Construção da integralidade na Rede de Atenção às Urgências e Emergências: o cuidado para além dos serviços

Construcción de la integralidad en la Red de Atención a Urgencias y Emergencias: el cuidado más allá de los servicios

Luís Fernando Nogueira Tofani Lumena Almeida Castro Furtado Rosemarie Andreazza Mariana Arantes Nasser Arthur Chioro Sobre os autores

Resumos

A pesquisa tem por objetivo analisar as dimensões do cuidado e as necessidades em saúde relatadas por usuários da Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) em uma Região de Saúde. O estudo tem caráter qualitativo e foi realizado por meio da coleta de narrativas de usuários de serviços sobre suas experiências com o processo de adoecimento e a utilização da RUE. A análise considerou os referenciais da Taxonomia das Necessidades em Saúde e das Múltiplas Dimensões da Gestão do Cuidado. Observou-se nos relatos especial ênfase à busca dos usuários por autonomia e a ação do cuidado familiar. A compreensão das necessidades em saúde dos usuários e das diferentes dimensões da gestão do cuidado em ação devem ser consideradas para formulação de políticas de saúde e para a organização de redes rumo à integralidade.

Palavras-chave
Assistência integral à saúde; Necessidades e demandas de serviços de saúde; Serviços médicos de emergência; Sistemas de saúde


El objetivo de la investigación fue analizar las dimensiones del cuidado y las necesidades de salud relatadas por usuarios de la Red de Atención a Urgencias y Emergencias (RUE) en una región de salud. El estudio tiene carácter cualitativo y se realizó por medio de la colecta de narrativas de usuarios de servicios sobre sus experiencias con el proceso de enfermarse y de la utilización de la RUE. El análisis considera los factores referenciales de la “Taxonomía de las Necesidades de Salud” y de las “Múltiples Dimensiones de la Gestión del Cuidado”. Se observó en los relatos un énfasis especial a la búsqueda de los usuarios por autonomía y la acción del cuidado familiar. La comprensión de las necesidades de salud de los usuarios y de las diferentes dimensiones de la gestión del cuidado en acción deben considerarse para la formulación de políticas de salud y para la organización de redes hacia la integralidad.

Palabras clave
Asistencia integral de la salud; Necesidades y demandas de los servicios de salud; Servicios médicos de emergencia; Sistemas de salud


Introdução

A produção da atenção integral à saúde da população brasileira tem sido um importante desafio para o Sistema Único de Saúde (SUS). O princípio da integralidade reconhece a complexidade e o conjunto das necessidades individuais e coletivas de saúde e demonstra que o direito à saúde no Brasil não é restrito a uma cesta básica de serviços, mas deve também contemplar o necessário para o cuidado à saúde com dignidade11 Brito-Silva K, Bezerra AFB, Tanaka OY. Direito à saúde e integralidade: uma discussão sobre os desafios e caminhos para sua efetivação. Interface (Botucatu). 2012; 16(40):249-260..

Descrita na Lei Orgânica da Saúde22 Brasil. Presidência da República. Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências [Internet]. Brasília: Casa Civil; 1990 [citado 14 Ago 2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm
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como o conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos; e individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema, a integralidade é considerada um princípio de concepção polissêmica11 Brito-Silva K, Bezerra AFB, Tanaka OY. Direito à saúde e integralidade: uma discussão sobre os desafios e caminhos para sua efetivação. Interface (Botucatu). 2012; 16(40):249-260.,33 Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, Abrasco; 2009. p. 43-68.,44 Silva RVGO, Ramos FRS. Integralidade em saúde: revisão de literatura. Cienc Cuid Saude. 2010; 9(3):593-601.. Compreendida ora como eixo integrador de serviços, ora como visão holística do sujeito do cuidado, ou, ainda, como ações de atendimento integral às demandas e necessidades44 Silva RVGO, Ramos FRS. Integralidade em saúde: revisão de literatura. Cienc Cuid Saude. 2010; 9(3):593-601., as definições de integralidade expressam a viabilização do acesso aos diferentes níveis de atenção e a articulação dos diferentes serviços de saúde e muitas vezes para além desta, é pautada no acolhimento e vínculo entre usuários e equipes11 Brito-Silva K, Bezerra AFB, Tanaka OY. Direito à saúde e integralidade: uma discussão sobre os desafios e caminhos para sua efetivação. Interface (Botucatu). 2012; 16(40):249-260..

Mattos33 Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, Abrasco; 2009. p. 43-68. identifica pelo menos três conjuntos de sentidos do conceito integralidade: o primeiro é aplicado às características de políticas de saúde ou à abrangência das respostas governamentais, com o objetivo de articular ações de alcance preventivo com as assistenciais. O segundo conjunto de sentidos, relativo aos aspectos da organização dos serviços de saúde, deve garantir não apenas o acesso, mas também a continuidade do cuidado. Por fim, o terceiro conjunto é voltado para atributos das práticas de saúde com a ampliação do olhar sobre os sujeitos. Sob outras perspectivas, Ayres55 Ayres JRCM. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saude Soc. 2019; 18 Suppl 2:11-23. compreende a integralidade a partir de quatro eixos, a saber: necessidades concernentes ao acolhimento e resposta às demandas em saúde; finalidades, que compreende a relação entre as medidas de promoção, de prevenção, de assistência e de reabilitação; articulações pertinentes às ações das equipes multiprofissionais aos saberes interdisciplinares e às ações intersetoriais; e interações que abordam as possibilidades e estratégias dos encontros intersubjetivos.

Neste estudo, compreendemos a integralidade como as conexões entre as múltiplas dimensões do cuidado66 Cecílio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):589-599. operando para atendimento às diferentes necessidades em saúde77 Cecílio LCO, Matsumoto NF. Uma taxonomia operacional de necessidades em saúde. In: Pinheiro R, Ferla AA, Mattos RA, organizadores. Gestão em redes: tecendo os fios da integralidade em saúde. Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro: EdUCS/UFRS, IMS/UERJ, CEPESC; 2006. p. 37-50. da população e dos indivíduos. Como sintetiza Mattos33 Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, Abrasco; 2009. p. 43-68., o que caracteriza a integralidade em saúde é a apreensão ampliada das necessidades e a habilidade de adequar as ofertas ao contexto específico no qual se dá o encontro do sujeito com a equipe e no qual se produz concretamente a vida das pessoas.

Considerando que as necessidades em saúde são sempre históricas, dinâmicas e cambiantes, mas também têm um componente de natureza subjetiva e individual, Cecílio e Matsumoto77 Cecílio LCO, Matsumoto NF. Uma taxonomia operacional de necessidades em saúde. In: Pinheiro R, Ferla AA, Mattos RA, organizadores. Gestão em redes: tecendo os fios da integralidade em saúde. Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro: EdUCS/UFRS, IMS/UERJ, CEPESC; 2006. p. 37-50. formularam uma taxonomia organizada em quatro grandes eixos de necessidades: 1) ter boas condições de vida; 2) ter acesso e poder consumir toda tecnologia de saúde capaz de melhorar e prolongar a vida; 3) criar e manter vínculos (a)efetivos com equipes e profissionais de saúde; e 4) ter graus crescentes de autonomia no seu modo de “andar a vida”. Essa classificação evoca um sistema de saúde que, além de acessível e integrado, seja produtor de cuidado e de subjetividade.

Ao estudar o cuidado em saúde sob o referencial teórico do interacionismo simbólico, Utzumi et al.88 Utzumi FC, Lacerda MR, Bernadino E, Gomes IM, Aued GK, Sousa SM. Continuity of care and the symbolic interactionism: a possible understanding. Texto Contexto Enferm. 2018; 27(2):e4250016. Doi: https://doi.org/10.1590/0104-070720180004250016.
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o compreendem não só como algo concreto, mas também como um objeto social decorrente do agir de cada um dos envolvidos no processo. Em uma concepção abrangente, Cecílio66 Cecílio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):589-599. define a gestão do cuidado em saúde como o provimento das tecnologias de saúde de acordo com as necessidades singulares de cada pessoa, em diferentes momentos de sua vida, visando ao seu bem-estar, segurança e autonomia para seguir com uma vida produtiva e feliz. Propõe ainda que o cuidado seja produzido em seis dimensões – individual, familiar, profissional, organizacional, sistêmica e societária – que, imanentes entre si, apresentam múltiplas conexões, produzindo uma complexa rede de pontos de contato, atalhos, caminhos colaterais e possibilidades.

Cecílio66 Cecílio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):589-599. postula que a primeira dimensão, individual, tem como lógica a necessidade de cuidar de si, a autonomia, o direito à escolha. A segunda é a familiar, composta não apenas pelos familiares, mas também pelos amigos, vizinhos, pessoas com relação afetiva e a rede de cuidadores que se forma em torno do indivíduo. A lógica desta dimensão é o apoio, a proximidade e todos os elementos presentes no mundo da vida. A terceira, a profissional, cujos atores são os trabalhadores de saúde, tem no preparo técnico, no vínculo e na ética seus elementos constitutivos. A quarta dimensão, organizacional, tem como protagonistas a equipe de saúde e gerentes, com a responsabilidade pela coordenação do cuidado no serviço. A quinta, sistêmica, é o campo de atuação dos gestores e o lócus de produção das políticas de saúde, organização, financiamento e coordenação do sistema. A sexta e última dimensão, a societária, em que atuam o Estado e a sociedade, deve garantir as condições mais gerais de existência e reprodução da vida66 Cecílio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):589-599..

A integralidade ainda é uma prática em disputa e tensionada no âmbito do SUS, pois, apesar de alguns avanços e inovações produzidas, as práticas de cuidado ainda estão fortemente relacionadas ao paradigma biomédico, curativista. Tais práticas expressam uma assistência mais mecanizada, controladora e normatizadora, tendo como foco apenas a patologia, e não o ser humano99 Pereira TTSO, Barros MNS, Augusto MCNA. O cuidado em saúde: o paradigma biopsicossocial e a subjetividade em foco. Mental. 2011; 9(17):523-526.. Santos e Giovanella1010 Santos AM, Giovanella L. Gestão do cuidado integral: estudo de caso em região de saúde da Bahia, Brasil. Cad Saude Publica. 2016; 32(3):e00172214., ao analisarem a conformação da gestão do cuidado integral nos níveis político-institucional, organizacional e nas práticas de saúde em uma região de saúde, identificaram desafios para a coordenação municipal, e entre municípios, os cuidados necessários aos usuários. Demostram, ainda, que os dispositivos para integração e regulação assistencial são outro desafio importante para as regiões de saúde, pois observaram uma fragmentação entre os diferentes pontos assistenciais do sistema e uma desarticulação comunicacional na rede.

Com o objetivo de superar a intensa fragmentação das ações e dos serviços de saúde e qualificar a gestão do cuidado, a partir de 2010, o Ministério da Saúde propõe como modelo organizativo para o SUS as Redes de Atenção à Saúde (RAS)1111 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Implantação das redes de atenção à saúde e outras estratégias da SAS. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.. A constituição das RAS foi fortemente marcada pela indução federal para a implantação de redes temáticas nas regiões de saúde. São elas a Rede Cegonha, a Rede de Urgência e Emergência, a Rede de Atenção Psicossocial, a Rede de Saúde da Pessoa com Deficiência e a Rede de Atenção às Doenças Crônicas1111 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Implantação das redes de atenção à saúde e outras estratégias da SAS. Brasília: Ministério da Saúde; 2014..

Independentemente do modelo organizacional, muitos países vêm investindo em serviços de urgência com o propósito de atender à crescente demanda e equacionar situações de superlotação hospitalar1212 Obermeyer Z, Abujaber S, Makar M, Stoll S, Kayden SR, Wallis LA, et al. Emergency care in 59 low- and middle-income countries: a systematic review. Bull World Health Organ. 2015; 93(8):577-586.. Considerada agenda prioritária para a população, trabalhadores da saúde e gestores, a atenção às urgências e emergências no Brasil interfere na avaliação que a sociedade faz da garantia do direito à saúde, do cuidado ofertado e da legitimidade do SUS1313 Padilha ARS, Amaral MA, Oliveira DC, Campos GWS. Fragilidade na governança regional durante implementação da rede de urgência e emergência em região metropolitana. Saude Debate. 2018; 42(118):579-593.. Nesse contexto, implanta-se a Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) a partir de 2011, com a finalidade de articular e integrar todos os equipamentos de saúde, objetivando ampliar e qualificar o acesso humanizado e integral aos usuários em situação de urgência e emergência de forma ágil e oportuna. Dentre suas diretrizes, destacam-se: a atuação territorial com organização a partir das necessidades de saúde da população, riscos e vulnerabilidades; e a atuação profissional e gestora visando ao aprimoramento da qualidade da atenção por meio do desenvolvimento de ações coordenadas, contínuas e que busquem a integralidade e a longitudinalidade do cuidado em saúde1414 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de Julho de 2011. Reformula a política nacional de atenção às urgências e institui a rede de atenção às urgências no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2011..

Considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado e as diferentes necessidades em saúde, a questão que se coloca é: como a RUE enquanto política de saúde, é efetivamente construída pelos usuários, em seus caminhos na busca pela resolução das suas necessidades e da assistência aos seus processos de adoecimento? Parte-se do pressuposto que o saber dos usuários do sistema de saúde deve ser considerado válido, pois se trata de um “saber assessor”, mas que muitas vezes é desconsiderado pelos profissionais, gestores e pesquisadores1515 Andreazza R. Narrativas dos caminhos dos cidadãos portugueses no Serviço Nacional de Saúde. In: Carapinheiro G, Correa T, organizadores. Novos temas de saúde, novas questões sociais. Lisboa: Mundos Sociais; 2015.. Assim, este estudo tem por objetivo analisar as múltiplas dimensões do cuidado e necessidades em saúde relatadas por usuários da RUE em uma região de saúde.

Método

O estudo, de caráter qualitativo, fez uso dos depoimentos de oito usuários do SUS sobre suas experiências na RUE. Os usuários foram entrevistados de forma aberta e em profundidade; e narraram seus processos de adoecimento e suas vivências na utilização da RUE. As entrevistas tiveram natureza dialógica, a partir do convite “Conte para mim...”, com potencial para apreensão de sentimentos, compreensões, interpretações, assim como para informações fatuais e objetivas1616 Bertaux D. Narrativas de Vida: a pesquisa e seus métodos. Natal, São Paulo: EDUFRN, Paulus; 2010..

A pesquisa de campo foi realizada em dois municípios de médio porte, escolhidos por conveniência, em uma região de saúde no estado de São Paulo no mês de março de 2019. A seleção dos entrevistados deu-se a partir de informações colhidas nas centrais de regulação dos municípios, tendo como critério a utilização no último mês da rede de saúde para situações de urgência ou emergência em uma das três linhas de cuidados que compõem a RUE: cardiovascular, cerebrovascular e traumatológica1414 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de Julho de 2011. Reformula a política nacional de atenção às urgências e institui a rede de atenção às urgências no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2011.. A partir das listagens fornecidas pelos municípios, fez-se contato telefônico com os usuários explicando os objetivos da pesquisa e efetuando o convite para participação. Foram incluídos todos os usuários que se conseguiu o contato e que consentiram com a participação na pesquisa, totalizando um universo de oito entrevistados.

As entrevistas foram realizadas em domicílios e serviços de saúde, com duração média de quarenta minutos, mediante anuência dos participantes e assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A participação de familiares e cuidadores como mediadores foi facultada, com o objetivo de se ampliar o detalhamento de informações e a complementação dos relatos1717 Boehs AE, Boehs CGE, Fernandes GCM, Nascimento ERP. Process of searching families for data collection in qualitative research. Texto Contexto Enferm. 2018; 27(3):e0670017. Doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072018000670017.
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. O conteúdo foi gravado e transcrito, sendo as identidades codificadas para garantia de sigilo e anonimato. Também constituíram o material empírico as observações registradas pelos entrevistadores em diários de campo.

O processo de análise do material empírico foi realizado a partir dos referenciais teórico-operacionais da Taxonomia das Necessidades em Saúde77 Cecílio LCO, Matsumoto NF. Uma taxonomia operacional de necessidades em saúde. In: Pinheiro R, Ferla AA, Mattos RA, organizadores. Gestão em redes: tecendo os fios da integralidade em saúde. Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro: EdUCS/UFRS, IMS/UERJ, CEPESC; 2006. p. 37-50. e das Múltiplas Dimensões da Gestão do Cuidado66 Cecílio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):589-599.. A partir da leitura exaustiva e íntegra das entrevistas transcritas, foram selecionados trechos das narrativas que expressam necessidades em saúde e dimensões da gestão do cuidado. Esses trechos foram categorizados de acordo com o referencial analítico proposto e organizados em quadros-síntese.

A interpretação dos resultados foi realizada a partir das significações e recorrências observadas1616 Bertaux D. Narrativas de Vida: a pesquisa e seus métodos. Natal, São Paulo: EDUFRN, Paulus; 2010., sendo que o aprofundamento das questões evidenciadas se deu pelo método indutivo, ou seja, a partir do material empírico foram pesquisados outros conceitos e agregados novos referenciais teóricos.

A pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa de acordo com a Resolução n. 466/2013 do Conselho Nacional de Saúde, mediante o parecer n. 2.447.067/2017, e financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Resultados

Os oito usuários do SUS entrevistados tinham história de episódios recentes de saúde que demandaram atendimento na RUE. A idade dos participantes variou entre 46 e 75 anos, sendo quatro homens e quatro mulheres. Dos oito entrevistados, três tinham diagnósticos de acidente vascular cerebral (AVC); dois, de infarto agudo do miocárdio (IAM); e três, traumas ortopédicos.

Em todas as narrativas, foram identificadas falas que expressam necessidades em saúde (quadro 1) e dimensões da gestão do cuidado (quadro 2).

Quadro 1
Necessidades em saúde* expressas pelos entrevistados
Quadro 2
Dimensões da gestão do cuidado* relatadas pelos entrevistados

Entre as necessidades em saúde relatadas, observa-se ênfase na busca pela autonomia, em especial, para o trabalho:

Se eu conseguir o benefício, aí eu consigo pagar um cômodo de aluguel, até tenho aonde. [...] Tendo dinheiro, pago um mês adiantado e entra pra dentro. Aí compro uma caminha de solteiro, um fogãozinho, um botijão. Isso eu arrumo. Aí tem gente que me dá, empresta. Aí eu volto a fazer o meu rango, comer, beber e dormir. Até eu sarar de vez e voltar a trabalhar.

(F-H)

Antes de eu ter esse problema, eu trabalhava numa empresa de limpeza. Aí depois, eu fiquei doente, tive o primeiro AVC que eu fiquei internada. Fazia as coisas de casa sozinha. Fazia um pouco, mas fazia. Agora, não dá mais. Porque eu fico de pé, começa a dor aqui embaixo e se eu não escorar, eu caio, vou pro chão [...] é muito ruim você ficar dependendo dos outros. Ser dependente dos outros pra tudo, depender pra tomar um banho, pra subir escada, é muito ruim, é humilhante.

(V-H)

Fiquei afastada um mês do trabalho, porque eu estava trabalhando. O INSS me afastou e nesse afastamento de um mês só, que o INSS me deu, eu vi que eu não estava boa pra voltar a trabalhar. Aí, eu tive que pedir a conta do meu trabalho. Porque não tinha como eu trabalhar. Parei de trabalhar e fui atrás da minha saúde.

(M-H)

Tô em casa, não dá pra fazer nada! Estou aguardando a minha recuperação, pra poder fazer alguma coisa [...] da outra vez, depois da cirurgia, foi feito um mês e pouco de fisioterapia e aí foi que a mão foi soltando e eu comecei a trabalhar.

(P-I)

Já entre as dimensões da gestão do cuidado referidas, a societária não foi citada de forma direta. A importância da organização do Estado brasileiro e da promoção de políticas públicas cuidadoras, como o SUS, não foi relatada. Depreende-se essa dimensão em algumas falas das políticas públicas de Previdência Social, por meio de relatos sobre benefícios sociais, aposentadorias e auxílio-doença. Observa-se nas narrativas forte atuação do cuidado familiar, incluindo o apoio de vizinhos e amigos:

Depois de lá, trouxe eu pra casa da minha mãe. Mas eu dava mais trabalho do que criança. Eu nem na cama sentava. Eu comecei andar de andador. O andador não tinha borrachinha nos pés, parecia um cavalo andando dentro de casa, com ferradura: proc, proc, proc, proc... aquilo ali incomodava, eu passava em frente aos quartos, no corredor, passava em frente ao quarto da minha irmã, da minha mãe. Eles não dormiam por causa de mim.

(F-H-t)

Aí, de repente, a minha boca começou a entortar, a minha mão começou coisar, foi minha filha que viu: mãe, a senhora tá ficando com a boca torta [...] aí, eu chamei a vizinha, uma colega nossa que está sempre aqui com a gente, aqui é igual a uma família, aí ela chegou, foi aonde levou nós imediatamente pro hospital. Porque meu carro não pode passar pra lá porque tá sem placa [...] no tempo do aniversário [da filha], ainda brinco com o pessoal, tiraram minha foto com a boca mais torta do que está. O pessoal juntou todo mundo aqui, pra dar força, aí fizeram o aniversário dela e eu toda torta aqui.

(V-H)

Deitei e acordei com falta de ar e dor, muita dor no peito. A minha filha, como está fazendo Enfermagem, aí eu liguei pra ela e perguntei: filha, onde você está? Ela falou: tô chegando. Eu falei: eu não tô bem. Ela chegou e viu que era infarto. Aí ela acordou meu marido. Ele já levou e cheguei lá e era mesmo [...] então estava demorando meses pra fazer cateterismo. E isso é urgência. Aí eu optei em pagar particular. A família toda ajudou.

(M-H)

Precisamos montar um quarto especial, acompanhamento de enfermeiros 24 horas [...] e agora, já faz um mês sem enfermeira, só eu e minha família. Eu tenho uma sobrinha que ajuda durante o dia [...] quem vem visitar é o médico que é vizinho. Ele tá pra vir hoje. Ele sempre passa aqui. Amigo, né?

(O-I)

Nossa, muita dor! Eu suava frio, derramava o suor. Daí meu filho me pôs no carro, levou pro hospital [...] eu saí do hospital e meu filho é que cuidou disso, ele que correu atrás e foi lá no SUS, marcou o cateterismo.

(A-I)

Discussão

Compreender as racionalidades que guiam as ações dos usuários pelo sistema de saúde pode ser um caminho promissor para a construção da integralidade no SUS. Para Cecílio et al.1818 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza ALM, Andrade MGG, Santiago SM, et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad Saude Publica. 2014; 30(7):1502-1514., com o seu agir, os usuários produzem mapas de cuidado que nos indicam uma multiplicidade de arranjos, que fogem da normatização dos sistemas. Ao ouvi-los podemos compreender que há múltiplos sistemas de saúde, criados a partir de uma tessitura complexa, na qual distintos e entrelaçáveis fluxos de saberes e fazeres produzem circuitos e curtos-circuitos que abrem novos fluxos e caminhos para a produção do cuidado em saúde1515 Andreazza R. Narrativas dos caminhos dos cidadãos portugueses no Serviço Nacional de Saúde. In: Carapinheiro G, Correa T, organizadores. Novos temas de saúde, novas questões sociais. Lisboa: Mundos Sociais; 2015..

Nessa perspectiva, este estudo identificou dimensões do cuidado presentes – ou ausentes – na atenção às diferentes necessidades em saúde expressas. Assim como Hadad e Jorge1919 Hadad ACAC, Jorge AO. Continuidade do cuidado em rede e os movimentos de redes vivas nas trajetórias do usuário guia. Saude Debate. 2018; 42(4):198-210., em estudo com usuários-guia, também foram evidenciados momentos de enunciação de redes vivas e potentes; e momentos de insuficiência ou falta de rede. Além disso, observa-se o protagonismo dos usuários e de seus familiares nos percursos com a utilização combinada entre serviços do SUS e particulares, o “mix público-privado”1818 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza ALM, Andrade MGG, Santiago SM, et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad Saude Publica. 2014; 30(7):1502-1514.. Também como em Fausto et al.2020 Fausto MCR, Campos EMS, Almeida PF, Medina MG, Giovanella L, Bousquat A, et al. Itinerários terapêuticos de pacientes com acidente vascular encefálico: fragmentação do cuidado em uma rede regionalizada de saúde. Rev Bras Saude Matern Infant. 2017; 17 Suppl 1:73-82., em pesquisa realizada em uma região interestadual do nordeste brasileiro, observaram-se formas diversificadas de acesso e ofertas de serviços; e, apesar da garantia do cuidado hospitalar, redes fragmentadas, sem a integração da Atenção Básica com os demais pontos do sistema e com baixo acesso para ações de reabilitação.

Chama a atenção nas narrativas a não menção direta ou compreensão da dimensão societária do cuidado em saúde. A dimensão societária, a mais ampla da gestão do cuidado, é a forma que a sociedade e o estado produzem cidadania, direito à vida e acesso a toda forma de consumo que contribua para uma vida melhor66 Cecílio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):589-599.. A efetivação do direito à saúde no Brasil passa, necessariamente, pela defesa do SUS e de políticas públicas que deem materialidade a essa dimensão. Para essa percepção, podem ser necessários outros instrumentos metodológicos que facilitem a aproximação com essa temática. Para Padilha1313 Padilha ARS, Amaral MA, Oliveira DC, Campos GWS. Fragilidade na governança regional durante implementação da rede de urgência e emergência em região metropolitana. Saude Debate. 2018; 42(118):579-593., a RUE não se consolida sem debate público e sem novas interações entre o agir do governo e os espaços da sociedade nos quais se constroem as percepções sobre saúde, valores e consensos.

Para além da necessidade de acesso a serviços, ações e tecnologias de saúde e da ação das dimensões de cuidado profissional, organizacional ou sistêmico, fica evidente nas narrativas a busca das pessoas pela autonomia, em especial, para o trabalho. Destaca-se, ainda, a forte ação e importância do cuidado familiar durante e após as situações de urgência e emergência em saúde.

O cuidado familiar

Em revisão sistemática sobre itinerários terapêuticos, Demétrio et al.2121 Demétrio F, Santana ER, Pereira-Santos M. O itinerário terapêutico no Brasil: revisão sistemática e metassíntese a partir das concepções negativa e positiva de saúde. Saude Debate. 2019; 43(spe 7):204-221. identificaram a família e os serviços de saúde como as principais redes de apoio na realização, avaliação e seleção de cuidados. A dimensão familiar da gestão do cuidado é localizada no mundo da vida, isto é, tem como seus atores privilegiados as pessoas da família, os amigos, os vizinhos e as pessoas do círculo afetivo, assumindo crescente importância em consequência do envelhecimento acelerado da população brasileira66 Cecílio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):589-599..

Estudo com usuários submetidos à cirurgia cardíaca de revascularização pós-IAM2222 Wottrich SH, Moré CLOO. Redes pessoais de pacientes cirúrgicos cardíacos. Paidéia. 2017; 27(1):422-429. identificou os familiares e membros da rede pessoal significativa como atores geralmente invisibilizados pelos processos de atenção à saúde, embora sejam corresponsáveis pelo cuidado e favorecedores do protagonismo dos pacientes. Maldonado et al.2323 Maldonado A, Vizeu B, Giacomozzi A, Berri B. Representações sociais do cuidado ao idoso e mapas de rede social. Liberabit. 2017; 23(1):9-22. observaram que, na rede social dos idosos, mediante limitação e perda da autonomia, o cuidado é geralmente delegado ao cuidador informal, familiar e do sexo feminino. Para Cecílio66 Cecílio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):589-599., o cuidado familiar não é um mundo sem dificuldades: há relações conflituosas que se apresentam nesse campo, em particular, aquelas em consequência da complexidade dos laços familiares, da ausência de relações afetivas, da sobrecarga de trabalho para os cuidadores e das exigências permanentes para a realização do cuidado.

A relação entre profissionais de saúde e familiares também necessita ser fortalecida. Em pesquisa realizada com familiares hospitalizados em leitos de cuidados intensivos2424 Mendes AP. Sensibility of professionals to information needs: experience of the family at the intensive care unit. Texto Contexto Enferm. 2016; 25(1):e4470014. Doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072016004470014.
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, as famílias referem que a sensibilidade do profissional foi determinante na resposta encontrada às suas necessidades de informação, sendo que o conhecimento das necessidades reais e potenciais da família é determinante no exercício profissional dos enfermeiros. Já no cuidado domiciliar, foi identificada a necessidade de informação para o desenvolvimento de competências relativas aos cuidados para alimentar-se, virar-se e transferir-se, facilitando a construção e aplicação de tecnologia educacional para familiares cuidadores2525 Landeiro MJL, Martins TV, Peres HHC. Nurses’ perception on the difficulties and information needs of family members caring for a dependent person. Texto Contexto Enferm. 2016; 25(1):e0430015. Doi: https://doi.org/10.1590/0104-070720160000430015.
https://doi.org/10.1590/0104-07072016000...
. Dessa forma, o familiar cuidador deve ser sempre incluído pela equipe de saúde na formulação e implementação de projetos terapêuticos.

Este estudo visibiliza e amplia a valorização da dimensão familiar, colocando centralidade na importância da inclusão dessa rede afetiva no processo de cuidado, com impacto importante na produção ou não de uma rede viva que permita uma atenção mais qualificada. A equipe de cuidado, para além dos trabalhadores da saúde, deve se abrir à rede socioafetiva das pessoas. Cuidar “com” e “também” do cuidador.

A necessidade de autonomia para a vida e o trabalho

Partindo da premissa de que o ser humano é motivado pelo desejo de satisfazer múltiplas necessidades, Maslow2626 Regis LFLV, Porto IS. Necessidades humanas básicas dos profissionais de enfermagem: situações de (in)satisfação no trabalho. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(2):334-341. estruturou sua teoria da motivação humana considerando como necessidades humanas básicas as fisiológicas, de segurança, as sociais, de estima e de autorrealização. Para o autor, o ser humano precisa de meios para sua existência e sobrevivência; proteção individual; convívio social e afeto; autossatisfação; e realização pessoal. A autonomia enquanto necessidade pode ser transversal a todas elas. Para Cecílio e Matsumoto77 Cecílio LCO, Matsumoto NF. Uma taxonomia operacional de necessidades em saúde. In: Pinheiro R, Ferla AA, Mattos RA, organizadores. Gestão em redes: tecendo os fios da integralidade em saúde. Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro: EdUCS/UFRS, IMS/UERJ, CEPESC; 2006. p. 37-50., a necessidade de graus crescentes de autonomia no “modo de levar a vida” implicaria na possibilidade de reconstrução, pelos sujeitos, dos sentidos de sua vida. Essa ressignificação teria peso efetivo no seu modo de viver, incluindo aí a luta pela satisfação de suas necessidades, da forma mais ampla possível.

Situações graves de saúde como o IAM, o AVC e o trauma podem trazer limitações temporárias ou permanentes de autonomia que impactam nas condições de vida e no autocuidado. Para Cecílio66 Cecílio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):589-599., na dimensão individual da gestão do cuidado em saúde está o “cuidar de si’, no sentido de que cada um de nós pode ou tem a potência de produzir um modo singular de vida. Um processo não linear e muitas vezes dificultado pelas múltiplas relações e condições sociais de vida que vão além das escolhas individuais.

A relação entre a necessidade de autonomia e a capacidade laboral é bastante significativa nas narrativas coletadas neste estudo. O atendimento às necessidades humanas básicas, incluindo a de subsistência, passa pelo mundo do trabalho. Muitas vezes estudado no campo das Ciências Sociais enquanto forma de exploração e acumulação produtiva no capitalismo2727 Pereira MS. Trabalho, classe e capitalismo: sobre a interpretação de Marx por Postone. Rev Direito Prax. 2020; 11(2):997-1028. e no campo da Saúde Coletiva como risco e causa de adoecimento e morte2828 Lacaz FAC. Continuam a adoecer e morrer os trabalhadores: as relações, entraves e desafios para o campo Saúde do Trabalhador. Rev Bras Saude Ocup. 2016; 41:e13., a compreensão do trabalho enquanto valor social vem sendo ressignificada. O trabalho afetivo, enquanto dimensão do trabalho imaterial, pode produzir subjetividade, valores, autorrealização, sociabilidade e vida2929 Hardt M. O trabalho afetivo. In: Varela FJ. O reencantamento do concreto. São Paulo: Hucitec; 2003. p. 143-157.. Embora o desenvolvimento de trabalho imaterial talvez não seja a realidade da maioria dos entrevistados nesta pesquisa, as narrativas indicam para uma compreensão de que ter saúde, entre outras características, é ter autonomia e capacidade para trabalhar e garantir suas diferentes necessidades, inclusive de autovalorização. A grande desigualdade social e as diferentes condições sociais colocam ainda a possibilidade de acesso ao trabalho como central na produção da vida e na garantia de acesso a condições básicas de sobrevivência. Este estudo reforça que a busca pela autonomia e o sofrimento advindo da falta desta é uma dimensão que precisa ganhar mais centralidade na construção do processo de cuidado.

Os achados deste estudo apontam para a complexidade da integralidade enquanto princípio do SUS e destacam a observância das necessidades em saúde e de diferentes dimensões do cuidado enquanto caminhos para sua construção. Esta pesquisa apresenta como limitações 1) a coleta de narrativas exclusivas de usuários do SUS que sobreviveram a situações graves de risco à saúde e que conseguiram acesso aos serviços em situações de urgência e emergência; 2) o possível “viés de gratidão”3030 Esperidião MA, Viera-da-Silva LM. A satisfação do usuário na avaliação de serviços de saúde: ensaio sobre a imposição de problemática. Saude Debate. 2018; 42(2):331-340. dos usuários, pois conseguiram atendimentos nos diversos serviços da RUE, expresso por meio de ausência ou mitigação de críticas; e 3) as dificuldades cognitivas e de comunicação de alguns dos entrevistados decorrentes de sequelas dos processos de adoecimento vivenciados. Recomenda-se que, em estudos futuros, questões sobre a necessidade de autonomia e o cuidado familiar sejam aprofundadas, assim como outras necessidades em saúde e dimensões da gestão do cuidado sejam exploradas.

Considerações finais

A vivência de situações de urgência e emergência pode produzir emoções, racionalidades e sentidos nem sempre percebidos e considerados pelos formuladores, gestores, trabalhadores e pesquisadores das políticas públicas. Neste estudo, observou-se a produção de diferentes mapas de cuidados por usuários da RUE na busca pela manutenção e melhora de sua saúde e suas vidas. A compreensão e inclusão das necessidades em saúde dos usuários do SUS em situação de urgência e emergência e o reconhecimento das diferentes dimensões da gestão do cuidado presentes devem ser consideradas na formulação de políticas de saúde e na organização de redes, serviços e processos de cuidado enquanto estratégias fundamentais para a construção da integralidade nas redes de atenção à saúde.

Fica evidenciada neste estudo a centralidade das necessidades em saúde e de dimensões que muitas vezes não são consideradas, como a autonomia para o cuidar de si e para o trabalho, além do cuidado familiar. Elas remetem a um olhar para além dos arranjos de cuidado restritos aos serviços de saúde e radicalizam a importância de se orientar pelo conceito de saúde conectado e indissociável da produção concreta de vida.

Agradecimentos

Aos membros do Laboratório de Saúde Coletiva (Lascol/Unifesp), que apoiaram e contribuíram com esta pesquisa.

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  • Financiamento

    A pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio da chamada universal n. 28/2018, processo: 428431/2018-6.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2021
  • Aceito
    11 Maio 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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