As “mães de micro” e “os cuidados” na epidemia de Zika vírus

The “Mães de micro” and the “care” within Zika Virus Infection epidemic

Las “Mães de micro” y el “cuidado” en la epidemia de infección por el virus Zika

Raul de Paiva Santos Sobre o autor
2020

O livro “micro: contribuições da Antropologia”, organizado por Soraya Fleischer e Flávia Lima, foi publicado em 2020. As organizadoras e as autoras dos capítulos nos apresentam experiências de pessoas atingidas pela epidemia do vírus Zika a partir de uma pesquisa etnográfica rica, diversa e política. Essa epidemia atinge o Nordeste do Brasil a partir de 2015 e afeta famílias, principalmente mães, que passam a conviver com e a cuidar de crianças diagnosticadas com a Síndrome Congênita do Vírus Zika (SCVZ)11. Fleischer S. Introdução. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 17-36. .

Cumpre apontar que “mães de micro” foi a denominação escolhida e adotada pelas mães e principais cuidadoras das “crianças com micro”. O termo “micro”, inicialmente vinculado ao pequeno tamanho da cabeça de crianças, é usado politicamente pelas mães para nomear suas experiências diversas com o cuidado com a criança, com o adoecimento crônico, com a deficiência e com a Biomedicina11. Fleischer S. Introdução. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 17-36. .

No transcorrer da pesquisa, o termo “micro” adquire tom polissêmico: ao mesmo tempo que tem a ver com vírus, epidemia e síndrome, também enfatiza a experiência das crianças e representa um modo simples e direto de as mães e os familiares falarem sobre sua situação de vida. A escolha do termo “micro” para intitular o livro é uma escolha política, na medida em que o intuito da obra é de mostrar que as experiências com a “micro” são complexas e não têm nada de pequenas11. Fleischer S. Introdução. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 17-36. .

A publicação resulta de um criterioso trabalho coletivo, que se inicia a partir de planejamentos e de angariamento de recursos para realizar a pesquisa. Em seguida da aprovação do projeto inicial, foram iniciadas as visitas in loco , com três interlocutoras que responderam ao convite de pesquisa enviado por cartabbO contato das mães foi possível a partir de informações encontradas em um site, o “Cabeça e coração”, sobre elas e suas crianças. O site foi criado para angariar doações para as famílias afetadas pela epidemia na época. No momento de escrita da resenha, o site original não pôde ser encontrado, no entanto, há uma página no Facebook da iniciativa, disponível em: https://www.facebook.com/projetocabecaecoracao . O campo etnográfico foi realizado em Recife, PE, de 2016 a 201911. Fleischer S. Introdução. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 17-36. .

As primeiras visitas foram feitas por três pesquisadoras em 2016. Depois, foi planejada a realização de uma coorte qualitativa pensando em um convívio mais próximo às famílias, de modo a acompanhá-las conforme as crianças iam envelhecendo e novas realidades surgiam. A partir das viagens de campo até Recife, foram produzidos inúmeros diários de campo, que foram lidos por algumas autoras dos capítulos que não estiveram in loco , o que permitiu uma aproximação das pesquisadoras que estavam em Brasília, DF, com as que estavam em Recife, PE, e que fosse melhor compreendida as diversas realidades das mães11. Fleischer S. Introdução. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 17-36. .

Para a equipe de pesquisa, havia um desejo de divulgar para um público maior, ser mais acessível e escrever para além da Academia. Com intuito de ampliar a divulgação das histórias e experiências, um exercício de escrita foi proposto às pesquisadoras: construir micro-histórias de duas páginas. As micro-histórias também foram enviadas às mães em Recife. O exercício de escrita e reescrita de histórias, as reflexões, as críticas e a construção conjunta são considerados na obra como “processo didático, reflexivo e político” (p. 28)11. Fleischer S. Introdução. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 17-36. .

Com a circulação das micro-histórias, retorno dos leitores e maior confiança nos textos, a equipe pensou em organizar o livro, que é subdividido pelas autoras em 11 capítulos: “Mulheres”, “Homens”, “Crianças”, “Doutores”, “Medicamentos”, “Escolas”, “Transportes”, “Dinheiros”, “Benefícios”, “Mídias” e “Ciências”ccO uso dos termos no plural cumpre um papel de valorizar a diversidade de experiências das pessoas, que são múltiplas, e de evitar criar “tipos fixos” de mães, crianças e de outros atores que fazem parte das experiências com as crianças com microcefalia. .

No primeiro capítulo, há o compartilhamento de experiências de uma mãe com a gestação e o nascimento de uma filha com SCVZ. Após o processo do diagnóstico, surge uma nova rotina de cuidados com a criança com deficiência. Ao longo do capítulo, apreendemos aspectos do diagnóstico, da dependência e do gênero nas relações e práticas de cuidado. A autora também explora instrumentos de agência e o uso político da experiência e da voz na mudança na vida e nos relacionamentos das “mães de micro”22. Alves RLC. Mulheres. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 39-49. .

No segundo capítulo, a autora contextualiza experiências de pais no cuidado. Partindo do fato de que o cuidado é cultural e socialmente atribuído às mulheres, para uma mulher ser considerada uma “mãezona”, ela precisa saber lidar com profissionais, transitar pela cidade e entre instituições de saúde, além de ser uma boa cuidadora. Por outro lado, para ser um “paizão”, é cobrado um menor envolvimento: basta o não abandono, o engajamento em algumas das atividades de cuidado ou o pagamento de pensão. Nesse sentido, o capítulo contribui para a discussão de gênero no cuidado com a deficiência33. Freitas GRD. Homens. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 51-63. .

A autora do terceiro capítulo – “Crianças” – detalha experiências das crianças diagnosticadas com SCVZ. Conforme profissionais de saúde e cientistas, essas crianças com “micro” não teriam uma infância considerada normal. No capítulo, são relatados episódios de discriminação contra a criança com deficiência nos contatos com profissionais de saúde, nos transportes e em outros ambientes de sociabilidade. Também há discussões sobre infância, deficiência, diversidade e inclusão em ambientes públicos44. Valim T. Crianças. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 65-75. .

No quarto capítulo, Fleischer analisa os “Doutores” a partir de fragmentos das experiências das mães e crianças com pesquisadores e profissionais de saúde e destrincha as experiências das famílias com a Biomedicina. Vistos como detentores de conhecimento e poder, os “doutores” foram responsáveis por apresentar um “novo mundo”: o das práticas de saúde, tratamentos e nomenclaturas biomédicas55. Fleischer S. Doutores. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 77-88 .

A partir da experiência nesse “novo mundo”, as mães conhecem a Medicina e se apropriam de parte do conhecimento biomédico para lidar com profissionais da saúde ou traduzir/explicar técnicas e orientações de cuidado aos familiares. No capítulo, são descortinados aspectos das relações e debates entre os especialistas formais – os “doutores” – e as especialistas pela experiência de cuidado – as “mães de micro”. As mães, com suas diversas experiências com o cuidado prolongado de uma criança com deficiência nos ambientes de prática de saúde e com o Sistema Único de Saúde (SUS), também se tornam doutoras55. Fleischer S. Doutores. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 77-88 .

No quinto capítulo – “Medicamentos” –, a autora escreve sobre o uso destes pelas “crianças com micro”. São explorados aspectos sobre saúde, paliativismo e controle dos sintomas comuns à experiência da SCZV. O cotidiano com os medicamentos demanda rearranjos domésticos e tempo da mãe, além de capacitação em relação a técnicas, de preparo e administração de medicamentos. No contexto de pesquisa, os medicamentos auxiliam a evitar complicações mais graves. Por outro lado, modificam as dinâmicas da família, inclusive em relação ao uso de recursos financeiros66. Camargo ACK. Medicamentos. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 89-99. .

No sexto capítulo, a autora explora as “Escolas”. Dado que os “bebês com micro” diagnosticados em 2015 e 2016 chegaram à idade escolar, novos aspectos passam a integrar o cotidiano das famílias. A educação, compreendida como aspecto primordial de vida da criança, confere esperança à família, assim como a estimulação precoce. Por outro lado, preocupações relacionadas à escola passam a rondar os pensamentos das famílias, especialmente das mães, tais como: a escola será adaptada? As professoras conseguirão/saberão socorrer a criança em caso de crise de epilepsia?77. Garcia JV. Escolas. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 101-10.

No decorrer do capítulo, conhecemos parte da história da mãe Marilene e de sua filha Tetê. Com medos e inseguranças sobre a inclusão escolar e de preconceitos pelas “particularidades” da filha, Marilene gravou e enviou um vídeo de antemão à escola. No vídeo, são mostradas as diferenças de Tetê, sua rotina e seus “gostos e preferências”. A partir da história de Marilene, de Tetê e de outras, a autora enfatiza a importância da luta por uma educação inclusiva e “respeitosa às diferenças”, pois o ambiente escolar ainda opera exclusões77. Garcia JV. Escolas. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 101-10. .

No sétimo capítulo – “Transportes” –, as autoras expõem um relato de uma mãe sobre experiências de preconceito no transporte público de sua região. São exploradas questões que dizem respeito a gênero, renda, mobilidade urbana e diferenças regionais, pois mães e famílias de “micro” de regiões interioranas enfrentam maiores dificuldades no acesso aos serviços saúde. São apresentados marcos legislativos nacionais e regionais/locais que muniram as mães para lutas individuais e coletivas. De algum modo, os transportes permitiram que as mães reconhecessem os direitos de suas crianças e se articulassem em prol da luta por acessibilidade e pelo reconhecimento da cidadania de suas crianças88. Silva ALS, Lima F. Transportes. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 113-26. .

No oitavo capítulo, intitulado “Dinheiros”, são apresentadas experiências das mães de “crianças com micro” com recursos financeiros, geralmente escassos. Na pesquisa, as famílias acompanhadas tinham como fonte de renda principal o Benefício de Prestação Continuada (BPC) da criança, de importância central à vida financeira das famílias. A autora chama atenção a fenômenos como o abandono e desamparo financeiro das “crianças com micro” e de suas mães por parte de ex-companheiros. São exploradas as redes de apoio formadas por outras "mães de micro" e por profissionais especialistas que atendiam crianças de graça99. Costa CS. Dinheiros. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 127-35. .

No nono capítulo – “Benefícios” –, são explorados programas sociais de habitação, transporte e saúde e as experiências das famílias afetadas pela SCZV. Considerados como “benefícios”, a preferência em filas para creche ou em sorteios de habitação do Minha Casa Minha Vida são direitos e fazem parte das políticas de seguridade social. A autora problematiza essa visão equivocada de direitos serem vistos como “benefícios” no decorrer do capítulo. Apesar de garantidos pelas legislações e de conhecimento das mães, estas encontram grande burocracia estatal e barreiras atitudinais de profissionais para acessar esses direitos1010. Marques BM. Benefícios. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 137-49. . Nesse sentido, é necessário destacar a fala de uma mãe sobre direito, política e cidadania:

[...] o benefício é um direito, é um direito nosso, é um direito que a pessoa com deficiência tem, então não é um benefício, pra mim, o Estado não está dando, é um direito que minha filha tem e isso está na Constituição1010. Marques BM. Benefícios. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 137-49. . (p. 144)

Flávia Lima, que acompanhou e pesquisou a mídia e a epidemia do Zika vírus, reflete no penúltimo capítulo – “Mídias” – sobre o papel da mídia em divulgar a epidemia e as histórias das “crianças com micro”. O engajamento na mídia permitiu a atualização e o compartilhamento de informações biomédicas sobre a SCZV. Houve atuação da mídia e presença de repórteres e investigadores na divulgação de demandas, denúncias, lutas e histórias de crianças e famílias afetadas por essa condição nos anos iniciais da epidemia1111. Lima F. Mídias. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 151-64. .

Com o passar do tempo, as visitas e os convites foram diminuindo e ocorreu o abandono paulatino das famílias, por parte da mídia, que cobria outras pautas, como o golpe de 2016. Diante de menor atenção de cientistas, pesquisadores e da mídia, as mães recorreram a outras parcerias em associações e na internet, engajando-se em grupos, coletivos ou atividades em redes sociais ou aplicativos mensageiros1111. Lima F. Mídias. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 151-64. .

No último capítulo – “Ciências” –, a autora descreve o papel da Antropologia na compreensão das experiências das famílias, dos profissionais da saúde e dos cientistas com a SCZV. A princípio, o ineditismo da epidemia impactou nos campos de pesquisa, que ficaram sobrecarregados e disputados. A autora estimula reflexões bioéticas sobre pesquisas que envolvem seres humanos e apresenta denúncias de “mães de micro” que permitiram a realização de coletas de materiais de suas crianças e não obtiveram um retorno da pesquisa1212. Simas A. Ciências. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 165-76. .

Essas experiências, justificadas e vistas por alguns pesquisadores como um somatório de forças para potencializar as descobertas sobre a síndrome, geralmente abarcam aspectos como violações éticas em pesquisa, que são denunciadas no capítulo, e envolvem perda de amostras de sangue das crianças, as quais “vão passando de mão em mão até desaparecer. Um exame de imagem que foi repetido em várias instituições e nunca devolvido ao paciente” (p. 176)1212. Simas A. Ciências. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 165-76. .

A meu ver, a experiência de Soraya Fleischer como pesquisadora e de Flávia Lima como jornalista, ambas vinculadas à Antropologia da Saúde, permitiu que o livro descortinasse aspectos dos bastidores de uma pesquisa antropológica, dos desafios, dos trajetos percorridos e das cenas. Na obra micro, contribuições em Antropologia as autoras fornecem pistas sobre o estabelecimento e manutenção de vínculos – entre mães e crianças com deficiências – com pesquisadores e sobre as relações que ultrapassam o trabalho de pesquisa, o tempo do campo e as relações de cuidado. Isso possibilitou que as pesquisadoras considerassem individualidades das mães no processo de escrita, organização, produção, divulgação e lançamento do livroddO livro ocupa pouco espaço na bolsa das mães ou nas mochilas das crianças. A organização em pequenos capítulos permite que seja lido nos momentos de “respiro” das mães, durante o uso de transportes, na escola e nos serviços de saúde, por exemplo. O lançamento ocorreu à distância, no dia 24/07/2020, por videoconferência, devido à pandemia de coronavírus e à importância do isolamento social como medida de proteção à saúde. Para as organizadoras, a inclusão das mães e crianças no lançamento representa às pesquisadoras um momento de retorno e validação dos dados; e um momento de dizer “Oi!”, perguntar como as mães e crianças estão, o que tinham achado do livro, de agradecer por compartilharem suas experiências e de dar espaço para suas vozes. .

No decorrer dos capítulos do livro, pode parecer que algumas experiências apresentadas reforçam estereótipos atrelados às cuidadoras de crianças com deficiência relacionados às ideias de “mãe guerreira”, “cuidadora”, “heroína”, “forte” e “mãezona”. É notável que não é proposital. Contudo, proponho a seguinte reflexão: esse local experienciado pela “mãezona” não seria o único ao qual elas podem pertencer, visto que a maioria é abandonada pelos companheiros, fazendo-a se tornar a principal cuidadora, por opção ou obrigação?33. Freitas GRD. Homens. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 51-63.

Já que as “mãezonas” são desamparadas pelo Estado, uma perspectiva frutífera de se olhar esse local ocupado por elas seria pelo que Deborah Poole e Veena Das1313. Das V, Poole D. El estado y sus márgenes. Etnografias comparadas. Cuad Antropol Soc. 2008; 27:19-52. nomeiam, em suas etnografias comparadas, como as margens do EstadoeeVeena Das e Deborah Poole 13 discutem, a partir da provocação de Talad Asad sobre as teorias do Estado e de suas margens. As autoras sugerem que as margens podem abarcar iniquidades de acesso, sofrimentos e incertezas; e refletem, ao final do texto, que as margens são indeterminadas, pois se movem. Os indivíduos circulam e interagem por dentro e fora dos limites do Estado. Essa indeterminação das margens permite a elaboração de formas de resistência, mas também de estratégias para que o Estado entre como uma margem no corpo e, portanto, na vida dos cidadãos. . Diante desse local marginalizado que ocupam, é requerido que essas mães se mobilizem e se engajem em inumeráveis atividades, ao longo do tempo, para que sejam reconhecidas as cidadanias e assegurados os direitos de suas crianças.

Ao considerar esse referencial sobre as margens, penso ser interessante reforçar que o Estado está presente na vida das mulheres e crianças e que sua burocratização impede os acessos à moradia; já sua “ausência” dificulta o cuidado em saúde; em uma epidemia causada pelo próprio Estado1111. Lima F. Mídias. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 151-64. . É somente por meio dessa guerra travada contra o Estado e seus agentes, pelas “mães de micro” e/ou outras “mãezonas” de crianças com deficiências, que são efetivados acessos a políticas sociais, de saúde, renda, habitação, educação, transporte e tantos outras exploradas nos capítulos do livro.

Partindo de experiências particulares, as autoras conseguem considerar em suas discussões e análises a multidimensionalidade e diversidade do cuidado na deficiência e suas articulações com gênero, classe, raça e localidade. Isso permite compreender, em alguma medida, como esses marcadores moldam as experiências de cuidado das “mãezonas” com as “crianças com micro” e impactam nas relações com o Estado e a Biomedicina no Brasil.

A clássica obra de Joan W. Scott1414. Scott JW. The evidence of experience. Crit Inq. 1991; 17(4):773-97. acerca da evidência da experiência está presente na Antropologia da Saúde e define a experiência como uma categoria histórica e políticaff“Experiência” não é uma palavra que podemos usar para naturalizar um tipo de identidade do sujeito. Ela nos é cotidiana e atravessa aspectos da linguagem e as nossas narrativas. Isso implica enfocar processos de produção de identidade e insistir na natureza discursiva da experiência e na política de sua construção. A experiência é, ao mesmo tempo, sempre uma interpretação e algo que precisa ser interpretado. que permite relembrar e falar sobre o que se viveu, estabelecer semelhanças e diferenças e contestar conhecimentos1414. Scott JW. The evidence of experience. Crit Inq. 1991; 17(4):773-97. . Durante a leitura dos capítulos, lembrei da obra, pois em vários relatos notamos disputas de conhecimento e cuidado, entre mães e profissionais especialistas. As “mãezonas”, a partir das experiências de cuidado de uma “criança com micro”, também contestam o conhecimento biomédico hegemônico.

O livro é imprescindível para pensarmos e analisarmos as relações entre pesquisadores e “doutores” com mães e famílias com crianças vivendo com deficiências no que concerne epidemia, políticas públicas, saúde e Estado, bem como o que acontece no presente de uma epidemia e o que fica no após. No caso específico da epidemia de Zika , no Brasil: dependências; necessidades de cuidados para uma vida toda, de locomoção a hospitais/clínicas e de aumento de gastos com saúde; e vulnerabilização social e financeira das famílias afetadas.

Por outro lado: resistência, ação política, solidariedade, agenciamentos individuais e coletivos. Durante a leitura do livro, são explorados agenciamentos das mães e famílias, de coletivos e associações por meio de relatos de judicialização da saúde e das lutas por reconhecimento dos direitos e acessibilidade das crianças com Zika , por parte do Estado, o que me fez refletir sobre a categoria do ativismo e se poderíamos compreendê-la para além das redes de apoio social e associações. As vivências compartilhadas no livro e de outras tantas famílias que convivem com crianças com deficiência nos apontam que o ativismo acontece para além das associações e dos ambientes digitais: acontecem também no cotidiano do cuidado e na “vida real”.

Parece-me que o “ativismo da vida real”, nas experiências de pessoas com deficiência, destas e de outras famílias e de “mãezonas”, é materializado, por exemplo, na luta diária contra o estigma e o preconceito; por direitos; pelo reconhecimento da cidadania da criança com deficiência; por seu acesso a espaços públicos de convivência e socialização; e por políticas sociais, educacionais e de saúde. Há também uma materialização desse ativismo na busca por espaços de fala, debates e de compartilhamento de experiências nas redes sociais sobre maternagem, cuidado, diversidade e deficiência.

Enfim, o livro deve ser considerado como importante material didático, formativo e de pesquisa por graduandos, pós-graduandos e docentes/orientadores de pesquisas com, para e sobre pessoas com deficiência, nas mais diversas áreas – como Saúde, Educação e Direito – que dialoguem com as Ciências Sociais; com a Antropologia da Saúdes; e com ativistas e militantes dos movimentos sociais que contribuem para os estudos e debates sobre deficiência.

Agradecimentos

A Laura Moutinho, Lucas Pereira de Melo, Lumena Cristina de Assunção Cortez e Pedro Lopes pelas leituras atentas, críticas e sugestões pertinentes. Sou grato às crianças com e mães de “micro” que compartilharam suas histórias e experiências com a SCZV e com as pesquisadoras/autoras do livro sobre as deficiências, a dependência, os cuidados de longa duração e as relações com a família, o Estado, o SUS, os profissionais de saúde e os pesquisadores.

Referências

  • 1
    Fleischer S. Introdução. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 17-36.
  • 2
    Alves RLC. Mulheres. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 39-49.
  • 3
    Freitas GRD. Homens. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 51-63.
  • 4
    Valim T. Crianças. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 65-75.
  • 5
    Fleischer S. Doutores. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 77-88
  • 6
    Camargo ACK. Medicamentos. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 89-99.
  • 7
    Garcia JV. Escolas. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 101-10.
  • 8
    Silva ALS, Lima F. Transportes. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 113-26.
  • 9
    Costa CS. Dinheiros. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 127-35.
  • 10
    Marques BM. Benefícios. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 137-49.
  • 11
    Lima F. Mídias. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 151-64.
  • 12
    Simas A. Ciências. In: Fleischer S, Lima F, organizadoras. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Editora Athalaia; 2020. p. 165-76.
  • 13
    Das V, Poole D. El estado y sus márgenes. Etnografias comparadas. Cuad Antropol Soc. 2008; 27:19-52.
  • 14
    Scott JW. The evidence of experience. Crit Inq. 1991; 17(4):773-97.

  • b
    O contato das mães foi possível a partir de informações encontradas em um site, o “Cabeça e coração”, sobre elas e suas crianças. O site foi criado para angariar doações para as famílias afetadas pela epidemia na época. No momento de escrita da resenha, o site original não pôde ser encontrado, no entanto, há uma página no Facebook da iniciativa, disponível em: https://www.facebook.com/projetocabecaecoracao
  • c
    O uso dos termos no plural cumpre um papel de valorizar a diversidade de experiências das pessoas, que são múltiplas, e de evitar criar “tipos fixos” de mães, crianças e de outros atores que fazem parte das experiências com as crianças com microcefalia.
  • d
    O livro ocupa pouco espaço na bolsa das mães ou nas mochilas das crianças. A organização em pequenos capítulos permite que seja lido nos momentos de “respiro” das mães, durante o uso de transportes, na escola e nos serviços de saúde, por exemplo. O lançamento ocorreu à distância, no dia 24/07/2020, por videoconferência, devido à pandemia de coronavírus e à importância do isolamento social como medida de proteção à saúde. Para as organizadoras, a inclusão das mães e crianças no lançamento representa às pesquisadoras um momento de retorno e validação dos dados; e um momento de dizer “Oi!”, perguntar como as mães e crianças estão, o que tinham achado do livro, de agradecer por compartilharem suas experiências e de dar espaço para suas vozes.
  • e
    Veena Das e Deborah Poole 1313. Das V, Poole D. El estado y sus márgenes. Etnografias comparadas. Cuad Antropol Soc. 2008; 27:19-52. discutem, a partir da provocação de Talad Asad sobre as teorias do Estado e de suas margens. As autoras sugerem que as margens podem abarcar iniquidades de acesso, sofrimentos e incertezas; e refletem, ao final do texto, que as margens são indeterminadas, pois se movem. Os indivíduos circulam e interagem por dentro e fora dos limites do Estado. Essa indeterminação das margens permite a elaboração de formas de resistência, mas também de estratégias para que o Estado entre como uma margem no corpo e, portanto, na vida dos cidadãos.
  • f
    “Experiência” não é uma palavra que podemos usar para naturalizar um tipo de identidade do sujeito. Ela nos é cotidiana e atravessa aspectos da linguagem e as nossas narrativas. Isso implica enfocar processos de produção de identidade e insistir na natureza discursiva da experiência e na política de sua construção. A experiência é, ao mesmo tempo, sempre uma interpretação e algo que precisa ser interpretado.

  • Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Brasil– Código de Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br