Tempo para ousar
Levo a sério o convite dos autores11 Merhy EE, Bertussi DC, Santos MLM, Rosa NSF, Junior HS, Seixas CT. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210491. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210491
https://doi.org/10.1590/interface.210491... quando afirmam: “Mais do que ofertar ideias para serem reproduzidas, construímos linhas de pensamento com as quais esperamos afetar e, assim, disparar novos encontros e pensamentos.” (p. 1).
Este é um convite para produzir narrativas que se desviem da construção habitual do fenômeno pandêmico centrado no ‘vírus’ e nos processos de objectificação que daí derivam22 Nicoli MA, Pellegrino V, Rodeschini G, Vivoli V. Elaborare insieme la direzione verso cui andare: è tempo di allargare lo sguardo. In: Blaya Martins Luciane A, Riffel Bitencourt MPR, Miotto Guarnieri J, Ferla AA, organizadores. A Pandemia e a Saúde Coletiva: produzindo conhecimentos e tecnologias no cotidiano. São Leopoldo: Oikos Editora; 2021. p.303-317.. A escolha metodológica de análise utilizada pelos autores no artigo – quando citam Rayuela de Cortázar - também ajuda no esforço que está a ser feito para produzir narrativas baseadas em múltiplos níveis de análise para revelar as múltiplas interligações dos fenômenos em causa: não apenas o ‘vírus’.
As linhas de pensamento que são instadas emergem de uma leitura crítica do que temos no campo. A pandemia como um acontecimento que revela que “o rei está nu”, levando-nos a um ritmo acelerado para o futuro que está no presente. O que escolhemos fazer a partir de agora é decisivo para provocar uma mudança de direção no binômio negacionismo-necroactividade33 Franco TB. El Covid-19 como una pandemia analítica dispositivo del mundo, salud y la vida contemporánea. In: Leskevicius CDG, Abarca RHP, Franco TB. Diálogos en sociocuidados Latinoamericanos: perspectivas en tiempos de pandemia. Porto Alegre: Rede Unida; 2022. (Forthcoming). e no enfrentamento das consequências das decisões neoliberais dos últimos anos, que se fazem evidentes tanto no desequilíbrio climático-ambiental quanto no social.
Como Pellegrino44 Pellegrino V. Futuri testardi. La ricerca sociale per l’elaborazione del “dopo-sviluppo”. Verona: Ombre Corte; 2020. também argumenta, não se trata de fazer previsões, mas de observar com maior força “a encruzilhada”55 Pellegrino V. Cinque domande sullo scenario futuro. 2020 [citado 1 Out 2021]. Disponível em: https://www.doppiozero.com/materiali/cinque-domande-sullo-scenario-futuro-4
https://www.doppiozero.com/materiali/cin... na “janela de tempo que se abriu” e que somos agora capazes de decifrar com maior consciência.
A partir desta posição de época sem precedentes, foram reabertas junções históricas à mente coletiva, que agora percebe de uma nova forma a tensão entre possibilidades e riscos, entre desejos e temores, entre outros.
No dilema que se abre entre as diferentes “bifurcações” se encontram presentes a aceleração sincrônica de formas de produção “agressivas”, o esvaziamento de políticas públicas. E ao mesmo tempo, contra tendências, que já estão em curso, tais como novas formas de produção local que envolverão mais micromercados locais, produção de zero km, formas mutualistas e cooperativas entre trabalhadores que envolvem menos intermediação, a gestão de espaços de trabalho comuns e espaços de auto formação. Por isso, é necessário cuidado uma vez que no “outro mundo” já existem processos opostos e conflituosos, marcos bem definidos na estrada, e cabe a nós decidir qual deles escolher.
Ou como os autores afirmam no artigo:
Esse seria, logo, um desses raros momentos na história em que processos, disputas, jogos de forças com sentidos bem distintos estão explícitos: de um lado, as forças que apontam a valoração de algumas vidas em detrimento de outras, [...]; de outro lado, re-existências, que apostam em novas formas de organização da maquinaria social capazes de deslocar interesses discriminatórios na construção de políticas sociais e ações nas quais todas as vidas valem a pena serem viabilizadas e socialmente apoiadas11 Merhy EE, Bertussi DC, Santos MLM, Rosa NSF, Junior HS, Seixas CT. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210491. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210491
https://doi.org/10.1590/interface.210491... . (p. 4)
É crucial para a política pública, neste contexto, posicionar-se numa perspectiva que transcenda o chamado «setor da saúde», e agir numa perspectiva Intersetorial; a pandemia mostra-nos mais uma vez que é impossível separar as questões ambientais e de saúde, uma vez que não estão separadas da vida das pessoas e dos lugares.
Cabendo, ainda, aqui observar que o que antes pensávamos como estabelecido se encontra hoje sob questionamento: fronteiras nacionais, formas de governo baseadas no Estado e relações com a economia. Um cenário especialmente relevante e que nos parece um aspecto a ser explorado também de uma perspectiva internacional.
Neste ponto, gostaria de acrescentar à questão colocada pelos autores no título do artigo, a seguinte pergunta: somos capazes de deixar “o mundo antes” da pandemia?
Dois elementos podem, aqui, fazer a diferença.
Por um lado, temos de trazer à luz o fato de que um “ outro mundo” não só é possível como já está presente. Deve ser visível, convergências devem ser reforçadas através do trabalho de cuidar dos lugares de encontro para que possamos nos reconhecer uns aos outros e cultivar a utopia, atuando como os autores sugerem
[...] na produção de possibilidades de constituir coletivamente modos de vincular a produção de mais vida nas vidas com ações a priori centradas nas redes de existências dos outros, e não de si mesma. Abrir-se para ser descentrada de si pode lhe proporcionar inventividade e implicação coletiva, no aqui e agora do que já é um outro mundo pós-pandêmico11 Merhy EE, Bertussi DC, Santos MLM, Rosa NSF, Junior HS, Seixas CT. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210491. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210491
https://doi.org/10.1590/interface.210491... . (p. 10)
E, de outro, observar que existem ligações afetivas e de pensamento entre grupos interoceânicos, ampliando nestes encontros a possibilidade de reconhecer um ‘outro’ mundo que se faz presente. Encontros que se observa, por exemplo, quando
Nicoli et al.22 Nicoli MA, Pellegrino V, Rodeschini G, Vivoli V. Elaborare insieme la direzione verso cui andare: è tempo di allargare lo sguardo. In: Blaya Martins Luciane A, Riffel Bitencourt MPR, Miotto Guarnieri J, Ferla AA, organizadores. A Pandemia e a Saúde Coletiva: produzindo conhecimentos e tecnologias no cotidiano. São Leopoldo: Oikos Editora; 2021. p.303-317. expressam a necessidade de “alargar o nosso olhar e processar coletivamente” o que está ocorrendo na pandemia/ apelo este que ressoa com as sugestões de Kopenawa e Albert66 Kopenawa D, Albert B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, Rede Unida; 2015., citadas no artigo Merhy et al.11 Merhy EE, Bertussi DC, Santos MLM, Rosa NSF, Junior HS, Seixas CT. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210491. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210491
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Alargar o olhar implica tomar nota das energias que os cidadãos e as organizações estão a pôr em ação para se manterem próximos do sofrimento crescente e para serem de ajuda voluntária e profissional no que diz respeito às várias solidões, aos efeitos do confinamento de crianças e jovens entre espaços domésticos, por exemplo, mas não só. Em suma, seria grave não olhar para as redes sociais de solidariedade que trabalham com inteligência e paixão no meio das várias dificuldades destes tempos.
Mas como podemos compreender a vitalidade destas redes sociais e como podemos caminhar competentemente com elas?
A fim de compreender e pensar no amanhã, o conceito de “organização efêmera”, proposto por Lanzara77 Lanzara GF. Capacità negativa. Competenza progettuale e modelli di intervento nelle organizzazioni. Bologna: Il Mulino; 1993. numa análise da gestão da crise após o violento terramoto de 1980 no sul de Itália, pode ser útil. Lanzara descobriu que, perante a ineficácia dos procedimentos preexistentes da burocracia governamental e outras organizações formais, indivíduos e grupos de voluntários apressaram-se a chegar ao local da catástrofe e começaram a desenvolver formas elementares de intervenção e organizações que, “embora informais, efêmeras, e constituídas por artifícios, pareciam funcionar” eficazmente77 Lanzara GF. Capacità negativa. Competenza progettuale e modelli di intervento nelle organizzazioni. Bologna: Il Mulino; 1993. (p. 9). O terremoto torna-se assim “uma experiência social não planeada, oferecendo oportunidades de aprendizagem e a oportunidade de testar não só a resiliência humana, o desempenho organizacional e os modelos de comportamento social, mas também ideias sobre organizações”77 Lanzara GF. Capacità negativa. Competenza progettuale e modelli di intervento nelle organizzazioni. Bologna: Il Mulino; 1993. (p. 144).
Por conseguinte, é importante que nos vários territórios paremos para aprender, e partilhar, a direção a seguir e como tirar novamente o máximo partido dos conhecimentos multifacetados das organizações efémeras que emergiram da emergência.
A nível dos serviços, como a nível social, estão a surgir numerosas práticas organizacionais e relacionais que, antes da pandemia parecia impossível, não existiam ou tinham um papel marginal; ideias e ações estão a ser postas em prática para enfrentar o momento de emergência com originalidade e paixão.
É importante encontrar uma forma de sedimentar as aprendizagens destas práticas, ou seja, o que deve permanecer destas formas de organização, não sendo (apenas) efémeras (temporárias), para que possam ser consolidadas e consideradas como prova empírica de que é possível avançar para um “outro mundo”.
A emergência destaca, portanto, mecanismos operacionais que precisam de ser aprendidos para que se tornem bens a que outros possam aceder. Afinal, as organizações efémeras são novas formas de vida social que questionam todos os atores sociais de um território, e não apenas as instituições, para pensar e organizar-se de forma diferente, reconhecendo que pode haver modelos de pensamento e ação social que podem responder melhor aos desafios que mudam rapidamente. Aqui também depende de nós, do nosso desejo, ousar explorar com o espírito daqueles que querem aventurar-se e captar elementos úteis onde normalmente não olharam.
No que diz respeito a tais organizações, é importante, portanto, cartografar, observar, por se em contato buscando mostrar que existem convergências que se opõem àqueles que gostariam de regressar ao mundo do passado. Convergências encontráveis, por exemplo, entre contextos e situações aparentemente distantes e diferentes, como no caso de jardinse Mandala em áreas semi-áridas do Sudeste do Brasil e as escolhas de vida expressas por grupos de pessoas de pequenas aldeias nos vales do rio Adda (norte de Itália) que comungam da mesma ideia de vida e escolhas económicas. Tão distantes, mas tão próximo nas formas utópicas de vida.
Por outro lado, dar força e apoio a formas de rebelião positiva para contrariar a experiência de impotência desenfreada alimentada nas pessoas pelas escolhas governamentais - pelo menos as europeias-, baseadas no controle na exoneração de suas responsabilidades individuais e coletivas. Durante os lockdowns, a mensagem de “não se mexa” induziu as pessoas a esperar, a viverem com a ideia de não poderem fazer nada.
Por esta razão, assumir esta experiência é crucial para despertar a consciência de poder agir e sair de um torpor que por tem gerado, principalmente, raiva e distanciamento das instituições aceitando um convite para que
[...] Não percamos tempo, construamos a partir de agora “quadrados” e contextos de confronto como centros organizadores de redes “vivas”, de formas flutuantes em que “aquela massa crítica” é criada que se torna pensamento coletivo, que traz à tona aquilo em que gastamos energia, para ultrapassar fronteiras, para dar voz e reconhecer conhecimentos experimentais, para lhes dar um impulso renovado. Deixemo-nos guiar pelo “campo” em que nascem os “flashes” criativos, caso contrário não descobriremos “organizações efêmeras”, mas soluções que rapidamente desvalorizaremos como fórmulas “experimentadas e testadas”, e não como práticas que nos mostram algo que vai além22 Nicoli MA, Pellegrino V, Rodeschini G, Vivoli V. Elaborare insieme la direzione verso cui andare: è tempo di allargare lo sguardo. In: Blaya Martins Luciane A, Riffel Bitencourt MPR, Miotto Guarnieri J, Ferla AA, organizadores. A Pandemia e a Saúde Coletiva: produzindo conhecimentos e tecnologias no cotidiano. São Leopoldo: Oikos Editora; 2021. p.303-317.. (p. 316)
Com a força que este reconhecimento nos dá, seremos certamente capazes de largar aquilo a que estávamos habituados e o que nos tranquilizava.
Não nos podemos permitir que, tendo regressado “à normalidade”, não depositemos nada que possa ajudar a dar força e ímpeto a essas visões do “outro mundo” para onde aspiramos ir.
Chegou a hora de ousar!
- Nicoli MA. Em tempos de pandemias faz-se necessário afirmar convergências e produzir redes de solidariedade que produzam mais vidas, nas vidas. Interface (Botucatu). 2022; 26: e210670 https://doi.org/10.1590/interface.210670
Referências
- 1Merhy EE, Bertussi DC, Santos MLM, Rosa NSF, Junior HS, Seixas CT. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210491. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210491
» https://doi.org/10.1590/interface.210491 - 2Nicoli MA, Pellegrino V, Rodeschini G, Vivoli V. Elaborare insieme la direzione verso cui andare: è tempo di allargare lo sguardo. In: Blaya Martins Luciane A, Riffel Bitencourt MPR, Miotto Guarnieri J, Ferla AA, organizadores. A Pandemia e a Saúde Coletiva: produzindo conhecimentos e tecnologias no cotidiano. São Leopoldo: Oikos Editora; 2021. p.303-317.
- 3Franco TB. El Covid-19 como una pandemia analítica dispositivo del mundo, salud y la vida contemporánea. In: Leskevicius CDG, Abarca RHP, Franco TB. Diálogos en sociocuidados Latinoamericanos: perspectivas en tiempos de pandemia. Porto Alegre: Rede Unida; 2022. (Forthcoming).
- 4Pellegrino V. Futuri testardi. La ricerca sociale per l’elaborazione del “dopo-sviluppo”. Verona: Ombre Corte; 2020.
- 5Pellegrino V. Cinque domande sullo scenario futuro. 2020 [citado 1 Out 2021]. Disponível em: https://www.doppiozero.com/materiali/cinque-domande-sullo-scenario-futuro-4
» https://www.doppiozero.com/materiali/cinque-domande-sullo-scenario-futuro-4 - 6Kopenawa D, Albert B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, Rede Unida; 2015.
- 7Lanzara GF. Capacità negativa. Competenza progettuale e modelli di intervento nelle organizzazioni. Bologna: Il Mulino; 1993.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
01 Jun 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
06 Out 2021 - Aceito
26 Out 2021