Curadorias inventivas e participativas: ensinagem e ação/reflexão sobre os cotidianos de estudantes durante a pandemia

Inventive and Participatory Healing Spaces: teaching and action/reflection on the everyday lives of students during the pandemic

Curadurías inventivas y participativas: ensinagem y acción/reflexión sobre los cotidianos de los estudiantes durante la pandemia

Marina Leandrini de Oliveira Isis dos Reis Lacerda Eduarda Pereira Barbosa Joyce Aparecida Souza Abél Maria Eduarda Damasceno Sobrinho Taís Fernanda dos Santos Sobre os autores

Resumos

Considerando a escassez de espaços efetivos e afetivos de criação, reflexão e escuta que incitem o processo ensino-aprendizagem durante a pandemia de Covid-19, estruturou-se um projeto de ensino intitulado Curadorias Inventivas e Participativas. O presente trabalho constitui relato de experiência do referido projeto, cujo objetivo foi contribuir para a formação de terapeutas ocupacionais, favorecendo espaços de expressão, acolhimento e estudo. Os procedimentos foram estruturados em oito módulos sequenciais e seus resultados organizados em quatro categorias, a saber: Costurando a experiência: as curadorias vividas; Curadorias que conectaram: a formação de um coletivo; Ensinagem e as curadorias: contribuições para a formação profissional; e Outras ressonâncias. Compreende-se que o projeto contemplou seus objetivos, proporcionando uma experiência menos tradicional no âmbito do ensino acadêmico. Esteve comprometido com as relações entre as acadêmicas e seus cotidianos na pandemia.

Palavras-chave
Terapia Ocupacional; Cotidiano; Pandemia; Curadoria


Considering the lack of effective and affective spaces for creating, reflecting and listening that promote the teaching-learning process during the Covid-19 pandemic, we developed a project entitled Inventive and Participatory Healing Spaces. This work describes the experiences of this project, whose aim was to contribute to the professional training of occupational therapists, fostering the development of spaces of expression, welcoming and study. The results are grouped into the following four categories: weaving experience: lived healing spaces; healing spaces that connected: forming a collective; teaching and healing spaces: contributions to professional training; and other resonances. The findings show that the project met its objectives, providing a less traditional experience within academic teaching. The project was committed to relations between the students and their daily lives during the pandemic.

Keywords
Occupational therapy; The everyday; Pandemic; Healing spaces


Considerando la escasez de espacios efectivos y afectivos de creación, reflexión y escucha que inciten el proceso enseñanza-aprendizaje durante la pandemia de Covid-19, se estructuró un proyecto de enseñanza titulado Curadurías Inventivas y participativas. Este trabajo se constituyó como relato de experiencia del referido proyecto, cuyo objetivo fue contribuir con la formación de terapeutas ocupacionales favoreciendo espacios de expresión, acogida y estudio. Los procedimientos se estructuraron en ocho módulos secuenciales y sus resultados se organizaron en cuatro categorías, a saber: Costura de la experiencia: las curadurías vividas; Curadurías que conectaron: la formación de un colectivo: Ensinagem y las curadurías: contribuciones para la formación profesional y otras resonancias. Se entiende que el proyecto alcanzó sus objetivos, proporcionando una experiencia menos tradicional en el ámbito de la enseñanza académica. Estuvo comprometido con las relaciones entre las academias y sus cotidianos en la pandemia.

Palabras clave
Terapia ocupacional; Cotidiano; Pandemia; Curaduría


Introdução

Desde março de 2020, as mudanças impostas pela pandemia de Covid-19 têm atravessado os cotidianos e os projetos de vida, tanto de pessoas que têm possibilidades de se manter em isolamento social quanto daquelas que precisam estar em circulação pelas ruas e/ou espaços de trabalho, buscando condições de subsistência, procura e/ou oferta dos serviços de saúde, assistência social, segurança, entre outros11 Bregalda MM, Correia RL, Amado CF, Omura KM. Ações da terapia ocupacional frente ao coronavírus: reflexões sobre o que a terapia ocupacional não deve fazer em tempos de pandemia. Revisbrato Rev Interinst Bras Ter Ocup. 2020; 4(3):269-71.. A Terapia Ocupacional, por seu acúmulo e percurso profissional na elaboração de estratégias no campo das atividades e dos fazeres cotidianos, diante das novas realidades e/ou condições apresentadas, sensibiliza-se a produzir “reflexões e proposições que de fato dialoguem com os desafios colocados por essa situação sem precedentes”11 Bregalda MM, Correia RL, Amado CF, Omura KM. Ações da terapia ocupacional frente ao coronavírus: reflexões sobre o que a terapia ocupacional não deve fazer em tempos de pandemia. Revisbrato Rev Interinst Bras Ter Ocup. 2020; 4(3):269-71. (p. 270).

Nesse sentido, salienta-se o enfoque de terapeutas ocupacionais no conceito de cotidiano, como elemento de centralidade em seus estudos e práticas, particularmente nas últimas três décadas22 Galheigo SM. Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cad Bras Ter Ocup. 2020; 28(1):5-25..

Segundo Galheigo22 Galheigo SM. Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cad Bras Ter Ocup. 2020; 28(1):5-25.,33 Galheigo SM. O cotidiano na terapia ocupacional: cultura, subjetividade e contexto histórico-social. Cad Bras Ter Ocup. 2003; 14(3):104-9. o cotidiano pode ser compreendido “como construção sócio-histórica que possibilita conhecer as condições concretas de existência de sujeitos e coletivos”22 Galheigo SM. Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cad Bras Ter Ocup. 2020; 28(1):5-25. (p.5) e se configurou como um conceito de destaque para a Terapia Ocupacional brasileira desde 1988, sendo que a partir de 1990 se afirmou como um dos eixos que orientaram práticas emancipatórias, conectado às perspectivas críticas na profissão.

Os debates e o uso do conceito ou da ideia de cotidiano na produção nacional em terapia ocupacional vêm crescendo significativamente desde 2010, tendo em suas bases teóricas autores como Agnes Heller e Henri Lefebvre22 Galheigo SM. Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cad Bras Ter Ocup. 2020; 28(1):5-25..

As cenas do dia a dia servem de testemunho de um espaço-tempo moldado pela cultura, pelas histórias de vida e pelas relações sociais. Por meio do cotidiano é possível acessar a experiência, o real, o imaginário, a memória, os sonhos, os sentimentos, as necessidades e os afetos22 Galheigo SM. Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cad Bras Ter Ocup. 2020; 28(1):5-25.. (p. 7)

Com base nessas concepções, entendendo as realidades integradas à cultura e ao contexto sócio-histórico, direciona-se aqui o debate aos cotidianos contextualizados nas demandas da educação (ensino superior), neste período de pandemia e de suspensão de algumas das atividades presenciais, bem como suas consequências na vida de estudantes, educadores, suas famílias e respectivo entorno.

Considera-se que nessas circunstâncias estão mais escassos os espaços de proximidades efetivas e afetivas de reflexão e escuta que incitem o processo ensino-aprendizagem sobre os fazeres coletivos para acessar, estudar e compor com/para/nos cotidianos.

Diante desse cenário, estruturou-se um projeto de ensino para acadêmicos do curso de Terapia Ocupacional realizarem experimentações e criações expressivas intituladas “Curadorias inventivas e participativas”. O presente artigo relata a experiência desse projeto(g(g)Projeto de ensino aprovado em agosto de 2020, pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. O projeto de ensino caracteriza-se como atividade teórica e/ou prática extracurricular “que contribui para a formação acadêmico-profissional e para o desenvolvimento de abordagens didático-pedagógicas inovadoras e criativas” (Conselho de Ensino, 04/2021).).

A proposta narrada teve como objetivo contribuir com a formação de terapeutas ocupacionais por meio do favorecimento de conexões entre discentes-docentes, durante o período de recomendação de isolamento social, e proporcionar espaços de expressão, acolhimento, diálogos e estudos. Intencionou-se compor uma formação por uma perspectiva reflexiva, ética, estética e política para discutir e acessar os cotidianos diante da Covid-19.

Esse projeto se contextualizou como uma das ações do coletivo ProCult: Diversidade e Cidadania, composto por um grupo de professoras do curso de terapia ocupacional da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), que desde 2015 tem empreendido atividades interconectadas de ensino, pesquisa e extensão, relacionadas às temáticas cultura, diversidade e cidadania44 Cardoso PT, Oliveira MLO, Carvalho BGE, Monteiro CF. ProCult: diversidade e cidadania – uma proposta política e poética na academia. In: Silva CR. Atividades humanas & terapia ocupacional. São Paulo: Hucitec; 2019. p. 265-86..

Inspirações para elaboração da proposta

Partindo do conceito de cotidiano anteriormente explicitado e com inspiração em publicação recente de Quarentei et al.55 Quarentei MS, Paolillo AM, Silva CR, Freitas HI, Cardinalli I, Ambrosio L, et al. NÓS-EM-PANDEMIA: um ANTImanual do fazer em tempos de paradoxos na atividade. Revisbrato Rev Interinst Bras Ter Ocup. 2020; 4(3):302-17., propôs-se um projeto que possibilitasse a reflexão crítica e criativa sobre o período vivenciado.

Nessa direção, abraçou-se uma perspectiva na Terapia Ocupacional que escapa a estratégias prescritivas, compreendendo que a amplitude dos fazeres humanos “não cabe em um manual”55 Quarentei MS, Paolillo AM, Silva CR, Freitas HI, Cardinalli I, Ambrosio L, et al. NÓS-EM-PANDEMIA: um ANTImanual do fazer em tempos de paradoxos na atividade. Revisbrato Rev Interinst Bras Ter Ocup. 2020; 4(3):302-17. (p. 302).

Esse processo, exige de nós menos manuais do como se adaptar a quarentena e mais possibilidades de devir, de agir sobre si e sobre os novos mundos que se produzem em quarentena, exige uma intensa atividade sensível dos abalos e às linhas de fuga, ao que paradoxalmente assinala e escreve onde a vida é fecunda, onde se pode mais-vida55 Quarentei MS, Paolillo AM, Silva CR, Freitas HI, Cardinalli I, Ambrosio L, et al. NÓS-EM-PANDEMIA: um ANTImanual do fazer em tempos de paradoxos na atividade. Revisbrato Rev Interinst Bras Ter Ocup. 2020; 4(3):302-17.. (p. 317)

No referido texto-inspiração, de forma poética e imagética, são desveladas provocações para ser-pensar-fazer a Terapia Ocupacional pela “apreciação da atividade humana, da experimentação e do com-partilhar de experiências cotidianas singulares (...)”55 Quarentei MS, Paolillo AM, Silva CR, Freitas HI, Cardinalli I, Ambrosio L, et al. NÓS-EM-PANDEMIA: um ANTImanual do fazer em tempos de paradoxos na atividade. Revisbrato Rev Interinst Bras Ter Ocup. 2020; 4(3):302-17. (p. 317). Os cotidianos se apresentam nas vias da criação de fazeres expressivos e compartilhados, na “importância da vida compartilhada, da vida em coletividade”55 Quarentei MS, Paolillo AM, Silva CR, Freitas HI, Cardinalli I, Ambrosio L, et al. NÓS-EM-PANDEMIA: um ANTImanual do fazer em tempos de paradoxos na atividade. Revisbrato Rev Interinst Bras Ter Ocup. 2020; 4(3):302-17., (p. 317) que permite a assunção das complexidades, fragilidades e potências das atividades humanas66 Quarentei MS. Terapia ocupacional e produçao de vida. In: Anais do 7o Congresso Brasileiro de Terapia Ocupacional; 2001; Porto Alegre. Porto Alegre: Abrato; 2001., em uma composição importante para a formação de terapeutas ocupacionais.

Curadorias inventivas e participativas

Para apresentar a proposta, recupera-se a palavra curadoria em sua origem do termo curator que, do latim, associa-se a tutor ou aquele que tem algo sob o seu cuidado. Tomando emprestado esse conceito das artes, parte-se da fundamentação de mediação cultural para refletir sobre curadoria educativa(h(h)Termo cunhado por Luis Guilherme Vergara, em 1996, segundo Martins7 (p.3).), compreendendo aquele que medeia (no caso do presente projeto, os acadêmicos com a educadora), como curador que “seleciona e escolhe suas imagens entre as suas ‘gavetas de guardados’ como um bricoleur que trabalha com os meios disponíveis e como um propositor que inventa e reinventa (...)”77 Martins MC. Curadoria educativa: inventando conversas. Reflex Ação. 2006; 14(1):9-27. (p. 1).

Percebendo e experimentando o cotidiano, acredita-se que podemos nos constituir como curadores de obras-expressões que provoquem deslocamentos sensíveis(i(i)Deslocamentos sensíveis na perspectiva de Silva et al.8 (p. 495) voltam-se aos “movimentos e fazeres tangíveis ou intangíveis, que se desvelam pelos sujeitos a partir de provocações diversas”. Silva et al.9 (p. 34) apontam que, por meio de “deslocamentos sensíveis”, produzidos tanto no âmbito de criações coletivas quanto nos processos criativos individuais, acontece a descoberta de que arte é criar e todo ser cria enquanto vive, e essa vivência de criação tem potência clínica, social, cultural, orgânica, política e expressiva.), produzindo outros sentidos, no caminho da produção de mais vida (considerando e extrapolando a sobrevida) durante a pandemia. Acredita-se que a aproximação, o contato e a afetação com base em disparadores (imagem, fotografia, vídeo, filme, poema, livro, música, dança, teatro/dramatização, instalações artísticas, intervenções urbanas ou um pensamento) podem provocar os sentidos77 Martins MC. Curadoria educativa: inventando conversas. Reflex Ação. 2006; 14(1):9-27.. Esse instiga uma perspectiva “mais profunda e ao mesmo tempo sem pressa, ultrapassando o reconhecimento, o fim utilitário das imagens”77 Martins MC. Curadoria educativa: inventando conversas. Reflex Ação. 2006; 14(1):9-27. (p.5).

A curadoria aqui delineada comunga da orientação de uma das práticas realizadas por Martins77 Martins MC. Curadoria educativa: inventando conversas. Reflex Ação. 2006; 14(1):9-27. (p. 4) intitulada “nutrição estética”, “em que produções artísticas em diferentes linguagens são apresentadas para alimentar olhares, percepções, pensamentos”.

Entende-se que a construção de um acervo-bricolagem por meio de múltiplos e acessíveis elementos, nesse movimento de nutrição estética, pode figurar como formas para despertar experiências que, além de ampliar os repertórios, afetam aqueles que participam das partilhas, a começar de si próprio77 Martins MC. Curadoria educativa: inventando conversas. Reflex Ação. 2006; 14(1):9-27..

Na mediação, entre tantos, estamos atentos às falas, aos silêncios, às trocas de olhares, ao que é desvelado e velado, aos conceitos e repertórios que ditam os gostos, os modos de pensar, perceber e deixar-se ou não envolver pelo contato, com a experiência de conviver com a arte77 Martins MC. Curadoria educativa: inventando conversas. Reflex Ação. 2006; 14(1):9-27. (p. 3).

Considerando essas mediações, recorre-se a Monteiro et al.1010 Monteiro CF, Carvalho BGE, Cardoso PT, Oliveira ML. Terapeuta ocupacional: fundamentar-se em campos férteis de experimentações. Cad Bras Ter Ocup. 2019; 27 Supl. que, refletindo sobre a formação na terapia ocupacional, apontam como “campos férteis de experimentações” as estratégias de ensino que favoreçam o ensino sobre a “singularidade da profissão, seus requisitos científicos e suas práticas transformadoras” por meio da promoção de “espaços que oportunizem a conexão do aporte teórico às vivências práticas, favorecendo experimentações que deem vazão ao potencial criativo e transformador”.

Assim, a proposta apresentada visou criar experimentações constituídas pela elaboração de acervos pessoais e grupais, com múltiplos elementos expressivos-artístico-culturais, na construção de curadorias que fossem inventivas e participativas. Essa bricolagem foi considerada o meio e o fim para acessar/refletir/agir nos cotidianos imersos na pandemia.

Inspirações teóricas

A experiência relatada ancorou-se nas contribuições de Bondía1111 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; (19):20-8.,1212 Bondía JL. Experiência e alteridade em educação. Reflex Ação. 2011; 19(2):4-27. para embasar a relevância da experimentação no âmbito da educação, e em Freire1313 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2011., na compreensão da formação como processo emancipador que se dá por meio de produções dialógicas, considerando os saberes plurais e a complexidade intrínseca do processo de ensino-aprendizagem.

Bondía1111 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; (19):20-8. (p. 20) propõe entender a educação “a partir do par experiência/sentido”, sendo a experiência aquilo que nos passa e nos toca. O autor se mostra convencido de que há uma lógica atual de destruição da experiência e que muitas instituições educacionais impossibilitam as experimentações, ou seja, “que alguma coisa nos aconteça”1111 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; (19):20-8. (p. 23).

Argumenta que a “experiência e o saber que dela deriva e que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida” têm se tornado mais raros. Essa escassez de experiência estaria relacionada a aspectos como o excesso de informação, de opinião, de trabalho e a falta de tempo1111 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; (19):20-8. (p. 27). Em relação ao excesso de informação e sua diferenciação com a experiência (informação versus experiência), o autor exemplifica que após participarmos de conferências, ler livros ou fazer viagens, por exemplo, podemos dizer que sabemos coisas que não sabíamos antes e temos mais informação, mas ao mesmo tempo podemos dizer que “nada nos aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo o que aprendemos nada nos sucedeu ou nos aconteceu”1111 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; (19):20-8. (p.22).

Conectando-se a essa contribuição do autor, pretendeu-se disparar reflexões sobre os cotidianos no campo da experiência, e para isso buscou-se forjar momentos que requerem

um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço1111 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; (19):20-8. (p. 24).

A curadoria que intencionou “cultivar a atenção e a delicadeza” quis acessar os cotidianos de vida pautados na realidade concreta no tempo presente. Assim, complementarmente, resgatam-se pensamentos freirianos acerca da conscientização (consciência crítica e transformadora) e ação1414 Freitas LAA, Freitas ALC. Freire e Marx, os caminhos da dialética: ação e reflexão para transformação [Internet]. In: Anais do 8o Colóquio Internacional Paulo Freire; 2013; Recife. Recife: Centro Paulo Freire; 2013 [citado 4 Maio de 2020]. Disponível em: http://repositorio.furg.br/handle/1/4762?show=full
http://repositorio.furg.br/handle/1/4762...
(p. 6), em encontros voltados para experimentações e aprendizagens em relações horizontalizadas que possam proporcionar “a atitude de transformação da realidade conhecida”.

Por fim, os estudos-apreciações sobre as artes e a cultura, na interlocução ao ensino, se conectam a experiências anteriores desenvolvidas, particularmente nos âmbitos estético, artístico e cultural em Terapia Ocupacional1515 Maximino VS, Liberman F, Iglesias AA. Práticas artísticas e corporais na formação de terapeutas ocupacionais: por uma aprendizagem inventiva. In: Silva CR. Atividades humanas & terapia ocupacional. São Paulo: Hucitec; 2019. p. 131-56.

16 Inforsato EA, Buelau RM, Castro ED, Lima EMFA. Arte, saúde e cultura na formação em terapia ocupacional: atividades, corpo e produção de subjetividade na experiência do PACTO. In: Silva CR. Atividades Humanas & Terapia Ocupacional. São Paulo: Hucitec; 2019. p.131-56.
-1717 Silva CR, Cardinalli I, Silvestrini MS, Prado ACSA, Lavacca AB. Proposições da terapia ocupacional na cultura: processos sensíveis e demandas sociais. In: Silva CR. Atividades humanas & terapia ocupacional. São Paulo: Hucitec; 2019. p. 235-61. . Aqui, essa perspectiva compôs, com as possibilidades de compreender formas/caminhos/potências para realizar leituras de mundo, refletir sobre/nos cotidianos, possibilitando o acolhimento, a expressão e a socialização.

Percurso metodológico

O presente trabalho caracteriza-se como relato de experiência do projeto de ensino “Curadorias inventivas e participativas: proposta de ação/reflexão sobre/nos cotidianos em pandemia”, traçando interfaces com contornos metodológicos inspirados na bricolagem(j(j)“Oriundo do francês, o termo bricolage significa um trabalho manual que aproveita materiais diferentes. [...] Adotando uma postura ativa, a bricolagem rejeita as diretrizes e roteiros preexistentes, para criar processos de investigação ao passo em que surgem as demandas”18 (p. 610).)1818 Neira MG, Lippi BG. Tecendo a colcha de retalhos: a bricolagem como alternativa para a pesquisa educacional. Educ Real. 2012; 32(2):607-25.. Isso pode ser compreendido como um caminho que pretende se descolar de abordagens reducionistas ao englobar as subjetividades e os posicionamentos dos atores sociais, construindo experiências por múltiplas vozes e, dessa forma, constituindo um rigor que se afirma na consulta consciente de uma diversidade de posições1818 Neira MG, Lippi BG. Tecendo a colcha de retalhos: a bricolagem como alternativa para a pesquisa educacional. Educ Real. 2012; 32(2):607-25.. Segundo Neira e Lippi1818 Neira MG, Lippi BG. Tecendo a colcha de retalhos: a bricolagem como alternativa para a pesquisa educacional. Educ Real. 2012; 32(2):607-25. (p. 611), no campo da pesquisa, o bricoleur compreende o processo interativo como aquele “influenciado pela história pessoal, biografia, gênero, classe social e etnia, dele e daquelas pessoas que fazem parte do cenário investigado. O produto final é um conjunto de imagens mutáveis e interligadas”.

Essa orientação teórica se entrelaça aos procedimentos metodológicos empreendidos, ou seja, ao desenvolvimento da curadoria77 Martins MC. Curadoria educativa: inventando conversas. Reflex Ação. 2006; 14(1):9-27..

[...] Todo recorte é comprometido com um ponto de vista que se elege, exercendo a força de uma ideia, de um conteúdo que é desejo explorar ou de uma temática possível de desencadear um trabalho junto aos alunos. Selecionar e combinar são, então, uma interpretação do professor-pesquisador77 Martins MC. Curadoria educativa: inventando conversas. Reflex Ação. 2006; 14(1):9-27. (p. 5).

Reitera-se, portanto, que, de forma participativa, a ação teve como proposta a elaboração de curadorias de múltiplas expressões artístico-culturais na construção de um acervo-bricolagem que possibilitasse aos acadêmicos a reflexão-discussão-ação acerca dos cotidianos em pandemia.

As mediadoras na curadoria em questão foram as próprias acadêmicas que, em conjunto com a docente, escolheram as “obras-elementos” que compuseram os acervos pessoais e coletivos, assim como realizado em curadorias artísticas e educativas.

Para estruturação dessa proposta, organizaram-se módulos sequenciais, realizados integralmente de forma remota, a saber:

Módulo 1: Apresentação do projeto por meio de sensibilizações, textos e reflexões acerca das possibilidades de aproximações/leituras dos cotidianos. Módulo 2: Experimentações mediadas por produções e expressões artístico-culturais em situações cotidianas. Partilhas e registros em formato de narrativas. Módulo 3: Primeira curadoria: elaboração de um acervo pessoal. Partilhas e registros pessoais. Módulo 4: Elaboração de um acervo coletivo por meio das curadorias iniciais. Partilhas e registros. Módulo 5: Laboratório de experimentação para criação de material expressivo pessoal (de acordo com os recursos disponíveis em suas casas). Partilhas e registros. Módulo 6: Laboratórios de experimentação para criação de material expressivo coletivo. Partilhas e narrativas grupais. Módulo 7: Revisitar, atualizar, historicizar, reinventar os acervo-bricolagens criados nos módulos anteriores. Módulo 8: Fechamentos e proposições para seguir.

Cabe mencionar que antes de iniciar o projeto foi realizada a divulgação, por e-mail e WhatsApp, aos acadêmicos do curso de graduação em terapia ocupacional da UFTM, sendo que cinco estudantes se inscreveram e participaram dos encontros. Infere-se que, como as turmas estavam inseridas em atividades relacionadas às disciplinas remotas (período suplementar), o interesse pelo projeto extracurricular possa não ter sido convidativo para um grande número de estudantes. Ainda, deve-se considerar a afinidade (ou não) pela linguagem do projeto, compreendendo que, embora o curso possa provocar aproximações às perspectivas estético-artístico-culturais, o interesse entre os estudantes e a ênfase do curso em tais abordagens varia. Por outro lado, pondera-se, mais à frente, que o número reduzido de participantes foi um aspecto que beneficiou as discussões.

As atividades aconteceram nos meses de setembro e outubro de 2020, com encontros síncronos semanais de duas horas de duração, utilizando a plataforma virtual Google Meet. Além desses, foram propostas também atividades assíncronas (leituras, buscas e experimentações pessoais e escrita de narrativas).

Ao longo do projeto, as participantes identificaram o processo como singular entre as vivências acadêmicas e se sentiram mobilizadas a narrar a experiência vivida, desejando partilhar as contribuições do projeto em seus fazeres cotidianos e na formação. No módulo oito, dentre as “proposições para seguir”, emergiu a organização de uma escrita coletiva desse texto.

O relato da experiência, descrito pelas próprias participantes, acontece por uma perspectiva cartográfica1919 Kastrup V, Passos E. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal Rev Psicol. 2013; 25(2):263-80., tratando-se de um processo vivenciado, mapeado e narrado. Para apresentar os resultados, as participantes construíram sínteses temáticas com base nos seus registros pessoais e acervos das curadorias.

Costurando a experiência: as curadorias vividas

As ações do projeto foram se estruturando em uma espiral crescente de envolvimento das integrantes com as atividades, caminhando desde a contemplação à experimentação gradual nas curadorias (por recursos imagéticos, músicas, poemas, entre outros) até as criações pessoais e coletivas. Os conteúdos selecionados para as curadorias foram acessados tanto por ferramentas digitais como também em acervos pessoais, dentro do possível e disponível para cada participante, incluindo trechos de livros, fotografias, músicas, recortes, entre outros.

Inicialmente as participantes foram convidadas a entrar em contato com elementos variados, à própria escolha, que compunham seus cotidianos e selecionar, dentre eles, os que despertavam deslocamentos e reflexões sobre os fazeres pessoais. Posteriormente, foi proposto o contato com experimentações que saíssem do usual, do corriqueiro e das suas preferências. Naquele momento, foram proporcionados espaços para a escuta, o acolhimento e a reflexão. As discussões passaram por temáticas como: conceito de cotidianos e atividades humanas; o papel da arte e da criação nos cotidianos; a contemplação e as experiências no ensino superior; as vivências e reflexões em sociedade no momento da pandemia. Os arremates eram alinhavados com possíveis perspectivas do ser/fazer Terapia Ocupacional.

Nessas atividades, as participantes foram organizando os acervos pessoais e coletivos. Para viabilizar as construções foi criada uma pasta compartilhada na plataforma Google Drive. Organizaram-se subpastas para cada módulo contendo: a) Atividades da semana; b) Textos; c) Acervo das curadorias inventivas e/ou laboratório de criações; d) Espaço para partilhas; e) Sonhos e projetos coletivos.

Após a estruturação dos acervos, iniciou-se o processo dos “Laboratórios de criação”, inicialmente pessoais e depois coletivos. Entre as criações pessoais estavam: bordados, poemas, fotografias, audiotextos, colagens e vídeos. As escolhas partiram de desejos pessoais de experimentação.

A quarta experiência, a criação! A experiência mais potente que tive neste projeto foi o de criar algo do zero, sozinha. Inicialmente eu queria criar um poema, como acho linda a forma que os poetas usam as palavras de uma forma encantadora, mas o quanto é difícil essa tarefa! Tive que aceitar que, por hora, o que consegui criar foi um texto corrido, sem estrofes, sem versos, mas com frases e parágrafos que me fizeram pulsar o coração!

(Curadora MEDS)(k(k)Os relatos apresentados compõem as narrativas das participantes escritas ao longo dos módulos e ao final do oitavo encontro. As narrativas se configuraram como diário de anotações das vivências síncronas e das experimentações pessoais.)

As criações foram apresentadas, acolhidas, contempladas e mediaram reflexões e resgates de histórias de vida, das vivências em pandemia e de pontes entre as curadorias e as práticas profissionais.

Figura 1
Laboratório de criação pessoal (bordado)
Figura 2
Laboratório de criação pessoal (poema)
Figura 3
Laboratório de criação pessoal (fotografia de vídeo)

Em um dos encontros, os fluxos e partilhas em grupo levaram as participantes a escolher a colagem como técnica para realizarem conjuntamente. Decidiu-se que essa seria feita de duas formas: uma com elementos de todo o grupo, confeccionada paralelamente por cada um dos participantes, e outra realizada por todas, coletivamente. As integrantes trocaram imagens selecionadas para a primeira colagem e fizeram juntas, em um encontro síncrono, a segunda. As colagens produziram associações simbólicas que fizeram emergir discussões de aspectos socioculturais sobre ser mulher, o feminino e os feminismos, sistemas sociais e ecologias, entre outros tópicos conectados ao contexto e à terapia ocupacional. Os debates de todos os módulos estiveram relacionados às experimentações das participantes em seus cotidianos, articulados com textos que subsidiam o fazer-pensar profissional.

Figura 4
Laboratório de criação coletiva (colagem)(l(l)Fontes para a colagem: Google Imagens®. Imagem editada para desfocar a colagem e preservar a identificação dos elementos selecionados.)

Destaca-se que as pastas virtuais partilhadas constituíram gradualmente espaços de trocas que deixaram de ser disparados apenas pela docente e foram sendo apropriados pelas integrantes em um movimento de autonomia e pertencimento.

[...] era possível que compartilhássemos em uma pasta os conhecimentos teóricos que inspiraram e reuniram uma gama de saberes diferentes que cada vez mais se tornavam nítidos e passíveis de conexão com a prática.

(Curadora IRL)

Curadorias que conectaram: a formação de um coletivo

O projeto contou com a participação de acadêmicas de diferentes períodos do curso (terceiro, quinto e sétimo) e uma docente, sendo que elas não tinham em seus repertórios acadêmicos proximidade e/ou convivência. A dinâmica dos encontros ofereceu gradualmente a descoberta sobre as possibilidades de trocas, sendo identificados pelas participantes conexões e vínculos que se deram pela partilha dos cotidianos, pelas leituras sociais e atividades realizadas.

Por mais que eu conheça as discentes do projeto só de vista, este projeto fez com que eu sentisse que eu as conhecesse há muito tempo.

(Curadora JASA)

As participantes permitiram que as curadorias ocupassem espaços em seu dia a dia, desvelando a organização de um grupo por meio de articulações na vida universitária e pessoal. Referenciando-se em Bastos2020 Bastos ABBI. A técnica de grupos-operativos à luz de Pichon-Rivière e Henri Wallon. Psicol Inf. 2010; 14(14):160-9., na discussão de grupos operativos à luz de Pichon-Rivière, destacam-se as interações grupais, transpostas para os encontros do projeto, compostas por “referenciar-se no outro, encontrar-se com o outro, diferenciar-se do outro, opor-se a ele e, assim, transformar e ser transformado por este”2020 Bastos ABBI. A técnica de grupos-operativos à luz de Pichon-Rivière e Henri Wallon. Psicol Inf. 2010; 14(14):160-9. (p. 162).

No caso desse pequeno grupo que se formou na realização das curadorias, o número restrito de integrantes foi considerado importante para as relações estabelecidas, por ter sido um espaço amplo de compartilhamento de experiências e se tornado um lugar de identificações e de diferenciações2020 Bastos ABBI. A técnica de grupos-operativos à luz de Pichon-Rivière e Henri Wallon. Psicol Inf. 2010; 14(14):160-9..

Por ser um grupo pequeno, foi muito fácil estabelecermos conexões umas com as outras. Nesse grupo todas nós tínhamos lugar de fala e éramos ouvidas. O que é muito difícil de se fazer de forma remota, já que muitas pessoas costumam se acanhar.

(Curadora EPB)

Nas discussões desse coletivo, nos movimentos de olhar-perceber as realidades no cenário atual de isolamento social e crise sanitária, emergiu o debate sobre as repercussões desse momento em sociedade, particularmente para as mulheres (considerando diferentes marcadores sociais, como classe e raça), evidenciando que a relevância de se estabelecer conexões fortaleçam coletivos-bandos para re-existir e se organizar, buscando a criação de modos de vida inventivos diante de situações de violência e de escassez de possibilidades2121 Apsis RP. Criação de bandos como movimento de resistência. Cad Subj. 2020; 1(21):6-13..

Foi expresso o desejo de continuidade dos fazeres partilhados nesse grupo, sendo que ao fim dos oito módulos se optou por dar sequência a reuniões com encaminhamentos para o projeto de escrita, sonhado e delineado coletivamente.

A conformação de espaços grupais de pertencimento, de produções afetuosas, de valorização das narrativas mostrou-se um lugar para apoiar e ser apoiado nas demandas cotidianas, bem como aprender-ensinar, como discutido a seguir.

Ensinagem(m(m)Para Anastasiou22, a ensinagem engloba um processo compartilhado entre docentes e discentes para o estabelecimento de construção de conhecimento, sendo o conteúdo a forma de ensinar e os resultados articulados e experimentados mutuamente.) e as curadorias: contribuições para a formação profissional

As curadorias inventivas e participativas em seu papel formativo buscaram produzir espaços de ensino que integravam experimentação, expressão e acolhimento, pressupondo horizontalidade nas relações e condições de aprendizagem em que as participantes-discentes pudessem constituir-se sujeitos da construção dos saberes, ensinando e aprendendo ao lado do educador1313 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2011..

A associação das experiências com os embasamentos teóricos foi essencial para a experiência fazer ainda mais sentido, visto que eles eram sempre complementares às nossas experimentações.

(Curadora MEDS)

As vivências foram pautadas nos diálogos, nas leituras, nas experiências vividas e não somente em conteúdos teóricos. As participantes compreenderam que o projeto foi importante para a formação ao passo que, como aponta Freire1313 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2011., ofereceu momentos para uma experiência de assumir-se como sujeito de seu conhecimento/reflexão.

Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto1313 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2011.. (p. 41)

A produção de autonomia na ensinagem2222 Anastasiou LGC. A ensinagem como desafio à ação docente. Rev Pedagógica. 2002; 4(8):65-77. foi mediada pela abertura das expressões pessoais durante as atividades, pela valorização dos saberes nos debates teórico-práticos, pela presença e pela participação ativa nos encontros e no interesse explícito em passar de agentes passivas para construtoras do processo e pertencentes a ele.

Me possibilitou estar do outro lado da moeda, sair de uma posição passiva para um lado onde me sinto capaz! A arte foi importante para que eu tivesse essa percepção, igual ao vínculo que foi construído momento a momento graças a liberdade e abertura para me colocar e me identificar nas falas que surgiam no grupo.

(Curadora IRL)

Dei passos em direção à mais perto de mim, e aqui dentro, descobri potências.

(Curadora MEDS)

Salienta-se que as curadorias possibilitaram vivenciar e apreciar atividades, bem como criar espaços para reflexões e análises sobre as experiências. Compreende-se que o sentir-pensar-fazer atividades contribui com a sensibilização e a construção do repertório profissional, sendo, portanto, elemento relevante no processo formativo desses profissionais.

A experimentação na formação em Terapia Ocupacional favorece uma aprendizagem inventiva, oferecendo ao estudante a possibilidade de reconhecer e ativar potenciais nele e no outro1515 Maximino VS, Liberman F, Iglesias AA. Práticas artísticas e corporais na formação de terapeutas ocupacionais: por uma aprendizagem inventiva. In: Silva CR. Atividades humanas & terapia ocupacional. São Paulo: Hucitec; 2019. p. 131-56.. Experimentando, são semeados os caminhos para a “constituição de um corpo que possa sustentar os encontros com outros”1616 Inforsato EA, Buelau RM, Castro ED, Lima EMFA. Arte, saúde e cultura na formação em terapia ocupacional: atividades, corpo e produção de subjetividade na experiência do PACTO. In: Silva CR. Atividades Humanas & Terapia Ocupacional. São Paulo: Hucitec; 2019. p.131-56. (p. 138). O estudante “que não experimentar-pensar seus próprios sentidos em atividade/ação/criação, com profunda percepção e significado da sua subjetividade nas relações e produções do seu meio, pouco desenvolverá de empatia para o fazer do outro”44 Cardoso PT, Oliveira MLO, Carvalho BGE, Monteiro CF. ProCult: diversidade e cidadania – uma proposta política e poética na academia. In: Silva CR. Atividades humanas & terapia ocupacional. São Paulo: Hucitec; 2019. p. 265-86. (p. 275).

Outras ressonâncias

As curadorias se mostraram como recursos para a reflexão/ação dos cotidianos em diferentes dimensões, como pode ser observado nos relatos a seguir:

Como lemos em um texto de Bondía, as experiências têm a potencialidade de quebrar o automatismo da vida cotidiana. E a pandemia me trouxe isso, um cotidiano mecânico, sem experimentações produtoras de vida. O projeto veio em direção oposta ao automatismo, me fez sair da zona de conforto e me permitiu procurar e criar territórios de experimentação, de produção de vida e de me reconectar comigo mesma nesse período de pandemia. Experimentações, essas, vivenciadas por meio de criações expressivas, onde a minha subjetividade, minha criatividade, meu modo de viver e sentir puderam ser vivenciados e compartilhados. [...] O projeto nos permitiu criar territórios de experimentação e vivências únicas em um momento em que o nosso cotidiano foi afetado, nos fazendo ressignificar nossas atividades.

(Curadora TFS)

A criação de um novo modo de experimentar o cotidiano de maneiras diversas transformou a minha rotina. As experiências levadas ao projeto, os debates de textos propostos, as atividades, foram autores da criação de um espaço seguro e de calmaria em meio ao caos da pandemia.

(Curadora EPB)

Os fragmentos trazem o convite para delinear a diferenciação entre cotidiano e a rotina ou reprodução automática do fazer, evidenciando a relevância das experimentações que consideram as singularidades e os seus contextos sócio-históricos.

Dessa forma, retoma-se o cotidiano como criação/ação sensível da realidade que integra os objetos de estudos e a atuação de terapeutas ocupacionais, compreendendo que é por meio do cotidiano que se alcança a experiência, a realidade, as memórias, os sonhos, sentimentos, necessidades, afetos, as formas de agir, pensar e sentir de sujeitos e coletivos22 Galheigo SM. Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cad Bras Ter Ocup. 2020; 28(1):5-25..

Considerações finais

O projeto relatado compõe uma experiência menos tradicional no âmbito do ensino acadêmico, embora breve e abarcando um número restrito de participantes, esteve comprometido com as relações entre as acadêmicas, as condições de vida e o estudo durante a pandemia. Afirma-se nesse processo o valor das instituições de ensino superior no país, compreendendo que, diante do cenário atual, se faz um compromisso ético, social e político das universidades em buscar se aproximar das realidades cotidianas, lançando mão de estratégias para o cuidado e o envolvimento dos acadêmicos.

Nesse relato, salienta-se a tessitura das redes cotidianas, entre seis mulheres que se permitiram vivenciar experiências acadêmicas por perspectivas de proximidade, diálogo e reflexão. Compreende-se que o caráter pontual da ação proposta certifica a não pretensão em indicá-la como solucionadora dos problemas vivenciados no ensino superior. Entretanto, acredita-se que o trabalho possa contribuir com a terapia ocupacional e com outros cenários formativos na valorização das experimentações na ensinagem e inspirando profissionais, discentes, programas e projetos para o desenvolvimento de ações que deem novos sentidos à vida acadêmica, por meio de estratégias que sustentem lógicas contra-hegemônicas, acenando para formações que valorizem a liberdade, a criatividade, a coletividade e o respeito.

  • (g)
    Projeto de ensino aprovado em agosto de 2020, pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. O projeto de ensino caracteriza-se como atividade teórica e/ou prática extracurricular “que contribui para a formação acadêmico-profissional e para o desenvolvimento de abordagens didático-pedagógicas inovadoras e criativas” (Conselho de Ensino, 04/2021).
  • (h)
    Termo cunhado por Luis Guilherme Vergara, em 1996, segundo Martins77 Martins MC. Curadoria educativa: inventando conversas. Reflex Ação. 2006; 14(1):9-27. (p.3).
  • (i)
    Deslocamentos sensíveis na perspectiva de Silva et al.88 Silva CR, Silvestrini MS, Poellnitz JCV, Prado ACDSA, Leite Junior JD. Estratégias criativas e a população em situação de rua: terapia ocupacional, arte, cultura e deslocamentos sensíveis. Cad Bras Ter Ocup. 2018; 26(2):489-500. (p. 495) voltam-se aos “movimentos e fazeres tangíveis ou intangíveis, que se desvelam pelos sujeitos a partir de provocações diversas”. Silva et al.99 Silva CR, Cardinalli I, Silvestrini MS. Arte e cultura: produzindo deslocamentos sensíveis. In: Silva C. Direitos humanos para a diversidade: construindo espaços de arte, cultura e educação. São Carlos: São Jorge; 2014. p. 29-38. (p. 34) apontam que, por meio de “deslocamentos sensíveis”, produzidos tanto no âmbito de criações coletivas quanto nos processos criativos individuais, acontece a descoberta de que arte é criar e todo ser cria enquanto vive, e essa vivência de criação tem potência clínica, social, cultural, orgânica, política e expressiva.
  • (j)
    “Oriundo do francês, o termo bricolage significa um trabalho manual que aproveita materiais diferentes. [...] Adotando uma postura ativa, a bricolagem rejeita as diretrizes e roteiros preexistentes, para criar processos de investigação ao passo em que surgem as demandas”1818 Neira MG, Lippi BG. Tecendo a colcha de retalhos: a bricolagem como alternativa para a pesquisa educacional. Educ Real. 2012; 32(2):607-25. (p. 610).
  • (k)
    Os relatos apresentados compõem as narrativas das participantes escritas ao longo dos módulos e ao final do oitavo encontro. As narrativas se configuraram como diário de anotações das vivências síncronas e das experimentações pessoais.
  • (l)
    Fontes para a colagem: Google Imagens®. Imagem editada para desfocar a colagem e preservar a identificação dos elementos selecionados.
  • (m)
    Para Anastasiou2222 Anastasiou LGC. A ensinagem como desafio à ação docente. Rev Pedagógica. 2002; 4(8):65-77., a ensinagem engloba um processo compartilhado entre docentes e discentes para o estabelecimento de construção de conhecimento, sendo o conteúdo a forma de ensinar e os resultados articulados e experimentados mutuamente.

  • Oliveira ML, Lacerda IR, Barbosa EP, Abél JAS, Sobrinho MED, Santos TF. Curadorias inventivas e participativas: ensinagem e ação/reflexão sobre os cotidianos de estudantes durante a pandemia. Interface (Botucatu). 2021; 25 (Supl. 1): e210123 https://doi.org/10.1590/interface.210123

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2021
  • Aceito
    10 Jul 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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