevistados é possível notar que as mulheres eram privadas da liberdade para escolher a melhor posição para parir, pois muitos profissionais as obrigavam a ficar no leito, sem liberdade para movimentação.
Existem numerosas evidências de que a liberdade para a mulher se movimentar durante o trabalho de parto e o parto na posição vertical são vantajosas na comparação com a imobilização no leito e o parto na posição deitada. Entre tais vantagens citam-se: contrações mais regulares e intensas, processo de dilatação do colo uterino mais eficaz, relaxamento mais profundo entre as contrações, menor duração do primeiro e do segundo estágio do parto, menor incidência de sofrimento fetal, menor condição de estresse e dor nas parturientes2727 Balaskas J. Parto ativo: guia prático para o parto natural. 3a ed. São Paulo: Editora Ground; 2015..
De acordo com o Ministério da Saúde2828 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes nacionais de assistência ao parto normal: versão resumida. Brasília: Ministério da Saúde; 2017., durante a assistência do trabalho de parto as mulheres devem ser encorajadas a se movimentar e adotar posições que lhes sejam mais confortáveis. A equipe de saúde deve desencorajar a adoção de posições horizontais (semissupina, supina ou em decúbito dorsal) durante o segundo estágio do trabalho de parto, estimulando o uso de quaisquer outras posições que as mulheres julguem ser confortáveis, como de cócoras, em quatro apoios ou lateralizada.
Existem evidências robustas para que a mulher seja orientada a adotar posições verticalizadas durante o parto, esclarecendo que quando o profissional não estimula o uso dessas posições ocorre o aumento de complicações, intervenções e iatrogenias em um efeito cascata. A preferência de muitos profissionais de saúde pela posição supina se explica por “facilitar o acesso ao canal de parto e a realização de intervenções como: antissepsia, monitoramento fetal, episiotomia e suturas”2929 Niy DY, Oliveira VC, Oliveira LR, Alonso BD, Diniz CSG. Overcoming the culture of physical immobilization of birthing women in Brazilian healthcare system findings of an intervention study in São Paulo, Brazil. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180074. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.180074.
https://doi.org/10.1590/interface.180074... (p. 9), impedindo que o processo ocorra de maneira natural. Portanto, manter a mulher em posição litotômica é uma forma de conveniência para o profissional, que, baseado no modelo intervencionista de assistência, retém a mulher como objeto de intervenção. Pode-se dizer ainda que, quando se impõe à parturiente uma posição que é confortável apenas para o profissional, ocorre a anulação do protagonismo da mulher na parturição.
Observa-se ainda, na fala do Residente de Enfermagem, que os profissionais de Medicina aparentam ser mais resistentes à mudança de paradigmas na assistência ao parto. Diniz3030 Diniz SG, Salgado HO, Andrezzo HFA, Carvalho PGC, Carvalho PCA, Aguiar CA, et al. Abuse and disrespect in childbirth care as a public health issue in Brazil: Origins, definitions, impacts on maternal health, and proposals for its prevention. J Hum Growth Dev. 2015;25(3):377-84. debate que a formação dos profissionais de saúde, sobretudo os médicos, estrutura e fundamenta a resistência à mudança no atendimento obstétrico, uma vez que, para Hotimsky3131 Hotimsky SN. A formação em obstetrícia: competência e cuidado na atenção ao parto [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2007., muitas vezes o aprendizado médico é realizado separadamente da ética, priorizando competências técnicas a despeito do cuidado para com o indivíduo.
Torna-se preocupante o alerta feito por Rattner3232 Rattner D. Humanização na atenção a nascimentos e partos: ponderações sobre políticas públicas. Interface (Botucatu). 2009; 13 Supl 1:759-68. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832009000500027.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200900... sobre a formação dos profissionais de saúde que ainda não incorporaram as evidências científicas em suas práticas, muitas delas presentes em políticas públicas de atenção ao parto. Nesse sentido, a autora afirma:
Um problema sério é que as mudanças preconizadas pela política estão ocorrendo, sobretudo, no sistema de saúde, enquanto o aparelho formador continua preparando profissionais dentro do modelo intervencionista considerado inadequado. Portanto, outro desafio é a articulação com o Ministério da Educação para que a grade curricular dos cursos de saúde incorpore os fundamentos da Medicina Baseada em Evidências Científicas, além da visão de humanidade imprescindível ao bom exercício profissional3232 Rattner D. Humanização na atenção a nascimentos e partos: ponderações sobre políticas públicas. Interface (Botucatu). 2009; 13 Supl 1:759-68. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832009000500027.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200900... . (p. 765-6).
É provável que tal incompatibilidade entre políticas públicas e formação na área da Saúde aliada ao que Schraiber3333 Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. São Paulo: Hucitec; 2008. chama de “crise de confiança”, entendida como uma crise ética global de fragilidade dos vínculos de confiança entre profissionais de saúde e pacientes, estimule e reforce a objetificação do corpo das mulheres. Em contrapartida, pode-se argumentar com Diniz1010 Diniz CSG. O renascimento do parto, e o que o SUS tem a ver com isso. Interface (Botucatu). 2014; 18(48):217-20. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0910.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.09... que a organização das mulheres, impulsionada por projetos coletivos construídos nas redes sociais, está criando uma nova tendência na relação médico-paciente. No seu entendimento,
[...] pode acontecer de as usuárias conhecerem melhor as evidências científicas sobre segurança e efetividade das práticas de saúde que os profissionais. Com o advento da internet as usuárias conhecem a realidade de outros países, onde políticas públicas promovem o parto espontâneo e centrado na mulher. Entram em contato com a literatura científica e de direitos sobre o parto [...] o que leva a um choque cultural frente às crenças dos profissionais da saúde1010 Diniz CSG. O renascimento do parto, e o que o SUS tem a ver com isso. Interface (Botucatu). 2014; 18(48):217-20. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0910.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.09... . (p. 217)
Esse movimento de busca pelo conhecimento acerca das práticas de saúde seguras e baseadas em evidências direcionadas à parturição e ao nascimento poderá fomentar a melhoria da assistência às mulheres e aos recém-nascidos, uma vez que, dotadas de informação, as parturientes não serão submetidas à equipe de saúde de modo incondicional, e poderão participar mais ativamente do processo de parturição, restaurar sua autonomia e seu protagonismo, retomando o controle sobre seu corpo e diminuindo, ainda que discretamente, sua vulnerabilidade.
Diniz3030 Diniz SG, Salgado HO, Andrezzo HFA, Carvalho PGC, Carvalho PCA, Aguiar CA, et al. Abuse and disrespect in childbirth care as a public health issue in Brazil: Origins, definitions, impacts on maternal health, and proposals for its prevention. J Hum Growth Dev. 2015;25(3):377-84. ainda aponta que para a prevenção da violência obstétrica se faz necessário investir na formação de enfermeiros obstétricos e obstetrizes, pois são profissionais especializados em atender o parto fisiológico. Concomitantemente, as diretrizes nacionais de assistência ao nascimento recomendam o atendimento ao parto de risco habitual pelo enfermeiro obstétrico ou obstetriz, por apresentar maiores vantagens no que tange à diminuição de intervenções e ao maior grau de satisfação das mulheres2727 Balaskas J. Parto ativo: guia prático para o parto natural. 3a ed. São Paulo: Editora Ground; 2015..
Conclusão
A atenção ao parto deve ter como referência as necessidades e os interesses da mulher como sujeito de direitos, entendendo-se o parto como um processo fisiológico que integra a experiência sexual feminina. De maneira complementar, a compreensão do parto como evento fisiológico, antropológico, social, psicológico, e não apenas como ato médico, traz subjacente a ideia de que as mulheres devem ser o centro do processo, invertendo uma relação de poder historicamente sedimentada entre pacientes e profissionais da saúde. Romper com essa lógica implica a quebra de um modelo típico de assistência ao parto que é inseguro, visto que não está baseado em evidências científicas, além de romper com uma relação desigual entre pacientes e profissionais de saúde.
A superação da violência obstétrica passa, necessariamente, pela retomada do protagonismo das mulheres na gravidez, no parto e no pós-parto, como sujeitos de direitos que são. Em vista disso, é importante que as intervenções clínicas intraparto sejam realizadas apenas quando houver evidências de que vão melhorar o desfecho perinatal. Contudo, no modelo de atenção vigente nas maternidades, o parto é definido como um evento médico, com protagonismo do profissional de saúde e anulação da autonomia feminina.
Nesse contexto, são enfatizados aspectos patológicos e biológicos da parturição, e ainda é reforçada uma condição de superioridade do profissional, uma vez que possui saber científico sobre a parturiente, que se encontra na condição de paciente, e que, portanto, “necessita” da assistência do profissional.
Foi observado que o abuso físico, psicológico e verbal e a limitação da posição ao parir são as formas de violência obstétrica comumente identificadas pelos profissionais, e que estão enraizadas em questões de gênero, pois são ações que fazem a mulher não ter controle sobre seu próprio corpo e se torne subordinada, sendo convertida em objeto de intervenção profissional devido a sua condição de inferioridade perpetrada em nossa sociedade.
Constatou-se que a violência observada em maternidades é um problema multifacetado e multifatorial, enraizado nas práticas assistenciais por meio da perpetuação de uma visão patriarcal do saber médico sobre o corpo feminino. No contexto desta análise, considera-se necessário o investimento em aspectos como uma mudança curricular na formação da área da Saúde, incluindo debates sobre direitos sexuais e reprodutivos da mulher, educação permanente dos profissionais em atuação considerando as políticas de humanização na atenção ao parto, fiscalização de práticas hospitalares com a instituição de comitês de acompanhamento e monitoramento com integrantes da sociedade civil, entre outras estratégias.
Ainda destaca-se que o empoderamento feminino, mediante o conhecimento sobre os direitos maternos e políticas públicas de promoção à humanização do parto e ao nascimento, leva a um melhor reconhecimento das situações de violência vivenciadas pelas mulheres e colabora com a possibilidade de denúncia aos órgãos de fiscalização competentes, trazendo mais visibilidade a essa problemática, intimidando essa forma de violência velada contra a mulher e contribuindo para a exigência de mudanças na assistência ao parto.
- (c)São apresentados alguns resultados de uma monografia de conclusão de residência em Enfermagem Obstétrica, defendida em 2018, trabalho para o qual foram entrevistados profissionais de saúde (médicos e enfermeiros obstetras, além de residentes de Medicina e Enfermagem em Obstetrícia) sobre violência obstétrica praticada contra mulheres no trabalho de parto e no parto.
- (d)Manobra na qual é realizada uma pressão no fundo do útero com o pretenso objetivo de facilitar a saída do feto, reconhecida como uma prática obsoleta e contraindicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde, por não ter eficácia comprovada e muitas vezes provocar efeitos danosos relevantes, como ruptura de tecidos, fraturas na mulher e mesmo no bebê.
- Trajano AR, Barreto EA. Violência obstétrica na visão de profissionais de saúde: a questão de gênero como definidora da assistência ao parto. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200689https://doi.org/10.1590/interface.200689
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Set 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
06 Out 2020 - Aceito
19 Maio 2021