Resumos
Neste artigo pretendo demonstrar a atualidade do pensamento político-pedagógico de Juan César García no contexto contemporâneo. Com esse objetivo, primeiro discuto a “teoria do modo de produção de médicos” proposta por García, inspirado no referencial marxista. Segundo, sistematizo elementos que permitem delinear uma teoria da educação baseada no materialismo-histórico, com forte influência do pensamento gramsciano, formulada por García em contraposição ao que chama de “pedagogia idealista”. Terceiro, destaco na sua obra elementos político-pedagógicos que precisariam de melhor contextualização para poder avaliar sua efetiva contribuição para a educação profissional em Saúde. Finalmente, apresento argumentos que valorizam a contribuição de Juan César García para a compreensão da dialética permanência-transformação na relação educação-trabalho, sobretudo o papel das instituições encarregadas da formação de sujeitos críticos, criativos e engajados na luta histórica pela qualidade-equidade em saúde.
Palavras-chave
Juan Cesar García; Educação médica; Formação em saúde; Teoria pedagógica; América Latina
This article aims to demonstrate the political and pedagogical thinking of Juan César García from a contemporary perspective. First, I discuss the theory of the “mode of medical production” proposed by García, inspired by Marxism. Second, I systematize elements that delineate a theory of education based on historical materialism, with a strong influence from Gramscian thought as formulated by García, in contrast to what he calls “idealist pedagogy”. Third, I highlight political and pedagogical elements in his work that need better contextualization to assess his real contribution to professional health education. Finally, I present arguments to highlight Juan César García’s contribution to the understanding of the permanence-transformation dialectic in education-work relations, focusing on the role of institutions tasked with training critical and creative subjects engaged in the historic struggle for health equity and quality of care.
Keywords
Juan Cesar García; Medical education; Health education; Pedagogical theory; Latin America
En este artículo, pretendo demostrar la actualidad del pensamiento político-pedagógico de Juan César García no contexto contemporáneo. Con ese objetivo, discuto primero la “teoría del modo de producción de médicos” propuesta por García, inspirado en el referencial marxista. Segundo, sistematizo elementos que permiten delinear una teoría de la educación basada en el materialismo-histórico, con fuerte influencia del pensamiento gramsciano, formulada por García en contraposición a lo que llama de “pedagogía idealista”. Tercero, destaco en su obra elementos político-pedagógicos que necesitarían mejor contextualización para poder evaluar su efectiva contribución para la educación profesional en salud. Finalmente, presento argumentos que valorizan la contribución de Juan César García para la comprensión de la dialéctica permanencia-transformación en la relación educación-trabajo, principalmente el papel de las instituciones encargadas de la formación de sujetos críticos, creativos y comprometidos en la lucha histórica por la calidad-equidad en salud.
Palabras clave
Juan Cesar García; Educación médica; Formación en salud; Teoría pedagógica; América Latina
Introdução
O estudo do panorama geral da educação médica latino-americana, promovido pela Organização Panamericana da Saúde (Opas) no final da década de 1960, foi um ambicioso projeto de pesquisa transnacional, complexo e multifacetado. Seus resultados foram analisados pelo sociólogo argentino Juan César García (1932-1984)11 Galeano D, Trotta L, Spinelli H. Juan César García y el movimiento latinoamericano de medicina social: notas sobre una trayectoria de vida. Salud Colect. 2011; 7(3):285-315. e publicados em um volume intitulado “La Educación Médica en la América Latina”22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972.. Com uma abordagem eclética do ponto de vista conceitual e metodológico, inovadora a seu tempo, essa obra pode ser avaliada em três dimensões: sociológica, política e pedagógica.
Muito se tem escrito sobre a dimensão sociopolítica da obra de García, destacando-se a série de textos de Everardo Duarte Nunes33 Nunes ED. Juan Cesar Garcia: pensamento social em saúde na América Latina. São Paulo: Cortez; 1989.
4 Nunes ED. O pensamento social em saúde na América Latina: revisitando Juan César García. Cad Saude Publica. 2013; 29(9):1752-1762.-55 Nunes ED. Juan César García: a medicina social como projeto e realização. Cien Saude Colet. 2015; 20(1):139-144.. Neste artigo, proponho-me a abordar particularmente a dimensão pedagógica da obra de García, com base na interpretação dos achados daquele histórico estudo, com base na posição de Titular da Cátedra Juan César Garcia da Universidad de Guadalajara, México, por mim assumida na sua inauguração em 2004. Pretendo aqui mostrar como, ao incorporar vários avanços da vanguarda de seu tempo que, de muitas maneiras, permanecem atuais e, por conseguinte, pertinentes ao contexto contemporâneo, García desenvolve uma teoria sociológica da educação baseada no referencial marxista camuflado como uma “abordagem estrutural” antagônica, ponto a ponto, em relação ao funcionalismo positivista.
Nesse sentido, pretendo sistematizar o conjunto de elementos que permitem esboçar uma teoria da educação baseada no materialismo histórico, com forte influência do pensamento gramsciano, dentre outras referências teóricas, formulada por García em contraposição ao que chama de “pedagogia idealista”. Em seguida, destaco na obra de García alguns elementos político-pedagógicos que precisariam de tratamento analítico próprio e um certo esforço de contextualização para poder avaliar sua efetiva contribuição para a educação profissional em Saúde. Finalmente, apresento argumentos que valorizam a contribuição de Juan César García para a compreensão da dialética permanência-transformação na complexa relação educação-trabalho, sobretudo o papel das instituições encarregadas da formação de sujeitos críticos, criativos e engajados na luta histórica pela qualidade-equidade em saúde.
Modo de produção de médicos e médicas
Em “La Educación Médica en la América Latina”22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972., García apresenta uma proposta de análise da formação profissional como um processo produtivo similar ao processo de produção de mercadorias, no que pode ser entendido como um caso particular da formação em geral de profissionais de saúde. Ainda que de modo esquemático, García introduz a expressão “modo de produção de médicos”, superpondo-a ao termo “modo de formação do médico”, como homólogos ou equivalentes. Para García, o modo de produzir médicos determina historicamente o que chama de “ordem institucional da educação médica” que, por sua vez, resultaria diretamente das formas de organização do trabalho médico. Segundo ele, recorrendo ao decano historiador da saúde Henry Sigerist (1891-1957) para a compreensão da relação dialética entre a educação médica e o trabalho médico, inevitavelmente há que se recorrer ao estudo da sua evolução histórica66 Sigerist HE, Marti-Ibañez F, Fulton JF. On the history of medicine. New York: MD Publications; 1960..
A análise histórica proposta por García22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972. demarca o “modo de formação do médico” em dois modelos ou etapas evolutivas: 1) na Antiguidade, o médico se formava trabalhando como aprendiz ou ajudante de outro médico; 2) em eras posteriores, passa a ser formado em ambientes institucionalizados. No primeiro modelo, a aprendizagem resulta da participação operativa do aspirante no exercício prático da profissão, trabalhando como discípulo-ajudante ou aprendiz de um prático, muitas vezes sem formação adequada. O ensino-aprendizagem e o processo de trabalho encontravam-se intimamente relacionados nesse modo peculiar de produzir médicos que se pode designar como artesanal. No segundo modelo, a aprendizagem torna-se ensino, separado e até isolado do trabalho assistencial, com aspirantes a médico dedicados exclusivamente a estudar e, mesmo que de modo ainda embrionário, a pesquisar. Tal modelo evolui historicamente como formato característico da modernidade, articulado de modo orgânico ao emergente modo capitalista de produção.
A separação entre estudo e trabalho, que provocara a dissociação entre educação médica e trabalho médico, teria ocorrido no fim da Idade Média, para a Medicina, e durante o Iluminismo, para a Cirurgia, quando a educação médica passa a ser ministrada por instituições reguladas e, em vários cenários, totalmente controladas pelo Estado burguês. A escola de Medicina – em alguns contextos, aninhada em uma universidade; em outros contextos, isolada como uma escola semiautônoma ou faculdade independente – tinha estrutura administrativa e sistema de governança distintos das instituições de produção de assistência médica.
Para García, o modo de produção de médicos na sociedade capitalista periférica, ainda vigente no contexto latino-americano, teria dois componentes principais, indissociáveis e articulados: a) o processo de ensino e b) as relações de ensino. Processo de ensino pode ser definido como sequência ou conjunto de etapas sucessivas de formação por que passa algum postulante a essa carreira profissional para se transformar em médico ou médica. Para García, por homologia em relação à teoria econômica marxista, no processo de produção do ensino caberia distinguir atividades, meios e objetos de ensino. A transformação de estudantes em profissionais da medicina pressupõe relações humanas específicas que produzem “atividades de ensino”. As atividades de ensino adotam duas formas: a) as realizadas por professores e b) aquelas que são realizadas por estudantes. Os meios de ensino, em sua acepção mais ampla, compreendem os espaços, equipamentos e instrumentos utilizados na transformação do estudante em médico. Isso implica domínio das formas de organização ou metodologia do processo de ensino. García classifica a metodologia de ensino em dois grandes grupos: a) atividades teóricas, nas quais o estudante recebe passivamente o ensino, incluindo aulas magistrais e demonstrações; e b) atividades práticas, nas quais ele ou ela participa ativamente do processo de ensino, incluindo trabalhos em laboratório, salas cirúrgicas, ambulatórios, serviços e outros ambientes de ensino. Avalia que, em uma mirada crítica, o estudante é somente mais um dos agentes do processo, que pode ser (e deveria ser), ao mesmo tempo, objeto e sujeito das atividades de ensino. Assim, apesar dos modelos de ensino colocarem o estudante mais na condição de objeto do que de sujeito da ação de aprender, García22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972. conclui que será muito difícil separar as duas dimensões dos agentes de ensino, componentes essenciais da interação relacional e das articulações pertinentes ao processo de ensino no contexto latino-americano.
Para a análise crítica do modelo de formação médica, García recorre ao economista marxista Samuel Bowles. Em um estudo precoce dos sucessos educacionais da Revolução Cubana já na sua primeira década, Bowles77 Bowles S. Cuban education and the revolutionary ideology. Harv Educ Rev. 1971; 41(4):472-500. apresenta uma crítica dos sistemas de avaliação competitiva da sociedade capitalista por privilegiar notas e qualificações em exames e testes. O interesse maior de García encontra-se no que Bowles77 Bowles S. Cuban education and the revolutionary ideology. Harv Educ Rev. 1971; 41(4):472-500. denomina de “conteúdo oculto da educação – os valores, as expectativas e os padrões de conduta que a escola estimula” (p. 231), que não fazem parte do currículo formal, mas que são compostos e se realizam de modo não manifesto nas relações sociais estabelecidas no próprio processo de ensino.
Para García, a forma institucional assumida por um determinado modo de produção de médicos constitui a superestrutura desse processo produtivo peculiar, tendo como infraestrutura as relações de ensino. Relações de ensino compreendem conexões ou vínculos que se estabelecem entre as pessoas que participam desse processo formativo. Nessa perspectiva, relações de ensino são a resultante dos papéis sociais que esses sujeitos desempenham no ensino médico, em um conjunto de elementos que definem o modo de formação médica. Pessoas que participam do ensino e que nele atuam como agentes do processo se relacionam entre si e com seu trabalho de acordo com o papel que desempenham. No modelo hegemônico, estudantes devem se vincular a docentes e a outros estudantes em uma forma preestabelecida ou normalizada que contribui, em parcela significativa, para o processo de definição do seu papel. Conclui García22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972.:
Por conseguinte, os indivíduos que ocupam posições estabelecidas no processo de ensino não se relacionam entre si por serem indivíduos, e sim pelo papel específico que desempenham. (p. 231)
No modelo de formação médica estudado pelo Projeto Opas (e ainda predominante na América Latina), para o estudante a falta de controle de sua formação é, exclusiva ou predominantemente, “resultado lógico da aquisição de competência técnica” mediante o estabelecimento de relações técnicas de ensino, gerando a sensação de impossibilidade de mudança dessa situação. De modo geral, o modelo teórico proposto por García pretende explicar uma série de fenômenos desconsiderados ou secundarizados nas abordagens da formação médica como simples processo de armazenamento, organização e transmissão de conhecimentos. Nesse sentido, complementa as demarcações acima expostas ao introduzir uma dimensão micropolítica referida a processos dialéticos de domínio-submissão que se configuram como relações sociais entre os agentes de ensino.
Pedagogia da transformação: Piaget, Gramsci, Freire
Para García, a formação do estudante realiza-se objetivamente como um processo de transformação que, na conclusão do curso, produz um profissional. Essa transformação se dá como processo produtivo tanto na vertente cognitiva e no domínio de competências cognitivas e habilidades psicomotoras, quanto na esfera das atitudes e afetos, o que hoje, não sem crítica, se chamaria de inteligência socioemocional88 Goleman D. Emotional intelligence. New York: Bantam Books; 1995..
Em uma perspectiva efetivamente pioneira, García pretende articular teoricamente elementos de base histórico-estrutural, tais como a separação entre o ensino e o trabalho médico, ao conjunto simbólico de aspectos socioantropológicos da ideologia profissional de classe social, como “cultura estudantil” e “cultura profissional”. Nessa análise, se o objetivo da construção conceitual fosse uma compreensão global e concreta do processo de ensino, não haveria espaço para uma pedagogia idealista, entendida como aquela que distingue a “informação” da “formação”. Ao fazê-lo, a pedagogia idealista separa a transformação cognitiva da transformação na área afetiva no processo de produção de profissionais. Conforme comenta García22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972.:
Este enfoque conduz à crença, comum em muitas escolas de Medicina, de que é possível transmitir conhecimentos isentos de juízos de valor e que o estudante pode assimilá-los sem os relacionar e integrar com sua perspectiva ideológica. (p. 15)
A integração das atividades de ensino com as atividades destinadas a transformar a realidade do setor saúde constitui um processo pedagógico-político, conforme indica García. Nesse processo, deve-se desconstruir o papel do estudante e recriá-lo como um tipo de trabalhador da saúde que, com outros membros da equipe de saúde, pode estabelecer objetivos e metas capazes de mudar uma dada situação de saúde, planejar ações para alcançá-los, realizar essa atuação como prática crítica e avaliar o resultado de tais ações. O aprendizado, nessa perspectiva, aparece como efeito principal de um processo de ensino baseado em criatividade, engajamento e autonomia.
Para o êxito dessa integração pedagógica e para se lograr uma efetiva transformação, tanto do sistema de ensino quanto do modo de produção do cuidado médico, García22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972. (p. 77) recomenda a aplicação do fundamento educacional por ele designado como principio de la creatividad em uma perspectiva social grupal, sempre coletivamente. Ou seja, a participação ativa do estudante no espaço social como ação coletiva de um grupo de trabalho que tem sob sua responsabilidade o cuidado à saúde de uma dada população. Trata-se aqui de uma interessante antecipação ou aplicação pioneira da ideia de team-based learning99 Kamei RK, Cook S, Puthucheary J, Starmer CF. 21st century learning in medicine: traditional teaching versus team-based learning. Med Sci Educ. 2012; 22(2):57-64..
Para a definição do princípio da criatividade, García recorre ao eminente psicólogo e educador suíço Jean Piaget (1896-1980), para quem o processo de conhecer e, por extensão, aprender significa muito mais do que fazer cópias mentais da realidade. O princípio da criatividade requer que o sujeito “aprendente” seja objetivamente capaz de intervir no contexto, na situação ou no objeto de ensino, transformando-o ou modificando-o em um sentido de fato inovador. Criticamente, observa García22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972. (p. 77) que o princípio da criatividade tem sido confundido com a ideia de aprendizagem ativa, que se refere à participação do estudante em atividades teóricas ou práticas que podem ser rigorosamente programadas. Para ele, o que se chama aprendizagem ativa, ou aprender fazendo, ocorre quando o estudante participa de todas as tarefas de um programa de saúde previamente definidas pelo corpo docente ou por autoridades sanitárias.
Pelo contrário, García postula um aprendizado criativo ou aprendizaje através del descubrimiento22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972. (p. 78), definido como a estratégia pedagógica na qual o estudante identifica, analisa e compreende necessidades ou problemas de saúde da população, escolhe um problema delimitado como foco de sua atividade, planeja uma solução viável e executa o conjunto de atividades contempladas em um plano de ação desenhado para resolver o problema. Mais do que uma abordagem da educação pelo trabalho em uma vertente deweyana, ou da integração ensino-serviço-comunidade promovida pela própria Opas, a proposta de García aproxima-se mais da perspectiva freiriana da problematização, ou aprender descobrindo o mundo. Não obstante, em sua obra, não se encontra referência aos escritos de Paulo Freire, publicados nos Estados Unidos somente a partir de 1970(b(b)Agradeço a Eliana Cyrino essa pertinente observação.).
Para a estratégia da aprendizagem pela descoberta ganhar viabilidade será preciso atingir e manter um alto nível de engajamento do alunado, que implica o que García22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972. denomina de princípio de la motivación. Em sua formulação, esquemática, observa que esse princípio se baseia na constatação de que “estudantes aprendem aquilo que desejam aprender e têm dificuldade de aprender o que não lhes interessa” (p. 77). Comenta que o contato precoce com pacientes, realizando todas as funções do médico no ambiente real dos serviços de saúde, “estimularia, seguramente, o interesse do aluno por aprender outros aspectos menos interessantes” (p. 77).
García observa que o ensino de Medicina nos países da América Latina parece ter sistematicamente negligenciado estratégias de motivação baseada nesse princípio ao propor que o contato de estudantes com pacientes concretos, em situação real de cuidado, só aconteça nos últimos anos de formação. Atendendo ao princípio do engajamento, seria recomendável inverter a relação entre teoria e prática adotada na maioria das escolas de Medicina, que começa pela teoria, revisando fundamentos, princípios gerais e padrões científicos, deixando para momentos posteriores sua aplicação na realidade concreta da assistência médica. Assinala, enfim, que se trata de um dos problemas mais importantes da educação atual, ainda carente de solução na medida em que a aplicação de leis gerais a fenômenos concretos e particulares constitui a forma canônica das construções curriculares ainda hoje hegemônicas nas escolas médicas.
García propõe analisar aspectos micropolíticos dessa constatação, resultante da crença de que estudantes são incapazes de apreciar de modo competente o processo de ensino com base na estrutura de microrrelações políticas envolvidas no processo, na qual assumem papel passivo e se submetem à autoridade docente. Em reforço ao argumento de que estudantes não são espectadores passivos das atividades docentes nem objeto de manipulação de sistemas institucionais, García traz em nota de rodapé uma citação de Antonio Gramsci (1891-1937)1010 Gramsci A. La formacion de los intelectuales. Ciudad de México: Grijalbo; 1967. La organización de la escuela y de la cultura; p. 139-150. que vale a pena reproduzir: “A participação realmente ativa do aluno na escola pode existir unicamente se a escola estiver ligada à vida”22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972. (p. 85). Note-se que novamente não se trata apenas de participação ativa no processo de ensino, mas sim de “participação realmente ativa do aluno na escola” [itálicos meus], indicando um terceiro princípio, estruturante e articulador dos anteriores, o “princípio da autonomia”.
Com o princípio da autonomia, García redefine a ideia de aprendizagem ativa, ampliando seu escopo didático para um marco político-pedagógico mais ampliado. Alinha-se, nesse ponto, a vários educadores críticos (Paulo Freire à frente) que já consideram pertinente e até indispensável a participação estudantil nas mudanças curriculares, nas avaliações dos planos de estudo, na gestão escolar e, em muitos casos, no próprio processo de ensino. Para García, o problema parece residir na estrutura social predominante nas escolas, que conduz à formação de estratos com poderes diferentes, com os estudantes ocupando uma posição de menor poder, restando-lhes o papel de receptor passivo e conformado da atuação pedagógica de agentes de ensino. Uma forma de resolver essa situação seria a formação de grupos solidários ou coletivos políticos capazes de enfrentar, direta ou indiretamente, o corpo de professores consolidado como núcleo de poder técnico e regulador da burocracia pedagógica. Em uma atualização para a atual conjuntura, podemos dizer que o princípio da autonomia se estenderia, para além da autonomia individual do sujeito em processo de aprendizagem, ao empoderamento do corpo discente como coletivo político participante ativo do processo de ensino.
Em um plano mais especificamente pedagógico, García22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972. (p. 242) recorre a Grace Boggs (1915-2015), educadora estadunidense que propunha uma educação orientada por problemas e projetos, sem currículos rígidos compostos por matérias ou disciplinas1111 Boggs GL. Education: the great obsession. Mon Rev. 1970; 22(4). Republicado em: Mon Rev [Internet]. 2011 [citado em 20 Jun 2022]; 63(3). Disponível em: https://monthlyreview.org/2011/07/01/education-the-great-obsession/
https://monthlyreview.org/2011/07/01/edu... . Esse modelo implicava um novo tipo de relação docente-discente, horizontal e sem hierarquias, com intensa participação das comunidades. Essa escola transformada e transformadora deveria ser organizada em grupos de estudantes reunidos em equipes e trabalhando em oficinas. Orientados por docentes e monitores, estudantes seriam estimulados a identificar necessidades ou problemas da comunidade; a partir daí, poderiam escolher certa necessidade ou problema e planejar um programa para sua solução e executar os passos envolvidos no planejamento. Ao completar todo esse processo, estudantes poderiam adquirir, de forma natural e espontânea, como parte de um processo real de ensino-aprendizagem, habilidades e conhecimentos necessários para a solução dos problemas identificados no cotidiano problematizador. Nesse modelo de ensino, diferentemente do que ainda ocorre na atualidade, alunos teriam oportunidade de assumir e exercer responsabilidades para identificar problemas e demonstrar criatividade para propor e testar soluções. Nesse processo, contam com professores como orientadores para a busca de conhecimento e como instrutores para treiná-los em habilidades necessárias para lidar com os problemas identificados.
Aspectos pedagógico-políticos
Para García22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972., a estrutura econômica e as relações sociais de produção são determinantes do modo de produção de médicos e, por extensão, de trabalhadores da saúde. Portanto, os princípios pedagógicos discutidos e outros fundamentos educacionais deveriam sempre levar em conta tendências do processo produtivo, dinâmica do mercado de trabalho e reprodução social das profissões. Nesse aspecto, fatores econômicos, políticos, sociais e familiares interferem na escolha de carreira profissional e no processo educacional em geral. Avalia que a decisão de estudar Medicina seria influenciada por condições e fatores muito distantes das necessidades reais da sociedade, podendo-se observar um conflito evidente entre interesses individuais e interesses coletivos. Em certa medida, isso implica um tipo particular de alienação, ou falta de consciência, acerca da função social das universidades na formação de intelectuais orgânicos de elites profissionais de mercado ou de Estado.
García observa que são poucos os exemplos de experiências educacionais que compreendem efetivas inovações em estrutura e formatos curriculares e promovem novas relações de ensino no âmbito universitário. Assim como o curso médico da Universidade Johns Hopkins serviu de paradigma para o famoso Relatório Flexner1212 Flexner A. Medical education in the United States and Canada. New York: The Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching; 1910., a Escola de Medicina da Universidade Western Reserve de algum modo funcionou como padrão-ouro para a análise de García22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972. (p. 29). O programa de ensino médico da Western Reserve, implantado a partir de 1952, dividia-se em três fases: primeiro, estudo da estrutura, da função, do crescimento e do desenvolvimento do ser humano normal; segundo, estudo de alterações da estrutura, da função, do desenvolvimento da doença; terceiro, aplicação clínica do conhecimento aprendido nas duas primeiras fases. Superando a estrutura curricular baseada em disciplinas, foram criadas novas unidades de ensino, definidas segundo o critério de aparelhos e sistemas. Duas inovações na racionalização do ensino foram amplamente difundidas nas décadas seguintes: o sistema de módulos (blocks) e os estágios (clerkships). Essa última modalidade de ensino permitia ao estudante exercer funções assistenciais, limitadas e supervisionadas, em campos de prática na rede assistencial.
Apesar de reconhecer que a integração de certos aspectos significava necessariamente a exclusão de outras possibilidades de inovação curricular e pedagógica, García assumiu o enfoque protointerdisciplinar de “curso modular integrado” como paradigma de curso médico, base de comparação para os cursos analisados em seu estudo. Além disso, em relação a conteúdos, já que na época ainda não se falava em ensino por competências, tomou como referência a série de recomendações para o ensino das diversas especialidades médicas elaboradas por um conjunto de Comitês de Experts da Opas/OMS22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972. (p. 37). Achava ele que a aplicação do modelo descrito, ou similar, deveria acelerar e melhorar o processo de aprendizagem e evitar conflitos inerentes ao modo de formação corrente à época.
Ao analisar os dados do Projeto Opas, García22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972. adiantou a hipótese de que as mudanças esperadas no processo de ensino, orientadas pela aplicação de inovações, tecnologias e metodologias geradas pelo desenvolvimento das ciências educacionais, por exemplo, o modelo radical de educação emancipatória de Boggs acima citado, não teriam qualquer chance de sucesso porque o contexto interno das escolas médicas não permitiria sua aplicação. Isso teria ocorrido com o chamado ensino criativo, no qual o professor desempenha o papel de “conselheiro” e, em consequência, desaparece a diferença de poder entre docentes e estudantes. Ainda que esse método de ensino pudesse melhorar a qualidade do ensino-aprendizagem, não seria possível aplicá-lo, porquanto a estrutura política das escolas de Medicina, que se baseia em uma hierarquia de autoridade à qual o aluno se encontra subordinado, teria uma contradição de fundamento em relação aos princípios da criatividade, do engajamento e da autonomia.
A crítica de um clássico
Segundo Italo Calvino, em um antológico ensaio intitulado “Por Que Ler os Clássicos”1313 Calvino I. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras; 1993., um clássico não se produz nem se revela em um momento dado ou mediante algum episódio do seu presente, mas se destina e se projeta ao futuro. Ao tornar-se clássica, uma obra não se prende ao passado; será referência para um porvir que, por definição, remete sempre a uma conjuntura diferente daquela de sua concepção. Em uma perspectiva política de mudança histórica, uma obra, para ser clássica, precisa demonstrar ousadia e sentido antecipatório. Escreve Calvino1313 Calvino I. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras; 1993.:
Talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do lado de fora da janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo, enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos, que soa claro e articulado no interior da casa. (p.15)
Clássicos merecem críticas; para isso servem clássicos. Clássicos aceitam críticas; por isso se tornam clássicos1313 Calvino I. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras; 1993.. O fato de uma obra extravasar sua referência temporal e seu campo temático, exibindo vitalidade mesmo em tempos futuros e mostrando utilidade na demarcação de objetos emergentes, permite revelar contradições, inconsistências e lacunas que em nenhum momento diminuem sua relevância política e significância histórica.
Sobre a contribuição de Juan César García, argumentos críticos valorizam melhor compreensão da dialética permanência-transformação na complexa relação educação-trabalho e reafirmam sua posição de clássico do campo da Saúde Coletiva. Nesse sentido crítico, inicialmente proponho considerar que a noção garciana de processo de ensino é lacunar, pois falta o componente aprendizagem como efeito das relações sociais e institucionais incorporadas na educação formal profissional. Isso contradiz a própria perspectiva totalizante de análise proposta por García. A partir daí, podemos apontar outras contradições e lacunas, para além do esquematismo de uma teoria sociológica da educação como modo de produção de profissionais no capitalismo moderno.
Apesar de se remeter à obra marxiana, delineando a dinâmica entre processo de ensino e relações sociais de ensino por analogia ao processo de produção e às relações sociais de produção, em repetidas oportunidades, García cautelosamente prefere não revelar que as raízes de seu modelo teórico se encontram no materialismo histórico. O marco teórico-epistemológico de “La Educación Médica en la América Latina” é, em vários momentos da obra, apresentado por García como uma abordagem estrutural. Aparentemente, ao fazê-lo, García pretende esconder os fundamentos de sua perspectiva conceitual em uma vertente do marxismo francês que teve seu apogeu durante a década de 1960. Trata-se de uma abordagem fortemente influenciada pela obra de Louis Althusser (1918-1990), Nicos Poulantzas (1936-1979) e outros intelectuais marxistas, da linha histórico-estrutural. Essa abordagem tem sido criticada como uma variante positivista do materialismo histórico, representativa de grandes narrativas fundadas em leis gerais da história e macroprocessos de raiz econômica.
Para Garcia, a estrutura econômica não só determina o lugar da prática médica na estrutura social, mas também o alcance e a importância de todos os elementos que compõem o tecido social. Essa determinação não corresponderia a uma causalidade simples, e sim a uma causalidade de tipo estrutural: a determinação em última instância. Para resolver alguns impasses teóricos e lógicos da ideia de determinação estrutural dos dispositivos político-ideológicos, o marxismo althusseriano recuperou uma noção original freudiana, o conceito de sobredeterminação1414 Almeida-Filho N. Mais além da determinação social: sobredeterminação, sim! Cad Saude Publica. 2021; 37(12):e00237521.. Caso tivesse recorrido a esse aporte conceitual inovador concebido pelo próprio Althusser, Garcia teria compreendido melhor e com mais profundidade o que de fato o intrigava: a “autonomia relativa” dos modelos de formação que operam em um espaço “livre da determinação da estrutura econômica”22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972., (p. 391) onde interatuam outros fatores e forças de naturezas diversas e que ele chega a demarcar com precisão.
Nessa perspectiva, tal como apresentada de modo esquemático por García, a prática médica funciona como reprodutora das condições biológicas da mão de obra e reguladora da produtividade da força de trabalho. Aqui, o que o senso comum convencionou chamar de Saúde Pública, basicamente uma medicina de segunda ordem destinada a pobres e a segmentos socialmente marginalizados, também desempenha um papel importante na diminuição das tensões políticas produzidas pela desigualdade social que resulta da intensa exploração econômica na base da formação social do capitalismo periférico.
Em uma perspectiva arqueológica no sentido foucaultiano, podemos identificar nesse argumento de García uma fonte de inspiração para a análise de Maria Cecília Donnangelo que, em um contexto político dado – a conjuntura brasileira de redemocratização após a ditadura militar e a luta pela reforma sanitária que gerou o Sistema Único de Saúde (SUS) –, tornou-se, ela própria, autora de um clássico raiz do movimento da Saúde Coletiva1515 Donnangelo MCF, Pereira L. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades; 1976.. As dificuldades trazidas por soluções teóricas elusivas diante dos impasses políticos do estruturalismo marxiano – como o faz Garcia, recorrendo a uma interpretação de inspiração gramsciana – ressaltam a leitura crítica do althusserianismo de Donnangelo realizada por Luiz Pereira1616 Pereira L. Apêndice: capitalismo e saúde. In: Donnangelo MCF, Pereira L. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades; 1976. p. 95-124..
Autoapresentada (ou disfarçada) como uma abordagem estruturalista, essa forma de atribuição de função ideológica à educação (Garcia) e de função social à Medicina (Donnangelo) tem muito a ver com a concepção de que as classes sociais são o resultado das desigualdades na distribuição do produto social, e não se constituem como efeito estrutural da contradição entre proprietários dos meios de produção e trabalhadores explorados por sua posição de classe. Como se o sistema de classes no capitalismo fosse determinado pela estrutura econômica da sociedade, mediante um processo de produção carente de historicidade, e não do regime de opressão (econômica, social, política) e racismo (no plano ideológico) dos grupos dominantes sobre sujeitos que, como coletivo, constituem as classes dominadas ou excluídas em uma dada formação social. Em suma, García teria se apresentado como estruturalista para camuflar sua fundamentação teórico-política no marxismo. Contudo, a abordagem do materialismo científico que utiliza não deixa dúvidas de que se trata de uma versão estrutural, quiçá funcionalista (ou positivista) e não histórico-estrutural do materialismo dialético.
Observo na exposição fragmentada do quadro conceitual, uma ausência quase total de referências a fundamentos conceituais e uma cuidadosa escolha de citações na discussão e na interpretação dos dados da pesquisa. De fato, Garcia cita Bowles e Gramsci a propósito de métodos de ensino, como se ambos fossem pedagogos, com uma sutil referência em rodapé às experiências cubanas de Educação Popular. Naquela época, Samuel Bowles ainda não era reconhecido como autor da implacável crítica ao sistema escolar estadunidense como eficiente fator de sustentação do capitalismo raiz fordista e cruelmente liberal1717 Bowles S, Gintis H. Schooling in capitalist America. London: Routledge and Kegan Paul; 1976.; nem Antonio Gramsci era conhecido pelos censores e leitores, tanto quanto Marx, Engels, Lenin ou Mao.
Não obstante, precisamos reintroduzir o contexto histórico. Não podemos esquecer que García operava em uma conjuntura política extremamente desfavorável, senão hostil, às ideias progressistas da educação como emancipação política e da saúde como direito humano e princípio elementar de equidade social na democracia. Como nos mostra de modo magistral o texto de Galeano, Trotta & Spinelli11 Galeano D, Trotta L, Spinelli H. Juan César García y el movimiento latinoamericano de medicina social: notas sobre una trayectoria de vida. Salud Colect. 2011; 7(3):285-315., a atuação da Opas permitia brechas no plano micropolítico. Contudo, o cenário do pós-macarthismo demandava cautelas e, no plano internacional do Hemisfério Sul, ditaduras militares e seus aparatos de repressão política, fomentados pelo imperialismo e pelo fantasma da Revolução Cubana no contexto da Guerra Fria, impunham cuidados redobrados. Felix Rigoli comenta que García usou a abundante e, na época, pouco difundida literatura crítica norte-americana que conhecia bem, buscando dotar suas referências de uma aparência “técnica e moderna” para, “com muita astúcia”, passar pelo crivo “da Opas de Horwitz e dos limitados censores latino-americanos”(c(c)Felix Rigoli, comunicação pessoal, em 8/5/2022.). Esse contexto e os cuidados por ele provocados explicariam a fragmentação do marco teórico de referência, disperso por toda a obra, entremeado com seções em capítulos de apresentação e análise de resultados, com evidentes descontinuidades, obrigando a repetições, em vez de concentrados em formulação orgânica e sistemática.
Epílogo: atualidade de García
Vejamos brevemente como e por que a obra de Juan Cesar Garcia se mantém incrivelmente atual, merecendo sem dúvida nossa homenagem como um clássico do campo da Saúde Coletiva. Constatamos que, meio século depois de sua publicação, a maior parte dos atributos problemáticos e contraditórios dos sistemas de educação superior em geral e do ensino médico em particular continua vigente. Isso ocorre a despeito de avanços na implantação de sistemas de saúde em vários países da América Latina e Caribe, incluindo Canadá. Entretanto, a atualidade e a pertinência da obra garciana devem-se sobretudo à competência analítica do autor, capaz de identificar processos fundamentais para a compreensão do seu objeto de estudo, demonstrando robusta capacidade antecipatória, na medida em que matrizes estruturais, na perspectiva por ele adotada, são invariantes no que concerne à posição no sistema mesmo que, dessa forma, se constituam como leito de contradições e condicionantes da dinâmica do sistema analisado.
Duas décadas antes do notório projeto Harvard/Banco Mundial dos estudos de carga global de doença como produtores de evidência para políticas públicas de intervenção em contextos de austeridade fiscal1818 Murray CJL, Lopez AD, editors. The global burden of disease: a comprehensive assessment of mortality and disability from diseases, injuries, and risk factors in 1990 and projected to 2020. Cambridge: World Health Organization; 1996., García já analisava que o horizonte conceitual e linguístico da prática médica e do ensino médico também se transformava. Condicionado por vetores estruturais da base econômica da formação social, na racionalidade superestrutural do campo da Saúde, detectou o surgimento de uma nova ideia: a do preço da vida e o custo que implica sua proteção. Nesse quadro tendencial, o cálculo econômico entraria então como base para um paradigma de decisão “racional” na distribuição dos serviços de saúde, reforçando em última instância a desigualdade social, ao considerar que o preço da vida humana varia segundo a contribuição do indivíduo à sociedade.
Sintonizado com os desenvolvimentos institucionais mais recentes em sua época, no plano interno do ensino profissional em saúde, García detectou uma tendência à diversificação dos cursos médicos, proposta que recebia especial atenção naqueles anos, com o surgimento das chamadas “faculdades de ciências da saúde”. Nessas instituições, pretendia-se formar diversos tipos de profissionais da saúde com base em um tronco comum de conhecimentos fundamentais que permitiria ao estudante sair do sistema educacional em etapas intermediárias do processo de formação, com a competência necessária para desempenhar uma ocupação e com a possibilidade de mudar de opção profissional. Comenta García22 García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972. que não é fácil criar instituições formadoras no campo da Saúde com esse propósito, dado o risco de que “a profissão de maior prestígio, nesse caso a Medicina, atraia a maioria e exerça uma influência dominante sobre outras profissões” (p. 224). Também nesse aspecto particular, nosso autor já identificava as contradições e os impasses da educação interprofissional em Saúde, analisando dificuldades e mesmo impossibilidades condicionadas ao contexto dos sistemas públicos de saúde em sociedades de mercado.
Para García, o modo dominante de produção de serviços em uma economia de mercado necessita médicos especializados. Porém, na região geopolítica objeto do Projeto Opas, muitas escolas de Medicina declaravam como objetivo principal a formação de generalistas, aptos a atuar nos sistemas locais de saúde. Isso ocorria no plano ideal, porque, na realidade, já aí se estabelece uma contradição entre retórica normativa e prática concreta, na medida em que instrutores e docentes são especialistas e seu ensino, em forma e conteúdo, entra em conflito com as metas traçadas.
Além disso, estudantes, pressionados pela necessidade de ingresso rápido no mercado de trabalho, prematuramente buscam uma especialidade, sendo que as de maior prestígio na prática médica atraem o maior número de candidatos e, pelo menos nos parâmetros oficiais dos processos seletivos hegemônicos, aqueles mais preparados. Essa situação se complica quando o processo de privatização, vide seguros e planos privados de saúde, busca expandir a cobertura para grupos menos privilegiados, surgindo, dessa forma, uma demanda por maior quantidade de generalistas. De fato, é extraordinária a atualidade dessa análise, considerando a conjuntura brasileira neste momento em que passamos de três décadas de funcionamento do SUS, com uma grave crise de formação de profissionais qualificados para cuidados em saúde com qualidade-equidade.
Trata-se, em conclusão, de enfim apreciar a ambição epistemo-metodológica e o escopo político do pensamento de Juan Cesar García, focalizando seu referencial pedagógico incrivelmente consistente e atual. Sua obra, aqui exposta em uma releitura intertextual breve, porém sincera, rigorosa e pluralista, permite-nos reconhecer e admirar um seminal esforço no sentido de analisar os papéis político, ideológico e praxiológico das instituições encarregadas da formação de sujeitos críticos, criativos e engajados na luta histórica pela Saúde Coletiva. Ao fazê-lo, mediante um presente marcado por desilusões esperançadas, podemos lançar um olhar histórico-crítico sobre uma era de grandes modelos teóricos refletidos e contestados nas concretudes parciais e contraditórias que configuram o espaço social da Educação em Saúde.
Agradecimentos
A Felix Rigoli, Carmen Fontes Teixeira e Eliana Cyrino por críticas e sugestões nas suas atentas leituras de manuscritos iniciais deste ensaio. Também a Marcelo Dourado Rocha, Liliana Silva, Luís Eugenio Portela, Erika Aragão e Ana Lucia Rico, colegas que comigo compartilham o projeto de pesquisa “Relação entre Iniquidades e Inovação em Saúde: Foco em Qualidade-Equidade e Competência Tecnológica Crítica no SUS”, no INTEQ-Saúde/ISC/UFBA. Ao Instituto de Estudos Avançados da USP, que me acolheu como Titular da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica durante a redação deste artigo.
- (b)Agradeço a Eliana Cyrino essa pertinente observação.
- (c)Felix Rigoli, comunicação pessoal, em 8/5/2022.
- Almeida-Filho N. O pensamento político-pedagógico de Juan César García: Piaget-Gramsci-Freire e a formação profissional em Saúde na América Latina. Interface (Botucatu). 2022; 26: e220285 https://doi.org/10.1590/interface.220285
Financiamento
Estudo realizado no âmbito do Instituto de Inovação, Tecnologia e Equidade em Saúde (INTEQ-Saúde), com apoio financeiro do MS-SCTIE-Decit/CNPq n. 12/2018. Na fase final de elaboração do texto, recebi Bolsa de Pesquisador Visitante do IEA/USP (Proc. 3311 – Convênio Fusp/Fundação Itaú Social).
Referências
- 1Galeano D, Trotta L, Spinelli H. Juan César García y el movimiento latinoamericano de medicina social: notas sobre una trayectoria de vida. Salud Colect. 2011; 7(3):285-315.
- 2García JC. La educación médica en América Latina. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 1972.
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- 4Nunes ED. O pensamento social em saúde na América Latina: revisitando Juan César García. Cad Saude Publica. 2013; 29(9):1752-1762.
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» https://monthlyreview.org/2011/07/01/education-the-great-obsession/ - 12Flexner A. Medical education in the United States and Canada. New York: The Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching; 1910.
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- 15Donnangelo MCF, Pereira L. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades; 1976.
- 16Pereira L. Apêndice: capitalismo e saúde. In: Donnangelo MCF, Pereira L. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades; 1976. p. 95-124.
- 17Bowles S, Gintis H. Schooling in capitalist America. London: Routledge and Kegan Paul; 1976.
- 18Murray CJL, Lopez AD, editors. The global burden of disease: a comprehensive assessment of mortality and disability from diseases, injuries, and risk factors in 1990 and projected to 2020. Cambridge: World Health Organization; 1996.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
22 Ago 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
20 Jun 2022 - Aceito
27 Jun 2022