Resumos
Objetivou-se caracterizar o impacto das experiências de assédio sexual com relação ao cotidiano e à prática regular de atividades físicas das mulheres praticantes de musculação. O estudo foi realizado em quatro academias de ginástica de Iguatu, Ceará, Brasil, tendo a colaboração de 25 mulheres praticantes de musculação, que responderam a um questionário sociodemográfico e participaram de uma entrevista semiestruturada. A análise das entrevistas foi por meio da análise de conteúdo. As experiências de assédio sexual vivenciadas pelas mulheres na academia de ginástica ocorreram por olhares invasivos, perseguidores, constrangedores, direcionados às partes íntimas dos corpos durante a execução dos movimentos e conversas insistentes abordando assuntos considerados inapropriados, comprometendo o cotidiano das praticantes de musculação, afastando-as da prática regular de exercícios físicos e levando-as a evitar vínculos com o público masculino como forma de se proteger.
Palavras-chave
Assédio sexual; Mulheres; Musculação; Impacto; Experiências
This study aimed to characterize the impact of the sexual harassment of women who practice strength training on their everyday life and the practice of regular physical activity. The study was conducted with 25 women who practiced strength training in four gyms in Iguatu in the State of Ceará, Brazil using a sociodemographic questionnaires and semi-structured interviews. The content of the interviews was analyzed using content analysis. The respondents’ experiences of sexual harassment in the gyms included embarrassing and uncomfortable leering and staring at intimate body parts during exercise and insistent conversations and inappropriate comments, negatively affecting their everyday life and pushing them away from the practice of regular physical exercise, seeking to avoid contact with men as a way of protecting themselves.
Keywords
Sexual harassment; Women; Strength training; Impact; Experiences
El objetivo fue caracterizar el impacto de las experiencias de acoso sexual con relación al cotidiano y a la práctica regular de actividades físicas de las mujeres practicantes de culturismo. El estudio se realizó en cuatro gimnasios de Iguatu, Ceará, Brasil, con la colaboración de veinticinco mujeres practicantes de culturismo que respondieron un cuestionario sociodemográfico y participaron en una entrevista semiestructurada. El análisis de las entrevistas fue por medio del análisis de contenido. Las experiencias de acoso sexual vividas por las mujeres en el gimnasio tuvieron lugar por medio de miradas invasivas, perseguidoras, intimidadoras, dirigidas a las partes íntimas de los cuerpos durante la realización de los movimientos y de conversaciones insistentes abordando asuntos considerados inadecuados, perjudicando el cotidiano de las practicantes de culturismo, apartándolas de la práctica regular de ejercicios físicos y buscando evitar vínculos con el público masculino como forma de protegerse.
Palabras clave
Acoso sexual; Mujeres; Culturismo; Impacto; Experiencia
Introdução
O assédio tem sido uma temática bastante discutida e abordada na atualidade, trazendo discussões e reflexões em diferentes campos da sociedade. Nesse sentido, assediar significa “importunar, molestar, aborrecer, incomodar, perseguir com insistência inoportuna. Assédio quer dizer cerco, limitação”11 Martins SP. Assédio moral. Rev Fac Direito São Bernardo do Campo. 2008; 13:434-48. (p. 434). Corroborando, Diniz et al.22 Diniz LL, Souza LGA, Conceição LR, Faustini MR. Assédio sexual no ambiente de trabalho. Rev Cient Unisalesiano. 2011; 2(5):76-87. ressaltam que ofende a honra, a imagem, a dignidade e a intimidade da pessoa.
O assédio sexual é uma manifestação sexual ou sensual alheia à vontade da pessoa a quem se dirige. Caracteriza-se por abordagens grosseiras, cantadas abusivas e posturas inadequadas que causam constrangimento, humilhação e medo. Apresenta-se na forma de palavras, gestos, olhares, toques não consentidos, entre outros comportamentos33 Braga AP, Ruzzi M. Entenda o que é assédio sexual e como denunciá-lo [Internet]. São Paulo; 2017 [citado 2 Nov 2020]. Disponível em: http://bragaruzzi.com.br/2017/02/23/entenda-o-que-e-assedio-sexual-e-como-denuncia-lo/
http://bragaruzzi.com.br/2017/02/23/ente... .
Dutra44 Dutra LZ. O papel do assédio sexual na discriminação da mulher nas relações de trabalho. Rev Eletronica Curso Direito Fac OPET. 2015; 7(13):1-21. afirma que determinados autores estabelecem o assédio sexual como um antecedente remoto da instituição da Idade Média jus primae noctis (direito a primeira noite), na qual era concedido ao senhor feudal o direito de ter a primeira noite da noiva. Durante esse período as recém-casadas eram obrigadas a passar a noite de núpcias ao lado do senhor do lugar.
Esse fenômeno se manifesta em diferentes enfoques da sociedade, seja no ambiente de trabalho, nos transportes públicos, nas escolas, nas mídias, podendo, também, apresentar-se em espaços como clubes, praças, academias de ginástica nas quais são desenvolvidas atividades corporais, por exemplo, a musculação. Assim, no ambiente da academia, por ser um local em que ocorrem relações sociais, frequentado por um número significativo de pessoas, entre elas as mulheres, poderá haver assédio sexual, mediante conduta invasiva e inoportuna do assediador para com o público feminino. Nessa perspectiva, Monteiro55 Monteiro AG. Treinamento personalizado: uma abordagem didático-metodológica. 3a ed. São Paulo: Phorte; 2006. elucida que a musculação tem uma procura acentuada por ser responsável pelo desenvolvimento do condicionamento físico e da massa muscular, pela redução da massa gorda e melhoria da qualidade de vida.
Para empreender essa investigação, o trabalho apoiou-se em estudos que tratam de maneira geral sobre assédio sexual, tendo em vista que, diante das nossas incursões na literatura sobre essa temática no campo da Educação Física e, mais especificamente, na musculação, se percebeu a inexistência de pesquisas que abordam a questão do assédio sexual a mulheres praticantes de musculação. Ao realizar pesquisa no Jstor e Scielo, usando os descritores: sexual harassment, women, gym academies, weight training, nenhum artigo foi encontrado. Na plataforma Capes, usando os mesmos descritores, foram encontrados estudos que abordam assédio sexual a estudantes do sexo feminino nas instituições de ensino superior, nas escolas e a mulheres no esporte de elite.
Nas buscas feitas nas plataformas Capes e Scielo, entre outras, usando as palavras assédio sexual, mulheres, musculação, academias de ginástica, não foram encontrados artigos, apenas estudos que tratavam de assédio sexual no ambiente de trabalho. Em função disso, no entendimento até aqui exposto, o presente estudo se mostra relevante, necessário e desbravador no que se refere ao ambiente da academia de ginástica, por contribuir de forma significativa como subsídio para discussões, reflexões e embasamento teórico-metodológico para o surgimento de outras pesquisas.
De acordo com as investigações feitas na internet, encontramos episódios de assédio sexual ocorridos com mulheres atletas e uma aluna de academia de ginástica documentados em jornais e entrevistas. Um desses casos trata-se do relato da nadadora Rebeca Gusmão, que jogou futebol de base e afirma ter visto colegas serem abusadas por técnicos, dirigentes e preparadores em troca de promessas de ida à seleção ou simplesmente de cestas básicas66 Jornal Correio. Ex-nadadora Rebeca Gusmão denuncia exploração sexual no futebol feminino. Jornal Correio [Internet]. 17 Set 2015 [citado 19 Maio 2021]; Esportes: A1. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/ex-nadadora-rebeca-gusmao-denuncia-exploracao-sexual-no-futebol-feminino
https://www.correio24horas.com.br/notici... .
Outro episódio aconteceu com a nadadora Joanna Maranhão, molestada pelo treinador quando tinha nove anos de idade, dona de oito medalhas em Jogos Pan-Americanos e quatro Olimpíadas no currículo77 Toledo A. Joanna Maranhão fala abertamente ao VIX sobre abusos: “Era um herói para mim” [entrevista a Maranhão J]. Rev Vix [Internet]. 2019: 1-6 [citado 19 Maio 2021]. Disponível em: https://www.vix.com/pt/bdm/abusos-sexuais/joanna-maranhao-fala-abertamente-ao-bolsa-sobre-abusos-era-um-heroi-para-mim
https://www.vix.com/pt/bdm/abusos-sexuai... . Outro fato de assédio sexual ocorreu com aluna de uma academia de ginástica no Rio de Janeiro, assediada pelo professor durante uma avaliação física88 Revista Consultor Jurídico. Aluna assediada sexualmente em exame físico receberá R$ 6 mil de indenização. Rev Consultor Jurídico [Internet]. 14 Set 2017 [citado 19 Maio 2021]. Trauma na academia: A1. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-set-14/aluna-assediada-sexualmente-exame-indenizada-mil
https://www.conjur.com.br/2017-set-14/al... .
Justifica-se esse estudo por ser uma temática atual e relevante, pouco discutida no campo da Educação Física, e por trazer proposições de redimensionamento dessa área a partir do instante em que busca realizar pesquisas que tratam de outras dimensões e compreensões de corpo, estabelecendo uma intercomunicação com outras áreas do conhecimento, como a Psicologia, Antropologia, Sociologia. O corpo passa a ser percebido como corpo-sujeito, corpo no mundo, que se movimenta, sente, pensa e age, não o restringindo a uma ideia de corpo-objeto, tomando apenas a dimensão biológica para explicá-lo e compreendê-lo.
Esse tipo de pesquisa pode contribuir, também, na formação profissional e ética dos professores dessa área do conhecimento, trazendo à tona questionamentos e reflexões que possam conscientizar a sociedade sobre a questão da prática do assédio sexual e ajudar a desenraizar comportamentos e atitudes típicas da falta de respeito para com as pessoas, em geral, e com as mulheres, em especial, que estão cada vez mais inseridas em diversos ambientes sociais, como a academia de ginástica, que constitui um desses espaços.
O estudo em destaque aborda o assédio sexual em mulheres praticantes de musculação com ênfase nos efeitos desse fenômeno no cotidiano de suas vidas. Nessa perspectiva, teve como objetivo caracterizar o impacto das experiências de assédio sexual com relação ao cotidiano e à prática regular de atividades físicas das mulheres praticantes de musculação.
Percurso metodológico
Participaram da pesquisa 25 mulheres praticantes de musculação das academias de ginástica da cidade de Iguatu, no Ceará. O município está situado na região centro-sul do estado, apresentando uma distância de 390,1 km da capital Fortaleza, estimando-se 103.074 habitantes99 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidade e Estados [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2020 [citado 2 Nov 2020]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ce/iguatu.html
https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estado... . Fazer esse estudo em uma cidade do interior do Brasil representa, para nós, a oportunidade de mostrar dados sobre o assunto fora do eixo das grandes cidades brasileiras que, quase sempre, são adotadas pelos pesquisadores como cenário de pesquisa.
Para esse estudo foram selecionadas quatro academias e a escolha se deu pelos seguintes critérios: aquelas que possuem maior número de alunos matriculados de ambos os sexos, por apresentarem portes variados na estrutura física, frequência diária dos alunos, valores das mensalidades acessíveis; aquelas credenciadas no Conselho Regional de Educação Física (Cref) por estarem legalizadas; aquelas academias que representam os dois universos: as que se encontram localizadas em bairros centrais e também as situadas em bairros mais distantes do centro, pela busca da prática de musculação por mulheres de diferentes classes sociais e que, por sua vez, estão inseridas nessas quatro academias, permitindo uma amostragem significativa do estudo.
Em todas as academias pesquisadas foram apresentados os objetivos do estudo aos proprietários dos estabelecimentos que, ao declararem parecer favorável em ceder espaço para a realização do estudo, assinaram a Carta de Anuência. As primeiras participantes de cada academia foram escolhidas de forma aleatória por conveniência para iniciar a pesquisa e que, ao concordarem em participar do estudo, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Ao término de cada participação, as entrevistadas indicavam as demais para colaborar com o estudo.
A pesquisa realizou-se nas dependências das academias nos meses de novembro e dezembro de 2019 de segunda a sexta-feira. As informações da pesquisa foram obtidas por meio da aplicação de um questionário sociodemográfico e uma entrevista semiestruturada.
Primeiramente, aplicou-se o questionário sociodemográfico às participantes individualmente; logo após, realizou-se a entrevista face a face, também de forma individual. As falas foram gravadas por meio de um aplicativo gravador de voz no aparelho celular, sendo assegurado o anonimato das participantes.
A seguir, no Quadro 1, encontra-se sintetizado o perfil sociodemográfico das participantes da pesquisa.
Para análise das entrevistas utilizou-se a análise de conteúdo de Bardin1010 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2010., técnica que investiga o que está subtendido nas informações, averigua outras realidades por meio das mensagens, que são incorporadas de maneira particular e constituem um indicador. Segundo a autora1010 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2010., essa proposta está organizada em três fases: 1) a pré-análise, 2) a exploração do material e 3) o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação.
Em seguida, foram feitas as transcrições e leituras contínuas e repetidas para identificar os conteúdos das entrevistas a fim de serem reveladas as categorias de análises, que são rubricas ou classes, as quais agrupam elementos (unidades de registro, no caso da análise de conteúdo) sob um princípio comum, agrupamento esse realizado em razão das qualidades usuais de tais elementos1010 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2010..
O estudo possui a certificação de aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Centro de Ciências da Saúde (CCS) sob o Parecer n. 3.715.799. Foram consideradas todas as normas éticas atendendo à Resolução n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que considera o respeito pela dignidade humana e a proteção devida aos participantes das pesquisas científicas envolvendo seres humanos1111 Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 7 de Abril de 2016. Dispõe sobre as normas regulamentadoras de pesquisas em ciências humanas e sociais. Diário Oficial da União [Internet]. 24 Maio 2016 [citado 31 Out 2020]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/... .
Resultados e discussões
As categorias analíticas estabeleceram-se a priori e as subcategorias foram construídas com base nas leituras e transcrições das entrevistas das participantes. A seguir, são apresentadas as categorias analíticas e as subcategorias.
Experiências de assédio sexual (subcategorias: olhar e conversa); razões da existência de assédio sexual (subcategorias: contato diário, mulher-objeto, caráter/doença, cultura machista e culpabilidade da mulher); e impactos da experiência de assédio sexual no cotidiano (subcategorias: moral e psicológico).
Experiências de assédio sexual
A presente categoria apresenta experiências de assédio sexual vividas pelas mulheres praticantes de musculação. As participantes apontaram que as vivências ocorridas na academia se deram por olhar e conversa, expostas na Figura 1:
Sobre essa questão, podemos constatar abaixo:
[...] alguns homens ficam olhando fixamente quando estou fazendo um alongamento ou exercício no agachamento, olhando para o bumbum ou quando venho com uma roupa mais confortável [...]. É chato você vir para um lugar fazer exercícios, pra se sentir melhor e quando percebe tem alguém lhe olhando de uma forma diferente, [...] fica olhando fixo pra aquilo da pessoa, é um constrangimento.
(E14)
[...] o assédio aconteceu através de olhares, piadas, no momento da execução de um exercício. A pessoa se sente incapacitada.
(E15)
Segundo E14 e E15, a experiência de assédio sexual se deu por meio de olhares e piadas direcionados às partes íntimas dos seus corpos durante a execução dos exercícios. A participante E14 ressalta que os olhares são mais acentuados quando as mulheres usam vestimentas coladas e justas ao corpo que são peculiares à atividade física praticada. Esse tipo de comportamento invasivo dos homens lhes causa constrangimento e incômodo, fazendo-as se sentirem impossibilitadas de continuar realizando as suas práticas corporais ou até mesmo procurar ajuda.
Frazão e Coelho Filho1212 Frazão DP, Coelho Filho CAA. Motivos para a prática de ginástica em academias exclusivas para mulheres. Rev Bras Educ Fis Esporte. 2015; 29(1):149-58. explanam que, para 14 das 16 mulheres que vivenciaram a experiência de frequentar academias de ginástica mistas, a escolha por aquelas frequentadas apenas pelo público feminino foi também respaldada no desejo de evitar certo olhar que lhes era frequentemente direcionado por homens, nas mistas; situações, por exemplo, em que homens prendem fixamente o olhar em meninas que se exercitam em aparelhos como aqueles que permitem um movimento de afastar e unir as pernas.
O estudo de Santos1313 Santos MC. Corpos em trânsito: um estudo sobre o assédio sexual nos transportes coletivos de Aracaju [dissertação]. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe; 2016. propôs discutir o assédio sexual nos transportes coletivos da cidade de Aracaju, Sergipe. A autora entrevistou dezenove homens –estudantes do ensino médio e universitários, motoristas, cobradores, trabalhadores com idade entre 15 e 48 anos, usuários dos transportes coletivos – e buscou investigar por que os homens assediam as mulheres. Conforme os achados, somente dois dos entrevistados não atribuíram os assédios à roupa da mulher. Para os demais, a maneira de se vestir e se portar foi apontado como a causa principal.
A justificativa dos homens em cometer assédio sexual parte da ideia da vestimenta usada, e isso denota que não são capazes de controlar seus impulsos perante a presença da mulher nos espaços sociais, mais especificamente no ambiente da academia ou nos transportes públicos1313 Santos MC. Corpos em trânsito: um estudo sobre o assédio sexual nos transportes coletivos de Aracaju [dissertação]. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe; 2016..
Continuando as análises, as experiências de assédio sexual ocorreram também por meio de conversa insistente, entrega de bilhetes, brincadeiras impróprias.
[...] nessa academia a pessoa iniciou com uma conversa e a partir disso começou a ser insistente e isso já se tornou chato, principalmente porque ele viu que eu tinha uma aliança e mesmo assim, sabendo que eu era compromissada, insistiu em puxar mais assuntos. Assuntos que não tinham nada a ver com o ambiente da academia [...].
(E2)
[...] o rapaz começou a me olhar pelo espelho, como eu estava fazendo os exercícios. Depois se aproximou me entregou seu contato, ficou tirando brincadeira sem graça sem nem me conhecer, toda essa situação é constrangedora porque a gente vai para um espaço pra praticar uma atividade física pra cuidar também da beleza e da saúde com um objetivo [...] a gente não pensa que a outra pessoa tá ali lhe olhando com outros olhos ou observando a sua roupa, seu jeito, seu corpo, lhe desejando [...].
(E10)
Observando a narrativa de E2 e E10, as experiências de assédio sexual se manifestaram por meio de conversa invasiva, insistente, abordando assuntos indevidos, seguidas de brincadeiras inconvenientes e entrega de bilhete durante a prática dos exercícios. Mesmo E2 demonstrando compromisso com outra pessoa, o assediador não se intimidou e continuou praticando a violência, deixando-a incomodada e indignada com a situação. Ainda que não fosse comprometida, não teria o direito de invadir a sua privacidade.
A participante E10 procura o ambiente da academia para realizar exercícios físicos buscando saúde e não olhares indesejáveis direcionados ao seu corpo. Desse modo, o corpo da mulher, ou um corpo que é entendido do ponto de vista social como feminino, quando está situado na presença dos outros passa a ser percebido como um lugar disponível ao público, suscetível de toque, comentários e observações procedentes de desconhecidos1313 Santos MC. Corpos em trânsito: um estudo sobre o assédio sexual nos transportes coletivos de Aracaju [dissertação]. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe; 2016..
[...] quando a mulher, passa por algum tipo de assédio, aquilo fica marcado e ela passa a se comportar de uma forma que quer se resguardar [...] eu estava com uma roupa mais curta, mais apertada e alguém falou dessa roupa ou que está muito bonita, ou feia, ou que aquilo é vulgar. Ele falou da seguinte maneira: a mulher deveria usar um short mais comprido, uma calça mais folgada pra não marcar tanto o corpo.
(E11)
Quando a mulher sofre assédio sexual, esse fenômeno fica marcado na sua vida e, com isso, ela começa a adotar um modo de vida diferente na sociedade, seja no agir, expressar, comportar, seja até mesmo em se vestir, tendo de se preservar, com medo de se expor. A entrevistada ressaltou que por estar com uma roupa curta e apertada se tornou alvo de piadas, passando a se reservar por conta do assédio sofrido. Sobre essa questão, “uma mulher que usa uma roupa de malhar, logicamente está indo malhar, ou uma roupa curta porque assim o desejou, mas para boa parte dos homens esse tipo de roupa é um convite ao qual eles não resistem”1313 Santos MC. Corpos em trânsito: um estudo sobre o assédio sexual nos transportes coletivos de Aracaju [dissertação]. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe; 2016. (p. 128).
Razões da existência de assédio sexual
A categoria aborda as razões da existência de assédio sexual com mulheres praticantes de musculação. Conforme consta na Figura 2:
O contato diário no ambiente da academia foi destacado como uma das razões para a existência do assédio sexual. Devido a esse convívio, o assediador poderá sentir-se no direito de invadir a intimidade das mulheres por estar cotidianamente compartilhando o mesmo espaço e equipamentos, utilizando-se da sua dominação masculina para assediar as mulheres. Sobre esse entendimento, Bourdieu1414 Bourdieu P. A dominação masculina. 9a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2010. elucida que “o assédio sexual nem sempre tem por fim exclusivamente a posse sexual que ele parece perseguir: o que acontece é que ele visa, com a posse, a nada mais que a simples afirmação da dominação em estado puro” (p. 30-1).
Tratando dessa contextualização, destacamos a fala de E1:
[...] em qualquer ambiente que tem um número considerável de pessoas existe probabilidade de haver o assédio. Outro motivo também que eu acredito que possa existir o assédio é através do contato diário, você está com aquela pessoa ali, acaba tendo a liberdade de assediar.
(E1)
Referindo-se à compreensão da mulher como objeto, os conteúdos das entrevistas que abordam essa questão são: desejo sexual, objetificação da mulher e cultura do estupro.
[...] eu acredito que é uma questão de cultura, o homem vem de uma cultura de desejar a mulher, vê a mulher como objeto sexual [...].
(E10)
[...] que eu sou uma mulher porque eu vim com um short curto ou um top pra academia ou pra qualquer lugar eu estou querendo ser abusada ou assediada, e não é assim, eu sou dona do meu corpo, posso vestir a roupa que quiser [...].
(E15)
Analisando as falas, a existência de assédio sexual está ligada à questão cultural da sociedade machista em conceber a mulher como objeto sexual de desejo e prazer. Esse pensamento se acentua ainda mais quando se trata da roupa que a mulher usa, principalmente aquelas consideradas mais curtas ou coladas ao corpo, como se estivesse se insinuando ou disponível para uma relação. Na visão de alguns homens e até mesmo das próprias mulheres é motivo para ser assediada ou abusada sexualmente. E pensar que a mulher goste de ser objeto de desejo ou ser importunada caracteriza comportamento invasivo e percepção equivocada sobre o assunto.
Nessa perspectiva, “no discurso dos movimentos feministas é defendido que, independentemente do que a mulher esteja vestindo, ela não merece ser assediada ou estuprada”1313 Santos MC. Corpos em trânsito: um estudo sobre o assédio sexual nos transportes coletivos de Aracaju [dissertação]. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe; 2016. (p. 59). Apropriando-se do estudo da referida autora1313 Santos MC. Corpos em trânsito: um estudo sobre o assédio sexual nos transportes coletivos de Aracaju [dissertação]. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe; 2016. realizado com mulheres usuárias do transporte público de Aracaju, ficou evidenciada, nas narrativas das participantes sobre os casos que vivenciaram como expectadoras ou alvo de assédios, a afirmação de que o tipo de roupa não define quem será assediada, por isso enfatizaram como estavam vestidas quando sofreram assédios, destacando que usavam roupas discretas, compostas e por isso o assédio seria injustificável.
Nesse sentido, a naturalização da disponibilidade do corpo feminino no espaço público, expressão da presença de uma cultura do estupro enraizada no Brasil, permite que muitos homens não compreendam ou, mais ainda, não respeitem a negativa feminina, a ausência de reciprocidade diante de uma tentativa de aproximação sexual1515 Bandeira LM. Assédio sexual e moral: por uma conduta com dignidade e integridade no ambiente de trabalho [Internet]. Brasília: Senado; 2018 [citado 1 Nov 2020]; 25. Disponível em: http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/92461ddf-09fc-4048-8597-fe8ca7be5a50
http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/... .
Falta de respeito, de caráter do homem, modo de criação, problema mental, foram destaques significativos nos relatos das mulheres como razões para a existência de assédio sexual. Sobre isso, podemos constatar a seguir:
[...] Eu acho que além da falta de caráter da pessoa que comete, é uma doença, psicopatia.
(E7)
[...] A criação, a questão de algum trauma na infância. Hoje em dia a gente não sabe o porquê uma determinada pessoa faz uma coisa, [...] pode ser uma doença, uma síndrome, algo psicológico, ou por que viu o pai ou a mãe fazendo [...].
(E10)
Nos trechos das entrevistas ficou destacada a falta de caráter como fator desencadeador da prática. Porém, outros também foram apontados, como: o agressor apresentar alguma doença de cunho psicológico, o modo de convivência do sujeito com seus familiares, por supostamente ter presenciado o fenômeno do assédio ou vivenciado alguma experiência dolorosa na infância.
Nessa perspectiva, o assédio sexual, como violência, pode ser entendido como uma negação do outro. Essa negação da vontade do outro é permeada de um componente imaginativo, fantasiado do agressor, que percebe no comportamento da vítima não uma negativa de suas investidas, mas um incentivo, um elemento adicional no jogo sexual1616 Fukuda RF. Assédio sexual: uma releitura a partir das relações de gênero. Simbiótica UFES. 2012; 1(1):119-35.. Ou seja, na cabeça culturalmente doentia e controversa do assediador, o não pode se constituir em um sim, sentindo-se estimulado a cometer o assédio.
Continuando as análises, na percepção das pesquisadas, as razões da prática do assédio sexual estão atreladas ao pensamento machista do homem, que está enraizado em uma sociedade na qual ele foi educado, de se sentir superior perante a mulher.
[...] A opinião masculina geralmente é voltada pra questão da mulher ter que se preservar, se esconder, se restringir, não se expor [...] eu vejo muito o meu pai, ele é bem arcaico [...] e roupa colada, curta, às vezes é uma situação que ele acha que a mulher está se exibindo, se oferecendo. Tem a questão de o homem querer ser superior e achar que ele pode tudo e que a mulher não [...] a opinião masculina muitas vezes é o que constrange.
(E9)
No entendimento de E9, o que constrange é a percepção do homem em relação à maneira como a mulher deve se comportar na sociedade, o seu modo de agir, vestir etc. Sobre essa questão, a entrevistada ressalta como exemplo o seu pai, por ter a visão reduzida de que a determinação do caráter da mulher está ligada à vestimenta que usa. Esse tipo de pensamento suspostamente tenha sido reflexo da educação que teve em décadas passadas e acaba refletindo nos dias atuais.
O assédio está associado a uma relação de poder que se dá pelo constrangimento. Quando um homem assedia não é porque deseja uma relação com ela, não é porque está interessado, é para demonstrar que aquele é seu lugar. Essa relação se dá com qualquer tipo de mulher, independentemente da roupa que ela usa, do local onde ela está e da sua aparência física ou do seu comportamento, mas não as atinge da mesma maneira, pois com algumas pode ser mais hostil e nem todas estão igualmente expostas a essas situações1313 Santos MC. Corpos em trânsito: um estudo sobre o assédio sexual nos transportes coletivos de Aracaju [dissertação]. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe; 2016..
[...] é machismo e falta de respeito, por achar que ela é mais vulnerável, não sabe se defender, vai se sentir acuada.
(E22)
Na compreensão de E22, a vulnerabilidade feminina é apontada como motivo de ocorrência do assédio sexual. Devido a esse fator, o agressor pressupõe que a mulher não possui meios para se proteger e ela recua perante a violência sofrida.
A violência do homem sobre a mulher só progride na medida em que o gênero feminino contribui para sustentar a ideia de que ela é sempre inferior ao homem, a ponto de não só concordar com esse pensamento, mas também desmerecer outras mulheres por conta disso1717 Colling AM. A construção histórica do corpo feminino. Cad Espac Fem. 2015; 28(2):180-99..
Partindo dessa premissa, que “as mulheres possam se dar conta de que a violência sexual que sofrem não é algo natural e que denunciem para que possa existir, aos poucos, uma igualdade social entre os gêneros”1818 Ferreira FNM, Medeiros LH. Disciplina, corpo e memória: o assédio sexual contra as mulheres e a culpabilização das vítimas nas mídias. In: Anais do 5o Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades; 2017; João Pessoa, Brasil. João Pessoa: Editora Realize; 2017 [citado 2 Nov 2020]. Disponível em: https://www.editorarealize.com.br/revistas/enlacando/anais.php
https://www.editorarealize.com.br/revist... (p. 11). É necessário que as mulheres não se calem diante de uma violência sofrida seja ela qual for, e denunciem o caso para que os agressores/assediadores não possam cometer com outras mulheres e se fortalecerem. É imprescindível a conscientização da não aceitação da violência de qualquer natureza e de sua naturalização na sociedade.
Dando continuidade, foi demonstrado pelas participantes que o assédio sexual está diretamente relacionado à culpabilização da vítima.
[...] Além das vestimentas, os equipamentos em si, as posições que as pessoas ficam não sei se justifica, mas os homens observam bastante, fazem questão de fazer algum exercício próximo onde a mulher está fazendo pra ficar com a questão dos olhares.
(E17)
[...] depende da roupa que a mulher vai pra academia, da liberdade que ela dá pros homens, da confiança que ela dá [...].
(E20)
Observando as narrativas, percebe-se uma visão equivocada e reduzida das entrevistadas em destacar que a prática do assédio sexual tem relação com o comportamento da mulher no espaço da academia, o uso da roupa justa e colada ao corpo que aguça os ânimos dos homens, pelos movimentos dos exercícios e posições realizadas. Com base no exposto, as participantes culpabilizam a mulher pela violência sofrida, mas não denotam que essa prática ocorre pela conduta invasiva e inconveniente do agressor.
Dessa forma, não é novidade observar que em casos de estupro e assédio sexual no decorrer do processo de investigação do fato ocorra a culpabilização da vítima. Nesse sentido, existem alguns fatores que tornam a mulher culpada pelo abuso, ou seja, nessas situações o agressor é legitimado para cometer o abuso. A culpa não é daquele que violentou e sim daquela que pediu implicitamente a violência1919 Tabuchi MG, Mattoso NS. Segregar, culpabilizar e oprimir – problematizações acerca do projeto de Lei do “Ônibus Rosa” na cidade de Curitiba. In: Anais da 15a Jornada de Iniciação Científica de Direito da UFPR; 2014; Curitiba, Brasil. Curitiba: UFPR; 2014 [citado 28 Out 2020]. Disponível em: http://www.petdireito.ufpr.br/index.php/anais-da-xvi-jornada-de-iniciacao-cientifica-vol-1-n-5-curitiba-2014/
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Silva2020 Silva NRF. Representações da culpabilização de mulheres vítimas de estupro: uma análise étnico-racial [Internet]. 2013 [citado 28 Out 2020]; 15. Disponível em: http://estatico.cnpq.br/portal/premios/2013/ig/pdf/ganhadores_9edicao/Cat_E_Graduacao/NatieneRamos.pdf
http://estatico.cnpq.br/portal/premios/2... ressalta que alguns desses fatores são as roupas da vítima, um julgamento moral acerca de sua vida, a imprudência e o local no qual ocorreu o abuso. Isso se dá pela subjugação das mulheres em nossa sociedade. A autora acrescenta ainda que a incredulidade na versão da vítima, a naturalização da conduta dos agressores, a relativização do ato, do seu agravamento e, consequentemente, do dano ocasionado a quem sofre a agressão, são algumas das características que elucidam o modus operandi de uma cultura que subjuga a mulher e lhe confere um lugar de inferioridade2020 Silva NRF. Representações da culpabilização de mulheres vítimas de estupro: uma análise étnico-racial [Internet]. 2013 [citado 28 Out 2020]; 15. Disponível em: http://estatico.cnpq.br/portal/premios/2013/ig/pdf/ganhadores_9edicao/Cat_E_Graduacao/NatieneRamos.pdf
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Diante das explanações, ficou demonstrado que o assédio sexual está relacionado à culpabilização da vítima que, além de sofrer a prática, carrega ainda uma culpa que não é sua. Muitas vezes, isso decorre por medo de denunciar o agressor, sofrer ameaças, vergonha do julgamento da sociedade e, por isso, de vítima passa a ser a vilã da situação.
Impactos da experiência de assédio sexual no cotidiano
A presente categoria analítica trata de expor os impactos da experiência de assédio sexual na vida e na prática regular de atividades físicas de mulheres praticantes de musculação, demonstrados na Figura 3.
Os termos constrangimento e vulnerabilidade expostos nas entrevistas foram evidenciados como determinantes dos impactos de assédio sexual, correspondendo a subcategoria moral, isto é, está ligado à maneira de o indivíduo se comportar nas suas relações sociais. Sobre isso, podemos averiguar a seguir:
Eu como enfermeira [...] acompanho alguns pacientes que já sofreram e como usuária aqui do serviço da academia que sofreu. Isso é bem constrangedor, é complicada essa situação e a mulher fica um pouco vulnerável [...] sugiro motivar as mulheres a fazer denúncia [...] ficar impune é uma forma desses próprios agressores se fortalecerem pra que cometam atos com outras mulheres. Isso repercutiu na minha vida, fiquei mais reservada [...]. Quando alguém quer puxar uma conversa, já fico um pouco mais distante. Não dou muito interesse na conversa. Então, a gente enquanto mulher se defende mais [...].
(E2)
Fiquei muito chateada, constrangida, na hora não quis responder, a pessoa viu que não gostei depois veio me pedir desculpas, quis me afastar do espaço, não vir mais pra academia, não quis praticar. Aí depois passou e eu disse: ah, não tenho culpa, não devo obedecer ao que ela quer e vou seguir o que acho [...].
(E10)
As participantes destacaram que os impactos de assédio sexual estão relacionados aos constrangimentos sofridos, por se sentirem vulneráveis perante a situação vivenciada. Com isso, acabam se afastando da prática regular de exercícios físicos ou ficam reservadas como forma de se proteger dos possíveis casos de assédio.
A participante E2 sugere que as mulheres façam denúncias dos casos de assédio sofrido a entidades jurídicas e não deixem os agressores impunes; essa tomada de decisão é uma maneira de os agressores/assediadores não continuarem cometendo esse tipo de violência com outras vítimas. Já E10, mesmo se sentindo constrangida com o fato, resolveu prosseguir com a sua rotina de treinamentos e reconheceu que não era culpada pelo que aconteceu, diferente de tantas outras mulheres que se culpabilizam por um ato sofrido.
Além de sofrerem o ato, muitas mulheres inibem sua própria liberdade e seu direito de escolha, modificando a forma de se vestir e de se relacionar, tornando-se intimidadas e, por vezes, mais agressivas com a intenção de frear as abordagens2121 Central Única dos Trabalhadores. Assédio moral e sexual [Internet]. Brasília: CUT; 2017 [citado 27 Out 2020]. Disponível em: http://www.cutbrasilia.org.br/site/wp-content/uploads/2018/02/Cartilha-Ass%C3%A9dio-Moral-e-Sexual.pdf
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Os termos desmotivação, desconforto, medo, pânico, apresentam-se como conteúdo temático do eixo categórico psicológico, como podemos constatar:
[...] porque eu não me sinto bem fazendo exercício perto de homem. Eu prefiro fazer meu exercício no meu cantinho quieta [...]. Essa experiência atrapalhou a prática [...] é desconfortável fazer um alongamento perto de uma pessoa que fica olhando pra você de outra forma [...].
(E14)
[...] você está dentro de um ambiente desses por bem-estar, lazer, aumentar a massa muscular, saúde, e essas coisas fazem com que você meio que perca a vontade, fique desmotivada a vir.
(E15)
Observa-se que as experiências de assédio ocasionaram impactos negativos na vida e na prática regular de atividades físicas das mulheres, refletindo na falta de interesse em frequentar o ambiente da academia, em que o público masculino, por vezes, acaba lançando olhares inconvenientes durante a execução dos movimentos de agachar, unir e afastar as pernas, causando desconforto e incômodo às praticantes.
Nesse sentido, o assédio sexual abala a vítima em sua saúde psicológica e emocional, pois representa a perda da dignidade e da confiança depositada no outro. Provoca depressão e comportamentos autodestrutivos gerando sentimento de desânimo e de abandono2222 Dias I. Violência contra as mulheres no trabalho: o caso do assédio sexual. Rev Sociol Problemas Prat. 2008; (57):11-23..
Quando era estudante sofri assédio de um professor de educação física, isso repercutiu durante um tempo de forma muito negativa na minha vida. Eu me fechei para a prática de qualquer atividade física, tinha pânico de praticar exercício físico ainda mais se houvesse homens. Com o passar do tempo, com acompanhamento psicológico, eu me abri pra esse tipo de atividade até que cheguei a cursar educação física e tenho isso como profissão [...] tem mulheres que encaram de forma mais leve, outras de forma mais drástica [...].
(E11)
A experiência de assédio sexual sofrida por E11 ocorreu no âmbito escolar praticada pelo professor de Educação Física, espaço que também está suscetível à prática dessa violência. Esse fenômeno causou danos na sua vida persistindo por um período de tempo bastante significativo, causando-lhe recusa em praticar qualquer tipo de exercício físico próximo a homens, tendo que buscar ajuda psicológica para superar os traumas.
Para os assediados, a principal consequência é o impacto negativo sobre a sua saúde física e psicológica, afetando sua autoestima, segurança e desempenho profissional, podendo levar a doenças psicossomáticas como o estresse, a ansiedade, o distúrbio do sono, o cansaço crônico e até a morte, inclusive por suicídio2323 Comitê Olímpico do Brasil. Cartilha de prevenção ao assédio sexual e moral no esporte [Internet]. Brasília: Comitê Olímpico do Brasil; 2019 [citado 25 Out 2020]. Disponível em: http://www.cbat.org.br/assedio_atletismo/cartilha_assedio_cob.pdf
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Considerações finais
O estudo permitiu caracterizar o impacto das experiências de assédio sexual com relação ao cotidiano e à prática regular de atividades físicas das mulheres praticantes de musculação, assim como trouxe à tona as razões da existência desse fenômeno nas academias de ginástica.
Ficou evidenciado que as experiências de assédio sexual comprometeram o cotidiano das praticantes de musculação no que se refere à desmotivação em frequentar o espaço da academia, ao afastamento da prática regular de exercícios físicos, por se sentirem vulneráveis, procurando evitar vínculos com o público masculino como forma de se proteger.
A mulher, independentemente da roupa que usa, é assediada em nossa sociedade machista que a vê como um objeto de desejo e prazer. Na verdade, o assediador sexual age a despeito de ela estar com pouca ou muita roupa. Portanto, age mesmo por não ter controle de si próprio e, por isso, transfere a culpa para a vítima por ter provocado o assediador. Ou seja, isso parece ser resultado de uma sociedade marcadamente machista, misógina, desrespeitosa e violenta para com as mulheres.
Esse trabalho é de fundamental importância, porque mostra que o assédio também acontece com mulheres praticantes de musculação nos espaços das academias de ginástica, constituindo-se mais um estudo que pode ajudar no combate a esse tipo de violência, para que o público feminino possa se fortalecer ainda mais saindo do papel de vítima para o de protagonista.
Sugerimos e almejamos que outros estudos possam surgir a fim de ampliar as discussões e reflexões sobre o tema abordado. E, com isso, contribuir de maneira relevante para o aprofundamento cada vez mais qualificado sobre o fenômeno do assédio sexual em mulheres no âmbito das práticas de musculação ou de qualquer outro tipo de atividade física em que se faça presente.
- Pinheiro MRD, Caminha IO. Assédio sexual em mulheres praticantes de musculação: impactos no seu cotidiano. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200819 https://doi.org/10.1590/interface.200819
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
02 Jul 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
28 Nov 2020 - Aceito
18 Maio 2021