Quando ela olhou a pandemia: uma fotografia, incontáveis filmes

Cuando ella miró la pandemia: una fotografía, innumerables películas

Arlinda B. Moreno Sobre o autor

Resumo

O impacto sensorial e afetivo de uma fotografia em uma matéria jornalística pode mitigar a mensagem da lide e até mesmo o conteúdo da reportagem como um todo, com potencial para conduzir o leitor a um sem-número de histórias paralelas. Essas histórias podem se imbricar no tema explorado pela mídia, mas também podem se expandir para várias outras questões, memórias, eventos, autores, desvelando para o leitor outras camadas situacionais que transcendem a esfera da simples leitura conduzindo à reflexividade. Este texto tem, portanto, a pretensão de refletir detidamente acerca das iniquidades em saúde, em especial em relação à distribuição de vacinas contra a Covid-19 no planeta, por meio de uma imagem publicada pela France Presse em uma matéria sobre um dia com recorde de aplicação de doses dessa vacina na Índia.

Fotografia; Iniquidade em saúde; Atenção à saúde; Covid-19; Sindemia

Resumen

El impacto sensorial y afectivo de una fotografía en un artículo periodístico puede mitigar el mensaje de la lid e incluso el contenido del reportaje como un todo, con potencial para conducir al lector a un sinnúmero de historias paralelas. Esas historias pueden adentrar en el tema explorado por los medios, pero también pueden expandirse hacia otras preguntas, memorias, eventos y autores, revelando al lector otras capas situacionales que trascienden la esfera de la simple lectura, conduciendo a la reflexión. Por lo tanto, este texto tiene la pretensión de reflexionar detenidamente sobre las inequidades en salud, especialmente en lo que se refiere a la distribución de vacunas contra la Covid-19 en el planeta, a partir de una imagen publicada por France Presse en un artículo sobre un día con récord de aplicación de dosis de la vacuna contra la Covid-19 en la India.

Fotografía; Inequidad en salud; Atención de la salud; Covid-19; Sindemia

Quando ela olhou a pandemia: uma fotografia, incontáveis filmes

É provável que a pandemia de Covid-19 venha a ser o maior acontecimento do século XXI – talvez seja precoce prever, dado que ainda não foi alcançado o primeiro quarto do século. Não existe nenhum precedente acerca de um evento de saúde (que se tornou ambiental, social, econômico, para dizer o mínimo) tão abrangente, devastador e de comportamento imprevisível (vírus, variantes, velocidade de transmissão etc.) na era pós-industrial da humanidade.

Nesta segunda década do século XXI, momento em que o planeta acolhe cerca de oito bilhões de habitantes, tudo leva a crer que o mundo encolheu. Que as fronteiras são a cada dia mais fluidas e as distâncias são econômicas e não geográficas. Que, de fato, um bater de asas de borboleta que acaba de acontecer na cidade de Cochim, Querala, Índia pode influenciar o clima em Xique-Xique, Bahia, Brasil. A natureza, da qual todos nós somos parte componente e indissociável, sem primazia, superioridade ou título de proprietários – é preciso que entendamos isso e comunguemos disso –, transpassa-nos com eventos, notícias, acontecimentos a cada batida de qualquer coração. Somos um todo integrado e caoticamente ordenado. Mas alguns humanos teimam em acreditar que são a espécie animada capaz de dominar, subjugar e programar essa já dada (se não fosse perturbada pelo humano) caótica ordenação.

Um recado emblemático, delicado e sutil dessa natureza se deu no dia 28 de agosto de 2021, em uma matéria da France Presse sobre a vacinação em massa na Índia, ecoada pelo portal G1, informando que cerca de dez milhões de pessoas haviam sido vacinadas em apenas um dia no país – uma cifra que parece grandiosa, mas corresponde a menos de 1% dos cerca de 1,38 bilhão de habitantes da terra do divino rio Ganges. Porém, a mensagem principal e mote deste escrito se detém na magnética foto estampada na notícia, que retrata uma senhora sendo vacinada em Amritsar, no estado de Punjab, na Índia, cidade reconhecida como o centro da religião Sikh. É lá onde se deita, rodeado por um grande lago artificial (um Sarovar) ou o próprio Amritsar (Lago de Água Benta ou Néctar Imortal), o Templo Dourado dessa devoção que congrega cerca de 27 milhões de adeptos. A foto bbPor respeito aos direitos autorais sobre reprodução de imagens, indico aqui tão somente o link onde a foto pode ser visualizada: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/08/28/india-vacina-10-milhoes-de-pessoas-contra-a-covid-19-em-apenas-um-dia.ghtml é, indubitavelmente, uma obra de rara beleza do fotógrafo Narinder Nanu, da Agence France-Presse (AFP)11. France Presse. Índia vacina 10 milhões de pessoas contra a Covid-19 em apenas um dia [Internet]. Rio de Janeiro: Globo; 2021 [citado 1 Nov 2021]. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/08/28/india-vacina-10-milhoes-de-pessoas-contra-a-covid-19-em-apenas-um-dia.ghtml
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Os olhos experientes, cativantes e imantados da senhora que ilustra a matéria são o grande destaque e a fonte de todo o simbolismo que apenas uma imagem pode revelar. Neles, mora um lago de água benta, um néctar imortal, um universo na casca de noz (as pálpebras cansadas da anciã) cujo miolo são as infinitas experiências de toda uma vida. Sua expressão transmite esperança, desespero, passado, futuro, dúvida, certeza, ceticismo, fé, desejo de sobrevivência, certeza de finitude. Sentimentos lidos de maneira tão clara e familiar que nos empurram a entrar em choque com eles mesmos em nós. Os olhos da senhora indiana são os olhos do caos ordenado a nos informar que eles mesmos – esses olhos – estão em muitas faces de outros humanos (ou não), simbolizando nosso período pandêmico.

A foto parece ter sido tirada em um posto de vacinação improvisado (ou mesmo em um atendimento domiciliar) onde objetos da vida cotidiana descansam sobre uma mesa – dentre eles muitos parecem ser medicamentos –, que não sabemos se é de trabalho ou de refeição, mas tanto faz. A senhora está ladeada por rostos e mãos femininos que parecem ser de trabalhadoras da saúde. Um smartphone na mão de alguém que pode ser uma dessas trabalhadoras, à direita da senhora, é o contraponto da mão com a seringa e a agulha que instilaram a vacina no braço esquerdo da senhora. Como que a realizar um contrapeso, uma outra mão apoia o (ou se apoia no) braço direito da senhora. Ainda compondo o conjunto de mulheres da cena, ao fundo, à direita da senhora com os olhos do mundo, está sentada outra mulher (a única que aparece utilizando máscara de proteção individual) que, com o olhar baixo, induz o espectador à sua visão de um smartphone ou mesmo a uma linha de visão alheia à cena11. France Presse. Índia vacina 10 milhões de pessoas contra a Covid-19 em apenas um dia [Internet]. Rio de Janeiro: Globo; 2021 [citado 1 Nov 2021]. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/08/28/india-vacina-10-milhoes-de-pessoas-contra-a-covid-19-em-apenas-um-dia.ghtml
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E eu, aqui como espectadora, me lembro da música de Adriana Calcanhotto e pergunto: “Por que será que ela [a senhora com os olhos do mundo] tem os olhos de onda?”22. Calcanhotto A. Olhos de onda [CD-ROM]. Nova York: Sony Music Entertainment; c2014. 1 CD-ROM: 4 3/4 in. . Sim, ela tem esses olhos de onda; de infinitas ondas. Olhos que me fazem pensar em quantas ondas e marés já chegaram e se despediram atravessando os olhos dessa senhora. Quantas eram bebês paridos em casas de pobres ou de marajás nos centros urbanos, nos campos ou nas favelas indianas, africanas, brasileiras, colombianas, mexicanas, de alhures? Quantas dessas ondas encharcaram corpos de pessoas que se despediam da vida rumo à cremação ou ao enterro? Quantas delas celebravam a vida e seus ciclos (infância, adolescência, adultez, velhice)? Quantas choravam seus mortos? Quantas se marejavam por nascimentos? Quantas diziam bem-vindos ou adeus aos seus amados, se despedindo ou se aproximando? Ou ainda quantas ondas se jubilavam e se contentavam com o retorno de seus amantes, de seus amados? São os olhos de onda, os olhos de ressaca que trazem tudo para dentro de si ccA expressão “Olhos de Onda” é uma alusão de Calcanhotto à obra “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, segundo a qual, os olhos de Capitu, protagonista do romance, “Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia nos dias de ressaca”. .

Dez milhões de doses de vacinas aplicadas em um dia. Essa era a manchete... Nada na matéria se referia ao olhar da senhora que ilustrava o texto. Talvez porque no fundo, onde mora o terror da pandemia, todos soubéssemos em ondas que andávamos bêbados equilibristas entre a suposta (aposta?) salvação pela imunização e a contaminação por falta de sabão para uma higiene mínima que fosse. De fato, bambeávamos mesmo entre fronteiras que esbanjavam vacinas e outras que nem sequer as tinham. As iniquidades de todo o mundo estampada nos olhos dessa senhora. Países ricos que atribuíam à volição e ao direito de escolha o ato de se vacinar contra as complicações do SarsCOV-2 enquanto outros não conseguiam acessar vacinas, medicamentos ou insumos básicos que minimizassem as mazelas da Covid-19.

Cerca de um ano e dez meses após o início da pandemia, o primeiro dia do mês de novembro de 2021, também conhecido por ser a véspera do dia de finados no Brasil, e em alguns países que guardam esse dia em homenagem àqueles que morreram, contava mais de cinco milhões de mortes por Covid-19 que necessitavam ser reverenciadas ao redor do planeta. Nos olhos da senhora da foto, no céu do seu brilho e na nuvem de sua dor, todas as mortes se mostram55. Google Notícias. Coronavirus (Covid-19) [Internet]. São Paulo: Google; 2021 [citado 1 Nov 2021]. Disponível em: https://news.google.com/covid19/map?hl=pt-BR&gl=BR&ceid=BR%3Apt-419&state=4
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Em um planeta com cerca de 7,9 bilhões de pessoas, segundo informações do site Our World in Data, o mês de dezembro de 2021 iniciou-se também com cerca de 8,2 bilhões de doses de vacina contra a Covid-19 administradas em todo o mundo. Nessa cifra se tem que 55,2% da população mundial haviam recebido pelo menos uma dose da vacina; eram, então, cerca de 33,9 milhões de doses aplicadas a cada dia. Mas a iniquidade em saúde revela-se quando entre os países de baixa renda somente 6,3% das pessoas haviam recebido pelo menos uma dose. Em especial nos países africanos, apenas 11,1% das pessoas receberam vacina e, dessas, aproximadamente 7,3% estavam totalmente vacinadas. Na Tabela 1 , são apresentados os percentuais da população de cada continente que havia recebido uma dose da vacina ou apresentava esquema vacinal completo em novembro de 202166. Our World in Data. Coronavirus (Covid-19) Vaccinations [Internet]. Oxford: Our World in Data; 2021 [citado 1 Dez 2021]. Disponível em: https://ourworldindata.org/covid-vaccinations
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. Esses números no continente africano são, para dizer o mínimo, uma denúncia inconteste da iniquidade enfrentada por sua população.

Tabela 1
Distribuição percentual de pessoas vacinadas contra a Covid-19, segundo continente (30/11/2021)

E tudo indicava que essa situação escorchante se prolongaria. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estimava que até o final de 2021 apenas cinco dos 54 países africanos atingiriam a meta de 40% de seus habitantes com esquema vacinal completo contra a Covid-19. O déficit de vacinas nesse continente era de cerca de 275 milhões de doses e somente três países (Ilhas Seychelles, Maurício e Marrocos) alcançariam a meta de 40% de pessoas completamente vacinadas (esses países contam com cerca de 36,5 milhões de pessoas). Mas isso não é tudo, os insumos também são escassos e a tempestade perfeita poderia trazer também um déficit significativo de seringas que teria de ser enfrentado. Por outro lado, como era infelizmente de se esperar, mais de 70% dos países de alta renda tinham 40% ou mais de sua população completamente vacinada77. G1. Só 5 países africanos devem conseguir vacinar 40% de suas populações contra a Covid-19 até o fim do ano, prevê OMS [Internet]. Rio de Janeiro: Globo; 2021 [citado 1 Nov 2021]. Disponível em: https://g1.globo.com/saude/coronavirus/vacinas/noticia/2021/10/28/so-5-paises-africanos-devem-conseguir-vacinar-40percent-de-suas-populacoes-contra-a-covid-19-ate-o-fim-do-ano-preve-oms.ghtml
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No Brasil, um estudo da Fundação Oswaldo Cruz88. Fiocruz. MonitoraCovid-19. Nota técnica 23 - desigualdades na vacinação contra Covid-19 [Internet]. Rio de Janeiro: ICICT/Fiocruz; 2021 [citado 23 Dez 2021]. Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/nota_tecnica_23.pdf
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também denunciava as desigualdades regionais na vacinação contra a Covid-19, a despeito dos dados apontarem que, em 8 de dezembro de 2021, 74,95% da população mundial haviam recebido a primeira dose da vacina contra a Covid-19 e 64,78% dos brasileiros haviam concluído o esquema vacinal, além de 9,04% já terem recebido uma dose de reforço da vacina, de acordo com os critérios de intercambialidade do imunizante ( Tabela 2 ).

Tabela 2
Distribuição da taxa de cobertura vacinal contra a Covid-19, segundo macrorregião do Brasil (08/12/2021)

Esse estudo da Fiocruz acrescentou que, dos 5.570 municípios brasileiros, menos de 900 (cerca de 16%) alcançaram mais de 80% de sua população com o esquema vacinal completo, e as cidades com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) eram aquelas que apresentavam as menores taxas de cobertura vacinal. Do ponto de vista dos estados, Acre, Amazonas, Amapá, Maranhão, Pará, Roraima e Tocantins contabilizavam apenas cerca de 7% de seus municípios com coberturas vacinais acima de 80% para a primeira dose. Além disso, nenhum município nesses estados alcançou percentual superior a 80% para a segunda dose da vacina contra a Covid-1988. Fiocruz. MonitoraCovid-19. Nota técnica 23 - desigualdades na vacinação contra Covid-19 [Internet]. Rio de Janeiro: ICICT/Fiocruz; 2021 [citado 23 Dez 2021]. Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/nota_tecnica_23.pdf
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Portanto, as iniquidades se revelam nos mais variados contextos e no mundo que encolheu, sendo uma denúncia de que os de maior renda esquecem que não há fronteiras para o vírus e a pandemia (como a própria palavra indica) refere-se a todo o planeta.

Durante a 76ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), ocorrida em setembro de 2021, a primeira-ministra de Barbados, Mia Amor Mottley, fez a seguinte declaração, relembrando a letra de música escrita por Bob Marley, Who will get up and stand up?

Quem se levantará em nome de todos aqueles que morreram durante esta terrível pandemia? São milhões. Quem se levantará em nome de todos aqueles que morreram por causa da crise climática? Quantas mais variantes de Covid-19 devem chegar, antes que um plano de ação mundial de vacinação seja implementado? Quantas mais mortes devem ocorrer antes que 1,7 bilhão de vacinas em excesso na posse dos países avançados do mundo sejam compartilhadas com aqueles que simplesmente não têm acesso? Temos os meios para dar a cada criança deste planeta um comprimido. E temos os meios para dar a cada adulto uma vacina. E temos os meios para investir na proteção dos mais vulneráveis em nosso planeta contra uma mudança no clima. Mas optamos por não fazê-lo. Não é porque não temos o suficiente, é porque não temos a vontade de distribuir o que temos99. Chade J. Antítese de Bolsonaro, primeira-ministra cita Bob Marley e chacoalha a ONU [Internet]. São Paulo: Notícias Uol; 2021 [citado 7 Dez 2021]. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/09/25/antitese-de-bolsonaro-primeira-ministra-cita-bob-marley-e-chacoalha-a-onu.htm
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Vale lembrar que o fato de a África do Sul ter sido o primeiro país a sequenciar e informar à OMS a existência de uma nova variante do SarsCOV-2, atualmente conhecida por variante Ômicron, ao invés de promover reconhecimento e agradecimento ao país e a suas autoridades sanitárias, fomentou um isolamento ainda maior do país com fechamento de fronteiras aos países sul-africanos e imediata recomendação de estabelecimento de barreiras sanitárias, por parte de inúmeros governos ao redor do planeta, antes mesmo de se ter ou não indicativos de que a nova variante teria, de fato, surgido na África do Sul1010. Charleaux JP. Como a reação à variante ômicron impacta a África do Sul [Internet]. São Paulo: Nexo Jornal; 2021 [citado 7 Dez 2021]. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/11/29/Como-a-rea%C3%A7%C3%A3o-%C3%A0-variante-%C3%B4micron-impacta-a-%C3%81frica-do-Sul
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Tudo isso me leva à necropolítica, conceito cunhado por Achile Mbembe1111. Mbembe A. Necropolítica. Art Ens [Internet]. 2016 [citado 1 Nov 2021]; (32):122-51. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169
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, que grassa como infinita nuvem de chumbo sobre a África. E os olhos de onda da senhora da foto observam no além-mar os corpos caídos de seus irmãos negros. O pontiagudo Chifre da África não fura o olhar transoceânico da senhora de Punjab. Os humanos se reconhecem ao longe, no extramar, no supramar; os olhos de onda dessa senhora vagueiam nas ondas do Pacífico a se solidarizar com seus vizinhos esquecidos da terra. E, desafortunadamente, não é apenas na África que necropolítica empala as vidas consideradas descartáveis pelo capitalismo desenfreado. Esse é o martírio de inúmeros países classificados como economias de renda média-baixa.

Não se pode esquecer que Mbembe1111. Mbembe A. Necropolítica. Art Ens [Internet]. 2016 [citado 1 Nov 2021]; (32):122-51. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169
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, em seu ensaio sobre necropolítica:

[...] pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder1111. Mbembe A. Necropolítica. Art Ens [Internet]. 2016 [citado 1 Nov 2021]; (32):122-51. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169
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. (p. 123)

Por isso, não me parece um engano fazer coro ao que argumenta Mbembe1111. Mbembe A. Necropolítica. Art Ens [Internet]. 2016 [citado 1 Nov 2021]; (32):122-51. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169
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[...] que as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte [necropolítica]reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror. [E demonstra] que a noção de biopoder é insuficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte. [Propondo, ainda] a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de “mundos de morte” , [grifo meu] formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de “mortos-vivos”. [E esboça] algumas das topografias reprimidas de crueldade (fazenda e colônia, em particular) e sugeriu que, sob o necropoder, as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, martírio e liberdade desaparecem1111. Mbembe A. Necropolítica. Art Ens [Internet]. 2016 [citado 1 Nov 2021]; (32):122-51. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169
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. (p. 146)

Nesse sentido, vem à tona o conceito de sindemia proposto por Singer, que alguns autores têm abraçado e a OMS, apoiado, como sendo um termo que pode proporcionar algumas facetas importantes para pensar questões e intervenções de enfrentamento da Covid-19. Codeço e Coelho1212. 12. Codeço CT, Coelho FC. Redes: um olhar sistêmico para a epidemiologia de doenças transmissíveis. Cienc Saude Colet. 2008; 13(6):1767-74. doi: 10.1590/S1413-81232008000600011.
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, em uma tentativa de aclarar o termo, declaram que:

Uma sindemia é definida como a interação entre doenças ou agravos à saúde em populações, que magnificam os efeitos deletérios umas das outras. Exemplos de sindemias são “uso de drogas – violência – aids”; “aids – outras DSTs”; “HIV – tuberculose”. Estas doenças interagem por diversos motivos, seja porque uma doença aumente a susceptibilidade à outra (como é o caso de sífilis e HIV); ou um agravo (violência) modifica o ambiente social (apoio social) no qual a doença infecciosa se dissemina1212. 12. Codeço CT, Coelho FC. Redes: um olhar sistêmico para a epidemiologia de doenças transmissíveis. Cienc Saude Colet. 2008; 13(6):1767-74. doi: 10.1590/S1413-81232008000600011.
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. (p. 1778)

Dito de outra forma, uma sindemia na pandemia de Covid-19 pode ser detectada quando ocorre o imbricamento de diversos fatores concomitantes, como ausência de (ou negligências em) políticas públicas, escassez de insumos básicos como artigos de higiene e limpeza e/ou equipamentos de proteção individual, insegurança alimentar, desemprego, dificuldade de acesso a equipamentos de saúde, medicamentos e vacinas.

Esse conceito é útil, portanto, para abordar o conjunto de fatores que promove efeitos deletérios e não apenas a doença ou o agravo de saúde de maneira isolada. Como afirmaram Singer et al .1313. Singer M, Bulled N, Ostrach B, Mendenhall E. Syndemics and the biosocial conception of health. Lancet. 2017; 389(10072):941-50. doi: 10.1016/S0140-6736(17)30003-X.
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Especificamente, uma abordagem sindêmica examina por que certas doenças se agrupam (isto é, múltiplas doenças que afetam indivíduos e grupos); os caminhos pelos quais elas interagem biologicamente nos indivíduos e dentro das populações e, assim, multiplicam sua carga global de doença e as maneiras pelas quais os ambientes sociais, especialmente as condições de iniquidade e injustiça social, contribuem para o agrupamento e a interação da doença, bem como para a vulnerabilização1313. Singer M, Bulled N, Ostrach B, Mendenhall E. Syndemics and the biosocial conception of health. Lancet. 2017; 389(10072):941-50. doi: 10.1016/S0140-6736(17)30003-X.
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. (p. 941, tradução da autora)

Ou ainda, no dizer de Bottallo1414. Bottallo A. Combinação de Covid-19 e doenças crônicas cria “sindemia global”, sugere estudo [Internet]. São Paulo: Folha de São Paulo; 2020 [citado 2 Nov 2021]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/10/combinacao-de-covid-19-e-doencas-cronicas-cria-sindemia-global-sugere-estudo.shtml
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A natureza sindêmica da ameaça que enfrentamos exige não apenas tratar cada aflição, mas também abordar urgentemente as desigualdades sociais subjacentes que as afetam, ou seja, a pobreza, a moradia, a educação e a raça, que são fatores determinantes poderosos da saúde1414. Bottallo A. Combinação de Covid-19 e doenças crônicas cria “sindemia global”, sugere estudo [Internet]. São Paulo: Folha de São Paulo; 2020 [citado 2 Nov 2021]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/10/combinacao-de-covid-19-e-doencas-cronicas-cria-sindemia-global-sugere-estudo.shtml
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Tudo isso está desenhado no olhar da senhora com os olhos do mundo. As iniquidades, a multidão de vulnerabilizados sociais, os impiedosos senhores do dinheiro do mundo, as injustiças dos governantes, o egoísmo dos proprietários de umbigos sem par, donos da certeza de antolhos de que são os únicos merecedores das benesses do planeta. Falta a alteridade, falta a hospitalidade, falta receber o estrangeiro e falar a sua língua. Sim... são olhos acolhedores da senhora de Punjab que me remetem a encerrar este texto com a noção de hospitalidade descrita por Derrida1515. Derrida J, Dufourmantelle A. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo: Escuta; 2003.:

A questão da hospitalidade começa aqui: devemos pedir ao estrangeiro que nos compreenda, que fale nossa língua, em todos os sentidos do termo, em todas as extensões possíveis, antes e a fim de poder acolhê-lo entre nós? Se ele já falasse a nossa língua, com tudo o que isso implica, se nós já compartilhássemos tudo o que se compartilha com uma língua, o estrangeiro continuaria sendo um estrangeiro e dir-se-ia, a propósito dele, em asilo e em hospitalidade? É este paradoxo que vamos precisar1515. Derrida J, Dufourmantelle A. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo: Escuta; 2003. . (p. 15)

É necessário, portanto, extrapolar as fronteiras das linguagens encapsuladas e acolher o estrangeiro. É necessário enfrentar o paradoxo do respeito às idiossincrasias, à cultura, às etnias, escutar a língua do estrangeiro e, no exercício da alteridade, exercer uma hospitalidade incondicional. Chegamos a um limite planetário. Nenhum país, Estado ou Nação, cidade, bairro, residência ou pessoa é uma cápsula blindada contra os perigos ou rodeada de segurança. Os olhos cansados e plenos de mensagens da senhora com os olhos do mundo me ensinam a similitude da diferença ao passo que denunciam a indiferença dos que não se reconhecem como semelhantes.

Obrigada, senhora com os olhos do mundo. Obrigada, Narinder Nanu.

Agradecimentos

Especialmente à sensibilidade daqueles que fotografam almas. Meu muito obrigada a Narinder Nanu e a todas as vítimas diretas ou indiretas da Covid-19 por me proporcionarem esta reflexão.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Dez 2021
  • Aceito
    09 Jan 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br