Coletivo Nós nas Ruas e Programa Corra pro Abraço: ações para o enfrentamento da Covid-19 em Salvador, BA, Brasil

Colectivo Nosotros en las Calles y Programa Corre para el Abrazo: acciones para el enfrentamiento de la Covid-19 en Salvador, BA, Brasil

Simone Santana da Silva Lacita Menezes Skalinski Tricia Viviane Lima Calmon Gleide Santos de Araújo Joilda Silva Nery Sobre os autores

Resumos

Relato de experiência que descreve parte das ações para o enfrentamento da Covid-19 da população em situação de rua de Salvador, Bahia. Essa iniciativa ocorreu pela articulação de um coletivo vinculado às universidades com um programa do governo do estado que atua com pessoas em situação de rua. Nas atividades desenvolvidas, destacaram-se a articulação entre as duas equipes para contribuir no processo adaptativo do trabalho nesse novo contexto, o diálogo com a população em situação de rua e o fortalecimento da rede de sensibilização social. As vivências ao longo do processo de trabalho demarcaram questões basilares na estruturação social como pobreza, desamparo, racismo, desassistência e desigualdades. A pandemia expôs a complexidade da desigualdade social e a urgência de uma sociedade engajada na reparação das fragilidades já existentes.

Palavras-chave
Pessoas em situação de rua; Covid-19; Direito à saúde; Vulnerabilidade social


Relato de experiencia que describe parte de las acciones para el enfrentamiento de la Covid-19 con la población que vive en la calle en Salvador, Bahia. Esta iniciativa tuvo lugar gracias a la articulación de un colectivo vinculado a las universidades, con un programa del gobierno del estado que actúa con las personas que viven en la calle. En las actividades desarrolladas se destacaron la articulación entre los dos equipos para contribuir en el proceso adaptativo del trabajo en ese nuevo contexto, el diálogo con la población que vive en la calle y el fortalecimiento de la red de sensibilización social. Las vivencias durante el proceso de trabajo delimitaron cuestiones basilares en la estructuración social, tales como pobreza, desamparo, racismo, desasistencia y desigualdades. La pandemia expuso la complejidad de la desigualdad social y la urgencia de una sociedad comprometida con la reparación de las fragilidades ya existentes.

Palabras clave
Personas que viven en la calle; Covid-19; Derecho a la salud; Vulnerabilidad social


Introdução

A Covid-19 é uma infecção respiratória causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 que pode produzir formas assintomáticas ou quadros respiratórios graves. A doença se estendeu a níveis mundiais, tornando-se uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional11 World Health Organization. Coronavirus disease (Covid-19). Coronavirus disease (Covid-19) pandemic [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019.
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, da qual até o presente momento já foram notificados mais de 109 milhões de casos e dois milhões e quatrocentos mil óbitos11 World Health Organization. Coronavirus disease (Covid-19). Coronavirus disease (Covid-19) pandemic [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019.
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. Desastrosos desfechos ocorridos em diferentes países contribuíram para que medidas de enfrentamento fossem adotadas seriamente em todo o mundo22 Freitas ARR, Napimoga M, Donalisio MR. Análise da gravidade da pandemia de Covid-19. Epidemiol Serv Saúde. 2020; 29(2):e2020119.. Entre elas destacam-se a higiene rigorosa das mãos, o uso de álcool em gel, uso de máscaras, evitar aglomerações, manutenção de um metro de distância entre as pessoas e, principalmente, o distanciamento social33 Organização Panamericana de Saúde. Folha informativa Covid-19. Escritório da OPAS e da OMS no Brasil [Internet]. Brasil: OPAS; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/covid19.
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Dito isso, é salutar reconhecer que as distribuições da infecção, adoecimento e mortalidade causadas pelo vírus não ocorrem democraticamente44 Wang C, Horby PW, Hayden FG, Gao GF. A novel coronavirus outbreak of global health concern. Lancet [Internet]. 2020 [citado 19 Mar 2021]; 395(10223):470-473. Doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30185-9/fulltext.
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. Tal argumento é justificado, pois o acesso à água, à moradia, aos serviços de saúde, à alimentação saudável, aos produtos de higiene corporal e doméstica são fatores que demarcam diferenças nos grupos populacionais que estão expostos a maiores ou menores riscos. A existência de vínculos relacionais fragilizados de proteção também se constitui como elemento que influencia nesse quadro de desvantagens55 Schuch P, Furtado CDC, Sarmento CS. Covid-19 e a população em situação de rua: da saúde à segurança pública? [Internet]. Rio Grande do Sul: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/covid-19-e-a-populacao-em-situacao-de-rua-da-saude-a-seguranca-publica.
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,66 Lancet Migration. Leaving no one behind in the Covid-19 pandemic: a call for urgent global action to include migrants & refugees in the Covid-19 response [Internet]. Lancet; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://www.migrationandhealth.org/statements.
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Há de se considerar que na realidade brasileira há um impacto peculiar da pandemia da Covid-19; afinal, o país é fortemente marcado pelas desigualdades sociais77 Santos JAF. Covid-19, causas fundamentais, classe social e território. Trab Educ Saúde. 2020; 18(3):e00280112.. As pessoas com menor renda, que sobrevivem em moradias precárias ou que utilizam as ruas como moradia, estão singularmente expostas ao vírus55 Schuch P, Furtado CDC, Sarmento CS. Covid-19 e a população em situação de rua: da saúde à segurança pública? [Internet]. Rio Grande do Sul: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/covid-19-e-a-populacao-em-situacao-de-rua-da-saude-a-seguranca-publica.
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. O campo da Saúde Coletiva contribui para o entendimento da determinação social do processo de saúde e doença nesses segmentos. No contexto da pandemia, tais elementos sustentam a lógica de que a morte por coronavírus representa, na realidade, a morte por variadas precarizações e invisibilizações22 Freitas ARR, Napimoga M, Donalisio MR. Análise da gravidade da pandemia de Covid-19. Epidemiol Serv Saúde. 2020; 29(2):e2020119.,44 Wang C, Horby PW, Hayden FG, Gao GF. A novel coronavirus outbreak of global health concern. Lancet [Internet]. 2020 [citado 19 Mar 2021]; 395(10223):470-473. Doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30185-9/fulltext.
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,55 Schuch P, Furtado CDC, Sarmento CS. Covid-19 e a população em situação de rua: da saúde à segurança pública? [Internet]. Rio Grande do Sul: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/covid-19-e-a-populacao-em-situacao-de-rua-da-saude-a-seguranca-publica.
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. Assim, a pandemia explicita, por exemplo, a relevância do estatuto público de saúde com a garantia de acesso a direitos.

A população em situação de rua enfrenta embates significativos com o modo de produção capitalista, com os desdobramentos da globalização, bem como das transformações nos processos produtivos88 Pinho RJ, Pereira APFB, Lussi IAO. Homeless, the world of work and the specialized reference centers for population in street situation (centro pop): perspectives on actions for productive inclusion. Braz J Occup Ther. 2019; 27(3):480-495. Doi: https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO1842.
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. Tais contextos e suas singularidades dispõem de alta capacidade de estigmatizá-la e empurrá-la para um ciclo de fragilidades que influenciam na manutenção do cenário. Em relação à realidade brasileira, isso está comprovado, entre outros fatores, pela inexistência de dados consistentes sobre a população em situação de rua, o que prejudica não somente a implementação de políticas públicas voltadas para esse grupo, como também reproduz a invisibilidade social no âmbito das políticas sociais99 Natalino MAC. Estimativa da população em situação de rua no Brasil (setembro de 2012 a março de 2020). Rio de Janeiro: IPEA; 2016.. Além disso, o senso comum que os concebe no lugar de abandono, passividade e impotência pode fortalecer a vitimização e sustentar a lógica da caridade como estratégia de acerto de contas social. Nesse mesmo sentido, desdobra-se também na simplificação desses sujeitos associando-os a transgressores que têm as ruas como resultado de suas escolhas. Tudo isso reflete, sem dúvida, nas disputas entre os diferentes grupos sociais existentes1010 Pimenta MDM. The homeless population in Porto Alegre: social invisibility and stigmatization processes. Civitas. 2019; 19(1):82-104. Doi: http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2019.1.30905.
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e reforça, inclusive, um conjunto de práticas como o racismo estrutural e o institucional que desdobram na operacionalização da necropolítica1111 Calmon TVL. As condições objetivas para o enfrentamento ao Covid-19: abismo social brasileiro, o racismo, e as perspectivas de desenvolvimento social como determinantes. NAU Soc. 2020; 11(20):131-136., 1212 Mbembe A. Necropolítica. Arte Ensaios. 2016; 2(32):123-151..

Reconhecendo os aspectos apontados e o contexto preocupante da pandemia da Covid-19, o Coletivo Nós nas Ruas se aliou às ações do Programa Corra pro Abraço na perspectiva de refletir e colaborar na condução de suas estratégias de enfrentamento da pandemia em Salvador - Bahia.

Diante dos desafios apresentados a toda a sociedade durante a pandemia da Covid-19, os questionamentos centrais que emergiram dos dois grupos citados foram: como esse vírus se manifestará em populações socialmente vulneradas? Como indicar medidas de distanciamento social e cuidados domiciliares para quem não tem casa? Como recomendar medidas de higiene a quem mal tem acesso à água? Como sensibilizar a sociedade para compreender que população em situação de rua não é um risco, mas uma população em risco?

Partindo das reflexões sobre a velocidade de transmissão do coronavírus em ambientes com aglomeração e das situações de exposição impostas pelas iniquidades sociais e de acesso aos serviços sociais e de saúde, a presente produção objetiva descrever e discutir as ações conjuntas direcionadas para a população em situação de rua desenvolvidas pelo Coletivo Nós nas Ruas e pelo Programa Corra pro Abraço em Salvador - BA, no contexto da pandemia da Covid-19.

Metodologia

Este artigo traz um compilado de vivências, no formato de relato de experiência, construído conjuntamente com os membros do Coletivo Nós nas Ruas (composto por professores, alunos de pós-graduação e graduação da área de Saúde) e profissionais do Programa Corra pro Abraço, no contexto da pandemia de Covid-19, em Salvador, capital do estado da Bahia.

Salvador teve a população estimada de 2.872.347 habitantes em 2019, com densidade demográfica de 4.145,9 hab./km2 13. Em Salvador, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é de 0,759, um valor considerado alto1414 Klugman J. A verdadeira riqueza das nações: vias para o desenvolvimento humano. Nova Iorque: PNUD; 2010., mas não se pode negar que esse índice oculta as desigualdades sociais tão marcantes no município pela variação dos valores do IDH entre os bairros da periferia e aqueles de classe média e alta. Em 2010, os bairros da cidade com menor IDH foram Ilha de Maré (0,578), Nova Brasília (0,579) e Cassange (0,607), enquanto aqueles com os melhores indicadores foram Chapada do Rio Vermelho (0,959), Itacaranha (0,952) e Caminho das Árvores (0,953). Isso revela, na realidade, o abismo social existente entre as pessoas com um padrão de vida muito elevado, contrastado pela parcela social com padrão de vida extremamente baixo nessa mesma cidade1515 Barreto RCS, Santos EI, Carvalho ÍCS. A pobreza multidimensional em salvador diminuiu? Evidências a partir da abordagem espacial. Rev Estud Soc. 2018; 20(40):192-225.. Ademais, cabe aqui uma curta reflexão acerca da fragilidade do índice, o qual, embora seja amplamente utilizado como base para classificação dos países no mundo, é incapaz de traduzir em números realidades sociais tão complexas e distintas em um mesmo centro urbano1616 Dalberto CR, Ervilha GT, Bohn L, Gomes AP. Índice de desenvolvimento humano eficiente: uma mensuração alternativa do bem-estar das nações. Pesqui Planej Econ. 2015; 45(2):337-363..

Em 2016, estimou-se que a população em situação de rua de Salvador estivesse calculada entre 14 mil e 17 mil pessoas1717 Carvalho MAC, Santana JP, Vezedek L. Cartografias dos desejos e dos direitos: mapeamento e contagem da população em situação de rua na cidade do Salvador, Bahia, Brasil. Salvador: Centro Projeto Axé de Defesa e Proteção à Criança e ao Adolescente; 2017.. Acredita-se que o quantitativo populacional que vivencia essa realidade seja ainda maior, especialmente após as nefastas consequências sociais da pandemia da Covid-19 no país. A inexistência de um censo específico para a população em situação de rua no Brasil reflete, entre outras coisas, a dificuldade de inclusão desse grupo populacional em ações de atenção pública e reforça a persistência da sua invisibilidade nas políticas99 Natalino MAC. Estimativa da população em situação de rua no Brasil (setembro de 2012 a março de 2020). Rio de Janeiro: IPEA; 2016.. Ademais, Salvador conta ainda com 882.204 pessoas residindo em assentamentos informais, classificados pelo IBGE como “aglomerados subnormais”1818 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo: aglomerados subnormais [Internet]. Salvador: IBGE; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/salvador/pesquisa/23/25359.
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. Isso quer dizer que esse número de pessoas tem condições precárias de moradia, marcadas pela carência ou ausência de infraestrutura e serviços urbanos públicos. A cidade também registrou uma taxa de desemprego de 24,9% em maio 20191919 Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Pesquisa de emprego e desemprego [Internet]. Bahia: SEI; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em:https://www.sei.ba.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23&Itemid=417#2.
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O Programa Corra pro Abraço faz parte da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Governo do Estado da Bahia, vinculado à Superintendência de Políticas sobre Drogas e Acolhimento a Grupos Vulneráveis, e é executado por duas organizações da sociedade civil: Comunidade Cidadania e Vida (Comvida) e Cipó Comunicação Interativa. Funcionando desde julho de 2013, esse programa tem como objetivo contribuir com a promoção da cidadania e direitos de pessoas que fazem uso abusivo de drogas em contextos de vulnerabilidade, ou afetadas por problemas relacionados à criminalização das drogas, baseado nas estratégias de redução de riscos, danos físicos e sociais2020 Programa Corra Pro Abraço. O corra pro abraço [Internet]. Salvador: Comvida; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://corraproabraco.wordpress.com/sobre/.
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. Atualmente, a equipe do programa que atua com população em situação de rua conta com assistentes sociais, psicólogos/as, educadores/as jurídicos, cientistas sociais, pedagogos/as e arte-educadores/as, que realizam abordagens da população na rua e na sede do programa com foco na redução de danos, bem como encaminhamentos às redes de atenção psicossocial, educação, saúde e justiça. Além disso, desenvolvem oficinas de arte-educação, com técnicas de expressão corporal e música, oficinas de leitura e escrita, entre outras2020 Programa Corra Pro Abraço. O corra pro abraço [Internet]. Salvador: Comvida; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://corraproabraco.wordpress.com/sobre/.
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. Diante da pandemia de Covid-19, o referido equipamento deparou-se com o desafio de planejar/aperfeiçoar as ações de enfrentamento da doença, sem perder o foco central das suas estratégias de trabalho2121 Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado da Bahia. Corra pro abraço [Internet]. Bahia: SJDHDS; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: http://www.justicasocial.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=60.
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O Coletivo Nós nas Ruas nasceu em 17 de março de 2020, quando professores e estudantes da área de Saúde Coletiva e Enfermagem do Instituto de Saúde Coletiva/Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e Universidade do Estado da Bahia (Uneb) compartilharam inquietações a respeito da dificuldade ou da impossibilidade de “ficar em casa” para soteropolitanos que vivem em situação de rua, sem as mínimas condições socioeconômicas e habitacionais para adotar o distanciamento social e a higienização das mãos recomendadas pelas autoridades sanitárias2222 Siqueira E. ISC promove ação social de combate à Covid-19 [Internet]. Salvador: Instituto de Saúde Coletiva da UFBA; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: http://www.isc.ufba.br/professores-e-estudantes-do-isc-ufba-promovem-acao-social-de-combate-a-covid-19/.
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. Naquele momento, mobilizaram-se para articular estratégias emergenciais de enfrentamento à Covid-19 voltadas à parcela vulnerada da população de Salvador. Assim, o grupo iniciou uma campanha para aquisição de bens e recursos financeiros para doações, que permitiram a compra e a distribuição de kits de higiene pessoal, água mineral, kits de lanches para pessoas em situação de rua e cestas básicas para famílias em vulneração social. No entanto, a equipe do Nós nas Ruas não tinha experiência prévia na abordagem e no trabalho com a população em situação de rua e, por isso, foi fundamental a articulação com o Programa Corra pro Abraço que, além de facilitar a aproximação nas áreas de risco social, possibilitou a educação em saúde por uma abordagem multiprofissional, com trocas de experiências e aprendizados de ambos os grupos.

Os membros do Nós nas Ruas organizaram rodas de diálogo e sensibilização sobre a Covid-19 e treinamentos sobre o uso adequado dos equipamentos de proteção individual e os protocolos de higienização, bem como dos utensílios e do transporte utilizados nas ações em campo. Além disso, em grupos de comunicação virtual, ocorreu o compartilhamento de informações qualificadas e confiáveis de livros, manuais e publicação técnica dos órgãos oficiais de saúde, sobre as recomendações sanitárias no enfrentamento da pandemia de Covid-19 e o apoio na elaboração de materiais informativos com a linguagem adequada para as pessoas em situação de rua ou que fazem uso de substâncias psicoativas.

Assim, este relato de experiência documenta as vivências dos dois grupos no enfrentamento da pandemia de Covid-19 e uma reflexão conjunta, resultado da articulação de equipamentos públicos do Estado e experiências acadêmicas, sociais e de solidariedade, que permitiram uma interpretação da pandemia de forma reflexiva e articulada com a literatura especializada.

Resultados e discussão

As ações transitaram entre intervenções nas ruas de Salvador, participação nas reuniões de planejamento e avaliação da equipe do Programa Corra pro Abraço, diálogos sobre as adaptações necessárias para garantir a proteção dos trabalhadores e da população de rua assistidos contra a infecção pelo coronavírus, reflexões sobre o impacto da pandemia na população em situação de rua e estratégias de enfrentamento.

As primeiras atividades resultantes dessa articulação partiram do compartilhamento das experiências que permitiu o diagnóstico situacional e a estimativa da população de rua que já era assistida pelo Programa Corra pro Abraço. Isso possibilitou a compreensão do processo de trabalho e o apoio ao planejamento de ações das equipes do programa. O primeiro desafio foi apoiar e cooperar com essas equipes no processo de reinvenção de suas práticas em um momento adverso, uma vez que a pandemia nos provoca e dá visibilidade ainda maior às desigualdades, precarização, invisibilização social e fragilidade de direitos88 Pinho RJ, Pereira APFB, Lussi IAO. Homeless, the world of work and the specialized reference centers for population in street situation (centro pop): perspectives on actions for productive inclusion. Braz J Occup Ther. 2019; 27(3):480-495. Doi: https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO1842.
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, 1111 Calmon TVL. As condições objetivas para o enfrentamento ao Covid-19: abismo social brasileiro, o racismo, e as perspectivas de desenvolvimento social como determinantes. NAU Soc. 2020; 11(20):131-136.. Tais equipes já lidavam cotidianamente com o repertório de vulneração que as pessoas em situação de rua enfrentam. A pandemia, com as recomendações de isolamento social, trabalho remoto e reforços de práticas de higiene pessoal, imediatamente impôs uma tensão; afinal, os trabalhadores necessitam garantir suas próprias condições de saúde física e emocional para dar continuidade às ações já desenvolvidas. Ao mesmo tempo, são convocados a oferecer um suporte àqueles que não possuem moradias convencionais, têm fome, sede, não dispõem de condições adequadas de acesso à água e itens de higiene pessoal55 Schuch P, Furtado CDC, Sarmento CS. Covid-19 e a população em situação de rua: da saúde à segurança pública? [Internet]. Rio Grande do Sul: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/covid-19-e-a-populacao-em-situacao-de-rua-da-saude-a-seguranca-publica.
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, 1111 Calmon TVL. As condições objetivas para o enfrentamento ao Covid-19: abismo social brasileiro, o racismo, e as perspectivas de desenvolvimento social como determinantes. NAU Soc. 2020; 11(20):131-136..

Foram, então, organizados grupos de trabalho para ações em diferentes pontos das ruas de Salvador e com diferentes ofertas do programa. Tais grupos eram compostos, em sua maioria, pelos trabalhadores do equipamento e alguns membros do Coletivo Nós nas Ruas. As ações tinham como base o componente educativo, na perspectiva da educação em saúde com base no pensamento crítico sobre a realidade, e se constituiu em um momento para reforçar a necessidade da adoção, dentro das possibilidades, da etiqueta respiratória e das medidas de higiene.

Uma parte do grupo atuava pela manhã na Unidade de Apoio à Rua (UAR), localizada no Largo dos Mares, em que há espaço para banho e uso de sanitário, realização de escuta técnica qualificada da população assistida, oferta de kits de lanche e kits de higiene contendo sabonete, creme dental, escovas de dente, papel higiênico, shampoo, preservativos, absorventes, além de panfletos com informações gerais sobre a Covid-19 e orientações sobre autocuidado.

A outra parte, por sua vez, desenvolveu as ações no turno vespertino em pontos das ruas de Salvador onde, corriqueiramente, há permanência de pessoas em situação de rua, tais como Aquidabã, Piedade, Gamboa, Pela Porco, Largo dos Mares, Gravatá, Comércio, Chácara do Santo Antônio e Água de Meninos. Diante da problemática da Covid-19, em todos os locais ocorria a distribuição de kits de higiene, lanches, água e um intenso trabalho de orientações sobre a doença para proteção e promoção da saúde. Havia um esforço da equipe em ofertar a escuta sensível em um curto espaço de tempo ao que era colocado por todos e fazer encaminhamentos às demandas emergentes. Entretanto, era evidente a preocupação da equipe com a descaracterização da essência do trabalho proposto pelo Programa Corra pro Abraço2020 Programa Corra Pro Abraço. O corra pro abraço [Internet]. Salvador: Comvida; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://corraproabraco.wordpress.com/sobre/.
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,2121 Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado da Bahia. Corra pro abraço [Internet]. Bahia: SJDHDS; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: http://www.justicasocial.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=60.
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antes da ocorrência da pandemia, ou mesmo de estarem desenvolvendo ações puramente assistencialistas de distribuição de itens de higiene e lanche. Tal desconforto se deu também em virtude das abordagens de alguns atores que demonstravam como principal interesse, em palavras e/ou propostas descontextualizadas da realidade, encontrar motivação pessoal e/ou ocupar o tempo ocioso durante os primeiros meses de isolamento.

No processo analítico das questões levantadas pelos sujeitos envolvidos nas ações, delineou-se a importância de buscar o reconhecimento do limite entre a ética fundada na caridade e a assistência dirigida aos sujeitos vulnerados. Assim, em um contexto pandêmico, esse processo autoanalítico do coletivo teme a aproximação de uma noção da “emergência do vínculo”. A referida emergência, equivocadamente, pode reduzir a população em situação de rua àquela “que necessita”, a qual, dada essa condição, está submetida ao imperativo dos caridosos2323 Caponi S. Da compaixão à solidariedade: uma genealogia da assistência médica [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/dg2mj/pdf/caponi-9788575415153.pdf.
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. Essa compreensão distorcida reforça a importância das críticas nos momentos autoanalíticos, que interroguem os limites e os riscos das intervenções propositivas e, ao mesmo tempo, tenham clareza do perigo das intervenções assistencialistas fundamentadas na caridade. Ações dessa natureza reforçam a condição de vulneração e a invisibilidade do grupo social envolvido, demarcadas nos desejos e “engajamento” dos “benfeitores”. Nesse processo, há um grande risco de se estabelecer uma divisão entre aquele que se engrandece ao realizar a ação e o que se diminui ao recebê-la2323 Caponi S. Da compaixão à solidariedade: uma genealogia da assistência médica [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/dg2mj/pdf/caponi-9788575415153.pdf.
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É importante esclarecer que a preocupação das equipes é profundamente relevante e reforça a necessidade de se visibilizar a heterogeneidade nos modos de sobreviver à pandemia. Essa realidade provoca fortemente a sociedade a refletir que não se trata apenas do enfrentamento da emergência, mas também da violência estrutural que persiste e atinge diferentes segmentos22 Freitas ARR, Napimoga M, Donalisio MR. Análise da gravidade da pandemia de Covid-19. Epidemiol Serv Saúde. 2020; 29(2):e2020119.,55 Schuch P, Furtado CDC, Sarmento CS. Covid-19 e a população em situação de rua: da saúde à segurança pública? [Internet]. Rio Grande do Sul: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/covid-19-e-a-populacao-em-situacao-de-rua-da-saude-a-seguranca-publica.
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,77 Santos JAF. Covid-19, causas fundamentais, classe social e território. Trab Educ Saúde. 2020; 18(3):e00280112., 1111 Calmon TVL. As condições objetivas para o enfrentamento ao Covid-19: abismo social brasileiro, o racismo, e as perspectivas de desenvolvimento social como determinantes. NAU Soc. 2020; 11(20):131-136.. O entendimento de que a população em situação de rua é um grupo social sustentado na ideia da “falta” e que a simples retirada das ruas esgotaria o debate constitui-se como problemática persistente também no enfrentamento do Sars-CoV-255 Schuch P, Furtado CDC, Sarmento CS. Covid-19 e a população em situação de rua: da saúde à segurança pública? [Internet]. Rio Grande do Sul: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/covid-19-e-a-populacao-em-situacao-de-rua-da-saude-a-seguranca-publica.
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. Mesmo com a importante contribuição das políticas de saúde e de assistência social no Brasil, é necessário destacar a persistência de ações paliativas e verticalizadas com caráter estritamente solidário. A experiência de enfrentamento da pandemia explicitou aspectos que explicam isso: o Estado opera uma política que prioriza vidas e a população em situação de rua integra o grupo negligenciado1212 Mbembe A. Necropolítica. Arte Ensaios. 2016; 2(32):123-151..

No processo de reconhecimento da realidade das pessoas nas ruas, em consonância com as especificidades apresentadas pela pandemia, as duas equipes mencionaram um fato em comum que lhes chamou a atenção: havia um número considerável de idosos que sobreviviam nas ruas. Diante do cenário, a equipe do Programa Corra pro Abraço buscou realizar um levantamento do perfil do grupo de pessoas atendidas nas ações. O processo de execução do referido levantamento ocorreu por meio dos instrumentos de registro de atendimento que permitiu monitorar o perfil dessas novas pessoas. Primeiramente, foi observado um sensível aumento da população em situação de rua nos territórios onde atua. Constatou-se que entre março e outubro de 2020 foram atendidas 3.876 pessoas, as quais nunca haviam passado pelo atendimento do programa. Destaca-se que, entre essas, trezentas eram pessoas na fase idosa.

Sabe-se do risco aumentado para o adoecimento, as complicações e o pior prognóstico da Covid-19 na população em situação de rua confirmados pelas elevadas prevalências de comorbidades recorrentes como doenças crônicas, tuberculose, HIV/Aids e consumo de álcool e drogas2424 Brasil. Ministério da Saúde. Manual sobre o cuidado à saúde junto a população em situação de rua [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2012 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://cetadobserva.ufba.br/sites/cetadobserva.ufba.br/files/539.pdf.
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. A permanência nas ruas, como já apontado, também pode ser resultado de diferentes causas, inclusive do exercício da autonomia que possibilite, de alguma maneira, desviar das normas de inserção social instituídas, bem como de experiências vivenciadas na sociedade88 Pinho RJ, Pereira APFB, Lussi IAO. Homeless, the world of work and the specialized reference centers for population in street situation (centro pop): perspectives on actions for productive inclusion. Braz J Occup Ther. 2019; 27(3):480-495. Doi: https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO1842.
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Durante as ações, foi identificado que as informações veiculadas à sociedade em geral sobre a pandemia não contemplavam o contexto desse grupo social. Por conta disso, foram realizadas conversas com pessoas em situação de rua elucidando os motivos de as ruas estarem vazias, quais os modos de transmissão, sinais e sintomas da Covid-19. Sugerimos que eles evitassem o compartilhamento de cachimbos e outros objetos para atenuar as chances de contaminação, estimulamos a higienização das mãos quando possível, e solicitamos que compartilhassem as informações com outros conviventes da rua.

Nas reuniões semanais de avaliação e planejamento eram discutidos os desafios, avanços, percepções e estratégias para a continuidade do trabalho, de modo que o maior número de pontos de aglomeração da cidade com população em situação de rua fosse contemplado. Ao mesmo tempo, havia uma preocupação dos trabalhadores em relação à sua própria saúde física, emocional e em relação à garantia de equipamentos de proteção individual pelo Estado, especialmente máscaras adequadas, e quanto às estratégias de autocuidado a serem adotadas por eles mesmos no período anterior, durante e após o horário de trabalho.

Ainda em relação às questões discutidas nesses encontros com as equipes, é importante considerar o que envolve as dificuldades nas condições do trabalho dos profissionais que atuam na linha de frente com população em situação de rua; e a falta de valorização da atuação profissional em alguns ambientes institucionais e extramuros2525 Alecrim TFA, Mitano F, Reis AA, Roos CM, Palha PF, Protti-Zanatta ST. Experience of health professionals in care of the homeless population with tuberculosis. Rev Esc Enferm USP. 2016; 50(5):808-815. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420160000600014.
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. Para além das questões crônicas associadas ao trabalho da assistência social e profissional de saúde no Brasil, tais equipes tinham a compreensão de que a estigmatização associada à população em situação de rua se estende para todo o grupo que atua com ela. Apesar dessa realidade, houve a preocupação de construir com a equipe o cotidiano de trabalho e adotar todas as medidas de biossegurança e assistência no processo.

Nesse clima de inseguranças e incertezas, o Coletivo Nós nas Ruas propôs momentos de diálogo sobre as recomendações das organizações de saúde, não somente em relação ao uso de máscaras e outros EPIs, mas também nos cuidados necessários durante o uso, a retirada e o armazenamento desses equipamentos. Somada a isso, foi reforçada a necessidade das medidas de higiene das mãos, redução do uso de pertences e acessórios pessoais nas atividades de campo, estratégias para o deslocamento considerando diferentes meios de transporte individuais ou coletivos, cuidados no retorno às residências e formas de lidar com o desgaste emocional gerado pela situação.

Gradativamente, ficava evidente a necessidade de ir além das recomendações gerais para investir em estratégias de enfrentamento afinadas com a cultura e com as precárias condições de vida da população em situação de rua. Afinal, a desigualdade, historicamente, é a base que sustenta a realidade desse grupo social. No fundo, não havia novidade nenhuma para as pessoas em situação de rua ou profissionais do Programa Corra pro Abraço em relação à forma com que a pandemia se estruturou na sociedade e, ao mesmo tempo, reafirmou as desigualdades55 Schuch P, Furtado CDC, Sarmento CS. Covid-19 e a população em situação de rua: da saúde à segurança pública? [Internet]. Rio Grande do Sul: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; 2020 [citado 19 Mar 2021]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/covid-19-e-a-populacao-em-situacao-de-rua-da-saude-a-seguranca-publica.
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, 1111 Calmon TVL. As condições objetivas para o enfrentamento ao Covid-19: abismo social brasileiro, o racismo, e as perspectivas de desenvolvimento social como determinantes. NAU Soc. 2020; 11(20):131-136..

É válido destacar que, ao longo do período de nove meses, foram cinco casos de Covid-19 na equipe de quarenta profissionais do Programa Corra pro Abraço, sendo que três desses foram profissionais que atuavam somente na sede, ou seja, sem atuação nas ruas. Tal realidade aponta um bom desempenho para a atuação em uma pandemia. Ademais, transporte extra foi providenciado para as equipes que tinham mais dificuldade para chegar ou sair do local do trabalho com o intuito de reduzir a exposição nos transportes públicos. Reduziram o uso de instrumentos, do tempo de permanência no campo e a própria carga horária da equipe só foi sendo reintegrada na medida em que foram aprendendo a lidar com as estratégias de prevenção. A orientação conduzida com a equipe do Programa Corra pro Abraço pelo Coletivo Nós nas Ruas foi fundamental para a adoção dessas e outras medidas.

O início da fase 2 foi marcado pela retomada das atividades econômicas do município com a reabertura de estabelecimentos, mediante adoção dos protocolos recomendados. Esse momento pré-eleitoral refletiu na grande massa um falso processo de superação da pandemia e do restabelecimento de padrões sociais e econômicos. Como a história vivida confirma a trajetória de sacrifícios presentes no cotidiano dos grupos marginalizados, suspeitava-se que a retomada das atividades revelaria a persistência das desigualdades. Em consequência, eles sentiram os desdobramentos negativos desse processo como, por exemplo, o fechamento de parte dos postos de distribuição de alimentos, possível redução da oferta de vagas emergenciais em Unidades de Acolhimento Institucional e outros. Tudo isso reforça a relevância, não apenas da parceria entre o Programa Corra pro Abraço e o Coletivo Nós nas Ruas em sua busca pela mobilização, mas também de diversos setores, movimentos sociais e entidades que, mesmo com as poucas ferramentas disponíveis, puderam questionar a persistência dominante da desigualdade socioeconômica e de acesso.

Os próximos passos envolvem o enfrentamento da lógica de um “novo normal”, pois partimos do entendimento de que essa lógica reflete o apagamento das injustiças sociais. O Programa Corra pro Abraço tem a intenção de investir no trabalho de levantamento de informações relacionadas ao acesso aos auxílios que garantiram renda e alimentação no período da pandemia. Intenciona-se, ainda, esclarecer as dificuldades de acesso aos serviços básicos como, por exemplo, o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) e os Centros de Referência de Assistência Social (Cras). Outra intenção é compreender o impacto da pandemia no uso de drogas nesses meses, observando a frequência e a qualidade no uso. Tais informações serão úteis para prosseguir no trabalho de sensibilização da sociedade, de busca pela garantia de direitos e tensionamento das instâncias gestoras pela garantia de respostas às necessidades.

Considerações finais

O trabalho do Coletivo Nós nas Ruas em parceria com o Programa Corra pro Abraço buscou somar esforços para o enfrentamento do impacto da Covid-19 na população em situação de rua de Salvador - BA. Todas as ações realizadas se sustentaram na premissa de que os fatores determinantes da situação de rua envolvem uma realidade complexa, plural e repleta de injustiças sociais. Os envolvidos foram provocados a estar conscientes de que a luta do momento ultrapassa a produção de espaços especializados para segregação dessas pessoas.

Diante de todo desafio que tem sido desenvolver este trabalho, fica evidente a importância da criação e da implementação do Plano de Contingenciamento da Pandemia do Coronavírus (Covid-19) para a População em Situação de Rua. O referido plano também é reflexo das provocações oriundas da coordenação estadual do Movimento Nacional de População em Situação de Rua - Bahia.

Nesse cenário, o Coletivo Nós nas Ruas veio, ao longo dos meses, empenhando esforços para exercer seu dever de cidadania e de sensibilização dos diferentes grupos sociais (sociedade civil, comunidade acadêmica e gestão) em relação às lacunas no debate da visibilização social das pessoas em situação de rua. Tais lacunas são permeadas por realidades pulsantes, como a pobreza, o desamparo, a violência, as desigualdades sociais e o racismo, as quais permanentemente se entrecruzam e demarcam, obviamente, o enfrentamento da Covid-19 no território soteropolitano.

Nesse caminho, a interpretação da pandemia é realizada por um olhar mais amplo do que aquele obtido apenas com dados numéricos. Embora eles tenham sua importância, a compreensão, a comunicação e o uso equivocado do conhecimento epidemiológico tendem a responsabilizar os sujeitos pelo autocuidado, camuflar a perspectiva coletiva do adoecer e desresponsabilizar a gestão pública. A imprópria estratificação das categoriais sociais em classes com base nas condições socioeconômicas limita os segmentos afastados da produção e do modelo de organização social capitalista ao enquadramento como categoria vulnerabilizada e de extrema pobreza, sem considerar as particularidades da sua formação como grupo social. As narrativas e decisões propostas para o enfrentamento da pandemia no Brasil confirmaram isso. Assim, as ações do coletivo se sustentam também pelo reconhecimento da heterogeneidade de caminhos de sobrevivência antes, durante e após a pandemia, bem como pela não negação da existência de corpos historicamente e cotidianamente ameaçados de morte.

Não desconsideramos que a mobilização do Coletivo Nós nas Ruas ocorre em um momento histórico, caracterizado, sobretudo, por uma emergência em saúde pública. No contexto brasileiro, a cada momento, além da crise sanitária, o caráter de crise humanitária aprofunda-se. Diante desse cenário, o coletivo reconhece que nosso engajamento ocorre, portanto, com a adoção de ações também de caráter paliativo. Não acreditamos que elas, por si só, podem se desdobrar em mudanças de realidades robustas em médio e longo prazos.

Em um exercício autoanalítico, é salutar reconhecer que, na estrutura do próprio coletivo formado, contradições se delinearam e interrogam, por exemplo, o processo de associação ao coletivo ou as diferentes motivações para atuar nas ações. Refletimos que podem ocorrer por diferentes razões, entre as quais uma estratégia de contribuir com uma reparação social, intenções subjetivas de fazer algo no contexto da pandemia, de justificar o descumprimento das recomendações sanitárias de isolamento social e ofertar contribuições com a intencionalidade de conquistar a sensação de paz, benevolência e dever cumprido. Após nove meses do início das ações, os atores puderam analisar suas práticas no decorrer do trabalho e perceberam que, embora o Coletivo Nós nas Ruas tenha sido amparado pela institucionalidade, ficou evidenciado o engajamento “de universitários” e não “das universidades”.

Em longo prazo, reforça-se a importância da articulação intersetorial entre os atores sociais e trabalhadores de diferentes áreas que atuam com a população em situação de rua, especialmente as equipes de saúde e assistência social. Nos casos em que as frentes de trabalho dessas diferentes equipes atuam desarticuladas, isso reflete na compreensão da problemática pelos atores envolvidos e nos esforços despendidos ao grupo social vulnerado. Por tudo isso, a intencionalidade sociopolítica é fundamental para que as transformações (mesmo aquelas anteriores à pandemia) existam e permaneçam.

Agradecimentos

Agradecemos a todas as pessoas integrantes do Coletivo Nós nas Ruas, a toda a equipe do Programa Corra pro Abraço e em especial à população em situação de rua de Salvador - Bahia.

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  • Financiamento

    Os custos com a tradução e a taxa de publicação do artigo foram financiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2020
  • Aceito
    16 Mar 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br