Pensar para a frente: o bem comum e projetos de coletividade, para além das polarizações

Thinking ahead: the common good and projects of collectivity, beyond polarizations

Pensando adelante: el bien común y proyectos de colectividad, más allá de las polarizaciones

André Martins Sobre o autor

Em diálogo com o texto “Pandemia, Sistema Único de Saúde e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros”, de Merhy et al.11 Merhy EE, Bertussi DC, Santos MLM, Rosa NSF, Junior HS, Seixas CT. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210491. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210491.
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, tecerei algumas considerações sobre tais questões e sobre as propostas apresentadas segundo o modo de exposição da cartografia de Deleuze e Guatarri, dividida em platôs. O texto traz um panorama amplo, por vezes com afirmações demasiado vagas, impasses e contradições, mas levanta questões cruciais para o campo atual da Saúde de um modo geral.

Há um duplo aspecto posto na questão: por um lado, o da Saúde Pública; por outro, o da Saúde da coletividade de nosso país, em sua multiplicidade. Na Saúde Pública, temos a experiência do Sistema Único de Saúde (SUS), sua rede de vacinação e a Medicina de Família e Comunidade. No sentido mais amplo da Saúde Coletiva, observa-se, ao longo de quase dois anos de pandemia, uma micropolítica do desejo difusa em parte da população segundo a qual as mortes pelas complicações causadas pelo vírus da Covid-19 fazem parte de uma suposta inexorabilidade da natureza, misturada com uma crença na livre vontade de Deus e seus insondáveis desígnios, resultando em uma desobediência civil e uma contracultura que se opõe à ciência e ao status quo que se poderia chamar de burguês, e em uma submissão passiva a uma fatalidade da doença, que assim se efetiva como em uma profecia autorrealizável.

Enquanto nos EUA a rejeição à vacinação parece advir dos movimentos antivax, oriundos de teorias da conspiração dos adeptos de medicinas alternativas, assim como de uma revolta neoliberal contra o Estado-Leviatã que retiraria a liberdade dos indivíduos alienando-lhes do próprio livre-arbítrio e direito natural, no Brasil este mesmo efeito negacionista parece nascer de uma submissão à igreja, de uma desconstrução mais afeita à dita pós-verdade, e de uma rebeldia pueril preconizada explicitamente pelos próprios representantes do Estado, a começar pelo presidente da República. Tanto nos EUA quanto aqui, no entanto, parece haver um ponto em comum no boicote à vacinação; decerto sua consequência, possivelmente sua causa: o aumento da venda de medicamentos, suplementos e procedimentos sem eficácia alternativa às vacinas, apresentados como sendo, eles sim, boicotados, dizem, pelas forças que lucram com a venda de vacinas. Não raro, contudo, a indústria farmacêutica é acusada de fraudar resultados científicos que comprovariam a eficácia de seus produtos – o que apontaria para o interesse financeiro da propaganda antivax. Agravando o sentimento de insegurança institucional, os negacionistas acusam governantes por um superfaturamento oportunista na construção de hospitais de campanha e na compra de material e maquinário biomédico, assim como das próprias vacinas. Entre o imaginário subjetivo e a realidade da pandemia, mais grave ainda são as fake news utilizadas para fazer valer uma narrativa, independentemente da realidade, seguindo o pensamento de que os fins (combater o que se considera um mal) justificariam os meios (mentir sobre fatos e dados) e de que o que importa não é a realidade e como melhorá-la, mas a guerra cultural, cuja hegemonia se reflete em capital político, poder e vitória nas eleições, no quadro de uma realpolitik. São, portanto, duas frentes de combate atual: uma, pelas políticas públicas de saúde, outra, contra a polarização e o populismo, seja de qual espectro político for, uma vez que a ideia de que é preciso defender um mal, pois seu antípoda é um mal ainda maior, tem como corolário que o bem comum deve ser visto como utopia e não como construção coletiva a partir de melhorias efetivas.

O texto nos lembra o fato de que o mundo pós-pandemia não será o mesmo que antes, não haverá uma “volta”; a pandemia trouxe – para o bem e para o mal – mudanças que ficarão. E mais: voltar ao antes sequer seria propriamente solução, uma vez que, por mais que a pandemia tenha agravado em muito os problemas sanitários, ambientais e de violência na cidade e no campo, o quadro brasileiro nesses quesitos já era consternador. Voltar apenas levaria à constatação de que “o pior de antes era melhor do que o pior de agora” – a menos que se idealize um antes floreado, em uma nostálgica romantização da memória. De fato, seria um autoengano revisionista concluir que na época de Belo Monstro, Ocupação da Maré, Miss Motosserra ministra da Agricultura, Feliciano presidente da Comissão de Direitos Humanos, Criação da Guarda Nacional e da Lei Antiterrorismo éramos felizes e não sabíamos. Como lembra Spinoza, um mal pode parecer um bem, sem que o seja, sempre que o comparamos com um mal ainda maior – caindo-se em uma armadilha de interminável justificação do inaceitável.

Compartilho com o texto a percepção da crise do próprio processo civilizatório e sua “produção de vidas descartáveis”. Acrescentaria que a própria ideia de razão, concebida como um ideal de razão pura ou de pura forma da razão, instituída no lugar da Verdade, implica sua imposição civilizatória, legitimando a colonização de povos, culturas, modos de produção e de criação – seja por meio da imposição armamentista e econômica, por micropoderes ou pela colonização do desejo por meio de idealizações e valores sociais acachapantes. Não somente por um processo material, vidas são consideradas descartáveis por meio de um processo ideológico de instituição de valor, face ao qual qualquer vitória ideológica resultaria apenas em uma mudança de quais seriam as vidas descartáveis, ou seja, resultaria em uma disputa meramente de quais critérios serão adotados para avaliar quais vidas “merecem” ser descartadas. Uma disputa de qual ódio é o do bem e qual o do mal, ou qual extermínio é justo e qual não é. No lugar da hipocrisia de um país em concórdia social e racial, que nunca fomos, passamos a ser um país da luta dialética de ódios polarizados espelhados e cinicamente cultivados, segundo o velho bordão de que alguém precisa ser o culpado por todos os males. O bem comum, um projeto de coletividade, sequer passa pela pauta dos intelectuais – ocupados que estão com a derrubada do Supremo Tribunal Federal (STF) ou com a Revolução; afinal, parece-se crer, uma vez eliminados os maus, a vida enfim será próspera. Pode-se mudar a causa, o móvel, a bandeira, o culpado; mantém-se a crença no mal, justificando o “ódio do bem”.

Em um dado momento, o texto parece lamentar que se ponha “em xeque a própria noção de nação e a existência de um Estado nacional”11 Merhy EE, Bertussi DC, Santos MLM, Rosa NSF, Junior HS, Seixas CT. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210491. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210491.
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(p. 3). Sem entrar na espinhosa questão, não posso omitir que é no mínimo curioso que tal lamento ou preocupação encontre eco nas teses de autores como Olavo de Carvalho e no antiglobalismo internacional. Em uma breve consulta à internet, confirmamos que, mundo afora, opõe-se à globalização um espectro de alternativas que vai do capitalismo keynesiano ao fascismo, passando pela anarquia e pelo comunismo. Enfim, eu seria mais prudente ao abordar essa complexa questão, que no texto soa como simples ou consensual.

Compartilho, por outro lado, a percepção de que a Saúde Coletiva brasileira encontra dificuldade para sair “de suas concepções de teorias políticas já inaplicáveis”11 Merhy EE, Bertussi DC, Santos MLM, Rosa NSF, Junior HS, Seixas CT. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210491. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210491.
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(p. 3), mas identifico como alicerces dessas teorias já inaplicáveis seguramente Hobbes, Kant, Hegel, entre outros. Acrescento que recebo com grande interesse a inserção no debate da Saúde de autores como Christine Swanton e sua Virtue Ethics22 Swanton C. Virtue ethics: a pluralistic view. Oxford: Clarendon Press; 2005., e Bill Fulford, em sua Essential values-based practice33 Fulford KWM. Essential values-based practice: clinical stories linking science with people. Cambridge: Cambridge University Press; 2012., assim como os desdobramentos de se pensar a saúde a partir de autores como Canguilhem, Winnicott e Spinoza.

Também compartilho da percepção de que “as vidas em suas diferenças” são “o patrimônio central da riqueza” e “a própria riqueza”. Nessa afirmação, vejo a importância da sustentabilidade, nas versões que vão de Arne Naess44 Naess A. Ecology, community, and lifestyle: outline of an Ecosophy. Translated by David Rothenberg. Cambridge: Cambridge University Press; 2003. a Aílton Krenak55 Krenak A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras; 2020.,66 Krenak A. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras; 2020., passando pela necessidade da agrofloresta77 Rebello JRS, Sakamoto DG. Agricultura sintrópica segundo Ernst Götsch. Rio de Janeiro: Revinter; 2021.,88 Primavesi AM. Agroecologia: ecosfera, tecnosfera e agricultura. São Paulo: Nobel; 1997. (inclusive como programa de Estado, assim como os orgânicos) e pela crítica ao Antropoceno99 Zalasiewicz J, Williams M, Harywood A, Ellis M. The anthropocene: a new epoch of geological time? Philos Trans R Soc A. 2011; 369(1938):835-841. Doi: https://doi.org/10.1098/rsta.2010.0339.
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10 Latour B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza do Antropoceno. São Paulo: UBU Editora; 2020.
-1111 Viveiros de Castro E, Danowski D. Há um mundo por vir? Florianópolis: Editora Cultura e Barbárie; 2014.; assim como da desconstrução dos preconceitos estruturais (psicológicos, que se desdobrem em passagens ao ato mais explícitas ou não) e defesas maníacas sociais que se expressam como racismo, machismo, sexismo, capacitismo, especismo, xenofobia, intolerância religiosa, preconceito de classe, etc. Por fim, se o foco dos “mundos outros” é – e concordo que seja – “nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade”, parece-me assaz ineficaz buscar tais valores em mudanças unicamente materiais, posto que estas devem se fazer acompanhar de uma gradual reforma do pensar e do sentir, com foco na gênese dos afetos e dos valores e nos processos de subjetivação.

Faço minha a indignação face à proposta de “cobertura universal de Saúde”, que ofereceria tratamentos públicos diferenciados segundo o poder aquisitivo e a contribuição de cada indivíduo, assim como compartilho da necessidade de um protagonismo comunitário.

Senti falta de um maior respaldo a certas críticas, como ao associar-se o sanitarismo a “modelos assistenciais” em detrimento da “potencialização de máquinas coletivas desejantes”. Seria bom que o texto trouxesse mais exemplos para ilustrar raciocínios e propostas, de modo a avançar para além da listagem de intenções – o que já é de grande contribuição. Concordo com o texto de um modo geral e parabenizo os autores; e dialogo com seu sentimento e com sua abordagem deleuziana, acrescentando apenas que poderia ser mais explícito em pontos apenas alusivos, o que o tornaria ainda mais contundente.

Referências

  • 1
    Merhy EE, Bertussi DC, Santos MLM, Rosa NSF, Junior HS, Seixas CT. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210491. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210491.
    » https://doi.org/10.1590/interface.210491
  • 2
    Swanton C. Virtue ethics: a pluralistic view. Oxford: Clarendon Press; 2005.
  • 3
    Fulford KWM. Essential values-based practice: clinical stories linking science with people. Cambridge: Cambridge University Press; 2012.
  • 4
    Naess A. Ecology, community, and lifestyle: outline of an Ecosophy. Translated by David Rothenberg. Cambridge: Cambridge University Press; 2003.
  • 5
    Krenak A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras; 2020.
  • 6
    Krenak A. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras; 2020.
  • 7
    Rebello JRS, Sakamoto DG. Agricultura sintrópica segundo Ernst Götsch. Rio de Janeiro: Revinter; 2021.
  • 8
    Primavesi AM. Agroecologia: ecosfera, tecnosfera e agricultura. São Paulo: Nobel; 1997.
  • 9
    Zalasiewicz J, Williams M, Harywood A, Ellis M. The anthropocene: a new epoch of geological time? Philos Trans R Soc A. 2011; 369(1938):835-841. Doi: https://doi.org/10.1098/rsta.2010.0339.
    » https://doi.org/10.1098/rsta.2010.0339
  • 10
    Latour B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza do Antropoceno. São Paulo: UBU Editora; 2020.
  • 11
    Viveiros de Castro E, Danowski D. Há um mundo por vir? Florianópolis: Editora Cultura e Barbárie; 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2021
  • Aceito
    26 Out 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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