Resumos
Este artigo visa refletir sobre a potência de ações e serviços no campo da Saúde Mental no sistema de saúde pública brasileira, com o intuito de fomentar práticas emancipatórias, sobretudo no contexto de retrocessos vivenciados com a atual Nova Política Nacional de Saúde Mental, que se contrapõe aos preceitos da Reforma Psiquiátrica. Ancoradas em elementos teóricos acerca da emancipação, da sociologia das ausências e da sociologia das emergências, discutimos os grupos de ajuda e suporte mútuos, os grupos de ouvidores de vozes, os centros de convivência e as iniciativas de Economia Solidária, os quais visam à superação da lógica da monocultura do saber, valorizando o conhecimento dos usuários e adotando práticas horizontalizadas e autogestionárias. Tais experiências precisam ser sistematizadas, vivenciadas e multiplicadas para que seja possível o desenvolvimento de redes de cuidado com potencial emancipatório.
Palavras-chave
Saúde Mental; Emancipação social; Reforma psiquiátrica; Rede de atenção psicossocial
El objetivo de este artículo es reflexionar sobre la potencia de acciones y servicios en el campo de la salud mental en el sistema de salud pública brasileña, con la intención de fomentar prácticas emancipadoras, sobre todo en el contexto de retrocesos experimentados con la actual Nueva Política Nacional de Salud Mental, que se contrapone a los preceptos de la Reforma Psiquiátrica. Ancladas en elementos teóricos sobre la emancipación, la sociología de las ausencias y la sociología de las emergencias, discutimos los grupos de ayuda y soporte mutuos, los grupos de oidores de voces, los centros de convivencia y las iniciativas de economía solidaria, cuyo objetivo es la superación de la lógica de la monocultura del saber, valorizando el conocimiento de los usuarios y adoptando prácticas horizontalizadas y de autogestión. Tales experiencias precisan sistematizarse, experimentarse y multiplicarse para que sea posible el desarrollo de redes de cuidado con potencial emancipador.
Palabras clave
Salud mental; Emancipación social; Reforma psiquiátrica; Red de atención psicosocial
Introdução
O presente ensaio visa apresentar uma discussão acerca da potência de ações e serviços no contexto da saúde mental no sistema de saúde pública brasileira, com o intuito de ampliar o debate para a criação e desenvolvimento de cada vez mais práticas emancipatórias, sobretudo no contexto de retrocessos vivenciados com a atual Nova Política Nacional de Saúde Mental, que se contrapõe aos preceitos da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Para tanto, apresentaremos elementos teóricos acerca da emancipação, da sociologia das ausências e da sociologia das emergências, desenvolvidos por Boaventura de Sousa Santos. Tendo como base esses elementos teóricos, apresentaremos, a partir da experiência das autoras, quatro práticas que consideramos com potencial emancipatório, a saber: grupos de ajuda e suporte mútuos; grupos de ouvidores de vozes; centros de convivência; e Economia Solidária.
A escolha de tais práticas também se deu por compreendermos que são desenvolvidas com as pessoas em sofrimento psíquico e não para elas, sendo elemento fundamental nos processos emancipatórios, consoante às considerações de Santos11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010.. Essas são estratégias de cuidado que se contrapõem ao paradigma biomédico. Obviamente, não são os únicos exemplos de práticas com potencial emancipatório desenvolvidas no campo da Saúde Mental; porém, debruçaremo-nos nestas pela importância de seu histórico nesse campo – como os centros de convivência e a Economia Solidária – e pela potência demonstrada no enfrentamento da situação de sofrimento que vivenciamos em função da pandemia da Covid-19 – como os grupos de ajuda e suporte mútuo e os grupos de ouvidores de vozes, desenvolvidos em ambiente virtual.
Para a compreensão dos desafios que se colocam no que diz respeito à assistência em saúde mental do Brasil, é necessário partir do entendimento de que este é um país de desigualdades extremas, localizado no Sul global. Essas desigualdades marcam também as relações de poder que se estabelecem na assistência em saúde mental. De acordo com Santos11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010.:
A pobreza da experiência não é expressão de uma carência, mas antes a expressão de uma arrogância, a arrogância de não se querer ver e muito menos valorizar a experiência que nos cerca, apenas porque está fora da razão com que a podemos identificar e valorizar11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010..
(p. 101)
Baseado nessas concepções, argumentamos que o paradigma biomédico, que fundamentou fortemente algumas práticas no contexto da Psiquiatria antes do período da Reforma Psiquiátrica, contém, em alguma medida, o que Santos11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010. trata como arrogância, uma vez que desconsidera a experiência das próprias pessoas que manifestam o sofrimento psíquico como sujeitos de conhecimento, silenciando-os. A escuta no âmbito desse paradigma, tradicionalmente, cumpria o papel da identificação e classificação de sintomas, desconsiderando a experiência de quem tem conhecimento sobre o que está falando. Aliás, partia-se (ou parte-se) do princípio de que o conhecimento ou a percepção de quem está sofrendo psiquicamente não conta porque são pessoas desprovidas de razão.
Obviamente, com o desenvolvimento do campo da Saúde Mental, fundamentado no paradigma psicossocial22 Costa-Rosa A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante P, organizador. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. p. 141-168., esse silenciamento foi minimizado, mas ainda continua presente devido à insistência da ideologia manicomial pautada no poder biomédico que, no Brasil, expressa-se no incentivo ao aumento do número de leitos nos hospitais psiquiátricos; na separação da política de álcool e outras drogas do Ministério da Saúde para o Ministério do Desenvolvimento Social e na expansão das Comunidades Terapêuticas, com o direcionamento moral da abstinência; na proposição de internação de crianças e adolescentes como forma de assistência para esse público; e na indicação do uso de Eletroconvulsoterapia (ECT). As consequências diretas de um processo de desmonte acentuado entre 2016 até maio de 2019, com a construção da “Nova Política de Saúde Mental”, representada pela Nota Técnica 11/201933 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Nota técnica nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS. Brasília: Ministério da Saúde; 2019., vão na contramão dos princípios da Reforma Psiquiátrica e vêm sendo veementemente contestada por diferentes entidades profissionais, associações de usuários e pesquisadores do campo da Saúde Mental44 Cruz NFO, Gonçalves RW, Delgado PGG. Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trab Educ Saude. 2020;18(3):e00285117..
As ações descritas que vêm sendo implementadas são medidas restritivas da liberdade e da integridade física e moral das pessoas em tratamento44 Cruz NFO, Gonçalves RW, Delgado PGG. Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trab Educ Saude. 2020;18(3):e00285117., não considerando suas potencialidades, desejos e capacidade de restabelecimento. Necessitamos de medidas que rompam com esse paradigma hierárquico de cuidado e que possam usar tecnologias leves55 Gonçalves RBM. Tecnologia e organização social das práticas de saúde: características tecnológicas do processo de trabalho na rede estadual de centros de saúde de São Paulo. São Paulo: Hucitec; 1994.,66 Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2005. para uma construção artesanal de projetos terapêuticos adequados às singularidades e potências de cada um. Essa prática demanda que o conhecimento das pessoas que sofrem psiquicamente seja considerado e seus direitos sejam garantidos.
O desperdício da experiência em Psiquiatria: análise a partir da sociologia das ausências
Os argumentos de Santos11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010. sobre a sociologia das ausências nos dão fundamentos teóricos para aprofundar a reflexão sobre a invisibilidade, o silenciamento e o desperdício da experiência das pessoas com sofrimento psíquico.
Para o autor, as ausências são produção de não existência, ou seja, é a descredibilidade ao que existe. A sociologia das ausências objetiva a transformação de “objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças”11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010. (p. 102).
Para refletir sobre o desperdício da experiência das próprias pessoas que sofrem psiquicamente e a invisibilidade destas, apoiaremo-nos em três modos de produção da não existência identificados por Santos11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010.: aquele que deriva da lógica da monocultura do saber e do rigor do saber, aquele relacionado à lógica da classificação social e aquele que se apoia na lógica produtivista.
O modo de produção da não existência(d(d)Para o detalhamento dos cinco modos de produção de não existência, ver Santos1.) mais poderoso é aquele ancorado na lógica da monocultura do saber e do rigor do saber, pois se sustenta na argumentação de que a produção de conhecimento se dá, exclusivamente, pela ciência moderna11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010..
Assim, qualquer conhecimento para além do que é válido na ciência moderna não é reconhecido como conhecimento. Dessa forma, o conhecimento sobre o sofrimento psíquico das pessoas que o vivenciam foi absolutamente desconsiderado pela vertente da psiquiatria ancorada no paradigma biomédico. Portanto, nesse contexto, há a produção social da não existência do ignorante.
A lógica da classificação social se apoia na monocultura da naturalização das diferenças e consiste na categorização das populações como forma de naturalizar hierarquias, criando categorias superiores e inferiores. A inferioridade é a forma de não existência produzida nessa lógica e se torna insuperável porque é natural, ou seja, pessoas inferiores não podem ser uma alternativa credível àquelas superiores porque são insuperavelmente inferiores.
O insano, o louco, o doente mental – termos utilizados ao longo da história para designar as pessoas com sofrimento psíquico – foi considerado como uma pessoa sem razão, sem condições de emitir opiniões pelo fato de apresentar alterações de suas funções mentais. Essa lógica está pautada no paradigma biomédico que focaliza a doença e não a pessoa; a própria patologia é concebida como condição de inferioridade. Essa concepção justifica a grande opressão sofrida pelas pessoas com sofrimento psíquico. Assim, a inferioridade das pessoas com sofrimento psíquico se afirma na dicotomia razão-sem razão e se legitima na medida em que a condição sem razão é concebida como insuperável. Essa lógica afirma a não existência, a invisibilidade histórica da pessoa com sofrimento psíquico.
A lógica produtivista também nos ajuda a denunciar a invisibilidade da pessoa com sofrimento psíquico. No âmbito dessa lógica, o crescimento econômico é visto como objetivo inquestionável, assim como o critério de produtividade mais adequado a esse objetivo. Esse critério se aplica tanto à natureza quanto ao trabalho humano. A natureza produtiva é concebida como aquela fértil ao extremo em um dado ciclo de produção e o trabalho produtivo é entendido como aquele que gera lucros ao extremo em um dado ciclo de produção. A não existência é, portanto, “produzida sobre a forma do improdutivo que, aplicada à natureza, é esterilidade e, aplicada ao trabalho, é preguiça ou desqualificação profissional”11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010. (p. 104).
Apesar de, paradoxalmente, a mão de obra dos loucos ter sido explorada no interior das instituições psiquiátricas por meio do trabalho revestido da justificativa terapêutica, eles sempre foram considerados improdutivos por não se adequarem às exigências da sociedade capitalista e industrial. Essa lógica imprimiu a desqualificação profissional em seu maior grau nas pessoas com sofrimento psíquico e afirma a não existência destas.
De acordo com Santos11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010., as ausências causam o desperdício da experiência. Assim, fundamentadas nessa compreensão, apontamos toda a experiência desperdiçada pelo paradigma biomédico, em nome da ciência hegemônica, ao não levar em consideração o conhecimento daqueles que sofrem psiquicamente por serem, nomeadamente, ignorantes, inferiores e improdutivos.
A fim de modificar esse imaginário social em torno das pessoas, a sociologia das ausências apresenta como proposta a libertação das experiências, produzidas como ausentes, das relações que historicamente as produziram. Desse modo, as experiências das pessoas produzidas como ausências devem ser colocadas como alternativa às experiências hegemônicas, para que a relação entre essas experiências possa ser objeto de discussão e disputa política11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010..
A superação das ausências: os movimentos contra-hegemônicos e as práticas emancipatórias
Santos11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010. argumenta que a construção do conhecimento deve reconhecer a pluralidade de conhecimentos heterogêneos sobre determinado fenômeno social, substituindo, assim, a monocultura do saber por ecologias.
O autor propõe a horizontalização das relações de poder que se estabelecem na delimitação do chamado saber “científico” por meio da monocultura do saber. Para ele, o reconhecimento de diversos saberes contribui para uma ampliação e democratização no espaço de produção de conhecimento77 Santos BS. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Rev Crit Cienc Soc. 2002; (63):237-280. Doi: https://doi.org/10.4000/rccs.1285.
https://doi.org/10.4000/rccs.1285... .
Gonçalves considera que as tecnologias de cuidado compreendem os desdobramentos materiais e não materiais envolvidos nas práticas de serviços de saúde55 Gonçalves RBM. Tecnologia e organização social das práticas de saúde: características tecnológicas do processo de trabalho na rede estadual de centros de saúde de São Paulo. São Paulo: Hucitec; 1994.. Merhy coloca que as tecnologias de cuidado em saúde podem compreender aspectos da relação (tecnologias leves); saberes estruturados (tecnologias leve-duras); ou recursos materiais (tecnologias duras)66 Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2005..
No que se refere ao campo da Saúde Mental, é de fundamental importância que as experiências dos usuários possam ser consideradas no que diz respeito à produção de tecnologias de cuidado.
Partindo desses pressupostos, discutiremos alguns movimentos contra-hegemônicos no campo da Saúde Mental que caminharam no sentido dos reconhecimentos dos saberes das próprias pessoas com sofrimento psíquico.
Argumentamos que as ideias e práticas implantadas em Trieste, Itália, e que foram difundidas internacionalmente revelam a utilização contra-hegemônica do conhecimento científico sobre o sofrimento psíquico88 Basaglia F. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal; 1985. As instituições da violência; p. 99-133.. Forte inspiração para a luta antimanicomial brasileira, assim como França, Inglaterra, Estados Unidos e Canadá99 Desviat M. Coabitar a diferença: da reforma psiquiátrica à saúde mental coletiva. São Paulo: Zagodoni; 2018., o movimento da psiquiatria democrática italiana se destaca por colocar em xeque a arrogância do paradigma biomédico.
Na Itália, o movimento da Reforma Psiquiátrica foi um processo histórico, de desconstrução do modelo hospitalocêntrico, que questionou o paradigma racionalista da Psiquiatria. O primeiro passo da desinstitucionalização foi a desmontagem da relação problema-solução, com a renúncia de qualquer forma de explicação causal da doença e da perseguição da solução racional, ou seja, a normalidade plenamente restabelecida. Em vez disso, adotou uma forma de intervenção prática que remonta à cadeia das determinações normativas, das definições científicas e das estruturas institucionais por meio das quais a doença mental assumiu formas de existência e de expressão1010 Rotelli F, Leonardis O, Mauri D. Desinstitucionalização, uma outra via: a reforma psiquiátrica italiana no contexto da Europa Ocidental e dos países avançados. In: Nicacio F, organizador. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec; 1990. p. 17-59..
No trabalho de desinstitucionalização, desconstruiu-se a solução institucional – transformaram-se os modos e as relações que envolvem o tratamento das pessoas – para desconstruir o problema: o sofrimento das pessoas. Dessa forma, o objeto da Psiquiatria passa a ser a existência-sofrimento das pessoas, e não a doença1010 Rotelli F, Leonardis O, Mauri D. Desinstitucionalização, uma outra via: a reforma psiquiátrica italiana no contexto da Europa Ocidental e dos países avançados. In: Nicacio F, organizador. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec; 1990. p. 17-59.. Como ressalta Desviat99 Desviat M. Coabitar a diferença: da reforma psiquiátrica à saúde mental coletiva. São Paulo: Zagodoni; 2018., “Basaglia propôs, com sua habitual radicalidade”, que “era preciso colocar a doença entre parênteses” (p. 16).
A instituição manicomial era marcada por relações de poder, legitimadas pela Psiquiatria. Para Basaglia88 Basaglia F. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal; 1985. As instituições da violência; p. 99-133., somente por meio da conscientização por parte dos doentes e da equipe sobre tais relações de poder e da situação de total institucionalização a qual essas duas categorias estavam submetidas dentro do hospital psiquiátrico é que poderia surgir um verdadeiro movimento de rompimento, negação e destruição das forças que geravam tal situação.
Assim, no processo de desinstitucionalização ocorrido na Itália, do qual a experiência de Trieste se tornou referência internacional e orientou a transformação institucional global italiana, a mudança de modelo estava centrada também na transformação das relações interpessoais entre equipe e usuários de modo que, no lugar das relações de poder, passou a existir uma relação de reciprocidade, além do foco na compreensão de que o objeto da Psiquiatria é a existência-sofrimento da pessoa, e não a periculosidade ou a doença88 Basaglia F. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal; 1985. As instituições da violência; p. 99-133.,1010 Rotelli F, Leonardis O, Mauri D. Desinstitucionalização, uma outra via: a reforma psiquiátrica italiana no contexto da Europa Ocidental e dos países avançados. In: Nicacio F, organizador. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec; 1990. p. 17-59..
Argumentamos que, ao colocar o foco na existência-sofrimento das pessoas, e não na doença, e enfrentar as relações de dominação e poder decorrentes do conhecimento científico na psiquiatria tradicional, Basaglia e seus seguidores utilizaram de forma contra-hegemônica o conhecimento científico.
Tomando como base o conceito do pensamento abissal desenvolvido por Santos1111 Santos BS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina; 2009. Introdução; p. 9-19., o qual se caracteriza pela divisão da realidade social em dois universos distintos – o visível, ou seja, que está deste lado da linha, e o invisível, que está do outro lado da linha – e olhando para as características do processo de desinstitucionalização impulsionado por Basaglia, descritas anteriormente, podemos afirmar que ele enfrentou a relação dominantes e dominados no contexto da Psiquiatria tradicional investindo na transposição da linha abissal. De fato, as pessoas com sofrimento psíquico deixaram de ser completamente invisíveis a partir desse processo de desinstitucionalização.
Argumentamos que há, nesse processo, uma passagem da exclusão abissal para a exclusão não abissal. A exclusão não abissal está presente nos processos de inclusão. De acordo com Santos1111 Santos BS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina; 2009. Introdução; p. 9-19., há muitas formas de exclusão não abissal que têm dividido o mundo moderno deste lado da linha. Uma questão que fundamenta a argumentação da exclusão não abissal é a garantia efetiva de direitos de cidadania das pessoas com sofrimento psíquico.
Sustentamos que essa passagem é mais marcada no caso brasileiro. A Reforma Psiquiátrica brasileira foi um processo complexo que teve forte influência do modelo italiano, mas também foi influenciado pelas experiências da Inglaterra, França e EUA1212 Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.. É possível afirmar que, no Brasil, as pessoas com sofrimento psíquico passaram da exclusão abissal para a exclusão não abissal. Tal reflexão se apoia, principalmente, na participação das pessoas com sofrimento psíquico no movimento da Reforma e na reorientação das políticas públicas até 2016 para um cuidado em saúde mental que atendesse as reais necessidades das pessoas, territorial, comunitário e orientado pela afirmação dos direitos de cidadania.
Ou seja, quando as necessidades e os direitos das pessoas com sofrimento psíquico passam a ser foco de intervenção e a orientação da atenção deixa de ser centrada no hospital/reclusão e passa ser direcionada para o território/comunidade, elas transpõem a linha abissal. No entanto, apontamos que a passagem se dá da exclusão abissal para a exclusão não abissal, uma vez que a orientação da intervenção muda e as políticas são redefinidas, mas o acesso aos direitos continua intransponível, na prática. Portanto, é fundamental o fomento de práticas que tenham como premissa a conquista e o acesso aos direitos.
A partir do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira, que proporcionou importantes conquistas, com a aprovação da Lei 10.216/20011313 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei no 10.216, de 6 de Abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Brasília: Presidência da República; 2001., que orienta sobre os direitos das pessoas com sofrimento psíquico e o redirecionamento do modelo de atenção em Saúde Mental, ou a implantação de novos serviços e ações, os quais foram sistematizados e organizados a partir da Portaria 3088/20111414 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria no 3.088, de 23 de Dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2011., que instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), concretizaram-se práticas contra-hegemônicas ao saber/poder médico psiquiátrico tradicional. A partir do exposto, no contexto da Atenção Psicossocial no Sistema Único de Saúde (SUS), afirmamos a importância de algumas práticas emancipatórias, entre outras: os grupos de ajuda e suporte mútuos; os grupos de ouvidores de vozes; os centros de convivência; e a Economia Solidária, por entendermos que essas estratégias conclamam o saber das pessoas e suas experiências; e, assim, seguem na direção da ecologia de saberes, proposto por Santos. Compreendemos também que essas práticas se caracterizam como emergências11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010., uma vez que se colocam como possibilidades (potencialidade) e capacidades (potência) concretas.
Para Santos11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010., a sociologia das emergências está relacionada à investigação de alternativas de um futuro com possibilidades plurais e concretas e atua “[...] tanto sobre as possibilidades (potencialidade) como sobre as capacidades (potência)” (p. 118).
Uma estratégia de cuidado que vem sendo desenvolvida no Brasil, apostando em bases comunitárias de apoio entre pares, com potencial para o desenvolvimento no território, são os grupos de ajuda mútua e de suporte mútuo1515 Vasconcelos EM, Lotfi G, Braz R, Lorenzo R, Reis TR. Manual ajuda e suporte mútuos em saúde mental. Para facilitadores, trabalhadores e profissionais da saúde e saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.. Grupos de ajuda mútua visam a acolhida e a troca de experiências e de apoio emocional entre pessoas que compartilham de uma mesma problemática1515 Vasconcelos EM, Lotfi G, Braz R, Lorenzo R, Reis TR. Manual ajuda e suporte mútuos em saúde mental. Para facilitadores, trabalhadores e profissionais da saúde e saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde; 2013..
[...] as reuniões de grupos de ajuda mútua caracterizam-se por encontros presenciais em espaços nos quais os participantes regularmente trocam experiências de vida, e de estratégias para lidar com seus problemas comuns, ou de discutirem algum tema previamente acordado pelo grupo1616 Vasconcelos EM, Cerda MW. Desafios e recomendações para a realização de atividades de ajuda mútua on-line no campo da saúde mental. In: Vasconcelos EM, organizador. Novos horizontes em saúde mental: análise de conjuntura, direitos humanos e protagonismo de usuários(as) e familiares. São Paulo: Hucitec; 2021. p. 292-309..
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Já o suporte mútuo seria uma modalidade na qual o grupo realiza em conjunto atividades sociais, artísticas, culturais, esportivas, comunitárias, de lazer e de reconhecimento, além de usar recursos sociais na comunidade local e na sociedade1717 Ferreira FL. Um dicionário da Ala Loucos pela X: compartilhando experiências com o grupo de trabalhadores numa pesquisa de inspiração etnográfica [dissertação]. São Paulo: Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo; 2017.. As iniciativas de ajuda e suporte mútuos criam possibilidades de apoio entre pares e de inserção cidadã para pessoas tradicionalmente marginalizadas, criando estratégias de superação de desigualdades. Grupos de suporte mútuo mais amadurecidos podem chegar inclusive a desenvolver projetos mais complexos, visando à obtenção de trabalho, renda, moradias ou organizações associativas de lutas por direitos ou de desenvolvimento de trabalhos sociais.
A metodologia de trabalho dos grupos de ajuda e suporte mútuos é contra-hegemônica na medida em que promove formas de trocas em que é valorizado o saber que vem da experiência, rompendo com a monocultura do saber. Grupos de suporte mútuo também se configuram enquanto estratégia de enfrentamento ao apartheid social ao qualificar a inserção social dessas pessoas, criando estratégias que estimulam a inserção cidadã de seus participantes.
Um exemplo de grupos de ajuda mútua que ocorrem em várias localidades brasileiras são os grupos de pessoas que ouvem vozes, comumente realizados a partir dos serviços de saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial.
O movimento dos ouvidores de vozes teve origem na Holanda na década de 1980 com a criação da organização The International Network for Training, Education and Research into Hearing Voices, conhecida como Intervoice, com o objetivo de proporcionar às pessoas que ouvem vozes um suporte administrativo e a coordenação de iniciativas baseadas em novas abordagens de cuidado, com a compreensão de que o problema não é ouvir vozes, mas sim a relação de convivência estabelecida com elas.
É estimado que mais de oitenta países façam parte da comunidade internacional de ouvidores de vozes1818 Barros OC, Serpa OD Jr. Ouvir vozes: um estudo netnográfico de ambientes virtuais para ajuda mútua. Physis. 2017; 27(4):867-888.. No Brasil, a primeira experiência de grupos com a temática de ouvir vozes foi uma iniciativa do psiquiatra Octávio Serpa Junior, a partir do final dos anos 1990. Em 2015, o I Fórum sobre Novas Abordagens em Saúde Mental, realizado no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, reaqueceu a discussão sobre o tema e o Movimento Internacional dos Ouvidores de Vozes tornou-se amplamente conhecido1919 Coimbra VC, Bretanha AF, Rodrigues CGSS. Sobre os caminhos do primeiro grupo de ouvidores de vozes no Brasil. J Nurs Health. 2018; 8(esp):e188421.. A partir de então, em diferentes regiões do país, algumas experiências de grupos de ouvidores de vozes já são conhecidas no contexto da atenção psicossocial.
Ainda é hegemônico o discurso da psicopatologia que restringe o fenômeno de ouvir vozes a sintomas, em detrimento da experiência das pessoas que vivenciam a situação de sofrimento psíquico, fato colocado como manifestação de “alucinação auditiva”, sem considerar a relação e o significado que as vozes desempenham na história de vida dessas pessoas.
É nesse sentido que essa prática se manifesta como contra-hegemônica à Psiquiatria tradicional, pois contribui com a ruptura do paradigma problema-solução apontado por Basaglia, uma vez em que o fenômeno de ouvir vozes passa a ter outro significado.
O fato de as pessoas que ouvem vozes serem consideradas “especialistas por experiência” – enquanto os profissionais de saúde mental, acadêmicos e ativistas são “especialistas por profissão”1818 Barros OC, Serpa OD Jr. Ouvir vozes: um estudo netnográfico de ambientes virtuais para ajuda mútua. Physis. 2017; 27(4):867-888. – torna claro o lugar do saber das pessoas a partir dessa vivência de ouvir vozes.
Assim, grupos de ajuda mútua e de pessoas que ouvem vozes visam romper com a monocultura do saber na medida em que valorizam o saber que vem da experiência das próprias pessoas. Já os grupos de suporte mútuo rompem com a lógica da classificação social, criando possibilidades e espaços para a inserção social de grupos tradicionalmente marginalizados e o reconhecimento das diferenças iguais, tal como aponta Santos11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010., sobre a ecologia dos reconhecimentos, que é a forma de confrontar as ausências geradas pela lógica da classificação social. Outro dispositivo que também visa ao rompimento com a lógica da classificação social são os Centros de Convivência.
Um dos pontos de atenção é a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que tem a incumbência de oferecer à população em geral espaços de sociabilidade, produção e intervenção cultural na cidade1414 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria no 3.088, de 23 de Dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2011.. Os Centros de Convivência são equipamentos de natureza intersetorial, comunitária e territorial, com o objetivo de promover a participação social de todas as pessoas e, especialmente, atuar na inclusão social daquelas que vivenciam situações de exclusão dos espaços sociais. Por meio de ações no campo da cultura, das artes, do esporte, do trabalho, da educação, entre outros, são oferecidas as possibilidades de convivência e de inclusão social.
Alguns dos estudos demonstram a potência do Centro de Convivência como prática emancipatória pelas possibilidades de produção de autonomia2020 Alvarez APE, Fernandes JB, Oliveira MIQ, Silva ICA, Castro RM. Convivência virtual: a arte de tecer redes com o trabalho afetivo antimanicomial. Rev GEMInIS. 2020; 11(3):87-107.; de produção cultural1717 Ferreira FL. Um dicionário da Ala Loucos pela X: compartilhando experiências com o grupo de trabalhadores numa pesquisa de inspiração etnográfica [dissertação]. São Paulo: Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo; 2017.,2121 Maluf JCG, Lopes IC, Bichara TAC, Silva JA, Valent IU, Buelau RM, et al. O Coral Cênico Cidadãos Cantantes: um espaço de encontro entre a música e a saúde. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2009; 20(3):199-204. Doi: https://doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v20i3p199-204.
https://doi.org/10.11606/issn.2238-6149.... , enfrentamento da estigmatização2222 Leão A, Lussi IAO. Estigmatização: consequências e possibilidades de enfrentamento em Centros de Convivência e Cooperativas. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200474. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.200474.
https://doi.org/10.1590/interface.200474... , promoção de saúde, cuidado na perspectiva da clínica ampliada, convivência e participação social2323 Aleixo JMP, Lima EMFA. Invenção e produção de encontros no território da diversidade: cartografia de um Centro de Convivência. Cad Bras Ter Ocup. 2017; 25(3):649-659.
24 Cambuy K, Amatuzzi MM. Experiências comunitárias: repensando a clínica psicológica no SUS. Psicol Soc. 2012; 24(3):674-683.
25 Ferigato SH, Carvalho SR, Teixeira RR. Os Centros de Convivência: dispositivos híbridos para a produção de redes que extrapolam as fronteiras sanitárias. Cad Bras Saude Ment. 2016; 8(20):79-100.-2626 Ferreira PHR. Centro de Convivência e Cultura e suas repercussões na vida de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial [dissertação]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2014..
Os Centros de Convivência, que ainda são poucos no território nacional, foram criados antes publicação da Portaria n. 3088/20111414 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria no 3.088, de 23 de Dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2011. e como experiências pioneiras em cidades como São Paulo, Campinas e Belo Horizonte; com a perspectiva da Reforma Psiquiátrica; e são denominados ainda como Centro de Convivência e Cultura e Centro de Convivência e Cooperativa (Ceccos).
Os Ceccos existem na cidade de São Paulo há mais de trinta anos, com a proposição inicialmente delineada de, além da convivência, reinserir as pessoas no mundo do trabalho e, para tanto, incentivava a criação de cooperativas de trabalho, com o apoio inicial do serviço. Devido à inviabilidade de regulamentação jurídica no que se refere às cooperativas sociais no Brasil, mas ainda perseguindo o trabalho como um dispositivo de inclusão social, muitos dos Ceccos contemplam atividades de geração de renda e Economia Solidária.
Justamente pela não concretização das cooperativas sociais no contexto nacional durante os primeiros anos do processo de Reforma Psiquiátrica que, em 2004, houve a aproximação desse movimento com o da Economia Solidária objetivando o fomento de iniciativas de inclusão social pelo trabalho2727 Singer P, Schiochet V. Economia solidária e saúde mental: a construção da política nacional de cooperativismo social. In: Pinho KLR, Pinho L, Lussi IAO, Machado MLT, organizadores. Relatos de experiências em inclusão social pelo trabalho na saúde. São Carlos: Compacta Gráfica e Editora; 2014. p. 4-7..
A Economia Solidária é antagônica à economia capitalista: na primeira, a pessoa e o trabalho humano é que são valorizados, e não o lucro e o capital, como é o caso do modelo capitalista. Na Economia Solidária, não há hierarquia entre os trabalhadores, as decisões são coletivas e todos são proprietários do empreendimento.
A Economia Solidária é um modo contra-hegemônico de produção, de comercialização, de consumo ou de crédito, que deve, efetivamente, praticar a autogestão2828 Singer P. A recente ressurreição da economia solidária no Brasil. In: Santos BS, organizador. Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2002. p. 81-129.. Assim, tal economia se constitui também em um outro modo de vida, que estimula a solidariedade; a democracia; e o respeito ao outro, à natureza e às diferenças, possibilitando a abertura de caminho para a inclusão social por meio do trabalho para pessoas que, por diversas maneiras, encontram-se em situação de exclusão social e apartadas do mundo do trabalho.
A parceria entre saúde mental e Economia Solidária ampliou, sobremaneira, o número de iniciativas de inclusão social pelo trabalho. Em 2006, foram mapeadas pelo Cadastro de Iniciativas de Inclusão Social pelo Trabalho (CIST) 230 iniciativas em todo o território nacional2929 Brasil. Ministério da Saúde. Saúde mental em dados. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. v. 1.. Em 2013, esse número chegou a 1.008 iniciativas3030 Brasil. Ministério da Saúde. Cadenos HumanizaSUS. Saúde Mental. Brasília: Ministério da Saúde; 2015. v. 5..
Além desse avanço, outros tantos foram conquistados, como o Programa Nacional de Apoio ao Associativismo e Cooperativismo Social (Pronacoop Social), que tinha como objetivo planejar, coordenar, executar e monitorar as ações destinadas ao desenvolvimento de cooperativas sociais e de empreendimentos econômicos solidários que contam com pessoas em desvantagem social, entre elas, os usuários da saúde mental2727 Singer P, Schiochet V. Economia solidária e saúde mental: a construção da política nacional de cooperativismo social. In: Pinho KLR, Pinho L, Lussi IAO, Machado MLT, organizadores. Relatos de experiências em inclusão social pelo trabalho na saúde. São Carlos: Compacta Gráfica e Editora; 2014. p. 4-7.. No entanto, tal como as outras políticas públicas do campo da Saúde Mental e da Economia Solidária, desde 2016 o Pronacoop Social vem sofrendo desmontes.
O que temos observado é que a Economia Solidária se coloca como uma forma efetiva das pessoas com sofrimento psíquico se inserirem em iniciativas produtivas mais justas e solidárias. Em alguns casos, o trabalho tem se configurado mais como produção de vida do que como alternativa de geração de renda. Essas condições permitem a saída da condição da não existência do improdutivo.
A potência da prática da autogestão abre caminho para processos de emancipação social. No cotidiano dos empreendimentos, a autonomia, a liberdade e o engajamento nos processos de produção e no próprio empreendimento vão se tornando visíveis por meio das opiniões compartilhadas de forma espontânea pelas pessoas durante o trabalho e nas assembleias.
A participação nas feiras de Economia Solidária e a conquista de espaços antes jamais acessados, como representação e participação nos Conselhos e Fóruns de Economia Solidária, demarcam processos de participação e emancipação social.
Práticas emancipatórias: desafios e resistências
Boaventura de Sousa Santos trabalha com o conceito de práticas emancipatórias, relacionando-as ao potencial de conquistas de direitos e de igualdade3131 Lussi IAO. Emancipação social e terapia ocupacional: aproximações a partir das Epistemologias do Sul e da Ecologia de Saberes. Cad Bras Ter Ocup. 2020; 28(4):1335-1345.. As práticas apresentadas no presente texto têm potencial emancipatório na medida em que visam à superação da lógica da monocultura do saber e do rigor do saber, reconhecendo e valorizando o conhecimento dos usuários e adotando formas horizontalizadas e autogeridas de funcionamento. Focalizam a superação da lógica da classificação social ao propor estratégias que objetivam a qualificação da inserção social das pessoas. E visam à superação da lógica produtivista ao criar espaço para formas de produção autogestionárias e contra-hegemônicas.
A produção do cuidado em saúde mental com a bandeira da desinstitucionalização, representada pelas práticas discutidas, enfrentam atualmente dois desafios importantes pela pandemia de Covid-19 e suas consequências; e, sobretudo, pelos retrocessos enfrentados no que diz respeito à consolidação da Raps, não obstante os desafios históricos do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira na constituição do campo da atenção psicossocial.
Diante do grave contexto sociossanitário vivenciado a partir de 2020, em decorrência da pandemia de Covid-19, com a necessidade do distanciamento físico, foi necessária a reinvenção das ações de cuidado a partir dos serviços de saúde mental – ainda que não esteja sistematizada e amplamente conhecida a produção dessas práticas – entre as outras realizadas, que, de algum modo, tiveram continuidade de forma remota, apesar das perdas, com o uso da tecnologia da informação e comunicação.
Por outro lado, cabe lembrar que a exclusão digital por parte dos usuários dos serviços, em situações de maior vulnerabilidade social, denuncia um problema que expressa o contexto de iniquidades e desigualdades sociais, sendo fundamental afirmar a inclusão digital das pessoas como parte dos direitos de cidadania e bandeira de luta para os movimentos da luta antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica1616 Vasconcelos EM, Cerda MW. Desafios e recomendações para a realização de atividades de ajuda mútua on-line no campo da saúde mental. In: Vasconcelos EM, organizador. Novos horizontes em saúde mental: análise de conjuntura, direitos humanos e protagonismo de usuários(as) e familiares. São Paulo: Hucitec; 2021. p. 292-309..
No que se refere aos grupos de ajuda e suporte mútuos, com a pandemia e necessidade de distanciamento físico, grupos que aconteciam presencialmente passaram a ocorrer no formato remoto1616 Vasconcelos EM, Cerda MW. Desafios e recomendações para a realização de atividades de ajuda mútua on-line no campo da saúde mental. In: Vasconcelos EM, organizador. Novos horizontes em saúde mental: análise de conjuntura, direitos humanos e protagonismo de usuários(as) e familiares. São Paulo: Hucitec; 2021. p. 292-309.. Além disso, com o agravamento de quadros de depressão, stress e ansiedade durante a pandemia, novos grupos de ajuda e suporte mútuos passaram a ser ofertados remotamente para pessoas de todo o território nacional3232 Ricci EC, Dimov T, Cassais TS, Dellbrügger AP. University experiences of occupational therapy in Brazil during the Covid-19 pandemic: contributions and support in mental health for the population. WFOT Bull. 2020; 76(2):75-77.,3333 Costa C, Fabiani I, Ferrari J, Fripp JC, Silva LD, Roque Filho A. Os desdobramentos dos grupos de ajuda e suporte mútuo on-line em tempos de crise sanitária mundial. Rev Saude Redes. 2020; 6(2):7-22..
No caso dos grupos de ouvidores de vozes, desde 2007, com a Intervoice e a sua proposta de criar uma comunidade on-line interativa por meio das mídias sociais, foi possível observar, pelo estudo realizado por Barros1818 Barros OC, Serpa OD Jr. Ouvir vozes: um estudo netnográfico de ambientes virtuais para ajuda mútua. Physis. 2017; 27(4):867-888., que o ciberespaço proporciona a oferta de participação, apoio, conforto, minimização e desconstrução de estigmas e preconceitos; e possibilita a construção de um processo de ajuda e apoio emocional mútuos e de empoderamento por meio das informações partilhadas.
Do mesmo modo, as ações dos Centros de Convivência ganharam o ambiente virtual e observa-se a possibilidade de encontros, de constituição de redes e de produção afetiva antimanicomial, elementos que significam “vitais respiros em tempos sufocantes’”2020 Alvarez APE, Fernandes JB, Oliveira MIQ, Silva ICA, Castro RM. Convivência virtual: a arte de tecer redes com o trabalho afetivo antimanicomial. Rev GEMInIS. 2020; 11(3):87-107. (p. 104).
As iniciativas e os empreendimentos de Economia Solidária no momento da pandemia também se viram obrigados a paralisar, sobretudo, as feiras, e reinventaram-se com a comercialização, as feiras de comercialização e eventos virtuais. Embora as estratégias citadas visem à mitigação dos efeitos psíquicos da pandemia, é inegável que os desafios impostos, os quais atingiram todas as pessoas, tornaram ainda mais frágeis as condições de vida daquelas em situação de rua; pessoas que trabalham de forma precária ou informal; e moradoras de periferias ou favelas – ou seja, pessoas que se encontram em grupos sociais que estão ao “sul da quarentena”3434 Santos BS. A cruel pedagogia do vírus. São Paulo: Boitempo; 2020.. Assim, a pandemia explicitou as contradições do modo de produção neoliberal e vem aprofundando, sobremaneira, as desigualdades sociais no contexto brasileiro.
Inicialmente nos referimos à Nota Técnica n. 11/201933 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Nota técnica nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS. Brasília: Ministério da Saúde; 2019., que é uma das expressões do desastre de caráter político e social ocorrido em 2016, momento em que o país vivenciou o golpe político, e em 2018, por meio de eleições baseadas em fake news3535 Jardelino F, Cavalcanti DB, Toniolo BP. A proliferação das fake news nas eleições brasileiras de 2018. Comun Publica. 2020; 15(28). Doi: https://doi.org/10.4000/cp.7438.
https://doi.org/10.4000/cp.7438... ,3636 Dourado TMSG. Fake News na eleição presidencial de 2018 no Brasil [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2020., com a ascensão de um governo notadamente pautado por valores fascistas, sexistas, racistas e antidemocráticos, que resulta em medidas contrárias aos direitos de cidadania; ao meio ambiente; e ao patrimônio material e imaterial em função de lógicas conservadoras e privatistas3737 Dimenstein M, Simoni ACR, Londero MFP. Encruzilhadas da democracia e da saúde mental em tempos de pandemia. Psicol Cienc Prof. 2020; 40:e242817., atuando, assim, contra a vida em suas diferentes possibilidades.
Esse contexto, acirrado pela pandemia, fragiliza ainda mais a Raps como um todo, o que caracteriza o maior desafio da Reforma Psiquiátrica em seu processo contra-hegemônico. Trata-se de uma encruzilhada em que trabalhadores da saúde mental, pessoas em situação de sofrimento psíquico e seus familiares tentam resistir e criar formas emancipatórias de cuidado em liberdade enquanto são desrespeitados em seus direitos humanos e enfrentam a dificuldade de acesso a políticas públicas.
Por outro lado, essas e outras práticas emancipatórias são caminhos possíveis para a transformação social tão fundamental no atual contexto. Faz-se necessário que os atores sociais tomem consciência das estruturas que os oprimem para que possam criar estratégias de resistência e novos mundos possíveis. Práticas de cuidado em liberdade, territoriais e protagonizadas pelas pessoas, criam uma tessitura de tecnologias leves e leves-duras de cuidado3838 Franco TB, Merhy EE. Cartografias do trabalho e cuidado em saúde. Tempus (Brasília). 2012; 6(2):151-163., na medida em que se constituem como dispositivos de cuidado que compreendem aspectos relacionais que valorizam a experiência dos sujeitos, além de abarcar um conjunto de teorias que subsidiam as práticas aqui apresentadas. Tais experiências devem ser entendidas como referência para criação de políticas públicas. Precisam ser vivenciadas, multiplicadas e sistematizadas para que seja possível o desenvolvimento de redes de cuidado com potencial emancipatório.
- (d)Para o detalhamento dos cinco modos de produção de não existência, ver Santos11 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010..
Financiamento
Parte do artigo é oriundo de pesquisa desenvolvida pela primeira autora durante seu pósdoutoramento realizado no Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra, com bolsa Capes.
- Lussi IAO, Leão A, Dimov T. Práticas emancipatórias em Saúde Mental. Interface (Botucatu). 2022; 26: e220158 https://doi.org/10.1590/interface.220158
Referências
- 1Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010.
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- 3Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Nota técnica nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS. Brasília: Ministério da Saúde; 2019.
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- 5Gonçalves RBM. Tecnologia e organização social das práticas de saúde: características tecnológicas do processo de trabalho na rede estadual de centros de saúde de São Paulo. São Paulo: Hucitec; 1994.
- 6Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2005.
- 7Santos BS. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Rev Crit Cienc Soc. 2002; (63):237-280. Doi: https://doi.org/10.4000/rccs.1285.
» https://doi.org/10.4000/rccs.1285 - 8Basaglia F. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal; 1985. As instituições da violência; p. 99-133.
- 9Desviat M. Coabitar a diferença: da reforma psiquiátrica à saúde mental coletiva. São Paulo: Zagodoni; 2018.
- 10Rotelli F, Leonardis O, Mauri D. Desinstitucionalização, uma outra via: a reforma psiquiátrica italiana no contexto da Europa Ocidental e dos países avançados. In: Nicacio F, organizador. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec; 1990. p. 17-59.
- 11Santos BS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina; 2009. Introdução; p. 9-19.
- 12Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.
- 13Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei no 10.216, de 6 de Abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Brasília: Presidência da República; 2001.
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- 18Barros OC, Serpa OD Jr. Ouvir vozes: um estudo netnográfico de ambientes virtuais para ajuda mútua. Physis. 2017; 27(4):867-888.
- 19Coimbra VC, Bretanha AF, Rodrigues CGSS. Sobre os caminhos do primeiro grupo de ouvidores de vozes no Brasil. J Nurs Health. 2018; 8(esp):e188421.
- 20Alvarez APE, Fernandes JB, Oliveira MIQ, Silva ICA, Castro RM. Convivência virtual: a arte de tecer redes com o trabalho afetivo antimanicomial. Rev GEMInIS. 2020; 11(3):87-107.
- 21Maluf JCG, Lopes IC, Bichara TAC, Silva JA, Valent IU, Buelau RM, et al. O Coral Cênico Cidadãos Cantantes: um espaço de encontro entre a música e a saúde. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2009; 20(3):199-204. Doi: https://doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v20i3p199-204.
» https://doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v20i3p199-204 - 22Leão A, Lussi IAO. Estigmatização: consequências e possibilidades de enfrentamento em Centros de Convivência e Cooperativas. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200474. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.200474.
» https://doi.org/10.1590/interface.200474 - 23Aleixo JMP, Lima EMFA. Invenção e produção de encontros no território da diversidade: cartografia de um Centro de Convivência. Cad Bras Ter Ocup. 2017; 25(3):649-659.
- 24Cambuy K, Amatuzzi MM. Experiências comunitárias: repensando a clínica psicológica no SUS. Psicol Soc. 2012; 24(3):674-683.
- 25Ferigato SH, Carvalho SR, Teixeira RR. Os Centros de Convivência: dispositivos híbridos para a produção de redes que extrapolam as fronteiras sanitárias. Cad Bras Saude Ment. 2016; 8(20):79-100.
- 26Ferreira PHR. Centro de Convivência e Cultura e suas repercussões na vida de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial [dissertação]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2014.
- 27Singer P, Schiochet V. Economia solidária e saúde mental: a construção da política nacional de cooperativismo social. In: Pinho KLR, Pinho L, Lussi IAO, Machado MLT, organizadores. Relatos de experiências em inclusão social pelo trabalho na saúde. São Carlos: Compacta Gráfica e Editora; 2014. p. 4-7.
- 28Singer P. A recente ressurreição da economia solidária no Brasil. In: Santos BS, organizador. Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2002. p. 81-129.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
10 Out 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
19 Maio 2022 - Aceito
27 Jun 2022