Resumos
A profilaxia pós-exposição sexual (PEPSexual), estratégia biomédica de prevenção ao HIV/Aids, foi implantada no Brasil em 2010. Considerando que os homens jovens constituem uma população com importante vulnerabilidade ao HIV, o estudo aborda as percepções de profissionais de saúde sobre comportamento sexual e a gestão de risco neste segmento, no contexto da busca e do uso da PEPSexual. A pesquisa foi realizada com abordagem qualitativa e segundo os referenciais conceituais de cuidado em saúde, masculinidades e juventudes. Participaram 19 profissionais de saúde, de cinco serviços especializados de cinco cidades brasileiras (São Paulo, Ribeirão Preto, Curitiba, Porto Alegre e Fortaleza). Observa-se a centralidade de julgamentos e tentativas de controle da sexualidade dos jovens, baseadas no estereótipo da noção de desvio, o que gera impacto negativo na relação profissional-usuário e, consequentemente, apresenta-se como importante barreira tecnológica para o cuidado em saúde.
Palavras-chave
Masculinidade; Jovens; Profilaxia pós-exposição sexual; HIV; Profissionais de saúde
Sexual Post-exposure prophylaxis (SexualPEP); a medical treatment to prevent HIV/Aids, began to be used in Brazil in 2010. Considering that young men are particularly vulnerable to HIV, this study explores health professionals’ perceptions of sexual behavior and risk management in this group in the context of seeking and using SexualPEP. We conducted a qualitative study using a conceptual framework based on health care, masculinities and youthfulness. Nineteen health professionals from five specialist services in five different cities (São Paulo, Ribeirão Preto, Curitiba, Porto Alegre and Fortaleza) participated in the study. The findings reveal the centrality of judgments and attempts to control the sexuality of young people based on the stereotypical notion of deviation, negatively affecting professional-patient relations and consequently constituting a significant technological barrier to health care.
Keywords
Masculinity; Young people; Sexual post-exposure prophylaxis; HIV; Health professionals
La profilaxis post-exposición sexual al VIH (PEPSexual), estrategia biomédica de prevención del VIH/Sida, se implantó en Brasil en 2010. Considerando que los hombres jóvenes constituyen una población con importante vulnerabilidad al VIH, el estudio aborda las percepciones de profesionales de salud sobre el comportamiento sexual y la gestión de riesgo en este segmento, en el contexto de la búsqueda y uso de la PEPSexual. La investigación se realizó con abordaje cualitativo y según los referenciales conceptuales de cuidado de salud, masculinidades y juventudes. Participaron 19 profesionales de salud, de cinco servicios especializados de cinco ciudades brasileñas (São Paulo, Ribeirão Preto, Curitiba, Porto Alegre y Fortaleza). Se observa la centralidad de juicios y tentativas de control de la sexualidad de los jóvenes, con base en el estereotipo de la noción de desviación, lo que genera impacto negativo en la relación profesional-usuario y, consecuentemente, se presenta como importante barrera tecnológica para el cuidado de la salud.
Palabras clave
Masculinidad; Jóvenes; Profilaxis post-exposición sexual; VIH; Profesionales de salud
Introdução
De acordo com o relatório da UNAIDS11 UNAIDS. Ending AIDS: progress toward the 90-90-90 targets. Genebra: UNAIDS; 2017., o número de novos casos de HIV no mundo reduziu 47%, desde seu pico em 1996, passando de 3,4 milhões para 1,8 milhão em 2017. Importante aspecto destacado neste relatório é a falta de acesso à educação sexual de qualidade, que contribuiu para limitar o conhecimento na população de adolescentes e jovens sobre as formas de transmissão do HIV. Mesmo nos países onde existem serviços de HIV disponíveis, muitos jovens não se beneficiam destes. Estigma, discriminação, leis e políticas restritivas, como a que exige o consentimento dos pais para jovens acessarem serviços de testagem para o HIV, criam barreiras importantes de acesso aos serviços de saúde para essa população.
No Brasil, entre 2007 e 2017, homens jovens entre vinte e 24 anos apresentaram uma taxa de detecção de HIV/Aids três vezes maior do que mulheres. Nesse mesmo período, o incremento dessa taxa em homens de 15 a 24 anos passou de 3,0 para 7,0 casos/100.000 habitantes22 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Boletim epidemiológico HIV/Aids. Brasília: Ministério da Saúde; 2019.. Nesse cenário, a prevenção combinada se configura como aposta de organismos nacionais e internacionais para um maior e mais duradouro impacto na epidemia de HIV. A prevenção combinada tem sido definida33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Prevenção combinada do HIV/Bases conceituais para profissionais, trabalhadores (as) e gestores(as) de saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2017. como a oferta e o uso de um conjunto de métodos e estratégias comportamentais, biomédicas e estruturais que se mostraram cientificamente efetivas para aumentar o grau de proteção contra o HIV. No entanto, preocupações em torno do uso de estratégias biomédicas, como a PEPSexual, surgem diante da possibilidade de desinibição das práticas sexuais, em um contexto de sentimento de maior proteção diante de métodos preventivos considerados mais efetivos44 Chang LW, Serwadda D, Quinn TC, Wawer MJ, Gray RH, Reynolds SJ. Combination implementation for HIV prevention: moving form clinical trial evidence to population-level effect. Lancet. 2013; 13(1):65-76.
5 Leal AF, Knauth DR, Couto MT. The invisibility of heterosexuality in HIV/AIDS prevention for men. Rev Bras Epidemiol. 2015; 18(1):143-55.-66 Mathias A, Santos LA, Grangeiro A, Couto MT. Thematic synthesis HIV prevention qualitative studies in men who have sex with men (MSM). Colomb Med. 2019; 50(3):201-14..
A PEPSexual, estratégia preventiva utilizando antirretrovirais, foi implantada no Brasil em 201033 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Prevenção combinada do HIV/Bases conceituais para profissionais, trabalhadores (as) e gestores(as) de saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.,77 Grangeiro A, Couto MT, Peres MF, Luiz O, Zucchi EM, Castilho EA, et al. Pre-exposure and postexposure prophylaxes and the combination HIV prevention methods (The Combine! Study): Protocol for a pragmatic clinical trial at public healthcare clinics in Brazil. BMJ Open. 2015; 5(8):e009021., sendo indicada para indivíduos com relações sexuais com maior probabilidade de infecção por HIV. Entre esses, tem sido prioritários homens jovens, especialmente aqueles que fazem sexo com outros homens. Isso ressalta a importância de amplificar o debate sobre como os serviços e profissionais de saúde estão preparados para abordar a prevenção combinada e a PEPsexual na população jovem nesta quarta década da epidemia e realizar um cuidado de modo a potencializar o vínculo e a retenção.
Quando voltamos nosso olhar para esses jovens, suas vulnerabilidades e comportamentos/práticas, podemos dizer que eles explicitam algo sobre si mesmos e o momento histórico que vivem. Se, no plano individual, para esses jovens é difícil imaginar um futuro e um papel/lugar no mundo, a sociedade constrói e valoriza riscos globais, estimulando a crença sobre a necessidade de gestão de riscos individuais e coletivos88 Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar; 2002.. Como bem salienta Connell99 Connell R. Crescer como masculino. In: Connell R. Gênero em termos reais. Moschovich M, tradutor. São Paulo: nVersos; 2016., a juventude aparece no debate público sobre a masculinidade em função do aumento do interesse social na violência, suicídio, mortes no trânsito e infecções sexualmente transmissíveis que ocorrem nessa população.
No contexto do oferecimento da PEPSexual e outras tecnologias de prevenção que utilizam antirretrovirais, os profissionais tendem a minimizar o risco de infecção nas relações sexuais relatadas pelos usuários1010 Maksud I, Fernandes NM, Filgueiras SL. Technologies for HIV prevention and care: challenges for health services. Rev Bras Epidemiol. 2015; 18(1):104-19.,1111 Cohen SE, Liu AY, Bernstein KT, Philip S. Preparing for HIV pre-exposure prophylaxis: lessons learned from post-exposure prophylaxis. Am J Prev Med. 2013; 44(102):S80-5.. Além disso, os próprios usuários apresentam recusa na adoção desses métodos por não identificar riscos, apesar de terem informações e saberem seus beneficios1212 Poynten IM, Jin F, Mao L, Prestage GP, Kippax SC, Kaldor JM, et al. Nonoccupational postexposure prophylaxis, subsequent risk behaviour and HIV incidence in a cohort of Australian homosexual men. AIDS. 2009; 23(9):1119-26..
Há de se considerar também que as pessoas vivenciam de forma diferente a exposição ao HIV e um mesmo indivíduo não tem a mesma exposição em diferentes contextos, em diferentes relações e em diferentes pontos de sua trajetória, sendo então fundamental entender as diferenças inter e intragrupos1313 Delor F, Hubert M. Revisiting the concept of ‘vulnerability’. Soc Sci Med. 2000; 50(11):1557-70.,1414 Ayres JRCM, França Júnior I, Calazans GJ, Saletti Filho HC. O conceito de Vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czereshia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p. 117-39.. No campo da Saúde, o conceito de vulnerabilidade tem buscado aprofundar a compreensão dessas situações ao tentar superar abordagens que fragmentam ou abstraem a realidade de seu contexto cultural, histórico e social, como o enfoque tradicional de risco, utilizado em parte dos estudos epidemiológicos e em programas de prevenção focados, basicamente, na probabilidade de adoecimento de grupos populacionais ou por apresentar determinado fator de risco. Assim, sem negar o “risco”, o conceito de vulnerabilidade toma as possibilidades, individuais ou coletivas, de responder (empoderamento) ou de se infectar e morrer (vulnerabilidade) pelo HIV como resultantes da articulação entre dimensões referentes ao indivíduo, ao programático, entendido com o conjunto das políticas públicas, e ao social1313 Delor F, Hubert M. Revisiting the concept of ‘vulnerability’. Soc Sci Med. 2000; 50(11):1557-70.
14 Ayres JRCM, França Júnior I, Calazans GJ, Saletti Filho HC. O conceito de Vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czereshia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p. 117-39.-1515 Ayres JRCM, Calazans GJ, Saletti Filho HC, Franca Junior I. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Fiocruz; 2006. p. 375-418..
Nesse contexto, para promover o acesso à PEPSexual, considera-se importante que os serviços e os profissionais promovam o diálogo e o acolhimento, de forma que a prática do cuidado e da prevenção conjugue os saberes técnicos e as experiências vividas, olhando para a população como sujeitos de direitos. Isso decorre do fato de que a prática dos serviços e profissionais de saúde favorece ou dificulta o acesso ao cuidado integral à saúde. Diante do que se apresenta, este artigo tem como objetivo conhecer a percepção dos profissionais de saúde acerca de homens jovens, de 18 a 24 anos, que buscam a PEPSexual no contexto da prevenção ao HIV, com ênfase para as percepções sobre os comportamentos e as práticas sexuais que motivam a busca da profilaxia e os valores morais envolvidos no atendimento a essa população.
Metodologia
Os dados empíricos analisados neste artigo foram produzidos no componente qualitativo do Estudo Combina77 Grangeiro A, Couto MT, Peres MF, Luiz O, Zucchi EM, Castilho EA, et al. Pre-exposure and postexposure prophylaxes and the combination HIV prevention methods (The Combine! Study): Protocol for a pragmatic clinical trial at public healthcare clinics in Brazil. BMJ Open. 2015; 5(8):e009021., que investiga a efetividade de métodos preventivos, incluindo PEP e PrEP, ofertados em serviços de saúde públicos em cinco cidades brasileiras, mais especificamente a partir de entrevistas semiestruturadas realizadas com profissionais de saúde que atuam no cuidado direto dos usuários que buscaram PEPSexual nos serviços participantes do estudo.
Optou-se por utilizar entrevistas semiestruturadas pela possibilidade de captar os relatos de experiência narrados, representados e recontados pelos profissionais de saúde acerca das demandas e necessidades de saúde dos usuários atendidos, bem como da experiência em implementar e atuar no serviço de PEPSexual. Foram realizadas 19 entrevistas nas cidades de Porto Alegre (RS), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), Ribeirão Preto (SP) e São Paulo (SP). Os serviços apresentavam variações em termos do modelo organizacional e setores nos quais os profissionais atuavam, como ambulatório de HIV, hospital de doenças infecciosas e centro de testagem e aconselhamento.
As entrevistas foram conduzidas a partir do roteiro contendo a experiência e o cotidiano do profissional no atendimento de PEPSexual, as percepções sobre o perfil das pessoas que buscam a profilaxia, particularmente os jovens, e percepções sobre a PEPSexual no âmbito da política de prevenção combinada.
As entrevistas ocorreram entre março e dezembro de 2015 e foram conduzidas por pesquisadores treinados, em locais privativos nos serviços de saúde, e tiveram tempo de duração média de 45 minutos. Novas entrevistas deixaram de ser realizadas quando houve suficiência para elucidar o fenômeno pesquisado, considerando o critério de saturação1616 Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qual. 2017; 5(7):1-12.. As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na integra, respeitando expressões coloquiais, gírias e pausas. A verificação da acurácia das transcrições foi realizada por pesquisares do estudo. Foi utilizado o software QSR Nvivo® 11 para organização e categorização temática dos depoimentos.
O método de interpretação de sentidos foi utilizado para a análise. Baseado em princípios hermenêutico-dialéticos, este método visa interpretar o contexto, as razões e as lógicas de falas. Na trajetória analítico-interpretativa, foram percorridos os seguintes passos: (a) leitura compreensiva, visando à impregnação, visão de conjunto e apreensão das particularidades dos depoimentos; (b) identificação e recorte temático; (c) identificação e problematização das ideias explícitas e implícitas nos depoimentos; (d) busca de sentidos socioculturais subjacentes às falas dos participantes; (e) diálogo entre as ideias problematizadas, literatura sobre o tema; e (f) elaboração de síntese interpretativa1717 Gomes R, Souza ER, Minayo MCS, Silva CFR. Organização, processamento, análise e interpretação de dados: o desafio da triangulação. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 185-221.. A análise foi fundamentada, a partir do referencial teórico norteador da pesquisa, com destaque para a vulnerabilidade, o cuidado em saúde e categorias operacionais da prevenção combinada e da gestão de risco.
Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e seus nomes foram modificados na transcrição. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, protocolo n. 411/2018.
Perfil dos profissionais
Foram realizadas 19 entrevistas de profissionais da equipe multiprofissional. Entre essas, nove eram da área médica (infectologistas e não infectologistas), sete da Enfermagem (enfermeiros e técnicos) e três da Psicologia. A maioria dos profissionais era do sexo feminino (16), com idade entre 29 e sessenta anos, e um dos profissionais trabalhava há 26 nos serviços. Oito dos profissionais são de São Paulo, cinco de Ribeirão Preto, quatro de Curitiba, dois de Fortaleza e um de Porto Alegre (quadro 1).
Resultados e discussão
Duas categorias emergiram da análise do material empírico: o olhar sobre o usuário de PEP e as percepções sobre os motivos que levam homens a procurarem a PEP, norteadas por avaliações subjetivas, valorativas e morais.
Percepções sobre os usuários e os motivos de busca por PEP
A percepção dos profissionais sobre o perfil geral das pessoas que buscam PEPSexual se caracteriza por homens, especialmente aqueles que fazem sexo com homens (HSH), brancos, com alta escolaridade e que tiveram relações sexuais com parcerias casuais. Entre os entrevistados, oito destacaram os jovens, explicitando características gerais destes, independentemente de terem procurado a PEPSexual uma ou mais vezes.
Então, a maioria são homens que fazem sexo com homens... E que tiveram uma situação de exposição ocasional e, na maioria das situações, o parceiro revelou um diagnóstico posteriormente à exposição e aí eles vieram procurar pra fazer o PEP. Jovens, homens jovens. Eu atendo mais brancos. É esse perfil. Homens que fazem sexo com homens, com parceiros ocasionais, jovens. Geralmente, pessoas que têm uma informação um pouco melhor, né?
(Daniela, São Paulo, Medicina, 34 anos)
Remetendo às características gerais desses jovens, é possível perceber que, apesar dos motivos de busca de PEP identificados pelos profissionais e das vulnerabilidades que perpassam a vida dos jovens, os que chegam ao serviço fazem parte de um grupo com mais condições/recursos de acessar as possibilidades de prevenção, seja em função da escolaridade, classe, raça/cor, gênero e/ou orientação sexual.
A percepção de uma predominância de jovens HSH nos serviços surge com o olhar do profissional sobre o “impulso” de se arriscarem e a parceria sexual casual como determinante para a busca da PEP. Entretanto, como apontado por La Mendola1818 La Mendola S. O sentido do risco. Tempo Soc. 2005; 17(2):59-91., no que remete a práticas de risco, é necessária a compreensão de que estas se apresentam também como busca de responsabilidades e produto do impulso de se afirmarem como sujeitos autônomos e dotados de poder, não se restringindo a um “impulso” de busca por emoções.
Eu acho que é meio padrão. É HSH, né? É um pessoal que não tem parceiro fixo e se joga, né? Esse é o grande problema.
(Márcia, São Paulo, Enfermagem, 50 anos)
As percepções dos profissionais sobre os motivos que levaram os homens jovens a buscar a PEP são conformadas por referências subjetivas, valorativas e morais, as quais acabam permeando uma construção de perfil sobre os jovens e seus motivos.
Assim, a partir do conjunto das falas, foi possível identificar uma visão dos profissionais baseada em “grupos de risco” e em uma sexualidade tida como “desviante”. Como colocado por Becker1919 Santos LA, Couto MT, Mathias A, Grangeiro A. Hombres heterosexualmente activos, masculinidades, prevención de infección por VIH y búsqueda de profilaxis posexposición sexual consentida. Salud Colect. 2019; 15(1):e2144., “outsiders” seriam pessoas que estão além das fronteiras e limites socialmente estabelecidos por determinado grupo social, com comportamentos que transgridem regras impostas. No que remete à epidemia de HIV, isso está explícito na história da epidemia, quando nos deparamos com suas fases iniciais, com foco em grupos e comportamentos1414 Ayres JRCM, França Júnior I, Calazans GJ, Saletti Filho HC. O conceito de Vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czereshia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p. 117-39.. Entretanto, no cenário de novas estratégias de prevenção, como a prevenção combinada, a maior efetividade da resposta à epidemia requer ações sensíveis às demandas e especificidades dos sujeitos e seus contextos33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Prevenção combinada do HIV/Bases conceituais para profissionais, trabalhadores (as) e gestores(as) de saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.,1919 Santos LA, Couto MT, Mathias A, Grangeiro A. Hombres heterosexualmente activos, masculinidades, prevención de infección por VIH y búsqueda de profilaxis posexposición sexual consentida. Salud Colect. 2019; 15(1):e2144..
O aspecto referente às informações que os jovens dispõem sobre a prevenção está fortemente presente nas narrativas dos profissionais. Como exemplo, apresenta-se a fala da profissional médica, que se diz intrigada pelo fato de os jovens que buscam PEPSexual serem aqueles que, teoricamente, teriam mais informação sobre a prevenção do HIV e, ao mesmo tempo, serem aqueles que mais expõem ao HIV. Em sua fala, destaca a ausência do medo por parte dos jovens como algo intrigante. Mas a mesma profissional não considera, por exemplo, que a informação e a prevenção não deveriam perpassar pelo medo, mas sim pelo dimensionamento das vulnerabilidades individuais e sociais na proposição do cuidado à saúde2020 Zucchi EM, Grangeiro A, Ferraz D, Pinheiro TF, Alencar T, Ferguson L. Da evidência à ação: desafios do Sistema Único de Saúde para ofertar a profilaxia pré-exposição sexual (PrEP) ao HIV às pessoas em maior vulnerabilidade. Cad Saude Publica. 2018; 34(1):e00206617..
E é exatamente isso que me intriga. Porque é o grupo que teoricamente tem mais acesso à informação, né? Teve um mês que eu atendi 11 casos novos de homens com esse perfil: a maioria estudante universitário, estudante de Farmácia, estudante de Psicologia, estudante de Enfermagem. Não sei se eles perderam o medo da infecção, não sei.
(Lilian, Ribeirão Preto, Medicina, 32 anos)
Nas falas a seguir, o profissional de formação em Psicologia distingue dois grupos de jovens homossexuais que chegam ao serviço, no que tange à informação. Um deles, o dos mais jovens, possui a informação, mas, ainda, não a incorporou. Nesse grupo, a dificuldade da incorporação do preservativo de forma consistente é problematizada. Já o segundo grupo, por possuir recursos de acesso à informação e ao serviço de saúde, parece ter menos problemas para efetivar a prevenção.
Eu acho que tem um outro grupo de PEP que é gay muito jovem e que não sabe a prevenção primária. Acho que, assim, tecnicamente passou pela informação, mas não assimilou. Então sexo oral é a grande transmissão dessas pessoas. Acho que tem um pessoal mais jovem que sabe do preservativo, mas assim... é muito cru na coisa. Muito.... ah, só no sexo anal penetrativo [seria risco], entendeu? Tem muito jovens aí, uma coisa básica de prevenção, que eu acho que não sabem. Tá muito confuso, ainda. E tem um público HSH que já sabe, já tem informação, mas já vem aqui sabendo o que veio fazer. Vem direto com o pedido.
(Fábio, São Paulo, Psicologia, 47 anos)
O diálogo com os jovens parece afetado em função do uso de preservativo no sexo oral não ser uma prática incorporada por estes, mas tida como primordial para os profissionais que avaliam os riscos de infecção. Sobressaem também a preocupação com o fato de muitos jovens estarem em fase de experimentação da sexualidade e com pouca experiência de vida sexual.
Tem jovens HSH que quando eu falo do oral... quando eu falo assim: “Quando foi sua exposição?” “Ah, foi dois anos.” “No último ano você não teve nenhum oral? Você não fez nem recebeu sem preservativo?” “Ah, tive. Há duas semanas.” Eles não consideram oral. Eu pergunto: “Ejaculou na sua boca?” “Ah, ejaculou.” “Têm risco do HIV. O sêmen contém o vírus HIV.” E alguns.... Tem uns que riem da sua cara. Você tá dando orientação... “-Não vou fazer. Ah, ninguém usa.” Eu falo: “-Meu Deus, eu tô passando toda a informação, querendo ajudar...” [...] O risco é pequeno do oral com ejaculação? É pequeno. Mas, assim, esses jovens que eu tô pegando, têm vida ativa há pouco tempo.
(Vanessa, São Paulo, Psicologia, 39 anos)
A dimensão relacional, entre profissionais e usuários, evidencia um conflito geracional e o fato de ser pautada, muitas vezes, pelo tabu que envolve a sexualidade. Considerando que pertencer a uma geração implica em compartilhar uma mesma situação social que altera o tipo de herança cultural e as formas de pensar e viver, pode-se compreender que os processos contemporâneos de regulação das práticas sexuais e das expressões de gênero acabam por instituir o perigo sexual como foco de intervenção2121 Becker H. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar; 2008..
De modo a ilustrar o argumento, lançamos mão de uma fala sobre uma experiência de swing vivenciada por um casal de jovens, na qual a parceria extracasal foi com uma travesti. Nesse relato, é visível que as concepções da profissional com formação em Psicologia se baseiam no entendimento da prevenção com base nos “grupos de risco”. Entretanto, há preocupação da profissional com o fato do não uso de preservativo entre o casal ter dificultado o uso com a pessoa fora do relacionamento estável.
Eu peguei hoje é um casal de jovens, 18 anos. Foram ter uma aventura, fazer relação sexual a três, né? Com uma travesti. Os dois se consideram hétero, né? Eles são um casal de namorados que quis fazer um swing, então teve relação sexual anal, oral, fez ativa, né? Ela fez com a trans e ela ejaculou, a trans. Ejaculou na boca dela. Então aí eu mostrei o papelzinho pra ela. Tava aqui... Ah, então, tava aqui oral... Ah, a parceira... Deixa eu ver aqui... Alta, alta, alta. Considerar. Parceira sorologia desconhecida, população de alta prevalência, considerar, né [uso de PEPSexual]. Eu falei pra ela “Olha, então você teve, é importante você usar preservativo. Você já fez o teste com o namorado anteriormente?” Eles não usam preservativo.
(Vanessa, São Paulo, Psicologia, 39 anos)
Outra fala exemplar explicita os atravessamentos de valoração dos profissionais – quanto a dimensões geracionais, de sexualidade e de prazer que conformam as percepções sobre risco e cuidado em prevenção ao HIV e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) – e remete a uma experiência sexual de um jovem com seu professor da faculdade, no intervalo da aula. Nesse caso, o profissional de Enfermagem estranha a naturalidade com que o jovem relata detalhes da experiência, especialmente em função desta ter ocorrido em um ambiente institucional, com uma parceria mediada por uma relação de poder e hierarquia. O reforço do profissional à “prática liberal vivenciada” e ao conflito geracional está posto.
O cara chegou aqui falando... jovem, né? HSH, mas não parecia HSH, careca, todo despojado, ali, o jeitão dele. E era [caso de indicar] PEP. Então, ele fez sexo com o cara que dá aula pra ele na faculdade. Olha só. O cara tava na aula, foi com o professor no banheiro, fez sexo com o professor. Fiquei impressionado com a cena. Rompeu a camisinha. E aí ele ficou angustiado porque sujou, porque não sei o que, porque pá-pá-pá, né? E assim, isso me chamou muito a atenção, como que o cara vai e transa com o professor e depois vai assistir a aula do cara, né? Então, o jeito da pessoa falar, assim, com maior naturalidade, né? Muito moderno isso pros meus 46 anos de idade.
(Carlos, São Paulo, Enfermagem, 46 anos)
O olhar sobre o jovem como desviante se constrói a partir de práticas sexuais tidas como “liberais”, com presença de parcerias casuais, nas quais o uso excessivo de substâncias psicoativas (álcool e outras drogas) também aparecem. Nesse contexto, é importante destacar o momento da juventude como experimentação1919 Santos LA, Couto MT, Mathias A, Grangeiro A. Hombres heterosexualmente activos, masculinidades, prevención de infección por VIH y búsqueda de profilaxis posexposición sexual consentida. Salud Colect. 2019; 15(1):e2144.,2222 Le Breton D. Passions du risque. Paris: Métailié; 2000. e o papel do profissional no cuidado em saúde, no qual a dimensão técnica do acolhimento e da orientação não seja pautada na moral. Nesse sentido, a definição de Ayres2323 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(3):16-29. de cuidado é necessária, e não apenas oportuna, na medida em que designa uma atenção à saúde imediatamente interessada no sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou mental, visando à promoção, proteção ou recuperação da saúde2323 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(3):16-29..
Do ponto de vista existencial e das práticas de saúde, é necessário também considerar a construção da identidade pelo cuidado, pois é a partir das relações e interações que cada pessoa se reapropria do seu ser. A partir do cuidado, da humanização e da integralidade é possível nortear as relações entre sujeito, paciente e profissional de saúde. Assim, busca-se um encontro com usuário e serviço, efetivado por meio da tecnologia, que se fortalece no cuidado e considere as vulnerabilidades envolvidas nos contextos, relações e no nível mais individual, aumentando assim a flexibilidade e dinamismo da técnica e impedindo que a tecnologia se cristalize como tal2323 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(3):16-29..
Na configuração dos julgamentos morais dos profissionais de saúde em relação às práticas sexuais dos jovens, a heteronormatividade emerge como produtora de concepções que restringem o reconhecimento de outra orientação sexual. Ainda como exemplo, um dos profissionais entrevistados estabelece algumas diferenças no perfil dos jovens HSH e dos heterossexuais que chegam ao serviço. Esse primeiro grupo é apontado pelo uso excessivo de álcool, o que parece dificultar a manutenção da prevenção, prevalecendo o desejo sexual. Já o segundo grupo, de heterossexuais, é apontado pelo entrevistado com destaque nas parcerias com profissionais do sexo, sendo que a busca pelo serviço muitas vezes vai além da prática sexual em si, sendo focada, principalmente, em função da parceria estar em um “grupo de risco”. Isso reforça que muitas vezes o estigma socialmente construído em torno das profissionais do sexo se sobressai na avaliação de risco do profissional no contexto clínico-assistencial.
Eu nem mais pergunto se consome droga [entrevistadora ri], eu vou direto no álcool. Que, assim, parece que a situação de risco, primeiro começou no álcool. E aí eu acho que isso, no sentido de sistema nervoso central, cê perdeu o raciocínio, tá com tesão, surgiu a cena, você vai transar, né? Isso quando é HSH. Os heterossexuais... uma boa parte, a maioria é relação com profissional do sexo, garota de programa, e não é de baixo nível, não. O hétero tá mais nessa linha, assim, de uma relação extraconjugal ou com, a maioria, com profissional do sexo. Às vezes, usou preservativo. Mas a situação da transa, da garota ter se apresentado como garota de programa, que traz ele à PEP aqui. Então, às vezes, ele traz uma cena de “Ah, eu fiz sexo oral nela. Depois ela falou pra mim que era garota de programa. Mas a gente terminou, eu tirei e resvalei na vagina dela”. Lógico, vários que rompeu e aí perdeu a cabeça com a menina e teve a transa lá. Mas alguns trazem a coisa meio de “é garota de programa”. O risco foi a garota de programa, não foi a exposição sexual, entendeu?
(Fábio, São Paulo, Psicologia, 47 anos)
O mesmo profissional ainda salienta sobre a importância da discussão com os homens heterossexuais sobre o risco fora das relações sexualmente estáveis com as profissionais do sexo. Entretanto, permanece o olhar sobre uma sexualidade exacerbada, para ambos os grupos, hétero ou homossexual, remetendo a uma impulsividade masculina nos desejos sexuais.
Assim, a pessoa já teve, no último ano, dez, quinze parceiros. Assim, a três, na sauna e tá com parceiro fixo e... tá muito bem na putaria [entrevistadora ri]. Assim, aquela PEP ou aquele risco, talvez, naquele dia caiu a ficha. “Pô bicho, tô vacilando, deixa eu...”. Eu acho que um grupo tá transando pra caramba. Com muitas aspas, sem sentido moral, tá muito fácil cê ter relação sexual. E é legal discutir isso com os homens heterossexuais. “Mas por que você veio com a puta e não veio com as mulheres?” Agora o grupo do jovem gay, eu acho que tá muito pilhado. Mas também tá transando pra dedéu.
(Fábio, São Paulo, Psicologia, 47 anos)
Ainda no que remete às relações com parceiras profissionais do sexo, também é salientada a dificuldade dos jovens heterossexuais em lidar com a prevenção às ISTs e ao HIV nesse contexto, sendo colocada como alternativa para a prevenção o sexo monogâmico, com parceria conhecida, além da testagem diagnóstica. O “comportamento de risco”, com enfoque no não cuidado com a saúde, de forma autodestrutiva, é colocado pelo profissional como algo que vai além da educação preventiva e está relacionado à saúde mental e ao uso de substâncias psicoativas. Apesar de considerarmos o uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas como um dificultador para essas prevenções, o agrupamento de “comportamentos de risco” vem ser associado à visão de rebeldia do jovem e ao recurso do medo como forma de educar para a prevenção.
Né, porque normalmente hoje em dia aqui é o seguinte: se tu te apavora de ir no cabaré, mesmo não tendo se exposto, vem aqui suando e enfartando, esse tipo de atividade não é para ti, né? Pega uma, arruma uma namorada, testa, né, se der faz uma combinação de ninguém transar fora da relação, poder trazer para gente testar para ver se tem alguma coisa ou não, porque seria uma situação de menor risco do que pegar uma profissional da rua, né, ou transar com alguém que tu não sabes quem é, né? Tem gente que às vezes vem com a mãe e a gente diz: “É isso aí foi um pequeno, né, mas é legal o susto, né, saber que ele podia ter pegado isso, aquilo e aquele outro, engravidado ou não ou sei lá o quê, né? E serve como um, né, um medão inicial para ver se o cara dali engrena, né?
(Artur, Porto Alegre, Medicina, 53 anos)
Embora não tenha aparecido de forma preponderante nos relatos dos profissionais, ainda assim chama a atenção uma educação para a prevenção permeada por broncas e pelo recurso ao medo. O que parece refletir em uma não aceitação dos jovens das orientações colocadas pelo profissional, sendo estas reações dos usuários caracterizadas como uma “animosidade” diante da tentativa de controle da sexualidade destes, como fica claro na fala desta médica:
[...] eu acho que tem que associar o PEP com a epidemia de Aids e simplesmente a situação muito importante desses jovens não está aí pra nada com relação ao HIV. “Tem cura e você não tem nada que se meter na minha vida se eu sou homossexual ativo ou passivo, se eu transo com seis ou com um. Você não tem nada que se meter na minha vida”. Quando uma pessoa vem pela segunda vez, eu entro: “Olha, você acha que tem que tomar um pouco mais de cuidado? Afinal, as pessoas a sua volta têm o HIV e não tão nem preocupados em usar camisinha? Você tem que se cuidar. Olha aí você já fez vários exames. Todos negativos, mas você quer que vire positivo?” E aí toma na cabeça.
(Tatiane, São Paulo, Medicina, 56 anos)
A possível reação dos jovens diante da tentativa de controle da sexualidade por parte dos profissionais de saúde parece refletir a falta de confiança e vínculo na relação com tais profissionais, em função dos julgamentos a que estão submetidos. Sendo o serviço de saúde um local de acesso à medicação e/ou a tecnologias profiláticas, a postura dos profissionais na abordagem dos usuários jovens, particularmente os homens jovens, constitui-se enquanto importante barreira tecnológica para a produção do cuidado em saúde. Do ponto de vista do outro polo da relação – os profissionais de saúde –, as posturas dos jovens são vistas com desconfiança, inclusive em relação à correta manutenção do tratamento com a PEPSexual e a veracidade das situações relatadas. As práticas sexuais vivenciadas pelos sujeitos, ao serem consideradas como um comportamento desviante, que não engloba as questões subjetivas do exercício da sexualidade e restringe o sujeito à racionalidade, impossibilitam a atuação profissional a partir de uma perspectiva de um direito. Concomitantemente, proporciona a busca pelo controle da vida sexual dos sujeitos ao também negar a dimensão subjetiva das práticas de saúde2424 Filgueiras SL, Maksud I. Da política à prática da profilaxia pós-exposição sexual ao HIV no SUS: sobre risco, comportamentos e vulnerabilidades. Sex Salud Soc. 2018; (30):282-304..
A fala a seguir, de uma profissional da Enfermagem, enfatiza a dificuldade desta em certificar se o jovem usuário disse a verdade sobre suas experiências sexuais e a consequente possibilidade de infecção pelo HIV.
Eu tenho um paciente.... em julho ele sofreu uma PEP [PEPSexual]. Veio, pegou a medicação e nunca mais apareceu. Aí, em outubro ele sofreu uma outra PEP [PEPSExual], uma outra exposição. Dois dias depois, ele sofreu outra exposição, dentro da PEP. Aí, ele veio falar comigo. Eu falei que não tinha sentido entrar com PEP em cima da PEP porque ele tava no segundo dia de PEP. Então eu falei: “Olha, cê vai fazer os 28 dias”. Tá, ele tomou os 28 dias. Diz que tomou. Isso foi em outubro, novembro, dezembro... sessenta dias. Ele atrasou. Ele não veio no dia que eu marquei. E em dezembro ele tava negativo. Aí, em fevereiro, ele sofreu uma outra exposição, aí deu positivo. E ele veio me procurar, ele chorou, ele ficou mais de uma hora comigo na minha sala. Aí, eu perguntei: “Cê não sofreu nenhuma exposição de dezembro até fevereiro?” “Não”. Então, eu não sei se ele soroconverteu mesmo, se ele tomou a medicação corretamente... eu acho que ele teve outras exposições e não quer falar.
(Márcia, São Paulo, Enfermagem, 50 anos)
A pesquisa também apontou para experiências de busca de efetivação de uma aproximação, estabelecimento de vínculo, cuidado com o usuário e, principalmente, para a dimensão de alteridade e empatia na relação com o paciente. Uma profissional destaca que, apesar de algumas experiências vivenciadas pelos jovens serem impactantes, prevalece sua preocupação em estabelecer um vínculo de confiança, que não seja baseada no medo, mas sim no acolhimento, para efetivar o trabalho preventivo e possibilitar que o jovem volte ao serviço caso necessite.
Moralmente, eu fiquei um pouco impactada na questão do swing, né? E o casal, né? É um pouco forte, né? Mas foi muito bem atendido, graças a Deus. E o retorno foi bom. Colheram sangues nos dias corretos, vieram no retorno nos dias corretos. Isso é o que espero que seja feito, cê entendeu? Não assustar o paciente e ele acha que é mera questão esse tratamento. Pra mim é muito maior... eu tenho uma afinidade muito grande com os meninos que vêm. Eles contam a vida deles pra mim. Eles contam à medida que eu também dou espaço. Então a gente cria um laço bom, pra futuramente ele voltar
(Marcela, Ribeirão Preto, Enfermagem, 39 anos)
Considerações finais
Observamos que os profissionais de saúde compreendem a busca da PEPSexual como uma falha do indivíduo no cuidado à saúde, transformando esta busca e seu motivo em atos errados e não desejáveis do ponto de vista da “saúde”. Essa compreensão é construída pelos profissionais a partir de concepções normativas da sexualidade e de abordagens preventivas baseadas em um conceito tradicional de risco. Ao fazer isso, os profissionais tornam inconciliável o motivo que levou a busca da PEP e a sexualidade em todas as dimensões, como desejo, prazer, imprevistos e arranjos afetivos. Criam uma separação entre a PEP, a prática preventiva e o cuidado com a saúde, caracterizada, nesse caso, pela busca do indivíduo por um método preventivo, a PEP, em um serviço de saúde. Do ponto de vista prático, essa compreensão do profissional o impede de realizar o atendimento da PEP em uma abordagem de atenção integral à saúde sexual e, ao julgar, responsabilizar e culpar, compromete a adesão ao método preventivo e o vínculo e a permanência deste indivíduo no serviço de saúde.
Assim, tendo em vista o contexto da prevenção combinada, tem-se um pano de fundo no palco das relações entre distintos sujeitos – os homens jovens e os profissionais de saúde – em configurações de poder, autoridade e julgamentos morais no contexto da busca e uso da PEPSexual.
Considerando as percepções dos profissionais de saúde acessadas pela pesquisa realizada, é possível perceber que as dimensões subjetivas, valorativas e morais ainda permanecem pautadas pela lógica dos grupos e comportamentos de risco, iniciais na história da epidemia.
Destaca-se, entretanto, que as próprias normativas2525 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância e Controle das Infecções Sexualmente transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para Profilaxia Pós Exposição (PEP) de risco à infecção pelo HIV, IST e hepatites virais. Brasília: Ministério da Saúde; 2018. do Ministério da Saúde para a oferta de PEP estão fortemente baseadas no conceito tradicional de risco para definir a indicação da profilaxia, sendo critérios para essa indicação os grupos populacionais com maior risco de estarem infectados e as práticas sexuais que ensejam o maior risco de infecção. Embora as diretrizes aparentemente induzam, assim, uma abordagem baseada no risco, há de se lembrar que conceitos estruturantes da resposta ao HIV no Brasil, como a vulnerabilidade e os direitos humanos, antes de negar o risco, o incorporam como uma das dimensões a serem consideradas no desenho das políticas e nas práticas de promoção da saúde, que devem orientar a atuação de profissionais.
Sendo assim, os relatos dos profissionais apresentam permanências baseadas no julgamento e estigma em relação às práticas sexuais dos jovens que buscam pelo serviço de saúde, muitas vezes tidos como envolvidos em comportamentos desviantes, exacerbados e descomprometidos com a prevenção. Portanto, o enfoque aqui apresentado, a partir de uma análise mais compreensiva da vulnerabilidade, buscou ampliar o olhar para a importância de uma abordagem de cuidado em saúde que vá além do enfoque generalizante de grupos, práticas e comportamentos.
Entre as permanências é enfática a presença de informação ser considerada como fator que possibilita por si só a prevenção ao HIV, além da visão dos jovens como “desviantes”, principalmente no que remete a determinados grupos, como os HSH, sendo que suas práticas sexuais são tidas como exacerbadas. Somado a isso, a referência ao uso abusivo de substâncias lícitas e ilícitas emerge como determinante central nas situações que levam à busca de PEP. Configuradas tais percepções, não é de se estranhar que o medo e a “bronca” sejam utilizados como formas de educar para a prevenção, norteando assim a relação profissional-usuário pautada na falta de empatia e em ações assistenciais que não favorecem o estabelecimento de vínculo e a retenção dos usuários à PEPSexual. Nesses termos, configura-se um quadro em que as posturas dos profissionais acabam por representar importante barreira para o cuidado em saúde.
Financiamento
A pesquisa contou com financiamento do Ministério da Saúde, código n. 027941/2012 e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Edital Universal, código n. 456551/2014-0.- Massa VC, Grangeiro A, Couto MT. Profissionais de saúde frente a homens jovens que buscam profilaxia pós-exposição sexual ao HIV (PEPSexual): desafios para o cuidado. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200727 https://doi.org/10.1590/interface.200727
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Ago 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
19 Out 2020 - Aceito
10 Maio 2021