O “segredo” sobre o diagnóstico de HIV/Aids na Atenção Primária à Saúde

El ‘secreto’ sobre el diagnóstico de VIH/Sida en la Atención Primaria de la Salud

Daniely Sciarotta Eduardo Alves Melo Jorginete de Jesus Damião Sandra Lúcia Filgueiras Mônica Villela Gouvêa Júlia Gonçalves Barreto Baptista Rafael Agostini Ivia Maksud Sobre os autores

Resumos

Este estudo analisou o processo de descentralização do cuidado de pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA) na cidade do Rio de Janeiro, RJ, Brasil, com ênfase na questão do sigilo. Foi realizado por meio de entrevistas com usuários e trabalhadores, grupos focais com profissionais e observação participante em duas unidades de Atenção Primária à Saúde (APS). Guiados por uma abordagem socioantropológica, os resultados abordaram os motivos do sigilo para as PVHA, a gestão do sigilo entre os profissionais de saúde da APS e as repercussões do sigilo para as práticas de cuidado, destacando a posição singular dos agentes comunitários de saúde. O estudo traz à tona implicações da característica territorial da APS brasileira para o cuidado com as PVHA, podendo ampliar acesso, mas também o risco de quebra do sigilo, evidenciando necessidade de seu manejo para o enfrentamento do estigma e melhoria do cuidado.

Palavras-chave
Sigilo; Atenção Primária à Saúde; Descentralização; Cuidado; HIV/Aids


Este estudio analizó el proceso de descentralización del cuidado de personas que viven con VIH/Sida (PVVS) en la ciudad de Río de Janeiro (Estado de Río de Janeiro), Brasil, con énfasis en la cuestión del sigilo. Se realizó a partir de entrevistas con usuarios y trabajadores, grupos focales con profesionales y observación participante en dos unidades de Atención Primaria de la Salud (APS). Guiados por un abordaje socio-antropológico, los resultados abordaron los motivos del sigilo para las PVVS, la gestión del sigilo entre los profesionales de salud de la APS y las repercusiones del sigilo para las prácticas de cuidado, destacando la posición singular de los agentes comunitarios de salud. El estudio presenta implicaciones de la característica territorial de la APS brasileña para el cuidado de las PVVS, pudiendo ampliar acceso, pero también el riesgo de ruptura del sigilo, poniendo en evidencia la necesidad de su manejo para el enfrentamiento del estigma y mejora del cuidado.

Palabras clave
Sigilo; Atención Primaria de la Salud; Descentralización; Cuidado; VIH/Sida


Introdução

O cuidado com as pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA) no Sistema Único de Saúde (SUS) configurou-se na década de 1980 nos Serviços de Atenção Especializada (SAE). A partir dos anos 2000, alguns municípios, como Rio de Janeiro e Curitiba, passaram a adotar modelos descentralizados, tornando-se recomendação do Ministério da Saúde para organização da assistência às PVHA11 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Caderno de boas práticas em HIV/Aids na Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.

2 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. 5 passos para a implementação do manejo da infecção pelo HIV na Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.

3 Brasil. Secretaria Municipal de Saúde. Programa das Doenças Infecciosas Sexualmente Transmissíveis. Protocolo para introdução do atendimento ao HIV/Aids na Rede Primária de Saúde do Município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: SMS-RJ; 2013.

4 Silva G. Situação da linha de cuidado à pessoa vivendo com HIV/Aids na cidade do Rio de Janeiro. In: Maksud I, Melo EA, Rocha F, Damião JJ, organizadores. Anais do Seminário Coro de Vozes numa teia de significados [livro eletrônico]: sobre o cuidado às pessoas vivendo com HIV/Aids na Rede de Atenção à Saúde. Rio de Janeiro: Sem Editora; 2020. p. 75.
-55 Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Subsecretaria de Atenção Primária, Vigilância e Promoção da Saúde. Superintendência de Atenção Primária. Coleção Guia de Referência Rápida. Infecção pelo HIV e Aids: prevenção, diagnóstico e tratamento na atenção Primária. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Saúde; 2016. (Série F. Comunicação e Educação em Saúde) (Coleção Guia de Referência Rápida). v. 1.. Nesses modelos, a assistência é realizada também na Atenção Primária à Saúde (APS), em um cenário em que o SAE aparece como retaguarda para casos mais complexos ou de maior risco clínico com base em uma “estratificação de riscos”.

Nesse contexto, considerando a atenção sob a perspectiva “de dentro”, espera-se que a equipe de Saúde da Família invista na construção de relações de confiança com as pessoas e os familiares, o que envolve, entre outras coisas, a preservação da privacidade. A literatura sobre HIV/Aids e Atenção Básica (AB)66 Zambenedetti G. O paradoxo do território e os processos de estigmatização da Aids na atenção básica em saúde [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2014.

7 Zambenedetti G, Both NS. Problematizando a atenção em HIV-Aids na Estratégia Saúde da Família. Rev Polis Psique. 2012; 2(1):99-119.

8 Zambenedetti G, Both NS. “A via que facilita é a mesma que dificulta”: Estigma e atenção em HIV-Aids na Estratégia Saúde da Família- ESF. Fractal Rev Psicol. 2013; 25(1):41-58.
-99 Melo EA, Maksud I, Agostini R. Cuidado, HIV/Aids e atenção primária no Brasil: desafio para a atenção no Sistema Único de Saúde? Rev Panam Salud Publica. 2018; 42:e151. Doi: https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.151.
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revela um paradoxo importante que norteia esta discussão: se por um lado a implementação da descentralização facilita o acesso físico à unidade e qualifica as práticas assistenciais na medida em que produz maior conhecimento da realidade dos usuários, por outro, em virtude do estigma e da discriminação, coloca a necessidade do segredo e a aceitação por parte do usuário como um grande desafio para implementação da política.

Este artigo tem como objetivo analisar a gestão do segredo acerca do diagnóstico de HIV e suas implicações para o cuidado das PVHA na APS. Refletir sobre esse tema é cardeal se quisermos proceder ajustes nos modelos de cuidado de acordo com a realidade territorial, com o perfil da epidemia na contemporaneidade e, sobretudo, desconstruir a permanência do estigma e da discriminação que segue se constituindo como barreira ao exercício do direito à saúde como pilar da cidadania.

Método

O artigo está vinculado à pesquisa “O cuidado com as pessoas com HIV/Aids na Rede de Atenção à Saúde”, investigação qualitativa cujos dados foram produzidos com técnicas de observação participante, entrevistas em profundidade com profissionais de saúde, grupos focais (médicos e agentes comunitários de saúde) e entrevistas formais e informais com PVHA. Foram realizadas oitenta entrevistas, três grupos focais e observação participante em unidades e territórios.

O trabalho de campo foi desenvolvido no município do Rio de Janeiro entre abril de 2018 e novembro de 2019 na Área Programática (AP) 1.0, que tem aproximadamente trezentos mil habitantes. O estudo envolveu dois serviços de APS e 13 das 75 equipes de Saúde da Família (eSF). Uma das unidades básicas de saúde (UBS1) tinha aproximadamente cem PVHA com diagnóstico conhecido, enquanto na outra (UBS2) havia 84 PVHA adscritas.

As unidades estão situadas na região central da cidade e sofrem com os impactos da violência armada nos territórios, habitados majoritariamente por população de baixa renda, notadamente nos morros, onde reside a maior parte da população cadastrada.

As duas unidades funcionam como campos de estágio para estudantes de graduação, porém, do ponto de vista organizacional, são bastante diferentes entre si. Enquanto a UBS1 funciona apenas com o modelo Saúde da Família (SF) com oito eSF que cobrem cerca de 25 mil pessoas, a UBS2 possui três eSF e conta com algumas especialidades médicas na cobertura de aproximadamente 14 mil pessoas. A UBS1 não dispensa medicamentos antirretrovirais (ARV), a despeito desse tipo de oferta ser realizado pela UBS2. Outra diferença é que a UBS2 já realiza a coleta de exames de monitoramento do CD4 e carga viral, enquanto a UBS1 passou a realizá-la durante o curso da pesquisa.

Neste artigo discutimos três categorias relacionadas à gestão do segredo que emergiram dos dados empíricos: (1) O Estigma e o território; (2) O impacto do segredo nas relações da APS; e, por fim (3) Implicações para o cuidado das PVHA. Buscamos analisar o sigilo à luz de autores como Simmel1010 Simmel G. The sociology of secrecy and of secret societies. Am J Sociol. 1906; 11(4):441-98. e Elias & Scotson1111 Elias N, Scotson JL. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2000., que discorrem sobre o segredo como elemento constitutivo das relações sociais, considerando elementos relativos a moralidade, subjetividade e interação social. A gestão do segredo do diagnóstico de HIV/Aids nas relações de cuidado na APS, visto por essas lentes, coloca algumas interrogações acerca da ocultação do diagnóstico das PVHA no contexto intraequipe, dos significados produzidos com essa ocultação e dos impactos possíveis no cuidado das PVHA.

A pesquisa seguiu as recomendações éticas da Resolução 510/161212 Brasil. Resolução nº 510, de 7 de Abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. Diário Oficial da União. 7 Abr 2016 da Conep, tendo sido aprovada por Comitês de Ética em Pesquisa da instituição proponente e da Secretaria Municipal de Saúde do RJ sob pareceres número 2.309.404 e 2.559.884, respectivamente. Os participantes foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa e consentiram em participar.

Resultados e discussão

O estigma e o território

Goffman1313 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar; 1980. define estigma como uma característica do sujeito que, transformada socialmente em atributo negativo, o desqualifica e cria obstáculos para seu acesso a bens materiais e simbólicos. Parker1414 Parker R, Aggleton P. HIV and Aids-related stigma and discrimination: a conceptual framework and implications for action. Soc Sci Med. 2003; 57(1):13-24. Doi: https://doi.org/10.1016/S0277-9536(02)00304-0.
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,1515 Parker R. Estigmas do HIV/Aids: novas identidades e tratamentos em permanentes sistemas de exclusão. RECIIS. 2019; 13(3):618-33. Doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i3.1922.
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revisa esse conceito à luz da epidemia de HIV/Aids, em uma perspectiva que considera também as dimensões políticas, econômicas e históricas. Dessa forma, defende que é preciso perceber o estigma não só como uma marca negativa, mas como processo social. De acordo com o autor1414 Parker R, Aggleton P. HIV and Aids-related stigma and discrimination: a conceptual framework and implications for action. Soc Sci Med. 2003; 57(1):13-24. Doi: https://doi.org/10.1016/S0277-9536(02)00304-0.
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,1515 Parker R. Estigmas do HIV/Aids: novas identidades e tratamentos em permanentes sistemas de exclusão. RECIIS. 2019; 13(3):618-33. Doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i3.1922.
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, as PVHA tendem a ser invisibilizadas e estigmatizadas, por isso muitas não compartilham o diagnóstico nem com seus familiares. Outros autores mostram como o estigma pode ainda gerar sentimentos de menos valia e comprometimento da autoestima1616 André C. Questão de autoestima. Rev Mente Cerebro. 2006; 14(164):48-53..

Cabe lembrar com Susan Sontag1717 Sontag S. Doença como metáfora, Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras; 2007. que os processos de estigmatização de muitas doenças foram construídos pela percepção de inadequação do comportamento das pessoas afetadas. O estigma relacionado à epidemia de Aids deriva dos processos históricos de homofobia, da rejeição social ao uso de algumas drogas e à prática de sexo por dinheiro pelas mulheres.

A Lei n. 12.984/2014 que estabelece como crime a discriminação contra PVHA a penaliza inclusive nos ambientes profissionais1818 Brasil. Lei nº 12.984, de 2 de Junho de 2014. Define o crime de discriminação dos portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e doentes de aids. Diário Oficial da União. 3 Jun 2014.. Mas, apesar de muitos avanços, sobretudo biomédicos, na prática a discriminação e o preconceito ainda afetam substancialmente as PVHA. Parker1515 Parker R. Estigmas do HIV/Aids: novas identidades e tratamentos em permanentes sistemas de exclusão. RECIIS. 2019; 13(3):618-33. Doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i3.1922.
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lembra que, com os benefícios da terapia antirretroviral, se acreditou que o estigma desapareceria, o que não aconteceu. As noções de ordem moral ainda marcam a epidemia e prejudicam a vida social das pessoas, por isso muitas preferem manter sua condição em sigilo. Isso também se sobrepõe a outras desigualdades, como a racial, de gênero e de classe. Essas sinergias tornam os estigmas piores e mais difíceis de serem enfrentados1515 Parker R. Estigmas do HIV/Aids: novas identidades e tratamentos em permanentes sistemas de exclusão. RECIIS. 2019; 13(3):618-33. Doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i3.1922.
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.

Pensando na descentralização do cuidado das PVHA para a APS, o temor de uma exposição de questões da vida íntima e privada e/ou do estigma ligado à doença pode fazer com que usuários prefiram ser acompanhados em unidades distantes de sua moradia ou, no caso daqueles que continuam sendo atendidos no território em que moram, pode significar uma constante tentativa de manter sua condição em sigilo. A questão fica evidente quando médicas contam que “É difícil para alguns pacientes”, porque ser atendido em uma UBS perto de casa pode gerar medo para a maior parte das PVHA:

...esse paciente, ele tem pânico da comunidade saber do diagnóstico dele. Pânico. Pânico.

...ele (paciente) acha que se ele vier (na unidade), algum vizinho, alguém vai ficar sabendo.

Consideremos o caso de uma mulher negra de 42 anos que oculta o diagnóstico de seus familiares, evidenciando o receio de não se encaixar em um modelo de “maternagem ideal”1919 Batinder E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Dutra W , tradutor. Rio de Janeiro: Nova Fonteira; 1985.: “não quero estragar a forma que meus filhos me enxergam”. Outros motivos para manter a condição de viver com HIV em sigilo recaem sobre sua profissão de manicure. Ela acredita que, se as pessoas soubessem de seu diagnóstico, perderia muitas clientes, principalmente porque a maioria delas mora na mesma comunidade. Outro entrevistado contou que precisa omitir o HIV porque é padeiro próximo ao seu local de moradia e teme que a revelação do diagnóstico possa ser vista como prejudicial para uma pessoa que trabalha manipulando alimentos.

Os relatos nos trazem reflexões acerca da potência do cuidado territorializado de PVHA e revelam que o estigma do HIV, assim como distintas formas de discriminação, se manifesta segundo os padrões de sociabilidade configurados nos diferentes territórios. Lembrando que a rede básica de saúde estruturada na lógica territorial compreende não apenas a dimensão física de território, mas sobretudo a dimensão existencial, onde a vida é produzida2020 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, Bertussi DC, Baduy RS. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saude Debate. 2019; 43(6):70-83. Doi: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S606.
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.

Os achados aqui apresentados sinalizam aspectos da estratégia de descentralização do cuidado das PVHA para a APS, apontando para a necessidade de se operarem mudanças sociais mais profundas, que permitam o enfrentamento do estigma da Aids, condição essencial para o controle da epidemia.

Os formatos de sociabilidade revelados nos territórios pesquisados configuram-se pelas disposições geográficas espaciais e humanas. A proximidade das casas e o compartilhamento de espaços por vezes podem dificultar qualquer tipo de privacidade, além de estimularem relações muito próximas entre vizinhos2121 Edmundo K, Souza CM, Carvalho ML, Paiva V. ‘HIV vulnerability in a shantytown: the impact of a territorial intervention’, Rio de Janeiro, Brazil. Rev Saude Publica. 2007; 41(2):127-34. Doi: https://doi.org/10.1590/S0034-89102007000900019.
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. No entanto, o próprio entendimento de privacidade está comprometido com a configuração das normas sociais vigentes nos territórios2222 Fonseca C. Família, fofoca e honra. Etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. 2a ed. Rio Grande do Sul: UFRGS; 2000.. Em outros termos, ser ou não ser compartilhado é uma decisão muitas vezes coletiva, inclusive o diagnóstico de HIV.

Entendemos “fofoca” em sentido próximo ao trabalhado por Elias & Scotson1111 Elias N, Scotson JL. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2000., como “informações mais ou menos depreciativas sobre terceiros, transmitidas por duas ou mais pessoas umas às outras” (p. 121). Se levarmos as ideias desses autores para o campo do HIV, vemos que a fofoca tem como principal função social informar a reputação dos moradores de um local, consolidando ou prejudicando sua imagem pública e reforçando a coesão social das redes2323 Maksud I. Silêncios e segredos: aspectos (não falados) da conjugalidade face à sorodiscordância para o HIV/Aids. Cad Saude Publica. 2012; 28(6):1196-204. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2012000600018.
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. A fofoca associada ao HIV pode contribuir para desvalorizar a imagem social de alguém, já que a epidemia, pelo que vimos anteriormente, ainda é associada a comportamentos desviantes, contribuindo por acentuar assim o seu estigma. Dessa maneira, como nos achados de Silva & Vieira2424 Silva L, Vieira M. (Re)pensando o HIV/Aids: novas resposta, velhos dilemas. Braz J Dev. 2019; 5(8):11168-88. Doi: https://doi.org/10.34117/bjdv5n8-003.
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, os entrevistados tenderam à ocultação de seu diagnóstico na UBS por estar em sua rede de vizinhança e, portanto, ser potencial agente de transmissão da fofoca.

Considerando os cenários territoriais onde vivem as PVHA que participaram da pesquisa, notamos que neles se conjugam violência simbólica e violência armada. O estigma tem grande impacto nas relações sociais e pode trazer o medo de perder o emprego, brigas familiares e, nos casos mais extremos, situações de violência e risco de morte, como nos reportou um profissional se referindo ao caso de uma pessoa por ele atendida: “se descobrirem que tenho HIV me matam, pois transei com x, y, z...”.

A fala abaixo, de uma agente comunitária de saúde (ACS), sintetiza a presença marcante do estigma nesses territórios e nos aponta alguns desafios para o cuidado:

Ninguém vai querer falar que tem HIV, ainda mais ator (membro do tráfico de drogas), porque vive uma vida muito promíscua. Um ator tem várias mulheres. Entendeu? Até porque as pessoas ainda acham que o HIV também pega pelo toque, pelo abraço, pelo beijo. Então imagina? O cara tá no auge da popularidade dele com várias mulheres, várias novinhas. Não pode porque o cara tá bichado. Nenhum deles usa camisinha.

A gestão do segredo, organização do cuidado e relações da APS

Diante da problemática da revelação diagnóstica, tanto os profissionais de saúde quanto os usuários empregam estratégias para tentar manter o sigilo do HIV. Muitas vezes, não registram o diagnóstico em prontuário aberto e realizam visita domiciliar mais cuidadosa para não chamar a atenção para uma pessoa ou domicílio. Pessoas que chegam no acolhimento para revalidar a receita do antirretroviral costumam utilizar subterfúgios para conseguir atendimento, como escrever “HIV” em um papel para comunicar ao ACS que precisam de um tipo específico de atendimento, ou relatar um sintoma de doença inexistente para acessar rapidamente o atendimento médico.

No entanto, há situações relacionadas aos modos de organização do processo de trabalho e aos fluxos na rotina dos serviços que podem romper com o sigilo do diagnóstico de HIV. O agravamento do quadro clínico ou o resultado de exames pode levar a PVHA a necessitar de atendimento imediato. Na tentativa de encontrar esse paciente, o médico pode acabar confidenciando ao ACS o status positivo dele. Também no atendimento pré-natal identificamos esse paradoxo diante da revelação diagnóstica do HIV.

Observamos entre os profissionais algumas estratégias cotidianas diante do impasse da revelação diagnóstica. Segundo um ACS, “o procedimento tinha que ser num lugar (...) mais reservado”, porque, como nos revelou outro ACS, a dificuldade de manter sigilo dentro da unidade é decorrente dos próprios processos de trabalho:

Até por causa do protocolo, da forma como as coisas são feitas, sabe? Que vai pegar o papel do teste rápido e vai pro procedimento. Aí, vou esperar o procedimento dele. Enquanto isso, a pessoa está ali sentada na porta. Aí, pega a receita vai pra lá. Aí, a menina da farmácia vai lá, dá Benzetacil. Aí, vai lá e toma Benzetacil. Aí, sai com a bunda doendo. Então, todo mundo na sala de espera já sabe. Já sabe (que pode ser sífilis).

Nos trechos abaixo, o médico discorre sobre a desconfiança que a transferência de uma paciente suscita ao ACS e sobre a tensão que pode existir na revelação intraequipe.

E a paciente foi encaminhada pro (SAE Y), porque a gestante HIV vai encaminhar. E aí ela falou: “E por que a gestante tá indo pro (SAE Y)?”

Aí com os ACSs eu conversava com eles assim: “Nenhum paciente é obrigado a falar do diagnóstico dele a vocês [...], você tem que ajudar a sua equipe, o enfermeiro ou o médico responsável. Você tem que ajudar da seguinte maneira: se o médico chegar para você e falar: Ó, busca fulano de tal, eu preciso que você busque ele na casa e me traga na consulta. Não precisa saber o que que é”.

A ocultação de uma informação a determinadas pessoas pode contribuir para torná-las possuidoras de valor especial, conforme Simmel1010 Simmel G. The sociology of secrecy and of secret societies. Am J Sociol. 1906; 11(4):441-98.. Sendo o HIV/Aids uma condição de saúde geralmente não compartilhada entre os ACS e o restante da equipe, os momentos em que o segredo é ratificado (como na fala acima) podem simultaneamente ser entendidos como formas possíveis de revelação.

Manter segredo sobre o diagnóstico entre alguns da equipe, paradoxalmente, pode comprometer a garantia do sigilo profissional dando margem para os que não sabem “oficialmente” não se comprometerem com o sigilo. Além disso, pode se perder a oportunidade de trabalhar esse tema na equipe e fortalecer o almejado trabalho interdisciplinar.

Entrevistadora: [...] vocês falaram também de reunião de equipe. [...] HIV/Aids é falado em reunião de equipe?

ACS: Não. O assunto, ele é falado assim: “M, ó, eu preciso do paciente tal, que tá com uma situação mais delicada, quero que você vá atrás”. Aí às vezes elas falam uma coisa ou outra e aí você vai ligando os pontinhos.

Ficou evidente nas entrevistas a percepção da prática profissional dos ACS diante dos casos de HIV. Por um lado, alguns profissionais defendiam a necessidade do ACS saber de todos os diagnósticos, como uma médica destacou: “eles precisam saber, afinal fazem parte da equipe”. Outros profissionais relataram que os ACS não têm acesso aos prontuários e diagnóstico, ou que não registram a condição sorológica no prontuário para evitar que os ACS acessem tal informação.

Em algumas equipes o ACS responsável pela família da PVHA tem acesso ao diagnóstico, mas na maioria das vezes os técnicos só o revelam ao ACS em situações extremas, em que precisam de ajuda para o contato com os usuários. Os ACS figuram, portanto, como as pessoas que estão mais próximas da “quebra do sigilo”, tanto no imaginário dos profissionais de saúde quanto no da população. A presença dos ACS muitas vezes pareceu aumentar o sentimento de insegurança de algumas pessoas, como vemos abaixo:

...teve um diagnóstico positivo, a primeira coisa que ela falou foi: “eu não quero que minha agente comunitária de saúde saiba”.

a gente deu a opção: “você quer que a gente não coloque no prontuário?” [...] Ela falou que não tinha problema, mas que a única restrição que ela queria foi que os agentes comunitários não soubessem, que ela tinha medo de que essa história vazasse dentro da comunidade, e a comunidade fosse vê-la de uma maneira diferente.

Embora os profissionais de saúde tenham destacado a importância dos ACS nas unidades, reconhecendo-os como elos com a comunidade, algumas narrativas evidenciam que são vistos de forma pejorativa: “a gente sabe que os ACS são muito fofoqueiros”. Falou-se inclusive de “ACS e técnicos despreparados ou mal orientados” que fazem comentários “preconceituosos, pejorativos e até ofensivos”. Referindo-se a uma unidade de outra região da cidade, um médico nos conta:

Teve uma unidade em que a ACS [...] era ex-namorada do atual de uma mocinha que tava grávida, então se a mocinha grávida fez o teste e deu positivo, a ACS queria saber. Entendeu?

Por sua vez, representantes de movimentos sociais também reportam problemas no sigilo na APS vinculando-os aos ACS:

eu escolhi ser ativista, eu escolhi dar a minha cara e mostrar a minha vivência e a minha sorologia. As pessoas no território não são necessariamente obrigadas a fazerem isso. Elas fazem se quiser, quando o serviço impõe que isso seja feito, como acontece muitas vezes nos casos que a gente recebe de denúncias de agentes comunitários que revelaram o diagnóstico: “Fulano, seu HIV tá pronto”; “Passa lá. Vai pegar seu antirretroviral”.

A privacidade é um direito de PVHA, sendo a comunicação ou não do diagnóstico para os ACS uma decisão do paciente, segundo normativas da gestão municipal do Rio de Janeiro55 Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Subsecretaria de Atenção Primária, Vigilância e Promoção da Saúde. Superintendência de Atenção Primária. Coleção Guia de Referência Rápida. Infecção pelo HIV e Aids: prevenção, diagnóstico e tratamento na atenção Primária. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Saúde; 2016. (Série F. Comunicação e Educação em Saúde) (Coleção Guia de Referência Rápida). v. 1.. Embora os ACS sejam um dos membros da eSF responsável pelo cuidado dos usuários da unidade e deles também se exija o sigilo ético-profissional, a revelação da informação referente ao diagnóstico de HIV para eles resulta em preocupação.

Contudo, mesmo que existam estratégias para ocultar o diagnóstico de HIV dos ACS, eles acabam descobrindo quem são as PVHA dentro do território, por vezes de modo processual e indiciário. Durante os momentos em que conversamos com os ACS nos campos de pesquisa, eles manifestaram que, mesmo que os médicos, outros profissionais de saúde e/ou pacientes tentem ocultar o diagnóstico, eles acabam descobrindo, como expressou um dos ACS durante um grupo focal: “em algum momento nós vamos saber”.

Os ACS mencionaram que ligam os fatos, desconfiam de alguma conversa, deduzem de acordo com as receitas médicas, percebem frequência na UBS, idas regulares à farmácia etc.:

...você começa a perceber, o paciente vem regularmente, pega o medicamento regularmente. Eu acho que o TIG (teste imunológico de gravidez) é mais chamativo porque a gente já viu o teste rápido, já te dá ideia de talvez tenha (HIV), talvez não.

Entretanto, como em algum momento essa informação “vai acabar chegando” até os ACS, eles contaram que precisam gerir o segredo do diagnóstico, inclusive fingindo que dele não sabem.

Alguns profissionais defenderam que saber do diagnóstico qualifica sua atuação:

… tem uns que não querem falar. A gente sabe que eles têm, mas eles não querem falar. A gente sabe por quê? Nós somos uma equipe. E nas reuniões de equipe são discutidos casos. É um sigilo da equipe. … mesmo que ele não queira falar, eu não vou dizer pra ele, você tem. Não, eu vou respeitar.

Isso, eu digo no acolhimento. Qual a sua queixa, qual o motivo. Ah, eu preciso de receita. Receita de quê? A receita de uso contínuo. E não quer falar. Só que assim, a gente acaba sabendo, por conta dessas reuniões que tem e que a gente discute os casos. E assim, mesmo porque, eles têm que pegar a receita. A gente tem que saber quem é quem pra poder dar uma prioridade. Não, esse aqui tem que ser atendido hoje.

A preocupação com a manutenção do sigilo sobre o diagnóstico e os possíveis desdobramentos de sua revelação na comunidade demonstra a importância de essa temática ser inserida nos processos de educação permanente e na gestão cotidiana do processo de trabalho e do cuidado. Além disso, o desenvolvimento de atividades formativas para o cuidado das PVHA com a participação dos ACS pode ajudar a lidar com o paradoxo da territorialização, visto que eles ocupam uma posição estratégica nessa relação entre serviço e comunidade, pois pertencem a ambos2525 Bonet O. “Discriminação, violência simbólica e a estratégia saúde da família”. In: Monteiro S, Villela W, organizadores. Estigma e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 49-57.,2626 Bellenzani R, Santos AO, Paiva V. Agentes comunitárias de saúde e a atenção à saúde sexual e reprodutiva de jovens na estratégia saúde da família. Saude Soc. 2012; 21(3):637-50. Doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902012000300010.
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Observamos que os ACS estabelecem outro tipo de relação com o sigilo profissional porque precisam lidar com a desconfiança dos pacientes e todos os problemas que isso pode ocasionar:

Assim, no acolhimento, nunca vazou informação, mas alguns já jogou indiretas ou piadas por insegurança, de achar que as pessoas vão saber, entendeu? Porque mora no mesmo local.

Diante das ameaças veladas, a ACS acima acredita que os comentários dos usuários se relacionam ao medo de ter o diagnóstico exposto, uma vez que que ACS e PVHA moram no mesmo território e, muitas vezes, são vizinhos. Provavelmente temem que sua condição vire “fofoca” em seu meio social e degrade sua imagem naquele espaço. O fato de os ACS morarem na comunidade impõe um desafio adicional para a gestão do segredo: “por mais que a gente mantenha o nosso sigilo profissional, mas a gente não pode calar a boca dos outros (vizinhos)”.

Os ACS entendem a necessidade do sigilo diante do papel de profissionais de saúde: “A gente sabe, mas a gente também é profissional de saúde”. Durante um grupo focal, quando perguntamos como tratam a questão do HIV no território, as respostas se resumiram às palavras “discrição” e “sigilo”.

Todavia, há outros pontos a considerar, como as “leis” da violência armada do território, que ganham destaque nas narrativas sobre sigilo profissional. O medo da divulgação de um diagnóstico como o de HIV também está relacionado ao risco de violência e/ou morte, tanto para eles quanto para os pacientes: Processo? A gente morre”. Zambenedetti & Both88 Zambenedetti G, Both NS. “A via que facilita é a mesma que dificulta”: Estigma e atenção em HIV-Aids na Estratégia Saúde da Família- ESF. Fractal Rev Psicol. 2013; 25(1):41-58. (p. 49) já haviam destacado que, no território, entre os profissionais de saúde e usuários “a palavra Aids ou HIV não costuma ser mencionada, sendo um assunto subentendido nas conversas”. Contudo, o que apresentamos de novo nessa discussão é justamente como o “não dito” repercute de maneira diferente para os ACS.

Assim, os ACS, além de gerirem o segredo do diagnóstico como uma consequência da prática profissional, também precisam gerir os riscos que o segredo da doença dos usuários pode significar para suas vidas e para os demais. Os relatos dos ACS também evidenciaram que morar no mesmo território os conduz por nuances de uma prática profissional afetada pela proximidade territorial e social dos usuários. Como sugere o discurso da ACS a seguir:

você acompanhar essa pessoa, você pode até saber que ela tem, através da sua equipe, através do médico, mas pra você acompanhar de perto você tem que ter um jogo de cintura, pra passar confiança para aquela pessoa. Pra aquela pessoa se abrir pra você também. Porque ela é moradora da comunidade. Eu também sou moradora da comunidade. Então você tem que ter uma, assim, uma coisa de respeito com ela e um sigilo muito grande. Porque é uma coisa que às vezes nem família sabe. Você sabe, porque você vai ali, você acompanha e porque você criou esse vínculo.

Outros, mesmo já sabendo do diagnóstico, almejam que a revelação lhes seja feita pelo próprio paciente. Os ACS entendem que o segredo do HIV pode estreitar laços ou minar as relações sociais com os usuários.

Os relatos a seguir falam de como um bom manejo do segredo pode fortalecer o vínculo entre ACS e pacientes. Um exemplo é o episódio presenciado por duas pesquisadoras durante a observação participante em uma das unidades estudadas. Uma delas perguntou para a ACS se ela acompanhava alguma PVHA e a profissional contou sobre o caso de uma senhora que ela visitava periodicamente para saber se estava tomando os ARV corretamente: “Eu sei que ela tem. Não sei se ela sabe que eu sei... [pausa] Mas não tem como ela não saber que eu sei... Eu sempre levo a medicação dela”. A ACS disse que a senhora nunca contou sobre o HIV e ela também nunca perguntou, mas que deduzia que a mulher imaginava que ela sabia, afinal ela levava os ARV, orientava sobre o uso e renovava sua prescrição, mas o tema nunca havia sido abordado de forma explícita por nenhuma das duas. Meses depois, a ACS contou para as pesquisadoras que havia conversado com a senhora sobre o HIV de forma transparente. Recorrendo a Simmel1010 Simmel G. The sociology of secrecy and of secret societies. Am J Sociol. 1906; 11(4):441-98., podemos compreender que, nesse caso, o segredo, na visão da ACS, pôde estreitar a sua relação com a usuária e fortalecer o vínculo por meio de uma confidência entre elas. Em outras palavras, ao contrário dos demais profissionais de saúde que se vinculam por um problema de saúde explícito, os ACS nem sempre podem estabelecer uma relação com os usuários por um motivo de saúde evidente, como no caso do HIV. A ACS pareceu ter conseguido se aproximar da usuária por meio do segredo do diagnóstico. Mas isso nem sempre acontece, sobretudo em territórios com problemas de violência armada.

Implicações para o cuidado das PVHA

O estigma ligado ao HIV opera na redução do acesso aos serviços e cuidados em saúde, das informações e dos recursos sobre saúde e da possibilidade de usufruir da vida de modo pleno e com dignidade2727 Gullliford M, Figueiroa-Munoz J, Morgan M. Meaning of access in health care. In: Gulliford M, Morgan M, editores. Access to health care. London: Routledge; 2013. p. 1-12.. O medo da reação da sociedade ainda faz que muitas pessoas não façam o teste, escondam sua sorologia e não façam o tratamento.

O segredo, segundo Simmel1010 Simmel G. The sociology of secrecy and of secret societies. Am J Sociol. 1906; 11(4):441-98., caracteriza a relação entre os envolvidos. Como vimos, são muitas as vias de segredo e revelação do diagnóstico de HIV/Aids: entre o usuário e as pessoas de seu convívio pessoal (o usuário decide não revelar às pessoas ao seu redor acerca de sua sorologia), entre o usuário e o ACS (o usuário decide não revelar a esse membro da equipe de saúde em particular), entre o médico e o ACS (a escolha do paciente exige que o médico não compartilhe a informação do diagnóstico intraequipe), entre o ACS e o usuário (agora em uma via diferente, o ACS conhece o diagnóstico, porém não pode revelar seu conhecimento ao usuário), e entre o ACS e as outras pessoas do território do paciente (sabendo do diagnóstico, o ACS precisa manter o sigilo profissional). No penúltimo caso, o diagnóstico não é o segredo em si, e sim o próprio conhecimento de uma informação não autorizada.

O segredo acerca do conhecimento do diagnóstico por parte do ACS dificulta um lugar de cuidado dialogado:

Tem um paciente lá da minha equipe que a gente sabe que ele tem, a equipe toda. E ele não se trata e a gente não pode falar. E ele fica num lugar muito exposto. Ele faz coisas que não só prejudica ele como outras pessoas. Aí, eu fico: “Gente, mas por que a gente não pode? Não, não pode. Mas, tem tantas pessoas...”. Não pode. Não quero saber o que tem lá. Ele que tem que falar.

E tem pessoas que a pessoa nem sabe. [...] duas gestantes que descobriram na gravidez, elas não sabem que eu sei que elas têm, entendeu? Eu tenho que me manter... eu sei que elas têm. Eu sei que o companheiro dela tem. Quando ele vem aqui, vem pegar medicação. Mas, em hipótese nenhuma, eu posso perguntar pela doença, entendeu? Eu tenho que manter a ética, entendeu?

Na tentativa de preservar o sigilo diagnóstico, os ACS limitam o número de visitas domiciliares para não levantar suspeitas dos vizinhos:

Mesmo porque eu não posso estar mais vezes na casa daquela pessoa do que das outras que não tem o HIV. Por quê? A gente chamaria a atenção. Ai os vizinhos: [...]. Por que o agente de saúde está vindo direto?

Potenciais vantagens do cuidado descentralizado – como a facilidade para retirar os medicamentos em sua própria comunidade – são reduzidas em função da necessidade de gestão do segredo. Nesse sentido, os usuários com maiores dificuldades de adesão ao tratamento demandam o envolvimento de toda a equipe. Nesse caso, é preciso o compartilhamento da informação sobre o diagnóstico de HIV, como indicam as narrativas dos ACS:

Pra muitos seria bom porque é só atravessar a rua e pegar a medicação aqui, é muito mais prático. Mas ao mesmo tempo pode ser ruim do ponto de um vizinho vê que ele veio aqui e pegou um remédio de HIV. Como tem essa pequena distância, o paciente pode chegar lá, pegar, colocar na mochila e morreu o assunto. Aqui a porta da farmácia sempre é aberta, a pessoa está sendo atendida aqui, mas a pessoa que está na fila está vendo o que está acontecendo dentro.

Depois o agente vai ficar sabendo por quê? [...] O paciente, tem dois meses que ele não vem na clínica, temos que fazer uma busca ativa pra saber o motivo que ele não vem. Então a gente sabe o que que ele tem pra poder fazer essa busca ativa.

Conhecer o diagnóstico do paciente permite ao ACS priorizar a PVHA no cotidiano do cuidado, inclusive permitindo que o ACS se aproprie do cuidado por meio do entendimento da função de seu trabalho:

ACS: Se passou 6 meses e ele não vem, a médica, vem até nós para buscar ele. [...] Aí eu falo para a médica: “Ele falou que vem”. Mas não vem. Então não vai na segunda, na terceira. Na quarta ela fala: “Então, ele é paciente de HIV, ele precisa estar aqui por causa disso, disso”.

Entrevistadora: Chega uma hora que a casa cai?

ACS: Não é uma quebra de sigilo maldosa, é porque a gente realmente tem que ter acesso àquele paciente.

Considerações finais

Este artigo pretendeu analisar elementos relacionados à gestão do sigilo diagnóstico de HIV em cenário de descentralização do cuidado com a PVHA para a APS. Nesse sentido, tendo em mente a construção social do estigma, as moralidades e relações de poder que a informam, destacamos aspectos em torno dos quais sofrimentos e privações se fazem presentes em usuários diante da (possibilidade de) quebra do sigilo, como nas relações de trabalho e comunitárias.

Evidenciaram-se, no âmbito dos trabalhadores da APS, preocupações relacionadas ao sigilo, incluindo a sua própria segurança física, enfatizando-se a complexa situação dos ACS pela singularidade da sua dupla inserção (morador do bairro e trabalhador de saúde), por meio de estratégias para garantia de sigilo entre colegas e suas implicações para o trabalho em equipe multiprofissional, possibilidades de quebra do sigilo geradas pelo modo de organização e funcionamento das UBS, bem como a quase impossibilidade de que os ACS não saibam do diagnóstico, mesmo que isso não seja explicitado. Além disso, abordamos limitações geradas pela necessidade de sigilo para as práticas de cuidado.

O estudo traz à tona a dupla e, por vezes, ambígua repercussão da característica territorial da APS brasileira para o cuidado às PVHA, podendo ampliar o acesso, mas também o risco de quebra do sigilo, sinalizando a necessidade de cuidados no âmbito organizacional e das práticas profissionais, bem como de efetivação de políticas públicas de enfrentamento da discriminação e do estigma.

Nesse sentido, o investimento em ações de educação permanente das equipes de saúde que abarquem a abordagem dos direitos humanos, incluindo direitos sexuais, a compreensão do território na sua dimensão existencial, assim como os processos de vulnerabilização nele existentes, poderiam favorecer a produção de práticas profissionais e a organização dos serviços de saúde necessários à gestão do sigilo no território e à potencialização da APS no cuidado das PVHA.

  • Sciarotta D, Melo EA, Damião JJ, Filgueiras SL, Gouvêa MV, Baptista JGB, Agostini R, Maksud I. O “segredo” sobre o diagnóstico de HIV/Aids na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200878 https://doi.org/10.1590/interface.200878
  • Financiamento

    A publicação desse artigo foi apoiada pelo Projeto de Incentivo à Pesquisa do Instituto Fernandes Figueira – PIP III, processo 25384.100377/2019

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2021
  • Aceito
    21 Jul 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br