Quem tem direito a ter direitos?

Who is entitled to have rights?

¿Quién tiene derecho a tener derechos?

Thais Machado Dias Sobre o autor

“Quem tem direito a ter direitos?” Essa frase foi dita pela ex-deputada federal, Cristiane Brasil do PTB do RJ, em 2018, ao ter sua indicação para Ministra do Trabalho impugnada por ser réu de um processo trabalhista. Cristiane grava um vídeo para suas redes sociais em uma lancha, ao lado de empresários, criticando que na Justiça do Trabalho os empresários não têm direitos.

Esse escárnio é reproduzido de muitas maneiras diferentes na sociedade brasileira, em que a inversão dos valores democráticos é naturalizada, e os mais vulneráveis, que deveriam ser protegidos pelo Estado, são sempre os mais violentados por ele. E certamente é esse o caso das mulheres que sofrem a Violência Obstétrica da perda de guarda involuntária intraparto pelo Estado brasileiro, fenômeno discutido pelo artigo “A dinâmica das violências na separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade”.

O artigo traz a problemática da perda de guarda intraparto na cidade de Belo Horizonte, que foi agravada pela Recomendação 05/2014 da 23° Promotoria de Justiça da Infância Cível em Belo Horizonte. No entanto, ainda que em BH essa recomendação seja causa de um acirramento da violência perpetrada a essas mulheres, a recomendação também é consequência de um modus operandi de lidar com essas mulheres que é muito anterior a ela e se espalha por todo o país.

Frequentemente, essas mulheres vulnerabilizadas, em sua maioria negras, estão nas ruas em uso de substância e experimentam o paradoxo descrito acima. A legislação constitucional garante o atendimento à saúde ou o direito à assistência social e à moradia a qualquer cidadão, o que inclui formalmente essa população. No entanto, nesses corpos frequentemente se operam políticas de “deixar morrer” pela ausência da seguridade social necessária (e garantida por lei) ou de “fazer morrer” pelo aparato policialesco ou de milícias, como foi a chacina da Sé em 2004. No entanto, durante a gestação isso se inverte.

Há uma compreensão de que esses bebês interessam, e é investida neles (e em suas mães ainda gestantes) uma série de tecnologias de “fazer viver”. Na gestação aumenta-se o acesso a consultas e leitos nos Caps quando esses serviços estão disponíveis11 Dias TM. Cuidado às mulheres gestantes em situação de rua no município de Campinas - SP: clínica no limite e o limite da clínica [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2019.. Outras vezes, a gestação justifica por si só a internação involuntária dessas mulheres em instituições totais como as comunidades terapêuticas22 Dias TM, Carvalho SR. Pré-natal de mulheres em situação de rua: experiência do Consultório na Rua de Campinas. In: Carvalho SR, Oliveira CF, Andrade HS, Cheida RS, organizadores. Vivências do cuidado na rua: produção de vida em territórios marginais. Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2019. p. 221-39.. Isso implica um outro ponto: o corpo feminino (e, em especial, aquele das mulheres da rua) não tem a dignidade de ser um fim em si mesmo; as técnicas que agem sobre ele são frequentemente para a proteção de um feto, mas não dessa mulher. Isso a transforma em um objetivo secundário que pode ser ou não alcançado11 Dias TM. Cuidado às mulheres gestantes em situação de rua no município de Campinas - SP: clínica no limite e o limite da clínica [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2019..

É necessário pensar a quais regimes de verdade ou estratégias de governo responde então a necessidade de manter saudáveis, sem danos, esses bebês dessas mulheres.

De acordo com o artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), somente pode haver destituição do Poder Familiar após terem sido esgotadas todas as medidas de apoio aos pais da criança/adolescente e ficar comprovada a impossibilidade de reintegração familiar, com a família de origem ou a família extensa33 Gomes JDG. Primeira infância e maternidade nas ruas de São Paulo [Internet]. São Paulo: Neca; 2017 [citado 6 Ago 2018]. Disponível em: https://www.neca.org.br/wp-content/uploads/Primeira-infancia-e-maternidade-nas-ruas-de-SP-CDH-LG.pdf
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. Isso simplesmente não é possível de ser feito no momento do parto ou em 48 horas pós-parto. É importante pensar o que se opera nas práticas e nos discursos do cotidiano que é tão distante da legislação e gera esse paradoxo do acesso aos direitos33 Gomes JDG. Primeira infância e maternidade nas ruas de São Paulo [Internet]. São Paulo: Neca; 2017 [citado 6 Ago 2018]. Disponível em: https://www.neca.org.br/wp-content/uploads/Primeira-infancia-e-maternidade-nas-ruas-de-SP-CDH-LG.pdf
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Os relatórios que em geral justificam a perda do poder familiar para preservar o bebê dessa “mãe má”, em que a não realização do pré-natal em vez de ser qualificada como uma negligência do Estado em relação a essa mulher e a esse bebê, é convenientemente qualificada como negligência materna em relação à criança44 Gonçalves MAB. Assistente técnico judiciário na defensoria pública: suporte da teoria de Winnicott [dissertação]. Campinas (SP): Pontifícia Universidade Católica de Campinas; 2015..

Por muitos anos, mulheres brancas e de famílias abastadas, quando tinham filhos fora do casamento, não raro escondiam essa gestação e entregavam as crianças às chamadas “Rodas dos Enjeitados” ou às famílias pobres ou de funcionários para serem criadas. No entanto, parece que hoje o ciclo se inverte, em que os filhos das classes baixas, em especial os bebês, são absolutamente cobiçados nas filas de adoção brasileiras44 Gonçalves MAB. Assistente técnico judiciário na defensoria pública: suporte da teoria de Winnicott [dissertação]. Campinas (SP): Pontifícia Universidade Católica de Campinas; 2015..

Esses bebês com potencial de serem adotados por famílias, em geral mais abastadas do que a família de origem, são como uma “mercadoria” que hoje tem amplo “mercado consumidor” nas filas de adoção. O número de famílias adotantes nas filas hoje supera o número de crianças abrigadas55 Schweikert PGM. Resistência à profilaxia materna: a deslegitimação do uso de drogas como fundamento para a separação de mães e filhos(as) na maternidade [trabalho de conclusão de curso]. São Paulo (SP): Fundação Escola de Sociologia de São Paulo; 2016., e assim como todo mercado esse grupo tem suas preferências. A idade é um dos critérios mais centrais para as famílias adotantes que podem, no Brasil, com o intuito de proteção à criança, selecionar muitos aspectos do perfil que desejem levar para casa. Os bebês são os mais procurados pelas famílias adotantes55 Schweikert PGM. Resistência à profilaxia materna: a deslegitimação do uso de drogas como fundamento para a separação de mães e filhos(as) na maternidade [trabalho de conclusão de curso]. São Paulo (SP): Fundação Escola de Sociologia de São Paulo; 2016. e muitas delas também condicionam a adoção de bebês em perfeito estado de saúde.

Assim, há de certa forma um imaginário de que estariam “salvando” as crianças dessa “mãe má”, de que a guarda seria perdida de qualquer forma, e que essa criança faria uma família feliz.

Esse discurso pode ser visto inclusive na mídia de várias maneiras, como é possível observar na Figura 1.

Figura 1
Capa da revista Veja São Paulo de 5 out. 2016.

Na capa da revista Veja São Paulo, publicada em 5 de outubro de 2016, um homem branco, com relativo poder aquisitivo mostrado pela quantidade de brinquedos ao fundo, é colocado como “salvador” da criança negra. A criança em questão é filha do crack, repetindo um fenômeno conhecido em relação ao uso de crack que é a humanização da droga que “invade as famílias” e nesse caso tem até filhos. E a desumanização de seus usuários, tratados como “noias”, zumbis, e nesse caso uma desumanização tão profunda em que a parentalidade desses pais, dessa mãe, desaparece completamente. A criança é filha do crack.

Um outro dispositivo importante da capa é o subtítulo: “As emocionantes histórias das famílias paulistanas que adotam bebês e crianças abandonadas por mães viciadas em drogas”. Como se essas mães abandonassem os filhos, sendo muito mais frequente hoje a perda de guarda involuntária do que a entrega protegida por parte dessas mães. E as famílias adotantes são colocadas como salvadoras nesse processo.

Pude, como trabalhadora e como membro do GT Maternidades do Estado de São Paulo, presenciar esse discurso de várias formas diferentes no quotidiano dos serviços, às vezes proferido por profissionais das maternidades, dos abrigos infantis ou por profissionais do judiciário33 Gomes JDG. Primeira infância e maternidade nas ruas de São Paulo [Internet]. São Paulo: Neca; 2017 [citado 6 Ago 2018]. Disponível em: https://www.neca.org.br/wp-content/uploads/Primeira-infancia-e-maternidade-nas-ruas-de-SP-CDH-LG.pdf
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. Caso essas crianças permaneçam nas famílias de origem, quando jovens entram no exército dos matáveis, dos que podem ser “deixados morrer”, dos menos humanos, como suas mães. Em especial jovens, homens e negros das periferias.

Ao analisamos mais de perto as mulheres em situação de rua e/ou usuárias de substância psicoativa – em geral mulheres negras e pobres das periferias ou com transtorno mental –, o que se coloca é que elas têm seu exercício de maternidade muito mais constantemente fiscalizado e governado pelas tecnologias de controle de conduta do que outras mulheres, em especial quando falamos do governo que se realiza pelo Estado (ainda que esse não seja o único)11 Dias TM. Cuidado às mulheres gestantes em situação de rua no município de Campinas - SP: clínica no limite e o limite da clínica [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2019.,55 Schweikert PGM. Resistência à profilaxia materna: a deslegitimação do uso de drogas como fundamento para a separação de mães e filhos(as) na maternidade [trabalho de conclusão de curso]. São Paulo (SP): Fundação Escola de Sociologia de São Paulo; 2016.. Perversamente, são essas mulheres que mais precisariam de amparo do Estado e da sociedade para o exercício da maternidade, devido às suas baixas condições econômicas e frágeis vínculos familiares. Para elas, mães “marginais”, vale a máxima da “meritocracia da maternidade”; em outras palavras, elas “precisam fazer por merecer” para poderem exercer a maternidade.

Isso é marcado muito mais pela classe social do que pelo uso de substância, que é bastante evidente quando comparamos os números de abrigamentos de bebês ou perdas de guarda realizados nas maternidades públicas com os realizados nas maternidades privadas, mesmo com histórico de uso de substância psicoativa. É possível perceber isso mesmo em histórias públicas de maternidades no Brasil, como das cantoras Elis Regina ou Cássia Eller.

O objetivo com trabalhos como o do GT Maternidades da Defensoria Pública do Estado de São Paulo ou o amplo movimento social disparado em Belo Horizonte é de que essas práticas perversas sejam denunciadas, os jogos de verdade que elas operam sejam denunciados, e os direitos dessas mulheres e dessas crianças sejam garantidos à família de origem e à convivência comunitária como é disposto no ECA.

Referências

  • 1
    Dias TM. Cuidado às mulheres gestantes em situação de rua no município de Campinas - SP: clínica no limite e o limite da clínica [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2019.
  • 2
    Dias TM, Carvalho SR. Pré-natal de mulheres em situação de rua: experiência do Consultório na Rua de Campinas. In: Carvalho SR, Oliveira CF, Andrade HS, Cheida RS, organizadores. Vivências do cuidado na rua: produção de vida em territórios marginais. Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2019. p. 221-39.
  • 3
    Gomes JDG. Primeira infância e maternidade nas ruas de São Paulo [Internet]. São Paulo: Neca; 2017 [citado 6 Ago 2018]. Disponível em: https://www.neca.org.br/wp-content/uploads/Primeira-infancia-e-maternidade-nas-ruas-de-SP-CDH-LG.pdf
    » https://www.neca.org.br/wp-content/uploads/Primeira-infancia-e-maternidade-nas-ruas-de-SP-CDH-LG.pdf
  • 4
    Gonçalves MAB. Assistente técnico judiciário na defensoria pública: suporte da teoria de Winnicott [dissertação]. Campinas (SP): Pontifícia Universidade Católica de Campinas; 2015.
  • 5
    Schweikert PGM. Resistência à profilaxia materna: a deslegitimação do uso de drogas como fundamento para a separação de mães e filhos(as) na maternidade [trabalho de conclusão de curso]. São Paulo (SP): Fundação Escola de Sociologia de São Paulo; 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Set 2022
  • Aceito
    10 Out 2022
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