“Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero

“Clara, that’s me!” Name, access to health care and social suffering among transgender people

“¡Clara, esta soy yo!” Nombre, acceso a la salud y sufrimiento social entre personas transgénero

Maylla Mota Alef Diogo da Silva Santana Louise Rodrigues e Silva Lucas Pereira de Melo Sobre os autores

Resumos

Esta pesquisa qualitativa objetivou compreender as relações entre acesso a serviços de saúde e experiências de sofrimento social entre pessoas trans. Foram conduzidas entrevistas semiestruturadas com cinco interlocutores e observações participantes. Os dados foram analisados por meio da codificação temática, originando duas categorias: “A negação do nome” e “Acesso à saúde e transfobia institucionalizada no Sistema Único de Saúde (SUS)”. As narrativas das/os interlocutores permitiram localizar tais relações na sociogênese de experiências de sofrimento social. A negação do nome implica negação da humanidade da pessoa trans, bem como patologização de sua identidade e prejuízos no acesso à saúde, colocando a automedicação como uma possibilidade de agência. Concluiu-se que a transfobia institucionalizada no setor de saúde reproduz a precarização da cidadania de pessoas trans, destacando quanto a ação estatal com vistas a mitigar o sofrimento social pode, por vezes, intensificá-lo.

Palavras-chave
Pessoas transgênero; Acesso aos serviços de saúde; Sofrimento social; Nomes


The aim of this qualitative study was to understand the relationships between access to health services and experiences of social suffering among trans people. We conducted semi-structured interviews with five participants and participant observation. The data were analyzed using thematic coding, giving rise to two categories: “Name denial” and “Access to health care and institutionalized transphobia in Brazilian National Health System”. The participants’ narratives allowed the researchers to situate these relationships within the sociogenesis of social suffering experiences. Name denial implies the negation of the humanity of trans people and pathologization of their identity, and compromises access to health care, making self-medication a possibility of agency. We conclude that institutionalized transphobia in the public health care system reproduces the precariousness of the citizenship of trans people, highlighting how government actions aimed at mitigating social suffering can sometimes intensify it.

Keywords
Transgender people; Access to health services; Social suffering; Names


Esta investigación cualitativa tuvo el objetivo de comprender las relaciones entre acceso a servicios de salud y experiencias de sufrimiento social entre personas trans. Se realizaron entrevistas semiestructuradas con cinco interlocutores y observaciones participantes. Los datos se analizaron por medio de la codificación temática originando dos categorías: “La negación del nombre” y “Acceso a la salud y transfobia institucionalizada en el Sistema Único de Salud”. Las narrativas de los interlocutores permitieron localizar tales relaciones en la sociogénesis de experiencias de sufrimiento social. La negación del nombre implica la negación de la humanidad de la persona trans, así como la patologización de su identidad y prejuicios en el acceso a la salud, planteando la automedicación como una posibilidad de agencia. Se concluyó que la transfobia institucionalizada en el sector de la salud reproduce la precarización de la ciudadanía de personas trans, destacando hasta qué punto la acción estatal dirigida a mitigar el sufrimiento social puede, algunas veces, intensificarlo.

Palabras clave
Personas transgénero; Acceso a los servicios de salud; Sufrimiento social; Nombres


Introdução

Tendo em vista a perspectiva biologizante e patologizante da biomedicina, o debate sobre gênero e identidade de gênero no campo da Saúde é ainda incipiente. Além das lacunas na formação de profissionais da saúde, o acesso de pessoas com identidades de gênero diferentes da norma cisgênera permanece problemático, dadas as suas articulações com a LGBTfobia institucionalizada nos serviços, nos saberes e nas práticas de saúde11 Bento B. Quem são os “transtornados de gênero”? Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos - CLAM [Internet]. Rio de Janeiro; 2011 [citado 17 Abr 2020]. Disponível em: http://www.clam.org.br/artigos-resenhas/conteudo.asp?cod=8851
http://www.clam.org.br/artigos-resenhas/...
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No Brasil, os direitos à liberdade, à dignidade humana, à igualdade, à família, ao mercado de trabalho e ao acesso, sem discriminação, aos equipamentos sociais são garantidos pela Constituição Federal de 1988. No caso das pessoas trans, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais do Ministério da Saúde (MS) pactua o compromisso e o reconhecimento dos direitos da referida população em todas as esferas do governo e do SUS: o uso e o respeito do nome social, o acesso integral ao processo transexualizador e à equipe multiprofissional, entre outros, além de reconhecer os efeitos da discriminação e da exclusão social, bem como suas relações com as vulnerabilidades em saúde22 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.. No entanto, ainda assim, pessoas trans33 Silva LA, Souza EMF. A epistemologia do barraco: uma breve história do Movimento LGBTI em geral. Inter-Legere. 2018; 1(21):106-21. vivenciam cotidianamente a violação desses direitos uma vez que são consideradas socialmente como pessoas abjetas44 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 18a ed. Rio de Janeiro: Record; 2018., pois são epistemologicamente ininteligíveis e por serem “tipo[s] de corpos cujas vidas não são consideradas ‘vidas’ e cuja materialidade é entendida como ‘não importante’”55 Prins B, Meijer IC. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Buttler. Estud Fem. 2002; 10(1):155-67. (p. 161).

No setor saúde, apesar de todos os avanços do Sistema Único de Saúde (SUS), permanecem barreiras que impedem ou dificultam o acesso das pessoas trans ao sistema de saúde. O preconceito, a invisibilização, a exclusão, as violências e as mortes civil, simbólica e biológica das pessoas trans são institucionalizadas nas unidades básicas de saúde, nos hospitais, nos pronto-atendimentos, nas policlínicas etc., configurando-se como transfobia institucionalizada. Isso ocorre por meio da violação de direitos e da violência direcionada às pessoas trans, tendo como principal indutor a intolerância, o desrespeito, a rejeição, a aversão e a pretensão de reforçar e garantir o modelo binário de gênero66 Rocon PC, Rodrigues A, Zamboni J, Pedrini MD. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Cienc Saude Colet. 2016; 21(8):2517-25.,77 Jesus JG. Transfobia e crime de ódio: assassinatos de pessoas transgêneras como genocídio. (In)visibilidade Trans 2. Hist Agora. 2013; 16(2):101-23..

Dado o caráter estrutural, histórico e sistêmico da transfobia, pois modela uma experiência social na qual os indivíduos constroem suas subjetividades, identidades, projetos de ação e trajetórias de vida, há que se considerar a forma como força social que não apenas estigmatiza, vulnerabiliza e exclui pessoas trans, como também os processos por meio dos quais se corporificam e produzem experiências de sofrimento social88 Kleinman A, Das V, Lock MM, organizadores. Social Suffering. Berkeley: University of California Press; 1997.. Por meio dessa abordagem teórica, busca-se não essencializar, naturalizar ou sentimentalizar o sofrimento, mas destacar quanto emoções, dores e sofrimentos decorrem das relações entre indivíduo e sociedade, evidenciando seu traço intersubjetivo. Logo, esta pesquisa teve como objetivo compreender as relações entre acesso a serviços de saúde e experiências de sofrimento social entre pessoas trans.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa social, de abordagem qualitativa, que privilegiou a produção de conhecimentos por meio da relação intersubjetiva e localizada entre pesquisadores e interlocutoras/es, com vistas à compreensão do fenômeno em análise pela perspectiva das pessoas que o vivenciam em seus cotidianos, bem como na maneira como realizam seus projetos no mundo99 Bernard HR. Research methods in anthropology: qualitative and quantitative approaches. 4a ed. Lanham: AltaMira Press; 2006.. Ademais, trabalhamos com a literatura sobre sofrimento social, gênero e sexualidade produzida nos campos das Ciências Sociais e da Saúde Coletiva, o que constituiu o referencial teórico da investigação.

A pesquisa de campo ocorreu entre março de 2019 e março de 2020, conduzida pela primeira autora, e teve como ponto de partida uma organização não governamental (ONG) que atua na área de diversidade sexual e de gênero localizada no município de Ribeirão Preto, São Paulo. A ONG destaca-se por sua atuação no âmbito dos direitos de pessoas LGBT+, em especial de pessoas trans. Quanto à técnica para identificação de interlocutoras/es utilizou-se a bola de neve, ou snowball.

O primeiro contato com o representante da ONG, Eduardo (os nomes foram substituídos para garantir o anonimato), deu-se na Pré-conferência Municipal de Saúde de Ribeirão Preto, em meados de março de 2019. Naquele evento, as intervenções de Eduardo como representante do movimento social LGBT+ chamou a atenção da pesquisadora, dado seu engajamento e a urgência das pautas que ele levantava. Assim, ao final da pré-conferência, a pesquisadora procurou Eduardo, apresentou-se e iniciaram uma conversa a respeito de seus interesses de pesquisa sobre acesso de pessoas trans a serviços de saúde no SUS. Com a demonstração de interesse na proposta de investigação, Eduardo tornou-se o interlocutor inicial e, a partir dali, foram mantidos contatos frequentes.

Após aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade, conforme a Resolução n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, sob o parecer n. 3.488.951, a pesquisadora buscou participar de atividades organizadas e promovidas pela ONG. No entanto, naquele momento da pesquisa de campo, não havia atividades na sede da ONG. Em todo caso, a interlocução com Eduardo permitiu conhecer outras pessoas seja por indicação dele, seja por intermédio das redes sociais on-line, seja em eventos em que elas estavam presentes.

As entrevistas individuais semiestruturadas ocorreram em diversos espaços sociais, virtuais (redes sociais on-line) e de convívio das pessoas com quem foi mantida interlocução em Ribeirão Preto, como shoppings, residências, cafeterias, lanchonetes e espaços da universidade. A escolha desses locais se deu por meio da negociação com as/os interlocutoras/es, de acordo com suas disponibilidades de participação na pesquisa: horários, dias da semana e locais de preferência. Durante os encontros e outros contatos, utilizaram-se a observação participante e, posteriormente, a produção de diários de campo.

As entrevistas individuais foram conduzidas com base em um roteiro semiestruturado com guias temáticas que versavam sobre a situação socioeconômica; a transição de gênero; o apoio das redes sociais e afetivas; e as experiências de acesso aos serviços de saúde. Nos dias que antecipavam as entrevistas, foram mantidas conversas com as/os interlocutoras/es em redes sociais, como WhatsApp, Facebook e/ou Instagram, nas quais se negociou como seria os encontrar. Além disso, com algumas pessoas ocorreram encontros antes ou depois das entrevistas nos quais se conversou sobre temas variados e, nessas ocasiões, houve a oportunidade de conhecer suas amigas/os, locais de trabalho, de estudo e familiares.

Tais momentos foram vividos com um misto de zelo metodológico e um cuidado na produção da relação, principalmente por meio da demonstração de que a interlocução na pesquisa não se limitaria a uma entrevista. Com o tempo, percebeu-se que essas relações, socialidades e preparo foram fundamentais para a qualidade da interlocução mantida. Todas as entrevistas tiveram os áudios registrados em dispositivos eletrônicos, e cada uma teve duração média de cinquenta minutos com os áudios transcritos na íntegra.

A análise do material empírico foi realizada de forma concomitante à sua produção, na medida em que se valorizaram as pistas e os insights em campo, bem como as reflexões mediante a literatura e as reuniões da equipe de pesquisa. Com isso, tendo em vista que foram mantidas e aprofundadas as interlocuções, as possibilidades de análise e interpretação se espiralavam de forma crescente. Utilizando a técnica de codificação temática que permitiu identificar, analisar, interpretar e descrever padrões e regularidades por meio dos dados empíricos e das experiências em campo, foi possível, assim, criar uma codificação temática que possibilitou a identificação dos conceitos e códigos presentes no material1010 Flick U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3a ed. Porto Alegre: Editora Artmed; 2009..

Na fase final das análises, foi apresentada às/aos interlocutoras/es os dados previamente categorizados objetivando a realização de uma validação e devolutiva dos resultados, o que permitiu a troca dialógica, o envolvimento dos interlocutores nas problemáticas em questão, o aprofundamento do conhecimento construído e da análise1111 Campos RO. Fale com eles! o trabalho interpretativo e a produção de consenso na pesquisa qualitativa em saúde: inovações a partir de desenhos participativos. Physis. 2011; 21(4):1269-86.. As categorias preliminares foram validadas sem modificações, mas com a adição de detalhes que enriqueceram a interpretação e a discussão dos achados. Após a análise e a interpretação do material empírico, obtiveram-se duas categorias temáticas: “A negação do nome” e “Acesso à saúde, processo transexualizador e transfobia institucionalizada no SUS”.

A negação do nome

Nome de registro, nome social, nome de guerra, nome fantasia, pseudônimo, nome de casada e de solteira, todos possuem pontos em comum: a dimensão da sua construção como identidade, sua localização e seu pertencimento a um determinado grupo social. É nessa perspectiva que essa categoria aborda as narrativas das/os interlocutoras/es e os processos de deslegitimação que culminaram em sucessivas negações de seus nomes. A construção do nome da pessoa trans é permeada por significados, experiências, narrativas e afetos, pois a pessoa participa ativamente de sua escolha, diferentemente da pessoa cisgênero cujo nome é dado ao nascimento. O nome escolhido pela pessoa trans pode ser interpretado como elemento simbólico por demarcar a (re)construção da sua identidade.

Sabe-se que o nome, signo de notório reconhecimento da identidade do indivíduo, exerce um papel importante no princípio da dignidade humana. Os discursos das/os interlocutoras/es sobre a escolha de seus nomes possuíam peculiaridades, como os contextos em que a escolha fora realizada e seu autorreconhecimento como pessoa trans inclusive na infância. Para outras, os processos se deram ora pela autoidentificação com a história de vida de algum parente, ora pelas semelhanças da maneira de vivenciar e pensar o mundo, ou ainda pelo próprio significado do nome, sendo comum a todos os casos a representatividade do nome na construção da sua história.

Esses aspectos foram observados no relato de Paulo, homem trans, solteiro, heterossexual, com 23 anos de idade, que se autodeclarava preto, possuía ensino médio completo e trabalhava como garçom. Paulo relatou que a escolha do seu nome se deu pela afinidade que mantinha com sua personalidade. No momento da escolha, ficou durante um tempo em frente ao espelho verbalizando nomes que lhe apeteciam e, segundo ele, eram a sua ‘cara’(f(f)Termos e expressões recorrentes empregados por interlocutoras/es, que são importantes para a organização das ideias apresentadas, estão sinalizados por meio de aspas simples. Ao longo do texto, convencionamos a utilização de aspas duplas para indicar fragmentos de falas das/os interlocutoras/es.). Quando disse Paulo, percebeu que esse nome expressava sua identidade, tinha a ver com sua história e, principalmente, percebeu que “tinha cara de Paulo”.

Sua narrativa deixou em evidência o aspecto político que o nome e o ato de nomear possuem, uma vez que tal ato é utilizado por grupos socialmente dominantes por meio de uma lógica de práticas discursivas objetivando a manutenção de poder que os beneficiam1212 Bodenhorn B, von Bruck G. An introduction to the anthropology of names and naming. Cambridge: Cambridge University Press; 2006.. Pontua-se, ainda, uma espécie de dupla relação nesse aspecto: por um lado, a documentação do nome da pessoa que nasce, indicando uma prática de controle pelo Estado; e, por outro, o nome possibilita o acesso da pessoa nomeada aos espaços sociais, à reivindicação dos seus direitos e à proteção estatal. É nessa lógica de dualidade que a discussão da aparelhagem das pessoas trans pelo nome civil exige uma problematização, visto que, além de a prática de nomear pessoas se constituir como um ato político, possui a capacidade de transformar “ninguém” em “alguém”1313 Bento B. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporanea. 2014; 4(1):165-82..

Nesse sentido, ganhou relevo o fato de a construção dos seus nomes ter se dado pelas novas experiências identitárias, o que demandou reflexão e extensiva desconstrução de si no intuito de ressignificar as antigas experiências e a tessitura de uma nova história, o que incluía um novo nome que desse conta de entrelaçar alguns aspectos do passado e do presente com os projetos de futuro. O relato de Clara, mulher trans, solteira, heterossexual, 24 anos de idade, que se autodeclarava negra, tinha ensino superior completo e era estudante, deixou esse processo em destaque. Clara nos relatou as indisposições que precisava enfrentar nas recepções de serviços de saúde para poder ser chamada pelo seu nome. Uma dessas situações ocorreu em uma unidade de pronto-atendimento (UPA), quando um profissional da recepção, ao atendê-la, a chamou pelo nome de registro. Ela precisou corrigir o ‘equívoco’: Não! Eu falei mulher trans, Clara, esta sou eu”.

A ressignificação da própria história está intrinsecamente ligada ao nome, visto que ele humaniza e caracteriza as pessoas na nossa sociedade e é por meio dele que o indivíduo se identifica, se relaciona, é reconhecido tanto social quanto oficialmente por órgãos e instituições estatais. Ou seja, o nome é fulcral na garantia do estatuto de cidadão e do acesso à cidadania. Bento1313 Bento B. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporanea. 2014; 4(1):165-82. discute que a cidadania para pessoas trans é possibilitada de forma quase desumana, devido à deslegitimação e às dificuldades no reconhecimento dos seus nomes e identidades de gênero, reforçando a estrutura da relação do Estado com populações que são historicamente excluídas e marginalizadas, o que a autora denomina cidadania precária.

Há uma relação que Bento1313 Bento B. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporanea. 2014; 4(1):165-82. caracteriza como modus operandi de grupos sociais dominantes na formulação e na aprovação de leis e direitos direcionados a grupos sociais minoritários, o que garante a lentidão na conquista de tais direitos. O nome social está incluso nisso. Há processos “que vão garantir que os excluídos sejam incluídos para continuarem a ser excluídos”1313 Bento B. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporanea. 2014; 4(1):165-82. (p. 167). Essa articulação de possibilitar o uso do nome social contribui para uma relação de cultura política entre o Estado e os grupos sociais historicamente excluídos.

No Brasil, o reconhecimento e o direito ao uso do nome social foi uma conquista obtida pela luta e pelo protagonismo da comunidade trans. No SUS, a garantia do direito de usar o nome social em documentos oficiais deu-se pela Portaria n. 1.820, de 13 de agosto de 2007, do Ministério da Saúde (MS), que estabeleceu a “Carta dos Direitos dos Usuários do SUS”1414 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.803, de 19 de Novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 19 Nov 2013.. A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, publicada pelo MS na Portaria n. 2.836, de 1º de dezembro de 2011, normatizou o uso do nome social em todo o âmbito do SUS.

Além disso, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, em março de 2018, o direito de pessoas transgênero retificarem seus nomes no registro civil e demais documentos pessoais, sem a necessidade de realizar cirurgia de redesignação sexual e de autorização judicial. Esse direito foi regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça por meio do Provimento n. 73, de 28 de junho de 2018. No entanto, tal institucionalização, ou micronormatização, não é suficiente para garantir a cidadania que as pessoas trans reivindicam, pois há, nitidamente, uma dupla negação: da condição humana e da cidadania dessas pessoas1313 Bento B. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporanea. 2014; 4(1):165-82..

Ao mesmo tempo que se reconhece o direito ao nome social, cria-se um processo de diferenciação, pois não é apenas um “nome”, mas sim um “nome social”, o que, por um lado, assinala um direito, mas, por outro, deixa margens para que pessoas lancem mão, à sua revelia, de um ou de outro nome, o que implica processos de violência.

A experiência de Beatriz, mulher trans, casada, heterossexual, de trinta anos de idade, que se autodeclarava preta, possuía ensino médio incompleto e trabalhava como motorista de aplicativo, desvela a dificuldade em ter seu nome reconhecido como um direito de cidadania. Beatriz foi ao endocrinologista por um plano de saúde para solicitar acompanhamento no processo de hormonização e, já na recepção, se deparou com episódios transfóbicos:

Na recepção já me falaram que eu não podia usar meu nome social e falaram que iam perguntar pra doutora se podia me chamar por esse nome. Eu falei: gente, mas não tem que perguntar pra ela, se eu estou falando!

(Beatriz)

A deslegitimação experienciada por Beatriz demonstra a forma como a precariedade das vidas trans é sistemática e institucionalizada. A negação do seu nome pelo profissional da recepção mostra como a norma cisgênero é reforçada por meio de certo legalismo ou oficialismo tão comum na sociedade brasileira quando se trata de diferenciar e hierarquizar pessoas ou grupos. Na medida em que o serviço de saúde deslegitima o nome de Beatriz, tenta apagar sua própria história e existência, moldando um processo de sofrimento vivenciado pela interlocutora, possibilitando a compreensão de que tal sofrimento vai se caracterizar em um lugar de inexistência, ou seja, nas periferias de onde se produz a norma1515 Bento B. O que é transexualiadade. 2a ed. São Paulo: Brasiliense; 2012..

Essas situações são reforçadas em outras narrativas como a de Paulo em sua busca por um serviço do SUS para realizar exames de rotina e, na recepção, foi chamado pelo seu nome de registro: “É constrangedor, chamam seu nome e você levanta e todo mundo olha pra você”. Com esse tipo de experiência, identifica-se como a institucionalização do nome social no SUS não foi totalmente incorporada aos serviços de saúde. Paulo complementou:

Há uma confusão ali! Não sei como é a ficha em si [prontuário], mas sei que aparece tanto o nome social quanto o de registro. Nas primeiras vezes que eu fui [ao serviço de saúde] me chamaram pelo meu nome de registro, sendo que meu nome social estava ali, registrado.

(Paulo)

O sofrimento produzido por esse mecanismo que invalida o nome da pessoa e, consequentemente, a sua identidade, além de contribuir para o afastamento das pessoas trans dos serviços de saúde, atenta contra os significados que informaram não só a escolha do nome, como sua subjetividade e identidade.

Clara narrou que procurou um serviço de saúde do SUS após um acidente de motocicleta que ocorreu no caminho para o trabalho. Ao chegar ao serviço, relatou ter experienciado situações constrangedoras durante o processo de identificação na recepção:

Tive problema na UPA! Não sei o que eles digitaram lá ou se o menino viu meu nome errado. Ele perguntou a outra recepcionista: seu computador está com algum problema? Ela lhe respondeu: não. O seu está? Ao que ele disse: está, pois estou digitando o CPF dele e está aparecendo o nome Clara. Desse jeito, foi exatamente assim, do jeito que estou te falando.

(Clara)

É possível identificar como os processos reproduzidos pelos profissionais contra a identidade de Clara vão culminar em situações e contextos que reforçam o poder do Estado em determinar e controlar quem é o quê, em termos de identidade de gênero.

Isso demonstra como os serviços de saúde reproduzem sucessivos processos que vão além de marginalizar, humilhar e constranger as pessoas trans no atendimento, legitimados por um discurso conservador e divergindo, sobretudo, das normativas que possibilitam o uso e o reconhecimento do nome social no âmbito do SUS. Na sequência, Clara continuou com o relato, agora sobre o atendimento médico:

Quando o médico me chamou para o consultório, usou o nome de registro. Ao entrar no consultório e sentar na cadeira, olhei a minha ficha que estava sobre a mesa e estava lá: Clara. Estava escrito o nome social! Ou seja, estava lá no papel! Ele viu lá o nome social! Era só ele ter chamado pelo nome social!

(Clara)

Nesse sentido, situações como as expressadas por Beatriz, Clara e Paulo, assinalam uma sistemática negação de sua história, de sua identidade, o que deixa em relevo a precariedade de suas vidas1616 Werlang R, Mendes JMR. Social suffering. Serv Soc Soc. 2013; 116:743-68.. O nome aqui parece circunscrever fronteiras definidoras de suas humanidades, demarcando um “dentro” da norma a quem se garante um estatuto humano, e um “fora” da norma a quem se retira o direito ao nome, à cidadania, à humanidade, indicando-lhes de forma contínua o lugar da abjeção. O que queremos destacar aqui, portanto, não é o desrespeito ao nome social como um descumprimento de normativas legais, o que comumente se encontra na literatura, mas que ao negar o nome, nega-se, em verdade, a possibilidade de o outro existir à sua maneira.

A experiências em campo demonstraram como os processos jurídicos para a implementação do nome social de pessoas trans funcionam como “gambiarras legais”, visto que ainda não existe uma legislação federal que garanta o direito das pessoas trans em utilizar o seu nome fora de instituições como universidades, serviços de saúde, bancos, repartições públicas etc., o que explicita a lógica da cidadania precária: a morte social em vida1717 Bento B. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador: EDUFBA; 2017.. Tal questão nos faz invocar, novamente, Bento, quando ela nos instiga a refletir: afinal, qual a diferença entre cidadania e humanização? Qual a função do nome social nesses dois conceitos intercambiáveis? E sinaliza para que não haja a confusão dos seus significados, uma vez que ao realizar tal prática estaríamos materializando o maior desejo do Estado: ser um ente total1313 Bento B. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporanea. 2014; 4(1):165-82..

Todo esse contexto proporciona às pessoas trans diversos constrangimentos que vão gerar, em vários níveis, sofrimentos, como Beatriz relatou em outro momento da entrevista, no qual narrou a sensação diante da desumanização enfrentada nos serviços de saúde:

Você se sente despedaçada, se sente um bicho! As pessoas te olham como se você não fosse deste mundo! Como se você fosse de outro planeta!

(Beatriz)

Aqui se faz pertinente recorrer à noção de monstro/monstruosidade como uma categoria de inteligibilidade, na medida em que dela decorre a desumanização/animalização e consequente patologização das identidades trans, anulamento e/ou destruição. Esse anulamento resulta em ações de destruição literal e simbólica desses “monstros” pela sociedade. Como colocado por Leite Junior, “a monstruosidade é entendida como uma transgressão das leis estabelecidas, visando, através de sua presença, inspirar temores e dúvidas ou punir contra infrações”1818 Leite Junior J. Transitar para onde? Monstruosidade, (des)patologização, (in)segurança social (in)segurança social e identidades transgêneras. Estud Fem. 2012; 20(2):559-68. (p. 561).

Os dados produzidos neste estudo possibilitaram a compreensão de que essas experiências das/os interlocutoras/es possuem como ponto em comum a transfobia institucionalizada no SUS, que se manifesta desde a entrada nos serviços, geralmente na recepção, com a negação do nome. Tais experiências, quando lidas contra o pano de fundo das relações entre poder e linguagem44 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 18a ed. Rio de Janeiro: Record; 2018., deixam em evidência um tipo de sofrimento cuja origem pode ser localizada na maneira como as sociedades relacionam gênero, corpo e sexualidade. Trata-se, portanto, de uma experiência de sofrimento social, visto que possui raízes imbricadas em processos sociais, políticos e culturais cujo objetivo último é, senão enquadrar as/os desviantes, alertá-las/os de seus desvios88 Kleinman A, Das V, Lock MM, organizadores. Social Suffering. Berkeley: University of California Press; 1997..

Nesse sentido, as narrativas de Beatriz, Clara e Paulo deixaram em relevo a dimensão intersubjetiva do sofrimento social, uma vez que se produz nos interstícios das relações entre os indivíduos e entre eles e as instituições sociais. Mais que isso, tais experiências de sofrimento possuem um caráter ordinário, cotidiano, visto que não ganham lugar na mídia, nem nas conversações entre usuários dos serviços de saúde, muito menos nos mecanismos institucionais como ouvidorias, comissões de ética etc. Sentir-se “despedaçada” ou como um “bicho”, como narrado por Beatriz, indicam quanto os sofrimentos humanos produzidos pelos danos causados pelas forças sociais se apresentam, na verdade, como “facas macias” capazes de dilacerar mundos sociais, arruinar o coletivo e as conexões intersubjetivas, e de danificar gravemente a subjetividade88 Kleinman A, Das V, Lock MM, organizadores. Social Suffering. Berkeley: University of California Press; 1997..

As situações relatadas aqui lançam luz em como essas experiências de sofrimento social têm uma base interpessoal e também institucionalizada, haja vista ocorrerem não por meio de “barracos” e outras formas de conflito, mas naquela conversa discreta entre recepcionistas e as pessoas trans, depois na discrição do ato de chamar alguém à consulta e, mais ainda, na confidencialidade do consultório – aquele espaço supostamente protegido, sigiloso, mas amplamente regulamentado.

Acesso à saúde, processo transexualizador e transfobia institucionalizada no SUS

Essa categoria expressa como as estruturas e hierarquias sociais vão convergir para que o acesso à saúde, em geral, e ao processo transexualizador, em particular, seja permeado por dificuldades impostas pela transfobia institucionalizada. Partiu-se da perspectiva de que tais processos possuem vários motores de produção, como a máquina (cis)heterossexual e a lógica capitalista, responsáveis pela opressão a sujeitos dissidentes da norma por meio de violência, marginalização e sofrimento.

O acesso das pessoas trans aos serviços de saúde foi e é permeado por uma concepção patologizante, contestada pelo movimento social e por organizações nacionais e internacionais. A despatologização vem sendo um instrumento político do movimento social trans na reivindicação de suas existências como corpos não doentes1919 Nogueira L, Hilário E, Paz TT, Marro K, organizadores. Hasteemos a bandeira colorida - diversidade sexual e de gênero no Brasil. São Paulo: Expressão Popular; 2018.. No Brasil, para que tal reivindicação se concretize, são necessárias articulações sociais que objetivem avanços no reconhecimento da cidadania trans nas políticas públicas, como é o caso do acesso ao processo transexualizador no SUS (PTSUS).

O PTSUS, instituído pela Portaria n. 1.707, de 18 de agosto de 2008, do MS, possibilitou o atendimento de pessoas trans em alguns hospitais universitários, servindo de base à efetivação dos procedimentos transgenitalizadores. Com a Portaria n. 2.803, de 19 de novembro de 2013, o MS redefiniu e ampliou as ações realizadas no âmbito do PTSUS com uma rede de cuidados que inclui a atenção básica, especializada e terciária, não restrita a procedimentos cirúrgicos de transgenitalização, ampliando, inclusive, o atendimento para homens trans e travestis1414 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.803, de 19 de Novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 19 Nov 2013..

Nessa direção, há também a Resolução n. 2.265, de 20 de setembro de 2019 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que propôs uma nova abordagem no atendimento de pessoas transgênero norteada por uma assistência à saúde integral, especializada e acolhedora às demandas e especificidades desse grupo, como o acesso à hormonização a partir dos 16 anos, acompanhamento ambulatorial e cuidado cirúrgico2020 Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.265, de 20 de Setembro de 2019. Dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero. Diário Oficial da União. 9 Jan. 2020.. Tais recomendações vão ao encontro das diretrizes instituídas pelo PTSUS, consolidando-se, assim, como um marco histórico do direito à saúde das pessoas trans e à responsabilização do Estado ao reconhecer a orientação sexual e a identidade de gênero como determinantes sociais da saúde2121 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.707/GM, de 18 de Agosto de 2008. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Processo Transexualizador, a ser implantado nas unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão. Diário Oficial da União. 18 Ago. 2008..

A despeito das normativas estatais, os relatos das/os interlocutoras/es assinalaram a existência de dificuldades no acesso ao PTSUS, no atendimento e no reconhecimento de suas especificidades, o que terminou por afastá-las/os da busca por um acompanhamento especializado de saúde, como destacou Beatriz:

Acho que foi um dos motivos para deixar de lado [o PTSUS], pois peguei até ranço do hospital. Só que eu encontrei uma endocrinologista que falava que isso não existia. Mas eu tenho lembranças de já ter chorado muito em corredores de hospitais. Chorava, chorava e chorava!

(Beatriz)

Os serviços de saúde, por reproduzirem processos que naturalizam a transfobia social e individual (atitudes de profissionais), são tidos como um local de produção e manutenção de estigmas, discriminações e preconceitos. Tais fatores vão favorecer a formação de redes estratégicas de apoio entre pessoas trans em processo de transição de gênero, estabelecidas na informalidade e que vão possibilitar, por exemplo, a aplicação de silicone industrial por bombadeiras e a automedicação2222 Pinto TP, Teixeira FB, Barros CRS, Martins RB, Sagesse GSR, Barros DD, et al. Silicone líquido industrial para transformar o corpo: prevalência e fatores associados ao seu uso entre travestis e mulheres transexuais em São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica. 2017; 33(7):e00113316..

Beatriz contou com sua rede de amigos e colegas na autoadministração de hormônios, pois não teve o apoio de serviços de saúde. Com o passar do tempo, percebeu que a automedicação poderia acarretar problemas, o que lhe fez procurar auxílio da endocrinologista do seu plano de saúde e se deparou com a seguinte situação:

A endócrino falou que não fazia [esse tipo de acompanhamento] e que não existia tratamento hormonal para mulheres trans. Eu lembro que eu chorei, chorei tanto e isso me impossibilitou dar continuidade ao meu tratamento!

(Beatriz)

A experiência de Beatriz nos coloca diante de outra faceta da transfobia: aquela que opera nos currículos dos cursos de formação de profissionais da saúde, dificultando o acesso aos conhecimentos biomédicos e psicossociais necessários à Atenção à Saúde da população trans. Em consequência disso, há um desconhecimento sobre como atender a essas pessoas, o que pode se somar à indisponibilidade pessoal do profissional para buscar educação permanente em saúde ou outras formas de aperfeiçoamento técnico-científico. Nos serviços de saúde privados isso pode ser intensificado, quando comparados com serviços do SUS, conforme narrou Paulo:

Nunca passei por um médico do convênio, mas conversando e trocando experiências com colegas parece que o pessoal do SUS é mais consciente, não sei te falar o porquê, mas parece que sim. Não sei se é por conta de ser particular e o pessoal acha que tem dinheiro e pode fazer o que quer, não sei.

(Paulo)

A narrativa de Paulo parece indicar que os serviços privados são mais resistentes a essas questões, talvez por pouco considerarem as normativas assistenciais instituídas pelo SUS, o que, em todo caso, é uma atitude preocupante, já que esses serviços, seus profissionais e suas práticas estão, assim como na rede pública, submetidos à regulamentação estatal.

É notório observar que os processos transfóbicos experienciados pelas/os interlocutoras/es nos serviços de saúde nada mais são do que reflexo de uma sociedade que estabelece como os corpos devem se constituir socialmente2323 Assis MMA, Jesus WLA. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Cienc Saude Colet. 2012; 17(11):2865-75. . É possível identificar tal fato quando Beatriz decide não dar continuidade ao acompanhamento com profissionais de saúde devido à violência institucionalizada

O constrangimento que eu passei, entendeu? Só eu sei o que passei! É por isso que eu desisti! Desisti! Você tenta ir certo, fala: eu estou aqui porque eu tomo medicamento errado e quero fazer tudo certinho! Mas não existe a atenção do outro!

(Beatriz)

Clara nos relatou como se sentiu depois de um episódio transfóbico sofrido em uma consulta com um médico: “Me senti discriminada pelo médico, por ele ter me chamado por Mateus! Isso me chateou!”. Essas narrativas, apesar de serem de pessoas diferentes, convergem para experiências de sofrimento cujas raízes são semelhantes, como no relato de Beatriz após o episódio transfóbico ocorrido com a endocrinologista: lembro que eu chorei bastante, fiquei assim, me sentindo horrível por um bom tempo!”

Entre as pessoas com quem mantivemos interlocução, as relações com os serviços e profissionais de saúde intensificavam experiências de sofrimento que vivenciavam em todos os lugares da vida social. Uma contradição, visto que, ao buscarem acolhimento e cuidado, se deparavam com situações que lhes causavam constrangimento, discriminação, medo e vergonha, o que contribuía para o afastamento e a não procura dos serviços de saúde, conforme apontado na literatura66 Rocon PC, Rodrigues A, Zamboni J, Pedrini MD. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Cienc Saude Colet. 2016; 21(8):2517-25.,2424 Tagliamento G, Paiva VSF. Trans-specific health care: challenges in the context of new policies for transgender people. J Homosex. 2016; 63(11):1556-72.. A respeito dessa questão, Beatriz mencionou:

Você vai atrás do que você quer, do que você acha que é certo pra você! Você quer o apoio deles [profissionais de saúde], mas eles não dão esse apoio. E o que você vai fazer? Você vai automaticamente se automedicar!

(Beatriz)

Essas desistências, discriminações e emoções estão imbricadas em fatores derivados sobretudo do que o poder político, econômico e institucional faz às pessoas, além de designar como essas estruturas vão delinear reações dos grupos aos problemas sociais2525 Pussetti C, Brazzabeni M. Sofrimento social: idiomas da exclusão e políticas do assistencialismo. Etnografica. 2011; 15(3):467-78., ou seja, parece-nos ser a automedicação, nesse caso, uma forma de agência, pois lhes permite acessar as tecnologias necessárias às modificações corporais, subjetivas e sociais e, com isso, reconstruir as relações e o cotidiano.

Outro ponto a ser considerado é a maneira como os serviços de saúde organizam e gerem os espaços, as salas de espera, os setores. Pedro, um homem trans, solteiro, heterossexual, 26 anos de idade, que se autorreconhece como branco, tem ensino superior completo e trabalha como autônomo, relatou que ao buscar uma unidade básica de saúde para iniciar o processo de hormonização se deparou com os limites físicos e estruturais impostos pela transfobia institucionalizada:

O que mais me incomodou foi que a ala onde os homens trans são atendidos é a mesma das mulheres. No lugar se formava uma aglomeração de mulheres. Então, qualquer cara que você ver ali, pode ter certeza que é um homem trans e isso é um pouco complicado.

(Pedro)

Ou seja, nos serviços de saúde a transfobia é estrutural tanto do ponto de vista simbólico, científico, político, social, quanto gerencial e arquitetônico. Ela também se manifesta na maneira como se estabelecem os fluxos de pessoas, de tecnologias, de técnicas e de atendimentos na rede de Atenção à Saúde, como narrou João, um homem trans, solteiro, bissexual, 24 anos de idade, que se identificava como branco, tinha ensino superior completo e trabalhava como atendente, sobre sua experiência na unidade básica de saúde do seu bairro:

Eu queria iniciar a transição e pensei: bom, vou tentar no meu postinho. Chegando lá eles falaram: a gente não faz nada disso aqui. O que poderíamos tentar fazer é te encaminhar, mas, pra isso, vamos ter que criar um protocolo. Depois eu entendi que criar um protocolo era achar um jeito de me enviar a outro serviço, coisa que demorou um ano, e isso porque comecei a encher o saco deles!

(João)

Os relatos das/os interlocutoras/es evidenciam experiências de dor, além de reafirmar uma concepção em que instituições de saúde operam por meio de uma lógica cis-heteronormativa, centralizada em aspectos patologizantes que vão contribuir para um determinado mal-estar social. Para Víctora e Ruas-Neto2626 Víctora CG, Ruas-Neto AL. Querem matar os ‘últimos Charruas’: sofrimento social e ‘luta’ dos indígenas que vivem nas cidades. AntHropológicas. 2011; 22(1):37-58., o sofrimento social, além de ser incorporado à vida social, uma vez que é corporificado no fluxo do cotidiano, denuncia a “inabilidade das instituições políticas e sociais de lidar com esse fenômeno” (p. 41). Assim, como discute Bento1313 Bento B. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporanea. 2014; 4(1):165-82.,1717 Bento B. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador: EDUFBA; 2017. em relação ao nome social, no caso do PTSUS, a questão que se coloca não se limita às “gambiarras legais” ou técnico-assistenciais alinhavadas pelo Estado, visto que conforme testemunharam as/os interlocutoras/es é na própria intencionalidade estatal em administrar, intervir ou combater o sofrimento que se abrem brechas capazes de aprofundá-lo e intensificá-lo88 Kleinman A, Das V, Lock MM, organizadores. Social Suffering. Berkeley: University of California Press; 1997..

Considerações finais

Esta pesquisa possibilitou a compreensão das nuances implicadas no acesso a serviços de saúde e sofrimento social na experiência de pessoas trans no interior do Estado de São Paulo. Nas experiências das/os interlocutoras/es em serviços de saúde foi identificado quanto a negação daquilo que o Estado denominou como nome social se constitui em uma violência institucionalizada, visto que ao nome escolhido pelas pessoas durante o processo de transição de gênero estão associados aspectos afetivos, sociais e políticos, na medida em que refletem traços e características pessoais que dão forma e sentido à subjetividade e à identidade de gênero que expressam. Assim, não reconhecer o nome social de pessoas trans em serviços de saúde foi significado como uma negação de sua própria condição humana, trajetória e subjetividade.

No que se refere ao acesso aos serviços e cuidados de saúde, foram evidenciadas as dificuldades enfrentadas pelas/os interlocutoras/es ao buscar especialmente o PTSUS e quanto isso é decorrente de transfobias que se expressam no âmbito institucional, o que reflete a cisgeneridade como norma. Por fim, espera-se que os resultados deste estudo possam estimular a reflexão sobre a atuação das instituições de saúde e seus profissionais, bem como fomentar o debate para a consolidação e a execução das políticas públicas existentes que contemplem a população trans em todos os âmbitos de atendimento à saúde.

  • Mota M, Santana ADS, Silva LR, Melo LP. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface (Botucatu). 2022; 26: e210017 https://doi.org/10.1590/interface.210017
  • Financiamento

    Esta pesquisa foi desenvolvida mediante a concessão de bolsa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) à Maylla Mota nos períodos 2019/2020 e 2020/2021. Louise Rodrigues e Silva é bolsista de Iniciação Científica no Programa Unificado de Bolsas (PUB) da Universidade de São Paulo desde 2020. Alef Diodo da Silva Santana é bolsista de Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
  • (f)
    Termos e expressões recorrentes empregados por interlocutoras/es, que são importantes para a organização das ideias apresentadas, estão sinalizados por meio de aspas simples. Ao longo do texto, convencionamos a utilização de aspas duplas para indicar fragmentos de falas das/os interlocutoras/es.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2021
  • Aceito
    23 Out 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br