(In)visibilidades das violências na produção do cuidado com as pessoas em situação de rua

(In)visibilidades de las violencias en la producción del cuidado con las personas que viven en la calle

João André Santos de Oliveira Lumena Almeida Castro Furtado Rosemarie Andreazza Sobre os autores

Resumos

Este artigo toma as manifestações de violência em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas de Salvador, Bahia, Brasil, como analisadoras da produção do cuidado com as pessoas em situação de rua usuárias desse serviço. Utilizou-se a abordagem qualitativa, em uma perspectiva cartográfica, seguindo pistas que apareceram no acompanhamento do serviço por um semestre, registradas em diário cartográfico, e em quatro encontros mensais com a equipe para discussão sobre cenas de violência. Os resultados apontam para deslocamentos do sentido sobre a violência como desdobramento natural da vulnerabilidade e do uso de drogas, tornando visíveis outros elementos envolvidos na sua produção, como os racismos estrutural e institucional vividos por essas pessoas. Reforçam a necessidade de estratégias de educação permanente que tomem as violências e o racismo nos serviços de saúde como matéria-prima da formação dos trabalhadores de saúde.

Palavras-chave
Violência; Centros de atenção psicossocial; Racismo; Pessoas em situação de rua; Atenção à saúde


Esta artículo toma las manifestaciones de violencia en un Centro de Atención Psicosocial, Alcohol y otras Drogas de Salvador, Bahia, Brasil, como analizadoras de la producción del cuidado con las personas que viven en la calle usuarias de ese servicio. Utilizó un abordaje cualitativo, en una perspectiva cartográfica, siguiendo pistas que aparecieron en el acompañamiento del servicio durante un semestre, registradas en diario cartográfico y en cuatro encuentros mensuales con el equipo para discusión sobre escenas de violencia. Los resultados señalan desplazamientos del sentido sobre la violencia como desdoblamiento natural de la vulnerabilidad y del uso de drogas, haciendo visibles otros elementos envueltos en su producción, como los racismos estructural e institucional vividos por esas personas. Refuerzan la necesidad de estrategias de educación permanente que tomen las violencias y el racismo en los servicios de salud como materia prima de la formación de los trabajadores de la salud.

Palabras clave
Violencia; Centros de atención psicosocial; Racismo; Personas que viven en la calle; Atención de la salud


Introdução

A violência envolve fatores sociais, históricos e culturais que, a depender do contexto, se transforma, constituindo-se também como experiências singulares. É composta por múltiplas dimensões, expressando-se de maneiras mais ou menos explícitas, como no uso da força ou como práticas de constrangimento ou racistas, essas menos visíveis. Pode envolver conflitos de autoridade, disputa pelo poder, desejo de domínio, posse e aniquilamento do outro, não podendo ser pensada como um fenômeno ou força exterior, mas sempre na relação11 Minayo MCS. Um fenômeno de causalidade complexa. In: Minayo MCS. Violência e saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006 [citado 23 Abr 2021]. p. 12-23. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/y9sxc/pdf/minayo-9788575413807.pdf
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Traz muita carga emocional para quem a comete, sofre e assiste; a violência está diluída na tessitura social, nas relações públicas e privadas, sempre envolta em julgamento moral. Pode ser aprovada ou não, considerada lícita ou ilícita, dependendo da sociedade, do período e dos interesses envolvidos11 Minayo MCS. Um fenômeno de causalidade complexa. In: Minayo MCS. Violência e saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006 [citado 23 Abr 2021]. p. 12-23. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/y9sxc/pdf/minayo-9788575413807.pdf
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Uma das formas de expressão da violência dá-se nas relações das pessoas com as instituições, na prestação de serviços, como os de saúde, seguridade social e segurança pública, sendo chamada de violência institucional22 Antoni C, Munhós AAR. As violências institucional e estrutural vivenciadas por moradoras de rua. Psicol Estud. 2016; 21(4):641-651.. As pessoas em situação de rua (PSR), em importante situação de vulnerabilidade social, frequentemente sofrem violência institucional e, mesmo quando vítimas, costumam ser culpabilizadas33 Silva MLB, Bousfield ABS, Giacomozzi AI, Leandro M. Atribuições de causalidade à violência para pessoas em situação de rua. Estud Interdiscip Psicol. 2020; 11(2):17-39..

Nessa perspectiva, aponta-se, entre outras, uma pesquisa com mulheres em situação de rua em Porto Alegre na qual se observou que a violência institucional, particularmente aquela realizada por trabalhadores de instituições públicas, tem uma relação importante com o aumento do sofrimento e do agravamento das vulnerabilidades presentes nessas vidas22 Antoni C, Munhós AAR. As violências institucional e estrutural vivenciadas por moradoras de rua. Psicol Estud. 2016; 21(4):641-651..

Uma revisão bibliográfica sobre pesquisas em relação a PSR apontou que a maioria dos trabalhos norte-americanos parte de uma perspectiva individualizante, enquanto as pesquisas latino-americanas, em grande medida, partem da necessidade de análises que englobem as múltiplas dimensões de vida44 Mendes KT, Ronzani TM, Paiva FS. População em situação de rua, vulnerabilidades e drogas: uma revisão sistemática. Psicol Soc. 2019; 31:e169056. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-0310/2019v31169056.
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. Os autores ressaltam que as metodologias mais participativas contribuem mais amplamente para o aprofundamento do tema, permitindo articular dinâmicas sociais e aspectos das trajetórias de vida.

Este artigo dialoga com a perspectiva epistemológica mais abrangente e participativa e é fruto da pesquisa de doutorado de um dos autores. Tem como objetivo refletir sobre a produção do cuidado com as PSR em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPSad) de Salvador, Bahia, por meio das situações de violência ocorridas nesse serviço. Não pretende interpretá-las ou explicar sua gênese, como se houvesse um sentido a desvelar, mas compreender um pouco mais sua produção e “trazer à luz os elementos que compõem o conjunto”55 Lourau R. Objeto e método da análise institucional. In: Altoé S, organizador. René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 66-86. (p. 70) desse fenômeno, criando novos sentidos para essas experiências66 Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2a ed. Porto Alegre: Sulina, UFRGS; 2011..

Metodologia

A pesquisa que originou este artigo lançou mão de uma metodologia de caráter qualitativo e cartográfico66 Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2a ed. Porto Alegre: Sulina, UFRGS; 2011., a qual envolveu a produção do campo e dos dados na relação direta com os usuários e trabalhadores do referido serviço. O principal instrumento de coleta do material empírico foram os diários cartográficos (DC)77 EPS em Movimento. O Diário Cartográfico [Internet]. 2014 [citado 31 Jan 2020]. Disponível em: http://eps.otics.org/material/entrada-apresentacao/arquivos-em-pdf/diario-cartografico
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, que eram restituídos88 Lourau R. René Lourau na UERJ: análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ; 1993. na forma de narrativas de situações (ou cenas) em encontros mensais com a equipe desse serviço, ocorridos entre julho e dezembro de 2019.

A produção dos DC é feita “por dentro”99 Slomp Junior H, Merhy EE, Rocha M, Baduy RS, Seixas CT, Bortoletto MSS, et al. Contribuições para uma política de escritura em saúde. Athenea Digital. 2020; 20(3):e2617. Doi: https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2617.
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da vivência do campo da pesquisa. Um lugar de registro do vivido, dos encontros, que produz múltiplas saídas (afetos e sentidos) para essas entradas77 EPS em Movimento. O Diário Cartográfico [Internet]. 2014 [citado 31 Jan 2020]. Disponível em: http://eps.otics.org/material/entrada-apresentacao/arquivos-em-pdf/diario-cartografico
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. Nessa perspectiva, ressaltamos que

DC é mais que o registro da descrição do observável, mas uma narrativa da relação entre pesquisador-mundo pesquisado que opera uma interferência nos instituídos que organizam este mundo, interferência que por outro lado produz a exterioridade no corpo dos próprios cartógrafos, por vezes deslocando-os de seus próprios territórios [...] Surpreender o aparelho instituído que preside o que se vê, se sente, se pensa, se diz e se escreve, operando na micropolítica dos encontros, é o que interessa registrar em nossos DC99 Slomp Junior H, Merhy EE, Rocha M, Baduy RS, Seixas CT, Bortoletto MSS, et al. Contribuições para uma política de escritura em saúde. Athenea Digital. 2020; 20(3):e2617. Doi: https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2617.
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Em busca de outras visibilidades e dizibilidades, com base no referencial teórico institucionalista88 Lourau R. René Lourau na UERJ: análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ; 1993.,1010 Guizardi FL, Lopes R, Cunha MLS. Contribuições do movimento institucionalista para o estudo de políticas públicas de saúde. In: Mattos RA, Baptista TWF, organizadores. Caminhos para análise das políticas de saúde. Porto Alegre: Rede Unida; 2015. p. 319-346., tomamos a violência no serviço como analisador do cuidado com as PSR1010 Guizardi FL, Lopes R, Cunha MLS. Contribuições do movimento institucionalista para o estudo de políticas públicas de saúde. In: Mattos RA, Baptista TWF, organizadores. Caminhos para análise das políticas de saúde. Porto Alegre: Rede Unida; 2015. p. 319-346.. Os analisadores são “aqueles acontecimentos que podem [...] fazer surgir, com mais força, uma análise; que fazem aparecer, de um só golpe, a instituição ‘invisível’ [...]”88 Lourau R. René Lourau na UERJ: análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ; 1993. (p. 35). Juntamente com um processo permanente de análise de implicação1111 Coimbra CM, Nascimento ML. Análise de implicações: desafiando nossas práticas de saber/poder. In: Geisler AR, Abrahão AL, Coimbra CM, organizadores. Subjetividades, violência e direitos humanos: produzindo novos dispositivos em saúde. Niterói: Eduff; 2008. p. 143-153., realizamos uma leitura intensiva dos diários e das transcrições dos registros dos encontros, produzindo-se uma narrativa pela vivência do campo. Dois deslocamentos analíticos emergiram nesse processo, tornando visíveis outros elementos que atravessam e afetam a produção do cuidado.

Esta pesquisa atende às exigências éticas e científicas fundamentadas nas Resoluções n. 510, de 7 de abril de 2016, e n. 466, de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta pesquisas envolvendo seres humanos. Este projeto foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) e autorizado pelo Parecer Consubstanciado de número 2.906.748.

A violência no CAPSad: um primeiro olhar

O CAPSad localiza-se no Pelourinho, onde, apesar da sua riqueza arquitetônica, histórica e cultural, vê-se, perto de suas ruas principais, construções desabando, miséria e tráfico de drogas. É um território atravessado por séculos de escravidão, desigualdades e violências1212 Fraga Filho W. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do Século XIX. São Paulo: Hucitec, Edufba; 1995..

Esse serviço é acessado por muitas PSR habitantes da região, sendo seu público principal. Algumas o frequentam há anos, utilizando-o também como local para descanso depois de uma noite nas ruas, de uso seguro de drogas, convivência, higiene corporal e alimentação, o que exige uma presença intensa da equipe.

Algumas delas se envolvem em situações de violência no serviço, incluindo agressões verbais e físicas, ameaças, depredação da estrutura predial, de móveis ou materiais. Entre as ameaças e agressões, incluem-se as ocorridas entre usuários e entre trabalhadores e usuários.

Alguns usuários afastam-se do CAPSad por conta da violência, e muitos se mostram preocupados com o risco de acontecer uma tragédia. Os trabalhadores, frequentemente com medo e acuados, tentam lidar de variadas formas com esses acontecimentos.

A vivência das muitas violências, com diferentes intensidades, atravessa as relações, criando dinâmicas que produzem sofrimento e desorganização do funcionamento do serviço. A violência passa a ser tema frequente das conversas, reuniões de equipe, assembleias e dos encontros de supervisão clínico-institucional.

Todos constroem explicações para o que vem ocorrendo, muitas delas conflitantes entre si. O pressuposto de que “ser violento” não é uma característica constitutiva das PSR e usuárias intensivas de drogas convive com a ideia, comum para parte dos usuários e dos trabalhadores, da violência como algo esperado de ocorrer em um CAPSad.

Ganha centralidade uma tensão em torno da compreensão dos trabalhadores sobre os “porquês” e os “comos” da violência, junto com uma sensação de impotência e incerteza sobre como lidar com ela. Alguns demandam medidas punitivas para os usuários envolvidos nessas situações, enquanto outros defendem investir na construção de novas regras de convivência no serviço. Apesar de não dividir rigidamente o grupo, esse processo explicitou dúvidas e inseguranças que dialogam com as duas posições, frequentemente no mesmo trabalhador.

Perante essa tensão, alguns questionam as medidas impostas aos usuários que protagonizam cenas de violência – expulsão do serviço no momento do acontecimento, suspensão por uma ou mais semanas e oferta de cuidado no território, entre outras – como “medidas disciplinares”1313 Oliveira JAS, Barretto LD, Freire RC, Rosa GFS, Lima F, Dultra LS, et al. Desencontros entre a vista do ponto dos usuários e as formas de cuidar em saúde: reflexões sobre a produção do cuidado em uma região da cidade de Salvador-BA. In: Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Júnior H, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde. Surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2016. p. 276-281.. Nesse entendimento, tais ações são consideradas punições restritoras de acesso e alinhadas com uma perspectiva manicomial. Outros entendem as consequências como a construção de “limites” para os usuários. No entanto, a construção de regras de convivência frequentemente não é sustentada pela equipe, sendo comum alguns trabalhadores e usuários assumirem um papel policialesco e fiscalizatório em relação a quem as descumpre.

Considerar como restrição de acesso a oferta de cuidado pelo CAPSad fora das suas dependências parece apontar uma concepção de cuidado centrado na estrutura física do serviço, apartado da rua e da vida na rua. Esse entendimento traz uma reflexão sobre o que é o cuidado e como ele é produzido.

Assim, percebemos que a problemática é mais complexa do que a dualidade “equipe sempre manicomial” e “equipe sempre antimanicomial”. Era necessário sair dessa polaridade para perceber que todos são atravessados por muitas linhas de força instituídas, mas também por linhas de fuga, que a cada encontro produzem cuidados diferentes. Outras lentes e línguas são necessárias para olhar e falar sobre isso.

Da mesma forma, é importante uma posição crítica em relação à perspectiva individualizante da produção de vida e da definição de “culpa” de cada PSR ou trabalhador que vivencia no CAPSad alguma situação de violência. A importância de reconhecer a complexidade da produção dos trabalhadores e dos usuários nas suas multiplicidades, como ressaltam Dutra e Henriques1414 Dutra R, Arenari B. Orientações para as políticas públicas. In: Souza J, organizador. Crack e exclusão social. Brasília: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas; 2016. p. 330-337., mostrou-se central no processo de investigação.

Primeiro deslocamento: outros olhares sobre a produção das violências no CAPSad

Nas relações de cuidado em saúde, há uma tensão constitutiva entre o mundo dos trabalhadores, com suas racionalidades e tecnologias, e o dos usuários dos serviços, com suas necessidades, modos de andar a vida, de perceberem-se e de relacionarem-se com os serviços1515 Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002.. Esses conflitos se expressavam cotidianamente no CAPSad. Como colocam Feuerwerker e Merhy1616 Feuerwerker LCM, Merhy EE. Como temos armado e efetivado nossos estudos, que fundamentalmente investigam políticas e práticas sociais de gestão e de saúde? In: Mattos RA, Baptista TWF, organizadores. Caminhos para análise das políticas de saúde. Porto Alegre: Rede Unida; 2015. p. 439-460.,

[...] o complexo mundo do trabalho não é um lugar do igual, mas da multiplicidade, do diverso e da diferença, da tensão e da disputa. É importante desmistificar a ideia de que o ambiente de trabalho é harmônico em si mesmo. Reconhecer a diversidade, os processos de formação das subjetividades, a forma singular de produção do cuidado, trabalho vivo dependente, que revela os afetos, a potência produtiva e a riqueza da práxis.

(p. 443)

Na equipe, um entendimento de que a dinâmica da rua estaria invadindo o serviço foi percebido negativamente. No entanto, alguns trabalhadores e parte dos usuários afirmam que as pessoas que costumam tumultuar o serviço, quando estão na rua se comportam completamente diferente. É comum a frase “Lá fora, todo mundo fica ‘pianinho’; aqui dentro, todos são valentes!”

Também é frequente explicar essa diferença no comportamento dos usuários como consequência da violência policial nas ruas, que impõe limites – os quais não são impostos dentro do serviço: “Lá fora, se andar fora da linha, a polícia mete a porrada”, dizem alguns.

A pesquisa foi desnaturalizando, deslocando a percepção de que as situações de violência são esperadas em um serviço de saúde que acolhe pessoas sob efeito de drogas, agitadas, em síndrome de abstinência ou na fissura.

Esse achado dialoga com a análise de Rodrigues et al.1717 Rodrigues JS, Lima AF, Holanda RB. Identidade, drogas e saúde mental: narrativas de pessoas em situação de rua. Psicol Cienc Prof. 2018; 38(3):424-436. Doi: https://doi.org/10.1590/1982-37030004912017.
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, por meio de uma pesquisa com PSR em Fortaleza. Ela trata da dificuldade do reconhecimento das pessoas de rua como portadoras de direitos, com a reprodução dos estigmas consequentes de concepções normativas e patologizantes que aprisionam a produção de novas formas de estar no mundo, convidando à reprodução das expectativas socialmente construídas sobre essa população.

Nessa perspectiva, Espinheira1818 Espinheira G. A casa e a rua. Cad CEAS. 1993; (145):24-38. aponta um “aprendizado da violência” como uma espécie de competência desenvolvida para sobreviver nas ruas. Ao compreender esse apontamento, é necessário desconstruir essa associação hegemônica que liga a violência aos corpos das PSR usuárias intensivas de drogas. Uma associação produzida socialmente no contexto da guerra às drogas, a qual também atravessa trabalhadores e usuários com implicações que precisam ser colocadas em análise55 Lourau R. Objeto e método da análise institucional. In: Altoé S, organizador. René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 66-86.. Todos esses elementos se revelaram, no material empírico da pesquisa, frutos dos encontros com a equipe e usuários.

A desnaturalização do vivenciado nos encontros foi visibilizando que todos estão em constante produção por diversos planos, dentro e fora do CAPSad. Aponta, assim, que não existe um usuário ou um trabalhador. Reconhecer essas múltiplas linhas de força que atravessam, afetam e disputam o viver de todos e de cada um é central. Olhar para a micropolítica da produção do cuidado traz para a análise as relações construídas na sociedade e os papéis que são esperados para os trabalhadores de saúde e usuários.

Tal como expressa um trabalhador em um dos encontros com a equipe, ao dizer:

É interessante falar que são violências diferentes porque, às vezes, [...] o discurso do usuário faz parecer que não existe violência lá fora. [...] é uma violência diferente mesmo; não é, simplesmente, a reprodução da violência da rua aqui dentro, como a gente muitas vezes teorizou e pensou. Mas é uma violência muito específica! Que é direcionada a nós, que estamos ocupando certo lugar, que estamos representando algo ou alguém para essa pessoa. É uma violência que não existe lá fora porque aqui é um ambiente diferente, um meio diferente! [...] É importante para não tomarmos certas coisas como algo dado: “aqui, para não ser a rua, não pode ter violência ou não pode ter uso de drogas!” Aqui acontece uso de drogas, que é diferente do uso que as pessoas fazem na rua! Tem uma outra finalidade, é um outro contexto! [...] A gente acha que tudo que acontece aqui dentro é, simplesmente, uma transferência das coisas da rua para fora, mas não é!

(Primeiro encontro com a equipe do CAPSad, 11 de julho de 2019)

Nesse processo, não servem mais explicações fáceis como a de que os usuários andariam “na linha” na rua por causa da repressão policial. O que não tem explicação ou não é compreendido se transformou em pistas que apontam novas visibilidades, considerando a micropolítica do trabalho vivo e da produção do cuidado em saúde que ocorre no encontro entre trabalhadores e usuários do serviço1919 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 1997. p. 71-112.,2020 Feuerwerker LCM. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede Unida; 2014..

Esse trabalhador traz a violência no serviço como direcionada à própria equipe, produzida nas relações de poder no serviço, destacando o lugar ocupado pelos trabalhadores nas organizações. Esses, de alguma forma, também representam o Estado e suas violências em relação às PSR usuárias intensivas de drogas. Por outro lado, também há uma expectativa dos usuários de que o CAPSad seja um espaço de proteção.

Essa fala avança na ideia da violência como produto das relações, mas preserva a ideia de que os usuários são os violentos; e são assim porque fazem uma transferência, para os trabalhadores, de outras violências que sofreram, como se eles não fossem ativos nessa produção. É uma fala potente porque coloca as diferenças entre a rua e o serviço como um campo problemático a ser explorado: quanto o serviço consegue, ou não, dialogar com a produção da vida na rua, e quanto a rua invade (ou não) o cuidado.

Outra fala reforça a externalidade da rua em relação ao CAPSad:

[...] A rua é marcada pela violência; o diálogo, muitas vezes, é feito através da violência. A violência da sociedade em relação a eles, a violência deles contra eles, a violência da facção contra eles. [...] Até que ponto a gente faz essa escuta qualificada? Compreende mesmo o sujeito, sua história de vida? [...] Muitas vezes, um usuário fala alto com a gente, a gente fala mais alto ainda com ele! Essa é uma linguagem que eles sabem fazer, a linguagem da rua. Então, a partir daí, cria corpo e ele reproduz aquilo que já acontece na rua.

(Primeiro encontro com a equipe do CAPSad, 11 de julho de 2019)

Falas que remetem a certa caricatura das “pessoas em situação de rua/usuários de droga” que acessam o CAPSad explicitam a perspectiva de que a rua deveria ficar de fora e colocam a seguinte interrogação: de que, então, o CAPSad se ocupa? Interrogam, assim, o cuidado e o trabalhador que são produzidos quando essa perspectiva atravessa o serviço. Essas são questões que povoaram todo o tempo a vivência do campo e a análise do que ali foi sendo produzido.

Entretanto, no final dessa fala, aparece algo importante: o trabalhador, ao ouvir o usuário falando alto (entendida, ali, como a linguagem da rua), fala mais alto ainda e, só a partir daí, o usuário reagiria reproduzindo a “violência da rua”. Nesse relato, aparece explicitamente a produção da violência que se dá no encontro, como fruto das relações.

O atravessamento que a rua faz no CAPSad, o sentido dela para os trabalhadores e usuários, escancara a necessidade de aprofundarmos o que os muros do CAPSad querem proteger, o que da rua querem conter para que não invada seu cotidiano. Os consultórios na rua, quando sabem ser feitos, vivem com menos tensão essa relação cuidado – serviço – rua. A conexão com a produção da vida, para quem vive na rua fortemente atravessada por ela, é o centro do processo de cuidado. Como já relatado, alguns usuários levam para dentro do CAPSad ações do cotidiano da vida que estão cada vez mais difíceis fora dele, como espaço para dormir com os dois olhos fechados, com alguma proteção, espaço de algum aconchego, de alimentação. Nesses momentos, parece que o CAPSad ocupa sozinho o lugar que poderia ser em rede com outras politicas e serviços. Isso denuncia a falta de outras políticas públicas? De uma invasão da rua no serviço? Da produção múltipla da vida pedindo acolhida, forçando um aconchego em uma das poucas portas ainda abertas no território? A vida invadindo o CAPSad?

O que é o CAPSad quando vai para a rua produzir cuidado onde a vida acontece, onde se encontra melhor com quem não consegue ficar apartado da rua dentro dos muros do serviço? Ele não é mais o CAPSad? Novamente, interroga-se o que é a produção do cuidado. Ela é dependente dos muros que delimitam seu espaço?

Assim, deixamos de lado a pergunta “por que certos usuários se comportam de forma tão diferente no CAPSad se compararmos com a forma como se comportam na rua?” e, interrogando os encontros e desencontros no cotidiano do cuidado, formulamos outra pergunta: “o que, nesses encontros, é produzido, produz e faz aparecer, de forma tão forte, as muitas violências?” Um deslocamento do olhar sobre a produção da violência para a relação entre sujeitos, descentrando-o do indivíduo. Ao sairmos do papel de interpretadores do “fenômeno violência” por meio das nossas vistas do ponto de vista2121 Merhy EE. As vistas do ponto de vista, tensão dos programas de saúde da família que pedem medidas [Internet]. Rev Bras Saude Fam. 2014 [citado 5 Set 2020]; 14. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/artigo_emerson_merhy.pdf
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, tal qual expressamos na introdução, mudamos a forma como estávamos fazendo a pergunta. A questão não seria mais “por quê?”, mas “como a violência atravessa e afeta a produção do cuidado?”

A vivência das muitas violências dentro do CAPSad atravessa os corpos, produzindo afetos, sofrimento, deslocamento das certezas, e interrogando o que está instituído. Pode ser um convite para colocar em análise as medidas que caminham na direção da “expulsão”, mesmo que transitória, do usuário do serviço e que produz o fechamento da porta, apartando ainda mais o CAPSad da rua. Esse deslocamento pode também interrogar que efeitos podem ser produzidos se a rotina desse serviço se deixar habitar pela rua. Não mais a rua “invadindo” o CAPSad, mas ele ocupando a rua e nela misturando o cuidado com as vidas que ali vão sendo costuradas, bordadas, esgarçadas. Um convite a uma aposta em um cuidado que seja produção compartilhada da vida.

Segundo deslocamento: o racismo e a humilhação social no encontro com as pessoas em situação de rua

A violência é vivencial e relacional11 Minayo MCS. Um fenômeno de causalidade complexa. In: Minayo MCS. Violência e saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006 [citado 23 Abr 2021]. p. 12-23. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/y9sxc/pdf/minayo-9788575413807.pdf
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. Nesse serviço de saúde, era justamente na sutileza das relações de cuidado que alguns usuários a sentiam, mas ela permanecia “secreta e aceita” ou, pelo menos, tolerada por parte da equipe.

Esse reconhecimento dos serviços como espaço de disputas e tensões nos desafia e nos convoca a reconhecer os campos de forças que nos atravessam, construindo processos de subjetivação mútuos, permeados por relações de poder e disputas diversas, pelas quais são elaboradas realidades singulares e possibilidades de cuidado ou descuidado. Nesse processamento em grupo, produzem-se campos de visibilidade e de invisibilidade coletivas.

Ao interrogarmos a violência no serviço pela micropolítica da relação entre usuários e trabalhadores, produzimos outras lentes para enxergar e outras línguas para falar da violência. Assim, diferentes violências e tensões foram atravessando nossos corpos nos muitos encontros no cuidado em saúde, visibilizando a urgência de trazer a vida para esses encontros. Esse deslocamento vai povoando os DC:

Um usuário, na assembleia, disse [...] que alguns trabalhadores não se conectavam com os usuários, passavam direto sem olhar, sem dar bom dia, só falando com eles para pedir para não usar as drogas; não procuravam saber como foi a noite, se estavam bem, não se conectavam. [...] faltava vínculo, conversa, chegar junto, não para fiscalizar o uso de drogas e impor a regra, mas para ouvir. Isso era o que fazia ele “respeitar” o profissional, pois, quando estes se direcionam ao usuário somente para fiscalizar e mandar parar o uso, gerava raiva, ódio e, até desejo de vingança, e ao desrespeito; outro colocou que, para alguns profissionais, parecia que eles não eram gente, não existiam, ou coisa parecida.

(DC, 28 de setembro de 2017)

Quando o Caps busca separar a vida na rua da vida no Caps, reproduz no seu cotidiano a vivência da invisibilidade que permeia o cotidiano nas ruas, quando as pessoas são vistas apenas como transgressores que devem ser enquadrados. As linhas de força que atravessam a produção de vida na rua e no Caps se entrelaçam e não é possível estar em um sem ser também do outro. Linhas de força que disputam mais que o cuidado, disputam o valor da vida das pessoas na rua.

Essa cena dos DC dialoga bastante com as violências que atravessam o cuidado:

Alguns usuários estavam na frente do serviço antes de horário de abertura, desejando entrar. Os seguranças não permitiram; uma funcionária chegou e entrou; instantes após, ela abriu as portas e permitiu a entrada apenas dos cachorros. Nesse momento, um dos usuários a agrediu. Não diminuindo ou justificando essa agressão, chamo a atenção de que a violência tem um contexto e uma gênese [...]. A frase que o usuário ficou repetindo ressoa na minha cabeça: “Até os cachorros valem mais do que eu?!!” Quem o conhece sabe que a exclusão e o racismo são bastante presentes em sua vida e, frequentemente, desencadeiam crises nele. [...]

(DC, 14 de fevereiro de 2018)

Uma cena que abre duas vertentes valorativas hegemônicas construídas no bojo do racismo estrutural e da guerra às drogas2222 Fiorati RC, Xavier JJS, Lobato BC, Carretta RYD, Kebbe LM. Iniquidade e exclusão social: estudo com pessoas em situação de rua em Ribeirão Preto/SP. Rev Gest Saude (Brasília). 2015; 6 Supl 3:2120-2135.,2323 Lancetti A. Contrafissura e plasticidade psíquica. São Paulo: Hucitec; 2015. (Políticas do desejo)., no qual o uso de drogas está sempre associado à violência e o corpo negro é visto como perigoso2222 Fiorati RC, Xavier JJS, Lobato BC, Carretta RYD, Kebbe LM. Iniquidade e exclusão social: estudo com pessoas em situação de rua em Ribeirão Preto/SP. Rev Gest Saude (Brasília). 2015; 6 Supl 3:2120-2135.,2424 Rolnik R, Calil TG. Território e proibição: guerra às drogas ou guerra aos pretos e pobres [Internet]. São Paulo: Carta Capital; 2021 [citado 17 Jun 2021]. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/territorio-e-proibicao-guerra-as-drogas-ou-guerra-aos-pretos-e-pobres/
https://www.cartacapital.com.br/sociedad...
. Uma produção que sustenta a guerra às drogas, que legitima o genocídio de negros – a maioria dos usuários desse CAPSad são negros ou pardos – em tantos territórios. Uma autorização orientada pela necropolítica2525 Mbembe A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Santini R, tradutor. 3a ed. São Paulo: N-1 edições; 2018. que decide quem deve viver e quem deve morrer. Tal concepção sustenta a representação social dos corpos negros como ameaçadores e dos usuários de drogas como imprevisíveis e potencialmente perigosos. Essa desigualdade abissal se profundou ainda mais na pandemia do Covid-19, exacerbando os efeitos da necropolítica nessa população.

Peter Pál Pelbart2626 Pelbart PP. Biopolítica. Sala Preta. 2007; 7:57-66. Doi: https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v7i0p57-66.
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interroga que corpo é esse que se apresenta nesse encontro:

Um corpo é primeiramente encontro com outros corpos. Um corpo é primeiramente poder de ser afetado, mas não por tudo e nem de qualquer maneira, como quem deglute e vomita tudo com seu estômago fenomenal, na pura indiferença de quem nada abala. Como então preservar a capacidade de ser afetado, se não através de certa permeabilidade, de certa passividade até, de uma certa fraqueza.

(p. 62-3)

Entrar em contato com as violências, institucionais e simbólicas, normalmente silenciadas, nos faz refletir sobre esses corpos exauridos – que não aguentam mais a docilização imposta pelas disciplinas2626 Pelbart PP. Biopolítica. Sala Preta. 2007; 7:57-66. Doi: https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v7i0p57-66.
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– que habitam esse lugar, assim como sobre o que eles falam, o que é ouvido e o que é silenciado. O reconhecimento desse corpo reforça a violência como um analisador e nos leva a refletir sobre as afetações produzidas nos encontros no CAPSad; sobre como a violência dentro desse serviço interroga a relação de nossos cuidados com projetos de docilização dos corpos; e sobre como a violência da vida nas ruas atravessa os corpos dos usuários e dos trabalhadores.

As situações de violência vividas pelos usuários dentro do CAPSad eram entendidas, em diálogo com as perspectivas cultural e social hegemônicas contemporâneas, como “criminais” ou “delinquenciais”, levando-as a não ser toleradas, pois ferem a moral fundamental de todas as culturas11 Minayo MCS. Um fenômeno de causalidade complexa. In: Minayo MCS. Violência e saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006 [citado 23 Abr 2021]. p. 12-23. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/y9sxc/pdf/minayo-9788575413807.pdf
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,2727 Toledo LM, Sabroza PC. Violência: orientações para profissionais da atenção básica de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013.,2828 Santos JVT. A violência simbólica: o Estado e as práticas sociais. Rev Crit Cienc Soc. 2015; (108):183-190. Doi: https://doi.org/10.4000/rccs.6169.
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. Assim, na relação com os sujeitos da pesquisa, percebemos que essas situações não eram analisadas à luz das relações de cuidado, vindo para o plano da visibilidade somente atos de violência infligidos unilateralmente contra membros da equipe, os quais já são visíveis sem que façamos esforço algum.

Segundo Ladeia et al2929 Ladeia PSS, Mourão TT, Melo EM. O silêncio da violência institucional no Brasil. Rev Med Minas Gerais. 2016; 26(8):398-401.. (p. 399), considera-se violência institucional aquela “praticada por órgãos e agentes públicos que deveriam responder pelo cuidado, proteção e defesa dos cidadãos”. Ela existe dentro das instituições, principalmente por meio de suas regras, normas de funcionamento e relações burocráticas e políticas, reproduzindo as estruturas sociais injustas11 Minayo MCS. Um fenômeno de causalidade complexa. In: Minayo MCS. Violência e saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006 [citado 23 Abr 2021]. p. 12-23. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/y9sxc/pdf/minayo-9788575413807.pdf
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. Ou “ocorre também na forma como são oferecidos, negados ou negligenciados os serviços públicos”22 Antoni C, Munhós AAR. As violências institucional e estrutural vivenciadas por moradoras de rua. Psicol Estud. 2016; 21(4):641-651. (p. 646). Ela se manifesta de forma tão natural e silenciosa que nem é percebida como tal, principalmente quando não gera danos físicos. Na saúde, apresenta-se como negligência, agressões verbais, tratamento grosseiro, repreensão, ameaças, violência física, incluindo o não alívio da dor e o abuso sexual2929 Ladeia PSS, Mourão TT, Melo EM. O silêncio da violência institucional no Brasil. Rev Med Minas Gerais. 2016; 26(8):398-401.,3030 D’Oliveira AFPL, Diniz CSG, Schraiber LB. Violence against women in health-care institutions: an emerging problem. Lancet. 2002; 359(9318):1681-1685..

A violência simbólica é invisível, infligida e sofrida de forma pouco elaborada ou perceptível, exercida e vivida pelo corpo, muitas sem coação física, causando danos morais e psicológicos3131 Bourdieu P. Sur la télévision. Paris: Liber; 1996..

As cenas vivenciadas e registradas demonstraram que há uma delicada articulação entre as violências institucional (em suas manifestações não físicas e mais sutis) e simbólica. Gonçalves Filho3232 Gonçalves Filho JM. Humilhação social: humilhação política. In: Souza BP, organizador. Orientação à queixa escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p. 187-221. traz que uma pessoa é humilhada quando algum traço de sua humanidade, como gostar de alguma coisa, amar ou rezar, é impedido de se manifestar. Ele coloca que a humilhação é sempre social (e também política, relacionando-se com a desigualdade na sua dobra com a dominação). É “um impedimento que não é natural ou acidental, mas aplicado ou sustentado por outros humanos”3232 Gonçalves Filho JM. Humilhação social: humilhação política. In: Souza BP, organizador. Orientação à queixa escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p. 187-221. (p. 194).

Esses sentimentos de inferioridade e desigualdade presentes na cena descrita são expressões coletivas e ancestrais, que se atualizam no corpo desse homem preto ao se perceber e ser tratado como inferior a um cachorro. Ser impedido de se sentir igual em relação ao outro reforça a desigualdade que, finalmente, não tem a ver com ser diferente, mas com relações de poder e dominação entre humanos3131 Bourdieu P. Sur la télévision. Paris: Liber; 1996..

No serviço, não faziam parte das reflexões coletivas as violências mais “sutis” praticadas pela equipe em relação aos usuários, grudando nessas a invisibilidade imposta a quem as sofre. Uma invisibilidade das violências expressando os racismos institucional e estrutural3333 Almeida SL. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen; 2019..

Grada Kilomba3434 Kilomba G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Oliveira J, tradutor. Rio de Janeiro: Cobogó; 2019. refere que o “sujeito branco”, no processo de cisão de sua psique, termina criando esse “outro” que é sempre antagonista do “eu”. Assim, apenas a parte “boa” de seu ego (acolhedora e benevolente) é reconhecida e vivenciada como sendo o “eu”. O resto, a parte “má”, é rejeitada e projetada sobre o “outro”. A branquitude fica como a parte positiva de si próprio, e não como negativa, a qual está depositada nesse outro, o “sujeito negro”. Portanto,

no mundo conceitual branco, o sujeito negro é identificado como o objeto “ruim”, incorporando os aspectos que a sociedade branca tem reprimido e transformado em tabu, isto é, agressividade e sexualidade. Por conseguinte, acabamos por coincidir com a ameaça, o perigo, o violento, o excitante e também o sujo, mas desejável – permitindo à branquitude olhar para si como moralmente ideal, decente, civilizada e majestosamente generosa, em controle total e livre da inquietude que sua história causa3434 Kilomba G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Oliveira J, tradutor. Rio de Janeiro: Cobogó; 2019..

(p. 37)

Há uma construção social que reforça a ideia sobre quem é considerado violento, imprevisível ou potencialmente perigoso: homem negro, “drogado” e “louco”. Mas não um louco, negro e drogado qualquer; uma pessoa que, além de tudo isso, está em situação de rua, com todas as construções no imaginário social sobre o que é estar nesse lugar: delinquente, vagabundo, malandro, não confiável, zumbi, não humano, provável usuário de crack2323 Lancetti A. Contrafissura e plasticidade psíquica. São Paulo: Hucitec; 2015. (Políticas do desejo).,3535 Merhy EE. Anormais do desejo: os novos não humanos? Os sinais que vêm da vida cotidiana e da rua. In: Conselho Federal de Psicologia. Grupo de Trabalho de Álcool e outras Drogas. Drogas e cidadania: em debate. Brasília: Conselho Federal de Psicologia; 2012. p. 9-18..

Trazer para a cena as múltiplas violências, que são produzidas e atravessam as relações e os encontros entre trabalhadores e usuários, interroga-nos e ajuda a romper com as respostas simplistas que categorizam os usuários pelo que já está hegemonicamente dado.

Considerações finais

O processamento da pesquisa produziu visibilidades e dizibilidades para as múltiplas dimensões da violência e suas expressões em um CAPSad. Uma dessas visibilidades é a de que as PSR usuárias desse serviço, além das muitas violências que já sofrem, também são atravessadas pelas violências institucional e simbólica produzidas nas relações de cuidado, que são bastante conhecidas e estudadas, mas pouco reconhecidas pelos trabalhadores de saúde. Violências em cuja produção esses trabalhadores estão envolvidos, afetados pela força das organizações e instituições, pelos estigmas atribuídos a essa população atendida, que acabam se expressando como certas práticas discursivas e comunicacionais cotidianamente.

Outra visibilidade importante foi perceber que os estigmas em torno das PSR, assim como a violência, são constructos sociais atuantes na subjetivação dos trabalhadores e dos usuários, sendo produzidos no CAPSad e estando presentes no seu cotidiano. Essa visibilização ajuda a superar a ideia das violências como constitutivas das PSR e usuárias de drogas, e a desconstruir a responsabilização individual dessas pessoas pelas violências que ocorrem no serviço, entendendo-as como coproduções relacionais e sociais.

Por outro lado, ajuda a visibilizar os racismos estrutural e institucional que habitam os trabalhadores e os serviços de saúde, principalmente os acessados por pessoas em situação de vulnerabilidade. Assim, esta pesquisa se soma a outros estudos que interrogam as relações de poder, as disputas e as tensões presentes nos encontros produtores de vida e cuidado.

Ao trazer as violências como produções sociais e relacionais, ao trazer os racismos estrutural e institucional para o centro do debate da produção do cuidado e do trabalho em saúde, construindo línguas para falar sobre isso, este estudo implica os trabalhadores de saúde e aponta a necessidade de essas temáticas serem matérias-primas das suas formações, como já está colocado nas diretrizes gerais da Politica Nacional de Saúde Integral da População Negra3636 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.. Reforça a importância de construir estratégias de Educação Permanente que tomem o cotidiano, com todos esses elementos, como disparador de processos formativos que interroguem e permitam o processamento dos efeitos que as violências e os racismos produzem nos serviços de saúde. Reforça a percepção de que o cuidado é produzido em ato, precisando, portanto, de estratégias de apoio permanente.

Deixar que essas inquietações tomem forma, dar língua ao que nos interroga, convidar-nos a aprofundar o que pode ser o cuidado a pessoas em situação de uso intensivo de drogas e que produzem suas vidas em conexão com a rua. Como tecer o cuidado dentro do serviço entrelaçado com o cuidado na rua, nos espaços do território onde essa vida acontece. Também coloca centralidade na necessidade de uma rede de politicas públicas que tirem o CAPSad da sua solidão, que é mais uma expressão da violência de Estado que vem produzindo um desmonte da rede de proteção e garantia de direitos.

As visibilidades e dizibilidades sobre as violências no CAPSad nas suas diferentes dimensões contribuíram para o aprofundamento do olhar, sempre inacabado, sobre o cuidado em saúde. Coloca no centro a conexão com os afetos, com a produção da vida e com as invenções constitutivas desse cuidado com as PSR (mas não só com elas), potencializando as muitas intensidades que atravessam as vidas nas ruas e suas expressões no serviço.

Agradecimentos

A todas e todos que fazem parte das equipes do CAPSad Gregório de Matos e do Consultório na Rua do Pelourinho pela indispensável presença na pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2022
  • Aceito
    17 Maio 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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