Um roteiro virtual sobre ativismo biossocial e biodeserção no Movimento dos Consumidores/ Ex-pacientes/Sobreviventes da Psiquiatria

A virtual script about biosocial and biodesertion activism in the User, Ex-patient, and Survivor of Psychiatry Movement

Un guion virtual sobre activismo biosocial y biodeserción en el Movimiento de los Consumidores/Ex-pacientes/Sobrevivientes de la Psiquiatría

Andreza Silva dos Santos Sobre o autor

Resumos

A dificuldade em demarcar um termo que designe o movimento indicado no título deste artigo é uma demonstração da heterogeneidade que o caracteriza: consumidores, ex-pacientes, sobreviventes da Psiquiatria são algumas das denominações utilizadas pelos grupos que se organizam em torno da advocacy pelos direitos das pessoas que são submetidas a tratamentos psiquiátricos (incluindo o direito de recusa a esses tratamentos) e da construção de redes de autoajuda, pensadas como alternativas ao sistema de Saúde Mental, no contexto dos Estados Unidos. Convido o leitor a conhecer um pouco dessa história por meio do roteiro de um documentário, que não foi e não será gravado, mas que é virtualmente narrado neste texto com a intenção de situar a atuação desse movimento e propor uma discussão teórica que o articule com os conceitos de ativismo biossocial e biodeserção.

Palavras-chave
Ativismo político; Recusa do paciente ao tratamento; Tratamento psiquiátrico involuntário; Saúde mental; Psiquiatria


The difficulty defining a term to describe the movement indicated in the title of this article illustrates its heterogeneity: users, ex-patients, and survivors of Psychiatry are some of the names used by the groups who advocate for the rights of people undergoing psychiatric treatment (including the right to refuse treatment) and the creation of self-help networks, designed to be an alternative to the Mental Health system in the context of the United States. I invite the reader to understand a little about the history of this movement using the script of a documentary that has not and will never be recorded, but is narrated virtually in this text with the intention of situating the movement’s role and proposing a theoretical discussion that articulates the concepts of biosocial and biodesertion activism.

Keywords
Political activism; Patient refusal of treatment; Involuntary psychiatric treatment; Mental health; Psychiatry


La dificultad de demarcar un término que designe el movimiento indicado en el título de ese artículo es una demostración de la heterogeneidad que lo caracteriza: consumidores, expacientes, sobrevivientes de la Psiquiatría son algunas de las denominaciones utilizadas por los grupos que se organizan alrededor de la advocacy por los derechos de las personas sometidas a tratamientos psiquiátricos (incluyendo el derecho de rechazarlos) y de la construcción de redes de auto-ayuda pensadas como alternativas para el sistema de Salud Mental, en el contexto de Estados Unidos. Invito al lector a conocer un poco de esa historia por medio del guion de un documental que no fue ni será grabado, pero que se narra virtualmente en este texto con la intención de situar la actuación de ese movimiento y proponer una discusión teórica que lo articule con los conceptos de activismo biosocial y biodeserción.

Palabras clave
Activismo político; Negación del paciente al tratamiento; Tratamiento psiquiátrico involuntario; Salud mental; Psiquiatría


CENA 1: Andreza fala em um fundo branco. Veste camisa preta.

Este é o roteiro de um documentário que nunca será gravado, mas poderia ser também a transcrição de um documentário que eu apenas imaginei. Há uma história real a ser contada e alguma ficção será utilizada como recurso narrativo. Participam desta experiência pessoas que ainda vivem, outras que já morreram e algumas que nem sequer existem ou existiram. Como este documentário não foi filmado, imagine que eu o assisti e estou contando para você.

CENA 2: A câmera está apontada para uma parede vazia. Uma pessoa se aproxima e cola um cartaz na parede. Após sua saída, outra pessoa aparece e cola outro cartaz. Essa cena se repete várias vezes com pessoas entrando e saindo, colando cartazes variados de formas aleatórias. Nos cartazes constam as seguintes frases11 Allen MMP. Confronting the power of psychiatry: the psychiatric survivors’ movement, 1972-1986 [tese]. College Park (MD): Faculty of the Graduate School of the University of Maryland; 2018. Doi: https://doi.org/10.13016/M2H12VB64.
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: “Psiquiatria mata”; “Destrua o Estado terapêutico”; “Psiquiatria é tortura”; “Psiquiatras matam. Psiquiatras mentem. A Psiquiatria é genocida”; “Eletrochoque é tortura”; “Em memória de nossos irmãos e irmãs mortos(as) pela Psiquiatria”; “Das sombras para as ruas”; “Parem o choque, puxem a tomada”; “Choque nos Psiquiatras”; “Eletrochoque é tortura, não tratamento”; “Um cérebro queimado nunca é o mesmo”; “Doutores do choque, deem choques em vocês mesmos”; #PrimeiroNãoMachucar; “Nada sobre nós sem nós”; “Orgulho louco”; “Direitos Humanos: nós conhecemos, demandamos e defendemos” (tradução da autora). Enquanto os cartazes são colados, ouve-se uma voz em off.

Todas essas frases foram utilizadas em atos públicos realizados desde a década de 1970, nos Estados Unidos, por ativistas do Movimento dos Consumidores/Ex-pacientes/Sobreviventes da Psiquiatria(b(b)Esse movimento não se restringiu aos Estados Unidos, expandindo-se por outros países de língua inglesa, como Inglaterra e Canadá, além de Holanda, Japão e Suécia. Entretanto, neste trabalho, vou me concentrar no contexto estadunidense.). São frases que expressam o tom utilizado por esses ativistas em suas críticas e reivindicações em relação ao campo da Psiquiatria. A principal meta do movimento era (e continua sendo) a abolição dos tratamentos involuntários – seja através do uso de medicamentos, psicocirurgias ou eletroconvulsoterapia (ECT) – e de toda natureza coercitiva utilizada na abordagem da Psiquiatria tradicional22 Chamberlain J. The ex-patients’ movement: where we’ve been and where we’re going. J Mind Behav [Internet]. 1990 [citado 30 Nov 2021]; 11(3):323-36. Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/1991-15382-001
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. Esse é o eixo que, de certa forma, agrega uma gama de heterogeneidade presente nesse coletivo. O questionamento da legitimidade e do poder dominante da Psiquiatria partiu historicamente do ativismo como movimento social pelos Direitos Humanos, do suporte mútuo, da criação de concepções alternativas sobre a loucura e da construção de propostas terapêuticas controladas por pares33 Hall W. Psychiatric medication withdrawal: survivor perspectives and clinical practice. J Humanist Psychol. 2019; 59(5):720-9. Doi: https://doi.org/10.1177/0022167818765331.
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. Com influência da Antipsiquiatria, do Movimento Feminista, do Movimento Negro, do ativismo gay(c(c)Atualmente designado no Brasil como Movimento LGBTQIA+.) e da organização política das pessoas privadas de liberdade e das pessoas com deficiência, os ativistas desse movimento defendem, há alguns anos, o direito de não serem “pacientes” e de nomearem eles próprios suas experiências de sofrimento11 Allen MMP. Confronting the power of psychiatry: the psychiatric survivors’ movement, 1972-1986 [tese]. College Park (MD): Faculty of the Graduate School of the University of Maryland; 2018. Doi: https://doi.org/10.13016/M2H12VB64.
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CENA 3: Acompanho uma roda de conversa com dez ativistas desse movimento, estão presentes algumas de suas antigas lideranças. Todos estão sentados em círculo dentro de uma sala. Conversam sobre sua história, começando por uma explicação das diferentes terminologias do movimento.

Um deles começa dizendo que uma olhada, no decorrer da história, para as diferentes formas de nomeação utilizadas pelos grupos que compõem esse movimento nos ajuda a compreender o espectro de suas variadas abordagens. Os grupos que se autodenominavam “sobreviventes” (survivors) e “ex-internos” (ex-inmates) apresentavam uma postura mais radical, demandando uma completa abolição do sistema de Saúde Mental; o termo “ex-paciente” (ex-patient) era considerado controverso para alguns por manter uma referência ao modelo médico; já os grupos identificados como “consumidores” (consumers), “usuários” (users) e “clientes” (clients) eram considerados reformistas, já que não dispensavam completamente o papel do sistema de Saúde Mental, procurando formas de inserção, redução do estigma e ampliação de suas propostas terapêuticas22 Chamberlain J. The ex-patients’ movement: where we’ve been and where we’re going. J Mind Behav [Internet]. 1990 [citado 30 Nov 2021]; 11(3):323-36. Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/1991-15382-001
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. Outra pessoa começou a explicar que essas distintas camadas sempre estiveram presentes no movimento, estando elas intrinsecamente conectadas com a forma como os participantes encaravam a presença e a aliança com pessoas externas (ou seja, não identificadas com o lugar de consumidores/ex-pacientes/sobreviventes(d(d)Passarei a utilizar, no decorrer do texto, o termo abreviado c/e/s da Psiquiatria.)), principalmente quando eram profissionais da saúde. Nesse momento, Judy Chamberlin, uma das principais porta-vozes do movimento, toma a palavra e conta que consegue identificar pelo menos três fases em relação a esse aspecto, apesar de considerar que essas diferentes posturas existiam simultaneamente: uma primeira, em que havia o trabalho conjunto com pessoas de fora que se alinhavam à Antipsiquiatria; uma segunda, com uma forte tendência separatista de defesa pelo direito de se auto-organizarem; e uma terceira, em que a formação de alianças com outros públicos, incluindo profissionais do sistema de Saúde Mental tradicional, passou a se mostrar importante para o alcance de certas reivindicações11 Allen MMP. Confronting the power of psychiatry: the psychiatric survivors’ movement, 1972-1986 [tese]. College Park (MD): Faculty of the Graduate School of the University of Maryland; 2018. Doi: https://doi.org/10.13016/M2H12VB64.
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CENA 4: Aparecem fotos de capas de jornais, panfletos e cartas. Além de imagens de pessoas reunidas ora em pequenas salas, ora em grandes salões. A maioria, maioria mesmo, eram pessoas brancas. Em algumas fotos, vemos apenas mulheres. Em outras, vemos pessoas com cartazes e algumas sentadas em mesas de conferência. Há uma narração em off enquanto essas fotos são apresentadas.

Um espaço que conseguiu agregar essas diferenças e contribuir para a divulgação do movimento e a ampliação de seu alcance foi o jornal Madness Network News (MNN), criado em 1972. Partindo do slogan “O pessoal é político”, esse jornal publicou uma série de entrevistas, histórias orais, correspondências pessoais, registros hospitalares, poesias, material de conferências e publicações de grupos e líderes de dentro do movimento e de outros movimentos sociais com os quais se identificava. Costumava divulgar também análises que discutiam a opressão promovida pelo sistema de Saúde Mental e chegava a pessoas que não estavam conectadas diretamente com o ativismo, servindo como fonte de inspiração e suporte para aqueles que estavam mais afastados da militância. Transformar o “pessoal em político” foi uma estratégia encontrada pelo movimento para desafiar a hegemonia da Psiquiatria e o que ele considerava como a sua tendência em isolar os indivíduos e isolar, nos indivíduos, a fonte dos problemas e o destino das intervenções. Por meio da coletivização das experiências, da denúncia de maus-tratos sofridos nas instituições psiquiátricas e da busca pela formulação de outras explicações para seus sofrimentos, os ativistas tentavam ampliar o debate para além do domínio médico, dirigindo os holofotes para aqueles considerados silenciados e marginalizados pelos saberes e práticas biomédicas. Pela ação direta, com falas públicas, teatro de guerrilha e panfletagem realizadas em encontros que reuniam psiquiatras, os ativistas procuravam confrontar diretamente os argumentos dessa disciplina. Após pressões e confusões, alguns chegaram a conseguir espaços na programação de conferências da Associação Americana de Psiquiatria (APA). O intuito dessas ações era dar visibilidade a uma contranarrativa em relação ao discurso psiquiátrico, questionar a legitimidade das práticas biomédicas e disputar a credibilidade no tocante à produção de conhecimento e à oferta de intervenções, partindo de suas experiências em primeira pessoa como fundamento para seus posicionamentos11 Allen MMP. Confronting the power of psychiatry: the psychiatric survivors’ movement, 1972-1986 [tese]. College Park (MD): Faculty of the Graduate School of the University of Maryland; 2018. Doi: https://doi.org/10.13016/M2H12VB64.
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. Com a criação de serviços controlados por pares, baseados na proposta de ajuda mútua, os ativistas levavam às últimas consequências a ideia de que eram “experts por experiência”44 Adame AL. There needs to be a place in society for madness: the psychiatric survivor movement and new directions in mental health care. J Humanist Psychol. 2014; 54(4):456-75. Doi: https://doi.org/10.1177/0022167813510207.
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CENA 5: Gravações antigas de Steven Epstein passeando pela Universidade da Califórnia, em San Diego, na década de 1990. Imagens de ativistas do movimento HIV/Aids dos EUA e dos c/e/s da Psiquiatria. Esses registros se conectam com uma narração em off.

Um importante estudioso, que explorou as disputas em torno da construção de credibilidade dentro de um ativismo no campo da saúde, foi Steven Epstein. Interessado em identificar como o ativismo pode transformar a compreensão do que conta como credibilidade na pesquisa científica, ele se debruçou, em um artigo publicado em 1995, sobre o cenário do ativismo HIV/Aids nos EUA e nas estratégias utilizadas por esse movimento para ganhar legitimidade dentro do discurso científico, a fim de participar das discussões acerca do desenvolvimento de tratamentos55 Epstein E. The construction of lay expertise: AIDS activism and the forging of credibility in the reform of clinical trials. Sci Technol Hum Values. 1995; 20(4):408-37. Doi: https://doi.org/10.1177/016224399502000402.
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. Seu interesse era entender como a expertise leiga poderia gerar mudanças nas práticas epistêmicas e técnicas terapêuticas no campo da Biomedicina. As estratégias utilizadas pelos ativistas HIV/Aids para adquirirem credibilidade diferiam das usadas pelos c/e/s da Psiquiatria, principalmente quanto à relação com a linguagem e a cultura médica. Enquanto os primeiros escolheram se apropriar da gramática médica e se inserirem em sua cultura para ganhar legitimidade e serem ouvidos; os segundos, principalmente os mais radicais e ligados à militância, rechaçavam o discurso biomédico, reivindicando o lugar da experiência pessoal como fundamento de suas expertises e localizando no corpo social as raízes dos processos de sofrimento11 Allen MMP. Confronting the power of psychiatry: the psychiatric survivors’ movement, 1972-1986 [tese]. College Park (MD): Faculty of the Graduate School of the University of Maryland; 2018. Doi: https://doi.org/10.13016/M2H12VB64.
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. Esse modo de se relacionar com os argumentos do campo biomédico coloca questões específicas sobre a aproximação desse movimento com as discussões em torno dos conceitos de biossociabilidade e bioidentidade dentro dos estudos sobre os ativismos biossociais.

CENA 6: Aparece na tela uma videochamada entre Andreza, o antropólogo Guilherme Valle e o sociólogo Nikolas Rose.

O pesquisador Guilherme Valle começa explicando que os ativismos biossociais são espaços onde variados tipos de agentes se engajam em contestações, conflitos e negociações envolvendo as noções de saúde, de doença, de vida e de morte66 Valle CG. Biosocial activism, identities and citizenship: making up ‘people living with HIV and AIDS’ in Brazil. Vibrant (Brasília). 2015; 12(2):27-70. Doi: https://doi.org/10.1590/1809-43412015v12n2p027.
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. São, portanto, lugares privilegiados para investigarmos como novas identidades e sociabilidades são construídas mediante condições biológicas, em uma espécie de configuração daquilo que o antropólogo Paul Rabinow, estudando o campo da genética, chamou de biossociabilidade77 Rabinow P. Artificialidade e ilustração da sociobiologia à bio-sociabilidade. Estud CEBRAP [Internet]. 1991 [citado 30 Nov 2021]; 31:79-93. Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/artificialidade-e-ilustracao-da-sociobiologia-bio-sociabilidade
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. Nikolas Rose liga o microfone nesse momento e complementa dizendo que o que acontece na biossociabilidade é um status somático comum que se torna o eixo por onde se estabelece uma série de relações entre os sujeitos, embasando projetos de cidadania e modelando formas e distinções entre os cidadãos. O resultado disso seria uma espécie de “biologização da política” e a configuração de uma “cidadania biológica”, que forjam os modos como as pessoas compreendem a si mesmas e se relacionam consigo e com os outros88 Rose N. A política da própria vida: Biomedicina, poder e subjetividade no Século XXI. São Paulo: Paulus; 2013.. Guilherme Valle retoma a palavra e demonstra sua concordância com Nikolas Rose, enfatizando que a responsabilidade das práticas biomédicas e suas tecnologias na produção de identidades acontece não só nos contextos institucionais, mas também no campo da intimidade e da convivência social. Atrevo-me, então, a entrar na conversa e tecer algumas considerações sobre o Movimento dos c/e/s da Psiquiatria. Destaco que, para mim, o que parece interessante nesse ativismo, apesar de sua manifesta oposição ao discurso biomédico, é que ele não deixa de se mobilizar em torno das práticas e tecnologias desse domínio. Nesse contexto, o que as pessoas possuem em comum não é um traço biológico, mas sim a recusa a essa identificação e às práticas e tecnologias que lhes são correspondentes. A falta de uma materialidade, que localize de forma concreta no corpo a etiologia do sofrimento mental, produz ainda mais o afrouxamento dessa conexão. Mas o que esse domínio parece questionar, no início e no final das contas, é o próprio comprometimento da condição de cidadania que incide sobre os sujeitos diagnosticados pela Psiquiatria, já que essa nomeação vem, segundo eles, acompanhada de uma perda de status social e de direitos civis básicos, como o de recusar o tratamento médico, por exemplo. Para esse movimento, a “doença mental”, assim compreendida, difere das outras condições ditas biológicas justamente pela perda dos direitos e da autonomia com respaldo médico e legal11 Allen MMP. Confronting the power of psychiatry: the psychiatric survivors’ movement, 1972-1986 [tese]. College Park (MD): Faculty of the Graduate School of the University of Maryland; 2018. Doi: https://doi.org/10.13016/M2H12VB64.
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. O saber biomédico seria, então, responsável por marginalizá-los e suas tecnologias por violentar seus corpos99 Parada TC. Subjetividad y autonomía: significados y narrativas sobre la discontinuación de fármacos psiquiátricos. Salud Colect. 2018; 14(3):513-29. Doi: https://doi.org/10.18294/sc.2018.1861.
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. Recusando essas categorias, os ativistas estariam se recusando a aceitar passivamente os seus efeitos.

CENA 7: A câmera acompanha um passeio de Andreza e Ruha Benjamin pelo Aterro do Flamengo. Elas conversam. Aparecem trechos de documentários citados no diálogo.

Aproveitando uma visita da sociológa Ruha Benjamin ao Brasil, convidei-a para uma conversa acerca do movimento dos c/e/s da Psiquiatria, tentando tecer aproximações desse ativismo com o seu conceito de biodeserção. Chamo a atenção para a importância dada pelo movimento ao consentimento informado no contexto dos tratamentos psiquiátricos, principalmente em relação às intervenções medicamentosas. O apelo a esse direito se constitui como uma tentativa de oposição ao que denominam como “coercitivo”, “violento” e “opressor” nessas abordagens. A possibilidade de escolher, baseada no conhecimento dos riscos existentes nessas intervenções, não estaria normalmente garantida, principalmente quando em momentos de maior vulnerabilidade psíquica e social. De acordo com esse debate, o uso de certas categorias e tecnologias biomédicas se tornou um imperativo distribuído e disseminado na cultura, que retira do sujeito a possibilidade de se implicar em seu sofrimento e justifica o controle exercido pelo domínio médico acerca dos modos de compreender e intervir nessas experiências1010 Martins ALB. Biopsiquiatria e bioidentidade: política da subjetividade contemporânea. Psicol Soc. 2008; 20(3):331-9. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-71822008000300003.
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. Ruha1111 Benjamin R. Informed refusal: toward ‘a justice based bioethics. Sci Technol Hum Values. 2016; 41(6):1-24. Doi: https://doi.org/10.1177/0162243916656059.
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começa dizendo que a recusa informada, articulada pelo conceito de biodeserção, é o corolário do consentimento informado e oferece um espectro sobre os agenciamentos humanos diante da tecnociência. Segundo ela, esse tipo de recusa parte não apenas de uma contestação do estado das coisas, mas de uma visão propositiva sobre outros modos de ser e fazer, não se resumindo a ações isoladas individuais. Seria importante, então, prestar atenção àquilo que as recusas são capazes de produzir e não apenas e necessariamente aos fatores implicados em sua produção. Pensando nisso, lembrei de uma cena que me chamou bastante a atenção em um documentário sobre os c/e/s da Psiquiatria1212 Mackler D. Coming Drogas Psíquicas: uma reunião das mentes (ao sair de medicação psiquiátrica). Youtube [Internet]. 8 Abr 2014 [citado 2 Dez 2021]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q5EpnVdLvkU
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. O documentário acompanhava um treinamento oferecido para pessoas que gostariam de ajudar outras a interromper o uso de medicamentos. Em um dos momentos do encontro, os participantes foram divididos em trios e convidados a pensar juntos, por meio de uma chuva de ideias, em todas as práticas que os ajudavam a se sentir bem e prescindir dos medicamentos. As listas foram imensas. Muitas coisas eram simples, mas muitas eram inacessíveis para grande parte das pessoas que conheço. Percebi, com a ajuda desse documentário e de outros1313 Mackler D. Take these broken wings - healing from schizophrenia, cure without medication. Youtube [Internet]. 8 Abr 2014 [citado 2 Dez 2021]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EPfKc-TknWU
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,1414 Mackler D. Healing homes: recovery from psychosis without medication. Youtube [Internet]. 8 Abr 2014 [citado 2 Dez 2021]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JV4NTEp8S2Q
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que assisti sobre o mesmo tema, uma coisa que eu já sabia, mas não tinha ainda demorado meu olhar nela: a possibilidade de retirar e/ou não utilizar os medicamentos parece ser um privilégio de quem conta com algumas garantias e suportes, entre eles familiar, comunitário e financeiro, isto é, de quem conta com opções. Isso fica claro inclusive nas orientações prestadas por sujeitos mais experientes em relação à retirada de medicamentos: contar com uma rede de suporte e ter acesso a ferramentas que produzem bem-estar são condições básicas para conseguir realizar isso33 Hall W. Psychiatric medication withdrawal: survivor perspectives and clinical practice. J Humanist Psychol. 2019; 59(5):720-9. Doi: https://doi.org/10.1177/0022167818765331.
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. Muita coisa precisa ser mobilizada para garantir que uma pessoa que experimenta intensos sofrimentos consiga abrir mão dos medicamentos. Um olhar para a cor, o gênero e a classe social de quem consegue efetivar essa empreitada pode nos ajudar a entender como o papel dos medicamentos se atualiza nos diferentes contextos de desigualdade. Nesse momento, peço desculpas a Ruha por ter me empolgado e falado demais. Ela, gentilmente, diz que eu não me preocupasse com isso e segue falando que a recusa não é apenas um privilégio por implicar uma escolha, mas também porque sucede a oferta de algo. Desse modo, aqueles que podem recusar são aqueles que já tiveram a oportunidade de ter acesso antes. A biodeserção seria, então, uma forma particular de se relacionar com o que está posto e, ao mesmo tempo, a abertura para a postulação de outras condições. Nesse momento, afirmo que é um fato que os c/e/s da Psiquiatria concentraram grande parte de suas análises nos fatores que justificavam sua recusa, mas acaba que ela sempre esteve implicada na produção de outros contextos e verdades, não só porque engajava os sujeitos na construção ativa de alternativas, mas também porque, em um nível mais profundo, produzia e produz novos modos de subjetivação por processos de identificação e socialidade. Resgato, nesse ponto, a noção de “making up people” discutida por Ian Hacking, para quem as categorias que circulam pela história são responsáveis por instituir as possibilidades de existência com as quais os sujeitos interagem e agenciam respostas, sejam elas identificações ou contestações1515 Hacking I. Historical ontology. London: Harper University Press; 2002.. Pensando no que se configura como uma “saída do sistema de Saúde Mental”, por meio, por exemplo, da recusa às suas ofertas (como os medicamentos), é possível perceber que uma nova identidade é forjada nesse processo. Concluo nossa conversa lendo um trecho de um artigo da antropóloga Tatiana Parada99 Parada TC. Subjetividad y autonomía: significados y narrativas sobre la discontinuación de fármacos psiquiátricos. Salud Colect. 2018; 14(3):513-29. Doi: https://doi.org/10.18294/sc.2018.1861.
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em que ela diz:“esta (produção de) identidade se refere à capacidade para as pessoas de assumirem as suas diferenças subjetivas, encontrando um novo sentido sem depender do consumo de psicofármacos; uma identidade que se constrói pela aprendizagem de diversas estratégias de autoajuda e suporte social” (p. 525, tradução da autora).

CENA 8: Um texto é digitado na tela. Ouve-se o barulho do teclado enquanto as palavras são digitadas.

O movimento dos c/e/s da Psiquiatria continua ativo atualmente, mas como sinalizou Judy Chamberlin, após uma ruptura interna em meados da década de 1980, provocada por dissensos em relação, entre outras coisas, à política de financiamento dos grupos de autoajuda e à formação de uma organização nacional, o ativismo assumiu um caráter mais “temperado”, dialogando mais estreitamente com o sistema de Saúde Mental na tentativa de produzir mudanças também a partir de dentro da estrutura11 Allen MMP. Confronting the power of psychiatry: the psychiatric survivors’ movement, 1972-1986 [tese]. College Park (MD): Faculty of the Graduate School of the University of Maryland; 2018. Doi: https://doi.org/10.13016/M2H12VB64.
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CENA 9: Sobem os créditos.

  • (b)
    Esse movimento não se restringiu aos Estados Unidos, expandindo-se por outros países de língua inglesa, como Inglaterra e Canadá, além de Holanda, Japão e Suécia. Entretanto, neste trabalho, vou me concentrar no contexto estadunidense.
  • (c)
    Atualmente designado no Brasil como Movimento LGBTQIA+.
  • (d)
    Passarei a utilizar, no decorrer do texto, o termo abreviado c/e/s da Psiquiatria.

Agradecimento

Este texto foi inicialmente produzido para ser o trabalho final da disciplina “Medicamentos, ciências e ativismos” ministrada, em 2021, pela Prof. Dra. Rosana Castro no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do IMS/UERJ. Agradeço aos colegas de turma pelas riquíssimas trocas e à professora Rosana pelas contribuições e generosa leitura deste resultado final. Agradeço também ao meu orientador Prof. Dr. Martinho Silva pela aposta no texto e pelo incentivo à sua publicação.

  • Santos AS. Um roteiro virtual sobre ativismo biossocial e biodeserção no Movimento dos Consumidores/Ex-pacientes/Sobreviventes da Psiquiatria. Interface (Botucatu). 2023; 27: e210814 https://doi.org/10.1590/interface.210814
  • Financiamento

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

Referências

  • 1
    Allen MMP. Confronting the power of psychiatry: the psychiatric survivors’ movement, 1972-1986 [tese]. College Park (MD): Faculty of the Graduate School of the University of Maryland; 2018. Doi: https://doi.org/10.13016/M2H12VB64.
    » https://doi.org/10.13016/M2H12VB64
  • 2
    Chamberlain J. The ex-patients’ movement: where we’ve been and where we’re going. J Mind Behav [Internet]. 1990 [citado 30 Nov 2021]; 11(3):323-36. Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/1991-15382-001
    » https://psycnet.apa.org/record/1991-15382-001
  • 3
    Hall W. Psychiatric medication withdrawal: survivor perspectives and clinical practice. J Humanist Psychol. 2019; 59(5):720-9. Doi: https://doi.org/10.1177/0022167818765331.
    » https://doi.org/10.1177/0022167818765331
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Jan 2022
  • Aceito
    29 Jul 2022
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